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sábado, 8 de novembro de 2008

Guiné 63/74 - P3424: 16.000 minas montadas entre Bula e S. Vicente (António Matos, ex-Alf Mil, CCAÇ 2790, Bula, 1970/72)

Como sobrevivi a um campo de minas 

António Matos ex-Alf Mil CCAÇ 2790 Bula, 1970/72

Já por várias vezes referi neste blog à minha interferência na montagem dum campo de minas no terreno que ladeava a estrada Bula - S.Vicente, mas para uma melhor compreensão de quem o não saiba, vou tentar dar uma ideia mais precisa dessa realidade.

A estrada Bula-S.Vicente tinha uma extensão de cerca de 16 kms e ao longo dela realizavam-se caravanas de transporte de populações para além das patrulhas militares. A Guiné é constituída por uma morfologia de terreno plano, sendo que a maior altitude se cifra nos 300 metros, num planalto do maciço do Futa Djalon o que, em termos militares, dificultava a orientação por falta de referências. De um e de outro lado da referida estrada existiam dois pontos estratégicos: Ponta Matar, a oeste, e Choquemone, a leste.

Ao tempo, 1970/72, estes locais albergavam guerrilheiros que procuravam mantimentos perto de Bula (tabancas de Capunga, Pete, Ponta Consolação, Augusto Barros e Mato Dingal). A minagem justificava-se para obrigar o IN a utilizar as passagens que estivessem "vigiadas" 24 horas por dia pelas nossas tropas. Para essa tarefa formaram-se várias equipas de especialistas uma das quais, liderada por mim.

Estávamos em Outubro de 1971

Estratégicamente, pretendia-se minar todo o lado leste da estrada, desde o km 4 até ao km 13. Tecnicamente, a implantação das minas seria em duas fiadas mais ou menos paralelas. Obtido o azimute desde o ponto de referência inicial do troço até ao ponto final do mesmo, mediam-se os primeiros 3 metros nessa linha imaginária; aí, e perpendicularmente a essa linha, mediam-se 1,5 metros onde se abria um buraco com a ajuda da faca do mato, que albergasse a mina anti-pessoal de fragmentação, portuguesa, ficando apenas a descoberto, as 3 finas pontas finais as quais, uma vez pisadas, despoletariam toda a sequência de deflagrações por simpatia até que a última, a do bloco de trotil onde se encaixava o detonador, faria os piores e mais hororosos estragos à infeliz vítima. Uma vez colocada esta mina, metálica e detectável com o detector eléctrico, mediam-se novamente 1,5 metros quer para a esquerda, quer para a direita quer ainda para a frente dela e, em cada uma destas localizações, montava-se uma mina anti pessoal de sopro, italiana, de seu nome Encrier.

as mãos...

Regressando à linha imaginária entre as duas referências, mais 3 metros e repetia-se toda esta sequência, embora para o lado contrário. Se se imaginar agora que, paralelamente, seguia uma outra linha imaginária com o mesmo esquema e número de minas, fácil é de calcular que a densidade por metro quadrado não dava grandes hipóteses de se passar sem accionar um destes engenhos. Todo este trabalho era simultâneamente acompanhado da feitura dum croqui que permitisse a todo o momento procurar, verificar, substituir, ou levantar o que fosse necessário. Claro que as precauções eram imensas! Desde logo porque todo o manuseamento dos engenhos era, já de si, susceptível de disparo inadvertido; depois porque as Encrier eram quase que deixadas à superfície o que não impedia que qualquer bicho ao farejá-las não levasse com ela nos queixos e por ali ficasse; a própria época das chuvas se encarregaria de as deslocar (dificultando perigosamente a sua localização à posteriori); os azimutes tinham de ser extremamente bem conseguidos sob pena de 1 grau de desvio representar uma grande amplitude de erro ao longo da linha imaginária; finalmente, a formação do bagabaga em cima das ditas tornava a operação de resgate uma tarefa imprópria para cardíacos! No total montaram-se cerca de 16.000 minas e, a par de alguns indígenas, e de diversos macacos, houve também vários camaradas acidentados.

a imagem Google (clicar para ver em tamanho mais aceitável) mostra esquematicamente a localização e extensão deste campo de minas. Infelizmente, na guerra, a "cunha" era tão omnipresente como no quotidiano e, como sempre, ganha o mais poderoso ainda que, posteriormente, não se evitem lágrimas de crocodilo para aligeirar "os remorsos".

Os campos de minas não se levantam, passam-se

Quero eu com isto dizer que, sendo dos livros que um campo de minas não se levanta, passa-se (para isso existem os croquis), aparecem sempre ombros estrelados que, por cagaço, incompetência e/ou mera prepotência, mandam os livros às malvas e impõem a lei do mais forte! Foi também o que aconteceu com esse campo de minas o qual teve que ser levantado (antes da guerra acabar!!!) apenas porque sim! Essa operação tornou-se um verdadeiro inferno em muito ajudado pela incompreensível condescendência admitida aos comandos dos piriquitos numa altura em que o fim da nossa comissão estava a chegar. Diariamente seguíamos para o campo com um espírito negativista devido à cadência dos acidentes e não raras vezes os vivi a uma distância de alguns poucos metros e mesmo alguns centímetros. E PUM!

Uma vez mais por meros motivos de memória futura destapo o baú das minhas más recordações e relato uma dessas ocasiões.

O Alf António Matos com o detector...

Tinha sido já detectada (por detector) a mina de fragmentação e propunha-me descobrir as outras à base de picagem do terreno. Simultâneamente, outro elemento de outra equipa (Furriel José Abreu, sapador) ocupava-se de idêntica operação no cacho (conjunto das 4 minas) contíguo; mais ao lado, um terceiro camarada (Furriel Santos) num 3º cacho. Eram evidentes as dificuldades em encontrá-las uma vez que essas minas estavam todas deslocadas das posições habituais por via das chuvas que, entretanto, tinham caído. Uma operação que normalmente demorava uns escassos minutos a neutralizar, prolongava-se, neste caso, há mais de 1/2 hora! Ordenei várias paragens para verificação de possíveis más colocações nossas mas não era o caso.

Repentinamente, PUM! e dou por mim caído no chão com o Abreu muito perto também estatelado . Os primeiros momentos foram de horror com a perspectiva das consequências. Recuperada a lucidez possível, perguntei ao Abreu se tinha sido ele a pisá-la, e o pânico apoderou-se dele perante essa expectativa. Não teve coragem para confirmar e então comecei eu a temer pela minha sorte. A dúvida de ambos é algo impossível de descrever pelos sentimentos provocados. Era imperioso esclarecer a situação e a muito medo cada um teve de certificar-se se ainda era possuidor de ambos os pés ou mesmo de ambas as pernas. É nessa altura que o camarada Santos, ali do outro lado, começa a dar sinais de ter sido ele a vítima. Havia que o ajudar de imediato mas não podia esquecer que estávamos caídos num campo de minas e qualquer gesto menos pensado podia transformar a ocasião num verdadeiro mar de sangue pelo possível rebentamento de vários outros engenhos. Tratei de localizar a nossa posição ao camarada enfermeiro (Aprígio) e "conduzi-lo" até nós via rádio. Esta tentativa demonstrou-se pouco prudente e optámos por levar o Santos para a estrada afim de ser socorrido. Uma vez aí, e perante um odor nauseabundo a carne humana assada, conseguimos pô-lo a soro e proceder à sua evacuação. A adrenalina só descarregou um par de horas mais tarde, no quartel, mas no dia seguinte, qual trapezista de circo que cai, voltamos para desafiar a sorte. Deus ajudou-me ! Estou inteiro! António

__________ 


  Notas: 1. Imagens e texto de António Matos.

2. Sublinhados e subtítulos da responsabilidade do editor. 2. artigos do autor em 1 de Novembro de 2008 > Guiné 63/74 - P3390 Tabanca Grande (95): António Garcia de Matos, ex-Alf Mil da CCAÇ 2790, Bula (1970/72)

quinta-feira, 26 de junho de 2008

Guiné 63/74 - P2987: Os nossos regressos (1): Lisboa, dois anos depois (Virgínio Briote)

O Uíge zarpou à hora prevista, mais minuto menos minuto. Tripulação civil e transporte de tropas, quase todos com as comissões terminadas. Como era costume naqueles tempos os oficiais e sargentos tinham direito a camarotes, as praças iam lá em baixo, nos porões. Repartia o compartimento com o capitão Viegas. Um homem calado, as falas que bastavam, mais simpático ainda. Não era tempo para grandes conversas.

Último jantar no Uíge. Serventes fardados, mesa com Vista Alegre e Cristofle, uma alegria entristecida.

Texto e fotos: © Virgínio Briote (2008). Direitos reservados

Ao jantar, o comandante do navio com o comandante de bandeira ao lado, deu-lhes as boas-vindas, desejou-lhes boa viagem. Que iriam directos a Lisboa, sem escalas. Que bom, ao menos isso. Depois jantaram com aquelas cerimónias todas que a marinha, seja mercante ou de guerra, gosta de se tratar bem e gosta também que se veja. Quando terminaram, Bissau era uma mancha iluminada, já muito longe.

Encostado à amurada, ficou sozinho, a olhar para trás. Uma brisa fresca, continuava febril, os olhos com água. O que fiz aqui, que levas na memória? Voltarias a esta Guiné, outra vez de arma na mão? Farias o mesmo, da mesma maneira?

Farim, o Ten Coronel Cavaleiro, o Mealha, o infeliz do capitão de Cuntima, o Didi, o Fininho do bar. O enxerto de porrada que vira um deles dar a um negro que caíra na emboscada em Sitató. As mãos, os nós dos dedos, e o infeliz não dizia nada, não sabia nada. A cena do batuque. O pedido que lhe tinham feito para fazerem uma festa entre eles. Que sim, mas só até às 11 da noite. O batuque, muito para lá da meia-noite, não parava nem com o piquete ali, à espera que tudo acabasse. A ordem que dera para darem por finda a festa. Vai já, vai já e nunca mais acabava. A tropa a querer descansar, iam sair lá para as cinco. Pega no gajo e manda-o parar a merda do batuque. Porrada no gajo, o tipo no chão aos gritos, os batucantes em alvoroço. Parou tudo. Começou foi uns dias depois, um auto de averiguações e, se houvesse matéria, um auto de corpo delito, que só não teve seguimento porque o Ten Coronel de Farim lhe pôs ponto final. O administrador de Posto, civil, vira tudo de longe, fizera uma participação ao Governo-Geral, a relatar o que vira, soldados a espancar nativos. A psico, que chatice, a dar passos para trás. Tempos depois, o Ten Coronel pegou-lhe num braço, levou-o para um canto, quis ouvir a história da boca dele. Mandou vir à sua presença, o oficial responsável pelo processo de averiguações, pô-lo ao corrente do que ouvira do alferes. Antes de terminar, ouvira-o dizer, não se bate nestes gajos, nunca permita uma coisa dessas, ouviu? O que lhe custara mais nesta história foi a reacção do Didi, o camarada de Cuntima. Se eu for chamado a depor, ficas avisado que vou testemunhar contra ti. Não se bate em ninguém, muito menos num desgraçado que não se pode defender contra uns gajos de G-3 na mão! Custara-lhe ouvir, é certo, mas acabara por aceitar. Voltaram a falar-se e voltaram a ficar amigos, mais tarde.

Meses depois, lançados num final do dia na zona de Canjambari, nem queria acreditar, viu o saco, o que o capelão das calças do cocó lançara do Dornier! Não pode ser. Mas era o mesmo saco do pão, a olhar para ele, formigas brancas, enormes por todo o lado, o saco todo roto. Os gajos de Canjambari, do alferes ao corneteiro, todos com os cabelos oxigenados, a gargalhada interrompida com as duas morteiradas da praxe.

A bela mulata escura de Cuntima, que reencontrara quando lá voltara, sentados no alpendre da casa dela, com a noite a abrigá-los. A estadia em Barro e Bigene a dar-lhe a volta, a marcá-lo. Achas que a tua presença foi benéfica para a população, como te disseram tantas vezes? O Rasas que conheceste, os outros Rasas todos com quem tiveste de conviver, em quartos espalhados por Buba, em Tite, no Xitole, em Mansoa, no Hospital, pela Guiné toda. Até o Rasas tu encontraste em ti, não uma vez, mas muitas, vezes demais. O Joaquim com as costas todas furadas, eram balas 7,62, nossas, de quem havia de ser, o médico "legista" para ele, uns dias depois. O Kássimo, voz de menina, um bailarino no mato, o Roberto e a carta da mulher endereçada ao capitão Leandro. A nossa filhinha morreu, cuidado com o meu marido, peço-lhes por tudo, senhores alferes e capitães, por tudo! Desenrasque-se, alferes, o capitão a assinar no envelope.

O Matos, o miúdo do AN-PRC10 com a coronha partida da G3 no meio do fogaréu, e agora, que porra? O Álvaro com um estilhaço alojado no ombro. O Caeiro, um bigodinho fino que lhe raparam no hospital, para lhe tirarem areia e pedacinhos de ferro da cara, o Angola, um grande soldado. A saída prematura do Furriel Azevedo e a falta que fez.

E o Silva à procura da sua morte, mais de quinze dias depois de terminar a comissão, uma azelhice sem retorno. E logo ali, um minuto antes ou depois, um guerrilheiro desesperado, arma branca na mão para os dois metros curvados do Albino. A MG-42 naqueles dedos de artista, a desenhar a cara de um gajo com um cigarro na boca, até o fumo subia. A carta do padre da terra do Silva a querer saber pormenores. Que é que este gajo quer que eu diga? Desenrasque-se, escreva qualquer coisa que fique bem, o capitão sempre a chutar. O Guimarães das Taipas, um falador e o Mamadú Djaló que só falava quando alguém se dirigia a ele. O Moura, um beirão com pouco mais de metro e meio de alegria, o Bacar Djassi do caso de Barro, "intelectual" e com vontade própria, um assunto bem arrumado. O Black, o Pascoal, o valente Carvalho, um alentejano de força, a quem dera o fato novo que comprara em Lisboa, numa alfaiataria junto ao elevador de Santa Justa, um dia antes de embarcar. Para que queres o fato, pá? É um azul invulgar, lindo, o Leite, o tal apanhado à mão em Sare Bacar, a opinar. Mudara de cor em Bissau, parecia um espelho, um azul eléctrico, faíscas para todo o lado. O Caleiro, calças numa poça escura, sem um ai, encarrapitado nas costas de um deles a caminho do heli, amor de Mãe e de fetura noiva no braço. O Furriel Valente de Sousa e o Sargento Valente, sempre a moderar-lhe os ímpetos. E outros que ficaram pelo caminho. E o caso de Jolmete, a arrastar-se quase até ao fim. Uns dias antes de ir para Mansoa, um alferes dos serviços de justiça do QG dissera-lhe que afinal o Ministro lhe tinha agravado a pena para 10 dias de prisão disciplinar agravada. Como, isso ainda mexe? Ora, vamos lá ver. Era verdade, pois claro, estava lá na ordem de serviço, prontinha a sair. Onde pára o nosso Brigadeiro, na vivenda dele? Onde fica? O nosso Comandante está lá dentro, preciso avisar, a sentinela negra à frente, é urgente? Pode entrar, o Brigadeiro e coronéis num salão, portas envidraçadas, à volta de uma mesa de bridge, então há problemas? 10 dias de prisão disciplinar agravada, do Ministro do Exército, sobre aquele assunto que o meu Brigadeiro tinha dito estar sob o seu controle. Para saber da minha boca, com os meus respeitos, meu brigadeiro, boa-noite. E o capitão Leandro, dias depois a dizer-lhe da conversa com o Comandante Militar que não apreciara nada a entrada intempestiva.

Crescera tão depressa, com tanta merda que tinha feito, se pudesse voltar atrás estes dois anos! Sinto-me velho, faço 23 dentro de dias, lembrei-me agora. Deitava-se tarde, levantava-se tarde, ainda não arrumara as horas do sono. Tomava o pequeno-almoço e o almoço ao mesmo tempo.



... E agora só paramos em Lisboa!

As tardes passava-as nos conveses, junto à balaustrada, sentado naquelas cadeiras que os navios têm. Sempre com bom tempo, mar também, olhava para longe, vinham-lhe lembranças, adormecia, voltava a olhar, memórias futuras, como seriam, como seria o reencontro com os seus, com a namorada. Arrepios de febre, de medo e contentamento. Só deveria ter à sua espera o conhecimento de Angra. Numa correspondência cada vez mais esporádica, meses sem lhe dar notícias, ela na mesma. Recebera para aí há um mês um postal dela, de Lisboa, tinha vindo para o continente, fixara-se na Parede. Deves estar a sair daí, não? Não voltes a escrever, não vale a pena, arranco no mês que vem, parece que é o Uíge que vai levar este esqueleto. No dia em que chegara com a mala nova ao quarto, já em Sta Luzia, tinha uma carta dela. Iria procurar saber a data da chegada do navio, esperava poder estar lá e, quem sabe, reeditar a correspondência ao vivo. Não, agora é outro tempo. Foi bom, passou. Uma noite daquelas, já se deviam ver as ilhas de Cabo Verde, o comandante do Uíge informou-os que teriam que escalar S. Vicente. Atracariam no Mindelo, só o tempo para meter águas. Como é possível, para meter águas? Não as meteram antes, só agora é que se lembraram que lhes está a faltar água? Nunca mais chego a Lisboa.

O N/M Uíge, que tantos milhares de tropas transportou, de Lisboa para Bissau e de Bissau para Lisboa, ao longo da guerra do Ultramar, aqui visto do Mindelo, Cabo Verde, com o Monte Cara ao afundo...

Meio-dia no Mindelo. Tanta vontade de partir dali, que nem saiu do navio. Ficou-se aquele tempo todo no barco, a olhar para a cidade, para os montes, Clicks na Ricoh até acabar o rolo. Muitas mais horas do que lhes tinham dito, finalmente tiraram as amarras, outra vez no bom caminho.
Nem acreditava, devia estar a sonhar, um ponto ao longe primeiro, uma recta de pontos uns minutos depois, uma curva cada vez maior no meio do rio, o Tejo a levá-lo até Lisboa, desde a manhã cedo desse dia, 27 de Janeiro.
 
Finalmente Lisboa e a sua belíssima nova ponte, que levou menos de 4 anos a construir (de 5 de Novembro de 1962 a 6 de Agosto de 1966), uma obra emblemática do Estado Novo

Tinha embarcado em Lisboa em 10 de Janeiro de 1965, pôs os pés pela primeira vez em Bissau, em 19 do mesmo mês e ano. Embarcou em Bissau em 19 de Janeiro de 1967, exactamente dois anos depois. Uma cena já filmada muitas vezes, uma multidão no cais, na Rocha Conde de Óbidos, gente de idade, muitas roupas escuras, de inverno, algumas jovens também. Tinha tudo preparado, mala e saco em cima da cama. Vai assim, só com a camisa vestida? É Janeiro em Lisboa, sabe? Não tinha nada mais para vestir, também não tinha frio, o calor da Guiné, mais o calor que sentia de deixar para trás aquele tempo todo. Foi lá para cima, para o ponto mais alto que pôde, ver a multidão, lenços no ar, os militares aos gritos, ó Nuno olha-me para aquela brasa, um esqueleto qualquer lá de baixo com um lenço na mão a acenar cá para cima, um contentamento que não há palavras que contem. Saíam aos trambolhões, malas com eles a caírem pelas escadas. Não vem? Fico para o fim, não tenho ninguém à minha espera, pelo menos quem eu queria.

Saíram todos, uns mais lentos, agora mais espaçados e lá em baixo, os abraços intermináveis, os choros de alegria, e uns óculos escuros no meio de um cabelo farto até aos ombros, um casaco preto comprido, uma figura que lhe fez lembrar a Juliette Grecco, era ela, o conhecimento de Angra. É pá, os teus pais estão aqui em baixo! Saiu mais depressa do que contava, num rápido passava-se com ele o que se estava a passar com os outros, abraços e lágrimas nos olhos do pai, a mãe aos gritos, o meu menino, o choro pela cara abaixo, Angra a meia dúzia de metros, sem saber o que fazer, depois discreta a acenar-lhe, a dizer-lhe adeus para sempre. Depois, a Mercedes a andar por aquela Lisboa, a 24 de Julho, o Terreiro do Paço, a rua da Prata, até ao Rossio. Os olhos a passarem por tudo. Mataste muitos turras? Juntaste muito dinheiro? Mal respondia ao que lhe perguntavam. Eram horas de tirar a farda. Passou por uma loja (Lourenço e Santos?), na esquina do Rossio com os Restauradores, um casaco azul-escuro, calças cinzentas, camisa branca e uma gravata a condizer, nem reparou que era tudo dois números abaixo para aí. Almoçaram no Solmar. A olhar para o salão do restaurante, dois anos, tudo na mesma, como se tivesse estado lá ontem.

No Depósito de Adidos, pediram-lhe que aguardasse, só o tempo para lhe passarem um papel para as mãos. Passa à disponibilidade desde amanhã o Sr. Alferes Mil. ...., indo domiciliar-se em Fonte Seca, freguesia de Fonte Seca, concelho de Braga. O portador deste documento deverá apresentá-lo quando lhe for exigido pela autoridade militar ou civil, em substituição da sua caderneta militar. Quartel em Lisboa, 24 de Fevereiro de 1967. O Comandante, Fulano Ferreira de tal, coronel.

Na estrada para o Porto, mal deu pela viagem, fartou-se de dormir. Nem se lembra onde ficou, talvez em casa dos pais em Fonte Seca, ou em casa dos tios em Gaia. Recorda-se, isso sim, do dia seguinte, a seguir ao almoço. O eléctrico para o Monte dos Burgos, o 6 por ali acima até ao Carvalhido, o passo acelerado até à rua dela, o toque na campainha, a corrida pelas escadas acima e ela a vir por ali abaixo.

vb