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sábado, 4 de abril de 2020

Guiné 61/74 - P20810: O que podemos aprender com as epidemias e pandemias do passado? (Luís Graça) - Parte II: Peste: "Mercator ergo pestiferus"


Esta aquarela mostra um EPI (equipamento de proteção individual) usado pelos médicos que lidavam com doentes de peste no início do século XVII. O EPI foi descrito por Jean-Jacques Manget (1652-1742) no seu 
 "Traité de la peste: recueilli des meilleurs auteurs anciens et modernes, et enrichi de remarques et observations théoriques et pratiques : avec une table très ample des matières"(Geneva: Philippe Planche, 1721). 

O EPI era composto por; (i) blusa feita de couro marroquino, (ii) por baixo do qual usava-se uma saia, calções e botas, todas em couro e ajustadas uma à outra; (iii) a parte comprida do nariz tinha forma de um longo bico de pássaro; (iv) estava cheia de substâncias aromáticas; (v) e os olhos estavam portegios por um óculo de vidro.

Fonte: cortesia de Wikimedia Commons / Imagem do domnínio público.


1. Até ao séc. XVI, há três grandes epidemias com maior ou menor impacto na situação sanitária e demográfica da Europa Cristã: a lepra, a peste e a sífilis. Estamos a abordar cada uma delas, para procurar tirar algumas lições para os dias de hoje, em que enfrentamos a pandemia de COVID-19.

Recorremos para isso a textos, já com duas décadas, que continuam disponíveis na página Saúde e Trabalho: Página Pessoal de Luís Graça, Sociólogo, alojada do sítio da Escola Nacional de Saúde Pública / Universidade MOVA de Lisboa. 


São excertos que estou a rever e a aligeirar, retirando por exemplo todas a maior parte das citações e referências bibliográficas. Depois da lepra (*), vamos falar da peste.




Peter Bruegel, o Velho (Breda, c. 1525/30 - Bruxelas, 1569): "O Triunfo da Morte" (c. 1562). Museu do Prado, Madrid. Pintura a óleo, de médias dimensões (1,17 m x 1,62 m), que mostra o triunfo da morte sobre o mundo dos vivos, simbolizada por um grande exército de esqueletos que devastam a Terra (, tema por certo inspirado nas frequentes pandemias e guerras que assolaram a Europa desde a Alta Idade Média, e noemadamente a "peste negra").

Ao fundo, surge uma paisagem, terresttre e marítima, desoladora, árida, ainda com cenas de destruição. Em primeiro plano, a figura da morte, com a sua foice apocalíptica, à frente dos seus exércitos triunfantes: vem montada num esquelético cavalo avermelhado. Todos os vivos são empurrados para um caixão enorme, tipo terminal, sem qualquer esperança de fuga ou de salvação. Todas as classes sociais, os ricos, os poderosos e os pobres, estão aqui reprentados, e nada os salva, o dinheiro, o poder, a fé, a devoção.



Imagem do domínio público. Cortesia de: Wikimedia Commons


A Peste ou o Triunfo da Morte 

2. Mais uma vez a mobilidade espacial, neste caso o regresso dos cruzados, terá igualmente contribuído para a introdução de muitas doenças transmissíveis, até então desconhecidas na Europa, e que se transformaram em terríveis epidemias. 

A mais mortífera de todas foi, sem dúvida, a peste negra (ou "pestilentia pestis", do latim peius, "a pior doença"). Estima-se que terá vitimado cerca de 25 a 30 milhões de pessoas (entre um terço a um quarto da população do Ocidente) em meados do séc. XIV. 

No caso português, a peste negra terá dizimado um terço a um quarto da população. De qualquer modo, as epidemias, as fomes e as guerras continuarão a acompanhar toda a segunda metade do séc XIV até quase ao final do séc XV, condicionando de tal modo a evolução demográfica que só nos primeiros anos do séc XVI o nosso país atingirá o volume populacional que tinha no início do séc XIV (cerca de 1.5 milhões de habitantes).

A peste negra está admiravelmente retratada em quadros de Pieter Brueghel, o Velho (ca.1525-1569) e em particular em O triunfo da morte (ca. 1556, Museu do Prado, Madrid). 


Por sua vez, Giovanni Boccaccio (1313-1375) descreveu magistralmente, em Il Decamerone (justamente iniciado em 1348 e concluído em 1353),  as cenas pungentes da epidemia que se abateu sobre Florença. 

Endémica na Ásia (ou, pelo menos, no planalto à volta dos Himalaias), a peste negra terá chegado ao Ocidente através dos tártaros que cercavam Caffa, na Crimeia, porto comercial utilizado pelos mercadores genoveses que operavam no mar Negro, e que  através destes últimos entra em Messina, na Sicília, espalhando-se rapidamente por toda a península de Itália e pelo resto da Europa, entre 1347 e 1352.

Caffa, antiga colónia genovesa, entre 1281 e 1475 (, e depois Keve à época do Império Otomano), chama-se hoje Teodósia: é uma cidade da República Autónoma da Crimeia, na Ucrânia, sendo um importante porto e localidade turística de veraneio. 



Mercator ergo pestiferus 
("Sou mercador, logo portador da peste") 


3. Foi um pandemia brutalmemte mortífera, de que resultou talvez a maior catástrofe demográfica do Ocidente.  Foi também uma  tragédia social, económica e cultural, gerando uma tremenda crise de valores. 

Factores que terão favorecido esta tragédia: 

(i) tempo de guerras, crises alimentares, fome, subutrição, enfraquecimento do sistema imunológico; 

(ii) ausência de estruturas sanitárias, incipiente medicina arábico-galénica, as doenças transmissíveis sendo atribuídas a misteriosos miasmas; 
  
(iii) populações mentalmente predispostas à superstição,  à vitimização, ao fanatismo e ao pânico.

"Por todo o lado, na Itália, na França, na Alemanha, os homens mais responsáveis e os marginais mais anónimos parecem irmanados num instinto selvagem de subsistir. Subsistir primeiro e, se possível, lucrar. Emparedam-se em nome da lei casas e bairros com mortos, moribundos e sãos; enviam-se para os monturos e valas comuns, pais a filhos e vice-versa, doentes ainda vivos; lincham-se peregrinos e viandantes; queimam-se judeus; fabrica-se com o pus dos bubões e banha de enforcados venenos para matar e roubar; usam-se cadáveres de pestosos como balas biológicas no assalto a cidades; organizam-se cortejos de autoflajelantes possuídos da mais paroxística histeria; realizam-se orgias; chama-se o Diabo; invectiva-se Deus". (Sousa, 1992)

O mais surpreendente é que esta epidemia flagelou brutalmente a cristandade do Ocidente, enquanto o mundo árabe (ou de influência muçulmana), da bacia mediterrânica, foi relativamente poupado. 

Para Cosmicini (1995), o homem medieval do Ocidente cristão, ao contrário do seu contemporâneo oriental, nomedamente na bacia mediterrância, não tinha hábitos de higiene (limpeza do corpo, lavagem da roupa, higiene doméstica, saneamento urbano...) A extrema contagiosidade da infeção comprova que o seu vetor é mais a imundície humana do que o rato, o transportador das pulgas...

Além disso, não é apenas é uma peste bubónica, transmitida pela pulga, é também pulmonar e seticémica (e, portanto, mais mortal ainda).

"A peste também é pulmonar e septicémica, transmitida diretamente de homem a homem, através - hoje sabemos - das partículas de espectoração,  carregadas de bacilos, projetadas pelos doentes no ato de tossir, e inaladas pelos saudáveis". 

O adjetivo "bubónico" (do francês "bubonique") quer dizer que a doença  se caracteriza(va) pela formação de bubões  ou  tumefacções ganglionares dolorosas.

  Quais foram, afinal, as condições que predispuseram a Europa Ocidental a esta terrível pandemia ? Há que compreendê-las a vários níveis, segundo Cosmicini (1995): 

(i) Ao nível veterobiológico ["vetero", de velho, oposto a "neo"]

A peste terá sido relativamente pior na Europa do que na Ásia (onde era endémica), devido a mudanças quer orgânicas quer ambientais, seis séculos depois da vaga de epidemias na Alta Idade Média, precedida dois séculos antes da pandemia que se abateu sobre o Império Romano (542-548) no reinado de Justiniano; em meados do séc. XIV, a peste negra irrompe no quadro de uma economia mercantil em franco desenvolvimento, com contactos comerciais com o Oriente (através da Rota da Seda, a primeira "estrada" da globalização) e de uma população, fugida dos campos e  concentrada em cidades, e, portanto, muito mais vulnerável. 


(ii) Ao nível económico e socioecológico: 

Constata-se uma relação bi-unívoca entre a fome e epidemia, agravada por problemas climatéricos e pela quebra da produção cerealífera: "a crise de subsistência de uma população que cresce cada vez mais e que come cada vez menos é mecanicamente traduzida em desnutrição coletiva e morbidade epidêmica".


(iii) E, por fim, ao nível neo (oposto a vetero…) biológico ou imunológico: 


A dieta da população da época era, já de si, muito pobre em calorias, proteínas e vitaminas; a má nutrição crónica agravou-se com a crise alimentar que antecedeu a peste; como resultado, terá havido uma progressiva debilitação do sistema de defesa imunológico, e em particular uma atrofia dos tecidos linfáticos... Estavam, pois, reunidas todas as condições para que o bacilo de Yersin, Yersinia pestis, se tornasse terrivelmente letal.  (Este bacilo só foi descoberto em 1894,  por Alexandre Yersin, um médico francês, de origem suiça, do  Instituto Pasteur, ns sequência de uma epidemia de peste em Hong Kong.)

“A fame, peste et bello, libera nos, Domine!" ("Da fome, da peste e da guerra, livrai-nos Senhor!"), implorava ao céu o homem medieval... A que o povo, em Portugal, acrescentava, em surdina: "... e do bispo da nossa terra, ámen!!  



Foge depressa, vai para longe e volta devagar...


4. Sobre a falta de hábitos de higiene pessoal e ausência de salubridade pública, convirá acrescentar o seguinte: as condições sanitárias ambientais eram péssimas. As cidades medievais não tinham sistemas de saneamento básico. Os despejos domésticos eram feitos para a via pública. A água potável era escassa.

Quanto à tradição romana dos banhos públicos, de algum modo valorizada pela medicina judaica e árabe na península ibérica, sabemos como ela foi duramente combatida pelo cristianismo: por exemplo, homens da Igreja como São Jerónimo (c.343-420) não viam razões válidas para um cristão tomar banho depois do baptismo, se bem que na planta arquitectónica do célebre mosteiro de Sankt Gallen (Séc. IX) estivessem previstas latrinas e balneários.

Refira-se que este preconceito teológico em relação aos cuidados de higiene corporal vai ter consequências nefastas na saúde da população europeia.

Além disso, a teoria demoníaca da doença tinha então muito ascendente e, no caso das devastadoras epidemias que assolavam a Europa (sob o nome comum de peste), o bode expiatório eram geralmente os judeus ou grupos espeíficos como as bruxas. Ou até os próprios médicos, os comerciantes ricos, a nobreza, o alto clero e a corte real que sempre tinham mais meios de fugir, "depressa e para longe", dos sítios atingidos pela peste ou outras epidemis, de acordo com a aforismo da Escola de Salerno: "Cito, longe, tardo, fuge, recedde, reddi" (Foge depressa, vai para longe e volta devagar.)


5. A peste negra na Europa tinha sido já precedida por graves faltas de alimentos entre 1308 e 1318. A fome nunca foi um fenómeno isolado, acabando por escancarar,  mais cedo ou mais tarde,  as portas às epidemias, reconhecem os historiadores.

Por outro lado, a peste negra aparece num contexto de crise do feudalismo, de êxodo rural, de sobrepopulação, de concentração urbana e de desenvolvimento da economia mercantil. 

Todavia, parece que continuam por explicar os "ciclos da peste" que, em todos os 10-12 anos, irá ressurgir, no Ocidente, durante quase quatro centúrias, de meados do séc. XIV até às primeiras décadas do Séc. XVIII. 

Entre nós, a última epidemia ocorrerá no Porto, em 1899, sob a forma de peste bubónica.  Mas no princípio do séc.XX ainda se morre de peste nos Açores onde a doença se manterá endémica sob forma murina. Em "Mau Tempo no Canal",  o escritor Vitorino Nemésio (1944) evoca, na figura impagável do Manuel Bana, o medo atávico que os homens continuarão a ter do rato e da pulga por causa do risco de contágio que eles representam.  

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Referências bibliográficas:

COSMACINI, G. (1995) - Storia della medicina e della sanità in Italia. Roma: Economica Laterza

SOUSA, A.: 1325-1480. In: História de Portugal (Dir. de José Mattoso), II vol.: A monarquia feudal (1096-1480). S.l.: Círculo de Leitores. 1992. 311-556.



Para saber mais, do ponto de vista clínico, vd. Larry M. Bush  e Maria T. Perez - Peste e outras infecções por Yersinia. In:  MANUAL MSD Versão para Profissionais de Saúde.  

(...) Peste é causada por bactérias gram-negativas Yersinia pestis. Os sintomas são de pneumonia grave ou linfadenopatia acentuada com febre alta, progredindo frequentemente para sepse. O diagnóstico é epidemiológico e clínico, confirmado por cultura e sorologia. O tratamento é feito com estreptomicina ou gentamicina; as alternativas são fluoroquinolona ou doxiciclina. (...) 

(...) Nos EUA, o último surto urbano da peste associada a ratos ocorreu em Los Angeles em 1924 a 1925. Desde então, > 90% dos casos de peste humana nos EUA ocorrem nas áreas rurais ou semirrurais da região sudoeste, especialmente Novo México, Arizona, Califórnia e Colorado.

Em todo o mundo, a maioria dos casos desde os anos de 1990 ocorreu na África. Nos últimos 20 anos, quase todos os casos ocorreram entre pessoas morando em pequenas cidades e aldeias ou áreas agrícolas, em vez de em grandes cidades. (...)

Em áreas endémicas nos EUA, vários casos podem ter sido causados por animais de estimação domésticos, especialmente gatos (infectados ao comer roedores infectados). A transmissão a partir de gatos pode ser por meio de mordida ou pulga infectada, se o gato tiver peste pneumónica, por inalação de gotículas respiratórias infectadas. (...)

(...) Transmissão: A peste ocorre principalmente em roedores selvagens (p. ex., ratos, camundongos, esquilos, cachorros-de-pradaria) e é transmitida do roedor ao ser humano pela picada de uma pulga-vetor infectada. A peste também pode ser transmitida através de contato com secreções ou tecidos de um animal infectado. (...) A peste pneumônica também pode ser transmitida pela exposição em um laboratório ou pela propagação intencional de aerossóis como ato de bioterrorismo. (...).

(...) Sinais e sintomas:  Peste tem várias manifestações clinicamente distintas: Peste bubónica (a mais comum); Peste pneumónica (primária ou secundária); Peste septicémica; Pestis minor. 

Peste faríngea e meningite por peste são formas menos comuns. (...)
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Nota do editor:

(*) Último poste da série > 2 de abril de 2020 > Guiné 61/74 - P20800: O que podemos aprender com as epidemias e pandemias do passado ? (Luís Graça) - Parte I: A lepra, a doença por antonomásia na Idade Média