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quarta-feira, 6 de novembro de 2024

Guiné 61/74 - P26121: Historiografia da presença portuguesa em África (450): A Província da Guiné Portuguesa - Boletim Official do Governo da Província da Guiné Portuguesa, 1886 (9) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 22 de Agosto de 2024:

Queridos amigos,
Deste tempo em análise, o surpreendente ano de 1886, o ano em que nasceu a Guiné com fronteiras muito próximas das atualmente existentes, em que fomos desapossados do Casamansa a pretexto da diplomacia francesa garantir que nos apoiaria nas questões referentes ao Mapa Cor de Rosa, em que estes pontos agudos jamais transparecem no Boletim Oficial do Governo da Província da Guiné Portuguesa, sai da medorra burocrática um relatório do médico Damasceno Isaac da Costa, começa por uma visão de conjunto histórico-geográfica, encaminha-se para a ilha de Bissau, isto depois de nos ter falado das potencialidades do rio Geba, vê-se que está seriamente documentado e que conhece a vila e fortaleza de Bissau, o ilhéu do Rei e o presídio de Geba. Sobre este último creio que não há nenhum documento tão detalhado. Depois atira-se a matérias que são do seu próprio foro, mas vê-se claramente que está possuído por uma curiosidade de etnólogo e etnógrafo. Enfim, no seu todo este documento merecia ser republicado, visto que vem em sucessivos Boletins Oficiais desde inícios de abril até julho. Documento indispensável para cruzar com outros depoimentos da época, incluindo as matérias existentes no Arquivo Histórico Ultramarino.

Um abraço do
Mário


A Província da Guiné Portuguesa
Boletim Official do Governo da Província da Guiné Portuguesa, continuação de 1886 (9)


Mário Beja Santos

Como se referiu anteriormente, estranha-se o Boletim Official, pelo menos até julho, que seja completamente omisso sobre a grande mudança operada na vida na Guiné, nem uma menção sobre a Convenção Luso-Francesa de 12 de maio desse ano, nem uma palavra sobre a perda do Casamansa, quem domina, fora da rotina das chegadas e partidas, das taxas alfandegárias, dos muitos boletins sanitários oriundos de Cacheu, Bissau e Bolama é o documento preparado pelo médico Damasceno Isaac da Costa, uma peça de extrema importância que é publicada no Boletim Oficial entre 3 de abril e 3 de julho, nem sempre com regularidade. Já falou da geografia da colónia, do rio Geba e das suas potencialidades, veja-se agora a descrição que faz da vila e fortaleza de Bissau, antes uma palavra sobre a ilha.

“A ilha de Bissau na quadra pluviosa deixa desenvolver capim, que atinge a altura de dois metros, capim que é destinado em parte para alimento do gado vacum que abunda na ilha e, em parte, para ser devorado pelas chamas, nos meses de janeiro a março, e que também serve para a cobertura das cubatas. Abundam na ilha poilões seculares, que são tidos em grande veneração, como árvores sagradas pelos habitantes da ilha, por terem a crença que neles reside a divindade tutelar, o Irã; ao passo que as restantes árvores são destruídas. A agricultura, esse manancial ubérrimo da riqueza pública e que poderia ser a mais poderosa alavanca para o engrandecimento do país, acha-se completamente olvidada. De um feracíssimo solo, Bissau, como toda a Guiné, à excepção de árvores seculares que podem ser aproveitadas para diferentes usos, apenas desenvolve plantas parasitas e inúteis e ervas maninhas. No meio deste abandono de agricultura, divisam-se feitorias agrícolas situadas à beira-mar, pertencentes a vários indivíduos naturais do arquipélago de Cabo Verde, que residem na ilha, há muitos anos. As principais produções destas feitorias são: aguardente e mel extraídos da cana sacarina, milho, feijão, mandioca, abóbora, melão, melancia, etc. Em terrenos pantanosos cultiva-se o arroz em grande escala, cuja produção, atenta a grande feracidade do solo, é abundantíssima, sendo parte consumida na ilha parte exportada para outros pontos da província e Cabo Verde, pois que é o arroz a base principal da alimentação dos habitantes da Guiné.
Em diversos pontos da ilha cultiva-se o tabaco, que se desenvolve com uma força de vegetação luxuriante, mas os seus habitantes longe de se utilizarem dele, como os Bijagós, servindo-se dele para fumar e mascar, satisfazem os seus hábitos com o que é importado do estrangeiro. Como em toda a Guiné, encontra-se na ilha água a pequena profundidade. Algumas destas águas denunciam sais, e conquanto não fossem analisadas, é necessário confessar-se, que até as reputadas potáveis se alteram quando conservadas por alguns dias, em consequência dos corpos que nelas vegetam".

E passa para a descrição da vila e fortaleza de Bissau. Em épocas que hoje são do domínio da História, a vila constituía um reinado, administrado por um régulo, que exercendo a alta dignidade de balobeiro-mor tinha a superioridade sobre os restantes régulos, e fruía das imunidades e sinecuras que pertenciam ao régulo de Bandim.

A vila é cercada de todos os lados de pântanos mistos e cujas exalações deletérias influenciam ativamente sobre a salubridade pública. A insalubridade da vila provém em grande parte da ação perniciosa a ativa desses pântanos, cujos miasmas na sua propagação não encontram outro baluarte que um muro de pedra e cal de quatro metros de altura circunda a povoação.

Dentro da vila existem alguns poços e uma fonte denominada Pidjiquiti, mas as águas tanto desta como dos poços apresentam-se constantemente estagnadas, por culposo desleixo das autoridades locais. Descreve as repartições do Estado que existem na vila, a funcionar em casas particulares, descreve seguidamente a fortaleza de Bissau, não esquece a igreja, dizendo que tem sido assaltada e ultrajada por ladrões e que ultimamente experimentou algumas reparações, carecendo de uma completa reparação nas paredes, sem o que irremediavelmente se reduzirá a ruínas. Fora da fortaleza funciona um tribunal judicial, presidido por um grumete analfabeto que tem o nome de juiz do povo ou dos Grumetes. Este indivíduo, com um ou dois Grumetes, constituem-se em tribunal de última instância todas as questões que lhe são afetas. Apresenta o ilhéu do Rei ou dos Feiticeiros, conviria muito que para ali fosse transferida a população de Bissau, dada a superioridade das condições higiénicas. Os Papéis consideram o ilhéu sagrado e aí no plenilúnio de março, em anos indeterminados, e sob a presidência do régulo de Bandim, reúnem-se munidos da sua inseparável espingarda, faca, terçado e azagaia, para invocar o China maior e consultar o oráculo sobre o futuro das suas produções e das boas ou más relações da sua tribo com as outras. O ilhéu, comprado aos Papéis por Honório Pereira Barreto, possuía outrora um pequeno fortim, um estaleiro para as embarcações de todas as lotações, uma povoação com 600 habitantes e várias casas comerciais. Com o andar dos tempos, entrou em decadência, dentre as ruínas figura um grande edifício piramidal, onde outrora estava montado um aparelho destinado a descascar o arroz.

A descrição agora é do presídio de Geba. Descoberto há mais de 400 anos, é ocupado pelos negociantes cristãos, Mandigas e Fulas-Forros e Fulas-Pretos. Nas suas proximidades jazem diversas aldeias importantes pelo seu comércio, indústria e agricultura. A povoação, onde residem os funcionários públicos e os principais negociantes, está assente em terreno elevado e acidentado. As ruas correm de Norte a Sul, mas delas só têm nome, pois que além de irregulares não passam de verdadeiros becos lamacentos e imundos. À exceção de uma casa sobradada e coberta de telha, todas as habitações são cobertas de colmo. É inútil dizer-se que não há lei alguma que respeite e regule o mais trivial preceito de higiene. A povoação não possui paliçada, mas na data em que escrevo o presente relatório, os negociantes contribuem com a quantia de 230 e a fazenda pública com 300 mil réis para ocorrer às despesas a fazer com a manutenção dos Grumetes e Mandigas que espontânea e gratuitamente se ofereceram para a construção da tabanca. Possui a povoação dois baluartes, um dos quais se acha em ruínas cercado de espesso arvoredo e, por isso, e pela sua posição, nenhum meio de defesa oferece; o outro, construído em 1875, não tem peça alguma, e embora estes baluartes estivessem em condições de bem funcionarem, conviria que fossem construídos mais dois. O Governador Agostinho Coelho, reconhecendo esta necessidade em 1881 enviou a Geba instrumentos e materiais e ordenou a construção dos sobreditos baluartes, mas até hoje não se deu começo à referida obra. Tem dois protos denominados Passo e Baixa-Mar, sendo este último o mais frequentado por se achar situado muito próximo da população. É neste porto que se acha enterrada uma urna contendo uma ata assinada pelo Governador Agostinho Coelho, vários funcionários e negociantes, lavrada por ocasião em que o vapor Guiné sulcando pela primeira vez as águas do tortuoso, mas pitoresco, rio Geba aportava a este último presídio.

Existe a Igreja de Nossa Senhora da Graça, construída em 1881, é coberta de colmo e tem 20 metros de comprimento sobre 10 de largura. Em tempos remotos, foi a igreja arruinada algumas vezes pelas chuvas e uma vez destruída por um pavoroso incêndio que teve lugar em 1850. A norte da povoação está situada uma extensa campada mortuária cheia de pedras, plantas parasitas e arbustos, onde são inumados os cadáveres de inimigos falecidos na povoação. Algumas cruzes enterradas em diferentes sítios, sem ordem nem simetria, nem inscrição alguma, indicam esse campo de igualdade, essa morada onde repousam eternamente os nossos semelhantes.

Mas ainda há muito a dizer sobre o presídio de Geba, Damasceno Isaac da Costa é o mais surpreendente dos relatores que conhecemos neste tempo.


Anúncio da chegada do novo Governador, depois da exoneração de Francisco de Paula Gomes Barbosa
Cais do Pidjiquiti, pormenor da vila de Bissau e os poilões de S. José de Amura, imagem retirada de Jornal da Europa, 1930
BNU em Bolama, imagem retirada de Jornal da Europa, 1930
Anúncio publicado num número de Jornal da Europa dedicado a S. Tomé e Guiné, 1930
Alegoria da descoberta da Guiné (Quadro em azulejo, da galeria da Agência Geral das Colónias), representando porventura a morte de Nuno Tristão, publicado no Jornal da Europa, 1930

(continua)

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Nota do editor

Último post da série de 30 de outubro de 2024 > Guiné 61/74 - P26095: Historiografia da presença portuguesa em África (449): A Província da Guiné Portuguesa - Boletim Official do Governo da Província da Guiné Portuguesa, 1886 (8) (Mário Beja Santos)

segunda-feira, 21 de outubro de 2024

Guiné 61/74 - P26065: Notas de leitura (1736): Regresso a um clássico da historiografia guineense: A questão do Casamansa e a delimitação das fronteiras da Guiné (3) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 17 de Julho de 2023:

Queridos amigos,
As considerações finais desta obra de referência que é a investigação de Maria Luísa Esteves sobre a questão do Casamansa são verdades com punhos. A França foi extremamente hábil em apoderar-se do Casamansa, as autoridades portuguesas depositavam pouco interesse na região, revelaram-se ingénuas, não cuidavam de enviar para a região administradores hábeis e foi assim, contrariando os interesses das populações, que se foram apoderando do comércio da região. Ao tempo, deram-se outras adversidades, relevo a falta de recursos financeiros, a desvalorização da mancarra e fundamentalmente o cataclismo que foi a guerra do Forreá, guerra sanguinolenta entre fulas-forros e fulas-pretos, desmantelou-se quase completamente a presença de explorações agrícolas no rio grande de Buba, o que também levou o comércio no rio Nuno a ficar valorizado. Outra grande habilidade dos franceses, como destaca Maria Luísa Esteves, foi terem visto aprovada uma convenção que impediu a nossa presença no Futa Djalon, este tornou-se um protetorado francês. Com esta delimitação de fronteiras feitas a réguas e esquadro suscitaram-se conflitos gravíssimos, a potência mais forte ficou sempre na mão de cima. E o resultado sai nas palavras da autora: "A França soube assegurar para si uma fronteira fácil de guardar sob o ponto de vista fiscal e, com o intuito de conseguir um maior desenvolvimento do baixo Casamansa, procurou salvaguardar a rede de vias navegáveis." E lembrarmo-nos nós dos alertas sucessivos que Honório Pereira Barreto dirigia ao governador de Cabo Verde e até Lisboa...

Um abraço do
Mário



Regresso a um clássico da historiografia guineense:
A questão do Casamansa e a delimitação das fronteiras da Guiné (3)


Mário Beja Santos

No repositório das obras admiráveis, de leitura obrigatória para melhor compreender a historiografia luso-guineense, avulta o impressionante trabalho de Maria Luísa Esteves, A Questão do Casamansa e a Delimitação das Fronteiras da Guiné, edição conjunta do Instituto de Investigação Científica e Tropical e do INEP, 1998. Trata-se de uma revisitação, o anseio de um novo olhar sobre tão importante narrativa, isto depois de ter lido e aqui comentado o texto do tenente da Armada Real, Cunha Oliveira, que coordenou em 1888, do lado português, a comissão mista que procurou resolver questões encrencadas na delimitação das fronteiras, tudo produto de quem assinou a convenção luso-francesa de 12 de maio de 1886 não fazer a menor ideia das delicadezas da topografia da região.

A convecção luso-francesa de 12 de maio de 1886 não contemplou os espaços verdadeiramente ocupados pelas diferentes etnias, houve para ali trabalho de régua que irá suscitar uma permanente atmosfera de conflitos que irão exigir missões das comissões luso-francesas e ajustamentos que pareciam ter ficado resolvidos ainda no tempo da monarquia que, pasme-se, se prolongaram até à década de 1930. Evitando uma penosa listagem desses conflitos, dir-se-á que eles ocorreram logo nas fronteiras luso-francesas, tendo diferentes protagonistas e lugares: o régulo de Firdu, no Casamansa, Mussá Moló, súbdito francês, invadiu territórios pertencentes ao distrito de Geba, fez destruições, atacou depois em Farim, será questão que se prolongará por anos; haverá conflitos entre fulas e mandingas e uma oficial francês em terras de Pachisse; um antigo chefe nalu, prisioneiro dos portugueses, depois de libertado fixou-se em território francês, teremos a seguir um contencioso diplomático, o comandante francês de Kandiafará atravessou a fronteira e intimidou populações, veio-se a apurar que foram chefes gentílicos da Guiné portuguesa que chamaram o oficial francês.

Temos uma missão em 1900 que se prendeu com o reconhecimento por parte dos dois países sobre a imprecisa delimitação da colónia, cujas fronteiras continuavam abertas e sujeitas a contingências que punham em perigo o domínio territorial e a respetiva influência política. É neste período que começaram a ser colocados marcos, logo na fronteira sul. Fora nomeado como encarregado da delimitação de certos trechos da fronteira o 2.º tenente da Armada, Oliveira Muzanty. O ponto de partidas das operações foi a ponta Cagete, que se revelou impraticável. Lisboa apoiava a ideia dos legados fazerem concessões recíprocas de território, obviamente que tinham de ser sancionados, ou não, os respetivos comissários. Nova missão reuniu-se em janeiro de 1901, demarcou-se a parte Sul e Sueste da fronteira entre a ponta Cagete e Dandum, os trabalhos foram interrompidos por um surto de febre amarela. Vai ter lugar nova comissão, entre 1902 e 1903. As dificuldades subsistem, basta ler o parecer da Direção-Geral do Ultramar:
“Pôr de parte a convenção de limites de 1886 dando largas concessões e poderes aos comissários não parece prudente mormente quando se sabe que na região leste da província o governo francês pode levantar dificuldades ao traçado da linha indicativa do meridiano limítrofe, visto a população do régulo principal da região ficar na esfera portuguesa; o que a França não podia supor e não verá com bons olhos. Destas circunstâncias não parece conveniente aumentar os poderes dos nossos delegados mesmo quando estão em harmonia com os dados dos comissários franceses.”

Seja como for, lança-se a proposta de trocas de território de igual superfície, no caso de interesses políticos a salvaguardar, ou para obter uma linha natural de fronteira, sempre que haja aprovação pelos respetivos governos. Temos depois uma nova missão em 1904 e 1905, a operação da colocação de marcos e pilares teve sérias dificuldades, haverá hostilidade de algumas populações, o que vai exigir a presença de efetivos militares. Só em janeiro de 1906 é que se deu por aprovada a fronteira norte.

Analisando as vicissitudes destas missões, observa a autora:
“Se atentarmos ao resultado final conseguido, não podemos deixar de considerar que se não foi favorável também não envergonhou os esforços do gabinete de Lisboa, em período politicamente instável, assoberbado por questões internas e jogando forças com uma nação poderosa e cheia de ambições colonialistas. Muito já estava perdido quando o problema se levantou, e milagre se faria se os diplomatas africanistas tivessem conseguido reaver o que há muito fora usurpado.”

Em tempo de considerações finais sobre este dossiê da questão do Casamansa, atenda-se à natureza das observações da autora:
“Os indígenas do Casamansa sempre foram afeiçoados aos portugueses e viam com relutância a presença de outros europeus, não sendo raro pedirem a sua interferência nos seus conflitos com os franceses. O plano gizado pela França englobava também o rio Nuno e era bem vasto. Para o conseguir realizar serviu-se de exploradores que souberam preparar o caminho para os seus compatriotas. Estudavam as regiões, procurando conhecer qual o seu interesse, e, enquanto intrigavam e indispunham os indígenas contra os portugueses, faziam propaganda a favor da sua pátria. Era uma política de aliciamento a que não eram estranhos os negociantes que habilmente sabiam desviar para as zonas que lhes interessavam o comércio sertanejo.
O governo português não soube ou não pôde responder a este repto. E a decadência da Guiné cada vez se acentua mais com a instalação dos franceses em Carabane e em Selho.
Não eram só os negociantes franceses os culpados da estagnação da vida económica nacional e da diminuição das receitas. Outros fatores contribuíram também: desvalorização da mancarra nos mercados europeus, fretes onerosos sobre as mercadorias e falta de recursos financeiros, pois os capitalistas não acreditavam nas possibilidades da colónia.
A abolição da escravatura agravou ainda mais a situação. Portugal ao ajudar os fulas-pretos ao sair da escravidão, concitou contra si o ódio dos que os dominavam, os fulas-forros. As lutas tribais que se seguiram prejudicaram enormemente a agricultura e desviaram o comércio do sertão das rotas comerciais, fazendo-o afluir às feitorias francesas. A França soube assegurar para si uma fronteira fácil de guardar sob o ponto de vista fiscal e, com o intuito de conseguir um maior desenvolvimento do baixo Casamansa, procurou salvaguardar a rede de vias navegáveis.
Com a posse dos rios Casamansa e Nuno e dominando a região Futa Djalon, os franceses absorveram toda a vida comercial.
As duas Guinés, a francesa e a portuguesa, foram criadas sem terem em conta, muitas vezes, não só os limites naturais como as realidades étnicas, sociais e económicas existentes. Só mais tarde, quando já não era possível emendar os erros cometidos, se verificou que os povos com história e cultura comuns foram separados e entregues a países diferentes sem respeito pelo seu passado. Não era para admirar que assim tivesse acontecido quando as negociações de fizeram longe dos locais a delimitar por pessoas mal informadas sobre a história dos povos e sem conhecimentos suficientes de geografia e utilizando cartas topográficas pouco rigorosas.”


O marco 173 está situado em Chão Baiote, junto à tabanca Kassu, na praia de um dos muitos cursos de água da Baixa Casamansa. A linha de fronteira atravessa Kassu, deixando um bairro na Guiné-Bissau e outro no Senegal. O marco está instalado num espaço aberto, apenas frequentado por vacas que, para fugirem às moscas, buscam as zonas perto de água. Imagens de Lúcia Bayan, já publicadas no blogue, com a devida vénia.
Casamansa, a imagem do atrito
Imagem da ilha de Goreia, junto a Dacar
Imagem de pesca no rio Casamansa
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Nota do editor

Último post da série de 14 de outubro de 2024 > Guiné 61/74 - P26044: Notas de leitura (1735): Regresso a um clássico da historiografia guineense: A questão do Casamansa e a delimitação das fronteiras da Guiné (2) (Mário Beja Santos)

quarta-feira, 16 de outubro de 2024

Guiné 61/74 - P26049: Historiografia da presença portuguesa em África (447): A Província da Guiné Portuguesa - Boletim Official do Governo da Província da Guiné Portuguesa, os últimos meses de 1884 (6) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 12 de Agosto de 2024:

Queridos amigos,
Bem gostava de uma explicação cabal quanto à decisão de Pedro Ignácio de Gouveia em mandar republicar todas as convenções e tratados celebrados por iniciativa de Honório Pereira Barreto referentes aos povos Felupes, Banhuns e povos vizinhos de Ziguinchor, uma leitura possível é a de que o governador queria enviar sinais para o Governo de Lisboa quanto à legitimidade da presença portuguesa no Casamansa. Neste ano de 1884, Ignácio de Gouveia termina a sua governação, e deixou um legado sólido, participou ativamente na pacificação do Forreá, impôs sem tibiezas a disciplina militar, entraram em vigor infraestruturas desde os correios aos serviços de saúde; o chefe do presídio de Ziguinchor alerta nos seus relatórios o definhamento da povoação; há sinais de interesse pela agricultura, são inúmeras as concessões de terrenos; melhoram as relações entre Cacheu e a vizinhança, muitas das hostilidades são impulsionadas pelos franceses, são subtis a pretender arredar a presença portuguesa. A Convenção Luso-Francesa ficará pronta dentro de cerca de ano e meio depois.

Um abraço do
Mário



A Província da Guiné Portuguesa
Boletim Official do Governo da Província da Guiné Portuguesa, os últimos meses de 1884 (6)


Mário Beja Santos

Estamos no último ano da governação de Pedro Ignácio de Gouveia, a 26 de dezembro chega o governador que o vem render, Francisco de Paula Gomes Barbosa. Ignácio de Gouveia, como temos verificado, deixou obra feita, procurou normalizar as relações com as etnias conflituosas no Forreá; aberto ao despertar de interesses coloniais pela agricultura, fará concessões de centenas de hectares aos interessados; punirá exemplarmente oficiais que tivessem praticado desmandos; num período notoriamente tenso com o que se passa na região do Casamansa, fará publicar legislação antiga e atualizada sobre aquisições, tratados de cessão, convenções, envolvendo notoriamente a etnia Felupe; celebra tratados de paz entre a praça de Cacheu e vizinhos; quando necessário, lança-se em operações como a que ocorreu contra as populações de Cacanda; é do seu tempo que abrem os correios, se aprova o regulamente de serviço de saúde pública da província da Guiné; a seu tempo, aqui se publicarão extratos do relatório que ele envia ao Governo, o trabalho efetuado pelo escritor Fausto Duarte e publicado no Boletim Cultural da Guiné Portuguesa.

Vimos que em abril foi celebrado um tratado de cessão de território pelos Felupes de Jufunco, estiveram presentes as autoridades de Cacheu, entidades religiosas, representantes do Exército e da Marinha e um número elevado de acompanhantes do régulo de Jufunco. Cedeu o régulo de Jufunco para sempre todo o território de Jufunco à nação portuguesa, e em finais de maio, é a vez da convenção feita pelos Felupes de Varela, recorda-se a cessão que se fez em Bissau a Honório Pereira Barreto, e agora se retifica tal cessão. “Os de Varela prometem amparo e proteção a todo e qualquer estrangeiro que estiver no seu território ou que por ele transitar; bem como se abrigam a impedir que se roube qualquer coisa nas embarcações que encalharem no seu porto ou a ele aportarem; no caso não desejado de haver entre eles e qualquer nação estrangeira alguma desinteligência, desde já declaram que o Governo português deve avocar a si a questão; os de Varela declaram que jamais farão tratados, convenções ou quaisquer contratos com a nação estrangeira.”

No Boletim Official n.º 24, de 14 de junho, consta o tratado de paz para a convenção entre a praça de Cacheu e os gentios de Nagas: “A partir de hoje em diante haverá paz entre a praça de Cacheu e todo o gentio de Nagas; o gentio de Nagas, em nome do seu régulo, convida os habitantes de Cacheu a irem negociar nas suas terras, assegurando-lhe bom agasalho e toda a proteção; os gentios declaram que fica inteiramente reservado aos portugueses a navegação e comércio do braço do rio de Farim, a que se chama Armada, ainda que se venha a conhecer que tal braço comunica com o rio de Mansoa ou com qualquer outro rio ou braço, nunca será permitido aos estrangeiros tal navegação.”

Repare-se que o Governador em todas as circunstâncias mandava republicar contratos antigos, como que consta neste Boletim Official, fora celebrado entre Honório Pereira Barreto e um rei Banhum, de Bissari, situado na margem direita do rio do mesmo nome, principal do rio Casamansa.

No Boletim Official n.º 26, de 28 de junho, é de novo copiado o contrato celebrado por Honório Pereira Barreto com os gentios de Marraço, Honório Barreto ficaria possuidor de todo o território não cultivado, as populações não fariam com indivíduos ou governos estrangeiros da Europa quaisquer contratos, que nunca fariam guerra com o presídio de Ziguinchor. No Boletim Official n.º 28, de 12 de julho, faz-se referência ao relatório do comandante da coluna de operações e do Batalhão de Caçadores n.º 1 contra o gentio de Cacanda, fora desalojado este gentio do seu acampamento, batido com denodo até se internar pelas florestas copadas próximas do mesmo acampamento; houvera no regresso emboscadas com o mesmo gentio, tinham sido repelidos. E Pedro Ignácio de Gouveia louvava um conjunto de oficiais e praças de pé que faziam parte da coluna e até voluntários.

Estamos agora em finais de agosto, na sala de sessões da Câmara Municipal de Cacheu, o presidente da sessão apresenta a seguinte proposta: “Tendo em atenção a prontidão com que o ilustríssimo e Excelentíssimo Sr. Pedro Ignácio de Gouveia, Governador desta província, se houve em providenciar contra os atentados dos gentios circunvizinhos que em diferentes correrias pretenderam assaltar a praça; tendo mais em atenção o denodo com que a coluna de operações bateu os gentios; reconhecendo mais que o ataque dado há meses aos gentios rebeldes das circunvizinhanças do presídio de Ziguinchor, deste concelho, que tão benefícios resultados tem produzido, foi um dos feitos mais gloriosos das armas portuguesas, nesta província. Por estas razões propunha que se mencionasse na ata um voto de louvor ao Excelentíssimo Sr. Governador.” Curiosamente, e na sequência deste louvor, vem mencionado o Boletim de Informação do mês de junho de 1884 do presídio de Ziguinchor: bom estado sanitário; estado alimentício regular; comércio pouco animado. Mas há uma ocorrência extraordinária, escreve o chefe do presídio, o alferes Francisco António Marques Geraldes: “O Jalofo Bearmanjai continua devastando o território dos Felupes, na margem direita deste rio. Este cabo de guerra foi negociante muito tempo em Selho, fugindo este ano para território gentílico onde levantou o bando que tanto mal está fazendo ao comércio. Parte do roubo que ele faz aos Felupes, é trazido para Sendão, Adiana, onde há bastantes Jalofos.”

Nos Boletins Officiais n.º 32, 9 de agosto, n.º 34, 24 de agosto, e n.º 35, de 30 de agosto, consta o Regulamento do Serviço de Saúde Pública da Província da Guiné (distritos sanitários, junta de inspeção de saúde, deveres dos facultativos do quadro, comissões de serviço e sua duração, higiene e política do hospital, dietas para os doentes, visitas…).

No Boletim Official n.º 36, de 6 de setembro, novo boletim informativo de Ziguinchor referente ao mês de junho. O seu teor é importante, veja-se o que o alferes Geraldes diz o comércio: “Os dois únicos comerciantes que aqui existem negoceiam em tão pequena escala, que o comércio bem pouco desenvolvimento pode ter. A maior parte do gentio circunvizinho, vendo que aqui não pode encontrar os principais objetos de que carece, leva os seus géneros coloniais a Selho, ou a feitorias estabelecidas na margem esquerda do rio, onde os permutam facilmente.”

A província está longe de se considerar pacificada, no Boletim Official n.º 37, de 13 de setembro, temos novo ataque a Cacheu. No Boletim Official n.º 46, de 15 de novembro, o governador de novo manda publicar o contrato celebrado por Honório Pereira Barreto com os gentios de Gono e Cobone, aldeia gentia Banhum situada na margem esquerda do rio Casamansa, é de teor muito semelhante aos que aqui se republicaram, seguramente que Pedro Ignácio de Gouveia pretendia enviar para Lisboa recados quanto à legitimidade da presença portuguesa no Casamansa. Não foi atendido, em 12 de maio de 1886, o Casamansa, em definitivo, torna-se possessão francesa.


Pedro Ignácio de Gouveia
O Pidjiquiti nos anos 1920
A Guiné Portuguesa e o Casamansa ao tempo da Convenção Luso-Francesa de 12 de maio de 1886

(continua)
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Nota do editor

Último post da série de 9 de outubro de 2024 > Guiné 61/74 - P26026: Historiografia da presença portuguesa em África (446): A Guiné Portuguesa - Boletim Official do Governo da Província da Guiné Portuguesa, os primeiros meses de 1884 (5) (Mário Beja Santos)

segunda-feira, 14 de outubro de 2024

Guiné 61/74 - P26044: Notas de leitura (1735): Regresso a um clássico da historiografia guineense: A questão do Casamansa e a delimitação das fronteiras da Guiné (2) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 29 de Junho de 2023:

Queridos amigos,
Era para mim um imperativo regressar a um ensaio de altíssima qualidade sobre uma questão que se tornará crucial para entender os termos em que os representantes portugueses assinaram em Paris a convenção luso-francesa, em 12 de maio de 1886. Maria Luísa Esteves dá conta do rol de adversidades que pesaram na ténue presença portuguesa na Guiné ao longo de séculos, confinada a fortaleza-feitorias, o assalto persistente de franceses, ingleses e holandeses para tomarem posições e quando se chegou à Restauração estávamos reduzidos a uma Senegâmbia portuguesa que em termos de litoral se aproximava às fronteiras de hoje, porque no interior aventuravámo-nos no interior até Geba, e pouco mais. E é muito agradável recordar o trabalho incansável de Honório Pereira Barreto, um dos pais da Guiné-Bissau, lamentavelmente ignorado nos dias de hoje. O último texto será dedicado aos termos da convenção luso-francesa e às sucessivas etapas da delimitação das fronteiras, processo só concluído na década de 1930.

Um abraço do
Mário



Regresso a um clássico da historiografia guineense:
A questão do Casamansa e a delimitação das fronteiras da Guiné (2)


Mário Beja Santos

No repositório das obras admiráveis, de leitura obrigatória para melhor compreender a historiografia luso-guineense, avulta o impressionante trabalho de Maria Luísa Esteves, A Questão do Casamansa e a Delimitação das Fronteiras da Guiné, edição conjunta do Instituto de Investigação Científica e Tropical e do INEP, 1998. Trata-se de uma revisitação, o anseio de um novo olhar sobre tão importante narrativa, isto depois de ter lido e aqui comentado o texto do tenente da Armada Real, Cunha Oliveira, que coordenou em 1888, do lado português, a comissão mista que procurou resolver questões encrencadas na delimitação das fronteiras, tudo produto de quem assinou a convenção luso-francesa de 12 de maio de 1886 não fazer a menor ideia das delicadezas da topografia da região.

Continuando o histórico sobre a presença portuguesa na região, a autora recorda que ao porto de Bissau afluíam os produtos e os escravos vindos das regiões do rio Geba e de outros pontos. Vai surgir a primeira fortaleza. O governador Veríssimo Carvalho da Costa obteve do régulo de Bissau licença para a construção da fortaleza, iniciou-se em 1687. Para fazer face às despesas da construção, fundou-se a Companhia de Cacheu e Cabo Verde, no início de 1690, e estabeleceu-se a capitania-mor em Bissau em 1692. Mas o tempo não soprava de feição a favor da Guiné. O governo, ofuscado pelo brilho das riquezas do Brasil, deixava o porto de Bissau à mercê da ambição dos franceses. D. José I imprimiu um novo rumo à política ultramarina, seguiu para a Guiné a nau Nossa Senhora da Estrela e mais três navios, levavam homens e apetrechos para construir uma nova fortaleza. E a exploração da costa da Guiné foi dada à Companhia do Grão-Pará e Maranhão, com obrigação de acabar as obras da fortaleza.

Em 1783, uma nova empresa vai tomar a responsabilidade do comércio, denomina-se Sociedade do Comércio das Ilhas de Cabo Verde, durou pouco, foi dissolvida em 1786. É neste contexto que a autora recorre a uma caracterização feita por Teixeira da Mota como síntese do sistema económico: “Durante séculos, pontificou a ‘economia de resgate’, com feitorias e fortalezas para a proteger. O sistema de trocas constava em contas, vidros, objetos metálicos, panos e álcool trocados por escravos, marfim e oiro. Havia produtos da Europa ou das ilhas de Cabo Verde e faziam-se trocas com o comércio regional: nozes de cola, ferro e até arroz da Serra Leoa por escravos do Cacheu e do Gâmbia.” Ao findar o século XVIII, Portugal possuía espalhados pela costa da Guiné centros de tráfico negreiro com as suas feitorias-fortaleza.

Mas numa atmosfera de tanta adversidade, evitou-se a formação de mais núcleos e assim os pontos mais importantes eram Cacheu, Bissau, Geba, Ziguinchor e Farim. Este era o panorama da Guiné. E se lhe juntarmos a existência de feitorias inglesas e francesas e o contrabando feito pelos barcos americanos, temos a visão completa desta colónia ao findar o século XVIII, é um quadro de decadência que se irá agravar com a repercussão no Ultramar das lutas fratricidas (que culminarão com o fim do absolutismo miguelista).

Franceses e ingleses procuram expulsar os portugueses da região, recorde-se a ocupação de Bolama pelos ingleses. Nem a França nem a Inglaterra respeitavam os direitos de Portugal à Guiné e apenas consideravam sob a sua autoridade os pontos onde exista força militar. Este quadro sociopolítico-económico fica desenhado com o fim da escravatura.

A autora projeta agora a sua reflexão para a “luta” pela posse do Casamansa. Até 1828, volta a recordar-se, os centros de povoamento sobre domínio português eram pouquíssimos: Bissau, Geba, ilha de Bolama, Cacheu, Fá, Farim, Ziguinchor, Bolor e Bolola (Buba). Os franceses penetraram no rio Casamansa em 1828, procede-se à compra de território ao régulo de Borin, na margem esquerda do Casamansa. Nesse mesmo ano, um negociante francês instala-se na Ilha dos Mosquitos ou de Carabane, na embocadura do Casamansa. A diplomacia portuguesa reage em Paris, protesto inútil, as usurpações irão continuar.

Honório Pereira Barreto distingue-se pela perspicaz e contumaz política de compras do território para Portugal. Em 1836, por via diplomática, chega a informação que os franceses estavam a organizar companhias para irem estabelecer feitorias na Guiné, acima de Ziguinchor, e que tencionavam enviar tropa para fazerem frente a qualquer ação dos portugueses. No ano seguinte, os franceses instalam-se na ponta de Jemberém, e, mais tarde, na aldeia mandinga de Selho. Honório Pereira Barreto protesta junto das autoridades francesas, envia cartas ao governador em Cabo Verde. Aspeto curioso, em 1838, D. Maria II ordena a Honório Pereira Barreto a construção de dois forte, um no mesmo braço do rio onde os franceses em 1828 tinham fundado um estabelecimento, e outro acima de Selho. Era uma medida de grande alcance, mas não vieram os meios financeiros necessários.

No meio de trocas diplomáticas sulfúreas, com as autoridades francesas a fazer ouvidos de mercador, a diplomacia francesa monta uma fantasia: que desde o século XVI está presente no Senegal, que há mais de dois séculos que exerce direitos de posse, comércio e soberania desde o Cabo Branco até à Serra Leoa. Chega-se ao desplante de dizer e escrever que os normandos tinham chegado à Guiné antes dos portugueses. E segue-se um período em que não há correspondência entre Lisboa e Paris. Depois, veio a reação de Lisboa com a enumeração exaustiva das razões históricas da presença portuguesa na chamada Senegâmbia, Paris não responde a estas notas. É neste contexto completamente desfavorável que o Visconde de Santarém enviou, em 1841, uma cópia da sua Memoria sobre a prioridade dos Descubrimentos dos Portugueses na costa d’Africa occidental, acrescentando-lhe alguns capítulos no ano seguinte. O embaixador em Paris, Visconde da Carreira, reforça a argumentação invocada pelo Visconde de Santarém com documentos existentes no Museu Britânico, todos eles elucidativos que monarcas franceses, ingleses e espanhóis aceitavam inequivocamente a soberania portuguesa na região. Os políticos franceses resistem, tergiversem, demoram a responder, Carreira continua na sua luta sem se dar por vencido e continua a enviar notas a expor ao governo francês as razões de Portugal. Não obtém resposta. O ponto curioso da artimanha usada pelos políticos franceses, quando recebiam o embaixador português, era a de assegurar-lhe que o governo de Paris não pretendia a soberania nem a exclusividade do comércio de costa. Por mais argumentos válidos que Lisboa apresentasse, por mais fortes que fossem as suas razões, nada abalava nem desviava o caminho que fora traçado pela ambição da França, que, como a Inglaterra, procurava alargar a sua influência sobre regiões que não lhe pertenciam, nunca atendendo a direitos históricos. Era o começo de uma nova política comercial (imperial) em que predominava o princípio da ocupação efetiva que virá a ser consagrado na conferência de Berlim.

Voltemos a Honório Pereira Barreto. Enquanto se está a dar este combate diplomático, o governador, quase na sombra e sem alarde, procura por meio de convenções com chefes indígenas Banhuns e Felupes, trazer novos territórios para a Coroa, à volta de Ziguinchor. Entre 1844 e 1845, firma em seu nome pessoal e à sua custa doze contratos de compra de terrenos. Em 11 de abril de 1844 foram celebrados contratos entre ele e os naturais de Jagubel e Afinhame.

Mas a este tempo já se vive numa atmosfera de tensões na região do Casamansa, assim vai acontecer em Selho e Jagubel, procuram-se todos os expedientes para impedir o comércio nesta área do Casamansa. A autora descreve ao detalhe a ação deste notável governador, os tratados celebrados com os chefes gentílicos que asseguravam que aos portugueses cabia o exclusivo direito de fazerem estabelecimentos e alfândegas e que a navegação e o comércio estrangeiro ficavam sujeitos à fiscalização portuguesa. De igual modo, é meticulosa a apresentar a ação portuguesa na Guiné, dado conta dos diferentes incidentes graves no Casamansa (o caso da ponta de Adiana, o caso Laglaise, o incidente de M’Bering). E assim, nos vamos encaminhando para os termos da convenção de 12 de maio de 1886, e por último teremos as sucessivas fases para determinar as fronteiras da Guiné.

O marco 173 está situado em Chão Baiote, junto à tabanca Kassu, na praia de um dos muitos cursos de água da Baixa Casamansa. A linha de fronteira atravessa Kassu, deixando um bairro na Guiné-Bissau e outro no Senegal. O marco está instalado num espaço aberto, apenas frequentado por vacas que, para fugirem às moscas, buscam as zonas perto de água. Imagens de Lúcia Bayan, já publicadas no blogue, com a devida vénia.
Casamansa, a imagem do atrito
Imagem da ilha de Goreia, junto a Dacar
Imagem de pesca no rio Casamansa

(continua)
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Notas do editor

Vd. post de 7 de outubro de 2024 > Guiné 61/74 - P26018: Notas de leitura (1733): Regresso a um clássico da historiografia guineense: A questão do Casamansa e a delimitação das fronteiras da Guiné (1) (Mário Beja Santos)

Último post da série de 11 de outubro de 2024 > lGuiné 61/74 - P26036: Notas de leitura (1734): Factos passados na Costa da Guiné em meados do século XIX (e referidos no Boletim Official do Governo Geral de Cabo Verde, ano de 1879 a 1880) (24) (Mário Beja Santos)

segunda-feira, 7 de outubro de 2024

Guiné 61/74 - P26018: Notas de leitura (1733): Regresso a um clássico da historiografia guineense: A questão do Casamansa e a delimitação das fronteiras da Guiné (1) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 27 de Junho de 2023:

Queridos amigos,
Depois do relato surpreendente do tenente da Armada Real que andou em 1888 na delimitação de fronteiras, pareceu-me necessário voltar à questão do Casamansa, um dos efeitos mais dolorosos provocados pela ambição francesa, ignorantes e obtusos quanto à delicada questão dos povos ali residentes, forçados a entrar num espaço para eles inaceitável. E, como é público e notório, a questão perdura e perdurará. A investigadora Maria Luísa Esteves é mestra na organização do seu trabalho, enquadra de forma simples e incisiva a questão do Casamansa na perspetiva histórica da presença portuguesa, a parte da situação económica, continuamente desfavorável para Portugal, agravada pela presença dos Filipes, pelo analfabetismo político naquela monarquia constitucional em que Alexandre Herculano teve que desancar uma besta quadrada. Creio que o leitor ganhará mais elementos através desta visão de conjunto que este clássico da historiografia oferece, traz mais luz àqueles acontecimentos que o tenente da Armada Real Cunha Oliveira descreveu num relatório sem precedentes, agravado pelo seu desgosto em constatar a indiferença dos políticos portugueses pela Guiné, levado nas conclusões a conclamar: ou se desenvolve a Guiné ou então entreguem-na à França.

Um abraço do
Mário



Regresso a um clássico da historiografia guineense:
A questão do Casamansa e a delimitação das fronteiras da Guiné (1)


Mário Beja Santos

No repositório das obras admiráveis, de leitura obrigatória para melhor compreender a historiografia luso-guineense, avulta o impressionante trabalho de Maria Luísa Esteves, A Questão do Casamansa e a Delimitação das Fronteiras da Guiné, edição conjunta do Instituto de Investigação Científica e Tropical e do INEP, 1998. Trata-se de uma revisitação, o anseio de um novo olhar sobre tão importante narrativa, isto depois de ter lido e aqui comentado o texto do tenente da Armada Real, Cunha Oliveira, que coordenou em 1888, do lado português, a comissão mista que procurou resolver questões encrencadas na delimitação das fronteiras, tudo produto de quem assinou a convenção luso-francesa de 12 de maio de 1886 não fazer a menor ideia das delicadezas da topografia da região.

Atenda-se ao que escrevem a investigadora e Carlos Cardoso, este então a presidir o INEP:
“Ontem, objeto de disputa entre as potências de então, principalmente entre Portugal e a França, e hoje motivo de reivindicações por parte das populações que o habitam, este território, que perfaz 28,350 km2, ou seja, 1/7 do Senegal, denominado Casamansa, continua a despertar a atenção a historiadores e homens políticos. Com efeito, devido ás suas características naturais esta região cedo foi objeto de preocupação por parte daqueles que queriam ‘descobrir’ África.”

Parece-me também útil relevar da nota prévia: “Portugal e a França, até 1830, tiveram uma posição definida na Guiné. A partir dessa data, a influência francesa acentua-se lentamente após a fundação de uma feitoria no rio Casamansa (…) Para fazer uma descrição tanto quanto possível do Casamansa e da sua importância através dos tempos, fomos buscar elementos aos autores do século XV, XVI e XVII, que se lhe referem, como Luís de Cadamosto, Valentim Fernandes, André Álvares de Almada, André Donelha e Francisco Lemos Coelho.”

A autora observa que o grande mentor da defesa dos direitos portugueses ao Casamansa foi o visconde de Santarém, cuja obra Memoria sobre a prioridade dos descobrimentos Portuguezes na Costa d’África occidental; para servir de illustração à chronica da Conquista de Guiné por Azurara se tornou a base histórica de toda a discussão diplomática. Depois da convenção de 12 de maio de 1886, o que parecia simples e resolvido levou a contendas sucessivas, notas diplomáticas azedas, era difícil saber o que rigorosamente pertencia a cada país. Uma tentativa de ultrapassar o impasse, os dois países aprovaram a constituição de uma comissão mista que se deslocou à Guiné em 1888 (conhecemos o conteúdo desta atividade através do artigo-memorial de Cunha Oliveira, detalhadamente referido aqui no blogue), havia a intenção de marcar as áreas de influência de cada uma das partes. Surgiram obstáculos e divergências, como se observou acima, tudo fora feito pelos negociadores sem ter havido previamente o levantamento topográfico dos locais a delimitar para, sempre que possível, se respeitarem as divisões naturais. Os impasses sucediam-se, organizaram-se missões que 1900 a 1905 se irão ocupar da balizagem das fronteiras, procedendo ao reconhecimento de certos rios, à troca de territórios, à colocação de pilares. Por muito que o leitor se surpreenda, a demarcação da fronteira luso-francesa da Guiné só se pode considerar definitivamente concluída depois dos trabalhos de 1930 e 1931.

Postos estes prolegómenos, a autora procede esquematicamente a dados da presença portuguesa na Guiné: provavelmente quem aqui chegou em primeiro lugar terá sido Álvaro Fernandes, em 1446, segue-se Luís de Cadamosto na segunda viagem à Guiné, em 1456; meio século adiante, no manuscrito de Valentim Fernandes, há uma descrição minuciosa do Casamansa; em 1594, mais notícias se vêm juntar e desta vez dadas pelo capitão André Álvares de Almada numa outra obra fundamental, Tratado Breve dos Rios de Guiné (capítulo VIII ‘Que trata do reino do Casamança e do que nele há’).

Chegados ao século XVII, deparam-se-nos três manuscritos de indiscutível importância – um de 1625, Descrição da Serra Leoa e dos Rios da Guiné de Cabo Verde, outro de 1669, Descripção da Costa da Guiné desde Cabo Verde até à Serra Leoa, com todas as ilhas e rios que os brancos assistentes nella navegão, e o último de 1684, Discripção da Costa da Guiné e Situação de Todos os Portos e Rios Della, e Roteyro Para se poderem Navegar todos seus Rios (associado aos nomes de André Donelha e Francisco Lemos Coelho).

Depois da Restauração, o capitão-mor de Cacheu, Gonçalo de Gamboa de Aiala, fortificou Ziguinchor, este vai ser o único porto digno desse nome, até ao século XIX. Apesar do panorama desanimador do movimento comercial no início do século XIX, as relações dos naturais com o presídio eram boas devido à influência da família Carvalho Alvarenga, aparentada com o régulo de Ziguinchor. Alguns portugueses procuravam alertar os responsáveis e demonstrar que a perda da presença portuguesa na região seria uma catástrofe para o país, pois “aquelle rio exporta o dobro do que exportam os outros pontos juntos” e é o “maior rio d’Africa Portugueza”.

Depois desta contextualização, a autora expõe a situação económica da Guiné através dos séculos, como aqui se resume. Expedições de Cid de Sousa (1453), Cadamosto (1455) chega ao Geba; Diogo Gomes terá precedido em 1454 Cadamosto. Recorda-se a capitania em Arguim e como D. Afonso V arrendara os “trautos da Guiné” a Fernão Gomes. É também recordado que o comércio da Guiné estava eivado de grandes defeitos: por um lado, o controlo exercido pela administração régia; por outro lado, a indisciplina dos particulares que se entregavam à atividade mercantil da forma mais arbitrária, e com perda de réditos para a Fazenda.

A presença lusa na Guiné limita-se ao princípio ao litoral e às margens dos grandes rios. Era nestes pontos, quase isolados entre si, que se exercia a influência portuguesa. Em fins do século XVIII não havia uma ocupação efetiva na Guiné. Os franceses estabelecem companhias de comércio em África e, para justificarem a sua presença, inventam a lenda das viagens dos normandos à Guiné no século XIV.

A Companhia de Cacheu formou-se em 1675, de que a Fazenda Real era acionista, ficava com o exclusivo da navegação e comércio da Guiné. Mas era tarde, a derrota da Invencível Armada, em 1588, lançou definitivamente a Inglaterra a caminho da costa da Guiné – vai aparecer a feitoria da Gâmbia, berço da futura colónia inglesa.

Em 1677, os franceses conquistaram aos holandeses a ilha de Goreia e assim começou verdadeiramente a ocupação militar do Senegal. Só pelo Tratado de Versalhes, de 3 de setembro de 1783, a França fica senhora sem mais contestações da região compreendida entre o Cabo Branco e a Gâmbia, enquanto esta e a Serra Leoa pertenciam à Inglaterra. A nossa presença sempre em deterioração. Arguim caiu em poder dos holandeses no tempo dos Filipes, em 1638. Ali tinham permanecidos os portugueses durante séculos, datando de 1461 a ordem de D. Afonso V para se edificar um castelo na ilha.

O marco 173 está situado em Chão Baiote, junto à tabanca Kassu, na praia de um dos muitos cursos de água da Baixa Casamansa. A linha de fronteira atravessa Kassu, deixando um bairro na Guiné-Bissau e outro no Senegal. O marco está instalado num espaço aberto, apenas frequentado por vacas que, para fugirem às moscas, buscam as zonas perto de água. Imagens de Lúcia Bayan, já publicadas no blogue, com a devida vénia.
Casamansa, a imagem do atrito
Imagem da ilha de Goreia, junto a Dacar
Imagem de pesca no rio Casamansa

(continua)
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Nota do editor

Último post da série de 4 de outubro de 2024 > Guiné 61/74 - P26010: Notas de leitura (1732): Factos passados na Costa da Guiné em meados do século XIX (e referidos no Boletim Official do Governo Geral de Cabo Verde, ano de 1877 a 1880) (23) (Mário Beja Santos)

quinta-feira, 3 de outubro de 2024

Guiné 61/74 - P26005: (De) Caras (221): Correspondência da Guiné para Paulo Osório de Castro Barbieri (3) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 18 de setembro de 2024:

Queridos amigos,

Devo a seguinte explicação. Adquiri inicialmente um conjunto de aerogramas, posteriormente perguntei à minha fornecedora se podia remexer lá no saco e ver se havia ainda alguma correspondência da Guiné. Apareceram, de facto, mais cartas do tenente Nuno Barbieri, mas datadas de Luanda, no nosso blogue só trato da Guiné e não vi razão para abrir exceções. 

O que obtive foram mais cartas de um amigo de Paulo António, o alferes Pedro Barros e Silva. Começo por uma carta extensa (publica-se agora só metade), toda esta correspondência foi escrita em 1966, o autor é uma pessoa incontestavelmente informada e culta, a redação comprova-o. 

Vista à distância, tratou com argúcia e pertinência certas observações, outras falhou redondamente, caso do Senegal, naquele mesmo ano de 1966 o PAIGC, depois de um encontro entre Senghor e Cabral, viu a sua vida facilitada com o transporte de pessoal e armamentos através de diferentes corredores; e não passava de pura especulação a possibilidade do PAIGC implantar uma estrutura governamental no Quitafine. 

Esta carta é merecedora da nossa atenção.

Um abraço do
Mário



Correspondência da Guiné para Paulo Osório de Castro Barbieri (3)

Mário Beja Santos

Dei conta ao leitor que nas minhas deambulações pela Feira da Ladra vou sempre cumprimentar potenciais fornecedores, um deles dispõe em cima da sua banca álbuns fotográficos, caixas com velhos bilhetes-postais, fotografias avulsas, maços de aerogramas (infelizmente só de Angola e Moçambique), material avulso, desde programas de ópera a teatro de revista, tudo para satisfazer a clientela de colecionistas, que ali aparece em número apreciável. 

Bato quase sempre com o nariz na porta, mas desta feita apareceram para ali, primeiramente, quatro cartas destinadas a Paulo António Osório de Castro Barbieri, duas escritas pelo seu irmão na Guiné, Nuno Barbieri, e outras duas escritas por um alferes na Guiné, seu amigo, Pedro Barros e Silva, SPM 0368. 

Posteriormente, e depois de pedir à Sra. D. Amélia se tinha mais cartas dentro dos seus sacos, apareceram outras escritas pelo tenente Nuno Barbieri mas relacionadas com a sua presença em Angola, e mais duas de um alferes amigo de Paulo António, Pedro Barros e Silva. 

Já aqui se publicaram as duas cartas de Nuno Barbieri para Paulo António, vejamos agora uma das quatro cartas de Pedro Barros e Silva, datada de 17 de agosto de 1966 (as demais cartas são igualmente de 1966):

“Meu caro Paulo,

Escrevo esta carta na esperança que ainda siga para amanhã no avião militar. O mais provável é que ou o avião não segue ou não segue a carta. Enfim, tenta-se. Recebi a tua carta que chegou, como sempre, em boa altura. Já começava muito seriamente a temer que tivesses ficado submergido sob a avalanche dos exames, mestres, doutores e professores. Felizmente que te safaste com vida e fiquei bastante satisfeito por saber que os teus exames te tinham corrido positivamente. Podes crer que o meu patriotismo ficou ao rubro quando li que tinhas arrancado um 16 a tal coisa da História. Por momentos até acreditei que tivesses entrado no bom caminho. A Pátria que tanto fez por ti não merece as tuas ingratidões. Como já vai sendo habitual, a seguir aos teus exames, aos teus embates ferozes com a sapiência, entras gosse-gosse na tua caverna da Outra Banda, lá ficas a desintoxicar e a descontrair. Eu é que já estou bem necessitadinho de uma caverna pois começo a ficar nas lonas.

Já estou farto desta merda toda. Queres crer que não me importava nada, mesmo nadinha, poder estar fazendo uns estudos sobre essa tal fauna estival de que falas. Bem, espero que as pesquisas decorram frutuosamente e que a tua loura Fúria (loura ou morena?) te não prejudique nos teus trabalhos.

Escrever sobre a situação da Guiné não me parece muito simples. Mas deixemos o perlapié para dezembro, quando eu aí for. Por agora, vou procurar mostrar-te alguns aspectos da situação. Acertaste quando escreveste que eles tocam e nós dançamos. Contudo, não é bom esquecer que não são eles os regentes.

Quando cá cheguei entretive-me durante uns tempos a analisar as relações entre os militares e a população civil. Desta exceptuei os que vieram para a Guiné posteriormente à eclosão da porrada. A presença dos militares é tolerada. Na verdade, o máximo que nos parece ser permitido é pedir que não nos chamem muito alto filhos da puta. Esmagados pelo nosso complexo de culpa, nós, os maus e impuros, vamos atafulhando de dinheirinho as algibeiras dos bons e puros. Talvez eles nos deixem de chamar nomes feios.

Não julgues que este modo de pensar é característica exclusiva dos ‘velhos’. Uma boa parte dos novos também acha que se a gente tratar bem os pretinhos estes nos perdoariam por todos os séculos de chicotada que têm no lombo (se os visses trabalhar perguntarias para que serve o chicote) e passariam a ser bons cristãos e bons portugueses. Normalmente, após terem bebidos uns goles de água da bolanha mudam de ideias e então querem é pisgar-se. Mas isto tem que ser visto no contexto geral das estratégias que uma e outra parte utilizam. As ideias-base da nossa estratégia coincidem com as ideias-base da estratégia inimiga. Diferem no sinal. Assim, enquanto a estratégia do IN é ativa, conquistadora, lançada para um futuro, a nossa é passiva, conservadora, projeção do passado (dos tais 5 séculos).

Assim, bem podemos bradar aos quatro ventos que o IN ataca indistintamente brancos e negros. Será que também não haverá maus negros, traidores que a troco de uns patacões estão prontos a lutar (e alguns bastante bem) do nosso lado?

Nem tudo que é do lado de lá está o lugar deles e efetivamente é lá que está a grande maioria. E porquê? Quando nós dissemos aos Felupes, aos Sossos, aos Fulas, aos Balantas, aos Mandigas, a todos esses selvagens que se odiavam de morte, que eram todos portugueses, todos filhos do mesmo Deus que também era o nosso, quando os afastámos dos seus usos, deturpámos e aviltámos os seus sítios, os arrancámos à tabanca e os lançámos na cidade, não fizemos mais que criar as condições que permitiram a atual situação. Quando o IN proíbe severamente o tribalismo e os privilégios tribais, chama-os a todos guineenses, dá-lhes o português como língua única, limita-se a continuar aquilo que nós iniciámos e que incompreensivelmente continuamos. Quanto a mim, tendo em linha de conta um e outro dispositivo, a derrota é inevitável, a menos que se alterem certos factores externos que influem decisivamente e são susceptíveis de alterar profundamente a situação. Eles tocam, mas não são eles os donos dos instrumentos.

Parece-me que o factor mais importante é a atitude que os EUA possam vir a tomar. Até que pontos os ianques estarão dispostos a auxiliar-nos a ganhar esta guerra (no fundo, trata-se somente de impedir os outros de a ganharem, já que nós somos insuficientemente incompetentes para o fazer).

Vou deixar propositadamente para trás as nossas possibilidades de conquistar a mão da donzela. Há muito que andamos afastados destas lides e andamos esquecidos. Durante algum tempo ainda pensei que quiséssemos empatar a disputa (engolindo à pressa mais vitaminas), hoje cheguei à conclusão de que não temos a audácia e força para a desempatar. Assim, esperemos que o outro pretendente tenha uma paralisia infantil. Ora o outro pretendente é o PAIGC (que tem dois primos raquíticos, a FLING e a FLING combatente). As surpresas do rapaz dependem da atitude que tomarem uns parentes um pouco mais idosos: o Senegal e a Guiné.

Como é óbvio, a posição desses é determinada pelos cataventos da História. Ora sopram daqui, sopram dali. Pelo que toca ao Senegal, está-me a parecer que o PAIGC está a levar com os pés. Não é que os senegaleses nos beijem na boca e nos chamem Tarzan, mas eles têm medo de que o PAI de parceria com o PAIGC lhe meta um cagaço. E como a região do Casamansa é a base do PAI, os rapazes senegaleses estão a empurrar os turras para longe. Para começar proibiram todo o trânsito de material de guerra no seu território.

A concretizar-se mais profundamente o desafio que o Senghor está a oferecer ao Amílcar, é admitir que este tenha de abandonar ou pelo menos de diminuir a intensidade da luta no Norte e até talvez seja levado a abandonar uma das suas mais tradicionais posições: o Oio (apesar do que para aí dizem, nós não entramos no Oio).

Não se alterando a posição do Touré, é provável que tivéssemos de enfrentar um endurecimento da porrada ao Sul, que é, sem sombra de dúvida, aonde estamos de cócaras e onde eles têm posições tão seguras que até já pensam em instalar o Governo no Quitafine. Quanto à Guiné, falou-se por aí de umas desinteligências entre o Amílcar e o Touré. Quanto a mim, não passa de um bec-bec. As forças do PAIGC representam, para o Touré um tampão que lhe protegerá para a fronteira Norte e se necessário o ajudará a manter-se no trono, já que no Sul o rapazola (recentemente cognominado de Le Grand Soleil – maravilhas do socialismo africano) estão de calcinhas, ou por outra, de tanga na mão. De resto, parece-me que não seria muito difícil dar-lhe umas boas palmadas no rabo. Os ebúrneos que se entretenham. Eles têm para lá uma FNL (decerto que entendes a sigla) e já chamam bandidos e outros nomes feios aos moços do PAIGC. Para mim, tanto faz que lá esteja o Mamadu, o Baldé ou Fosquinhas. O principal é que se dê o chuto nos tais bandidos e seja amigo da tropa. A actual situação militar, como já deves ter depreendido através dos monocórdicos comunicados não é propriamente fantástica. A maralha não defronta uns bandos mas (e eu sei) gajinhos muitíssimo bem treinados e ainda por cima enquadrados por russos (chamemos assim aos brancos do lado de lá) e cubanos. Vou até ousar afirmar que não é em Moçambique ou em Angola que vão incidir maiores esforços do IN para nos pôr a andar. É aqui na Guiné.”


Interrompemos aqui a carta de Pedro Barros e Silva para Paulo António, é muito extensa e escusado é relevar que merece ser lida com a maior atenção.

Mensagens de Natal, Guiné 1966, RTP Arquivos

(continua)
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Nota do editor

Post anterior de 24 de setembro de 2024 > Guiné 61/74 - P25976: (De) Caras (220): Correspondência da Guiné para Paulo Osório de Castro Barbieri (2) (Mário Beja Santos)

sexta-feira, 6 de setembro de 2024

Guiné 61/74 - P25916: Notas de leitura (1724): Factos passados na Costa da Guiné em meados do século XIX (e referidos no Boletim Official do Governo Geral de Cabo Verde, ano de 1873 e 1874) (19) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 20 de Maio de 2024:

Queridos amigos,
Ando a folhear cartapácios com uma literatura de mansidão informativa, já não se fala na crise europeia, aquelas guerras que fizeram abrandar os mercados coloniais, a documentação de Cabo Verde está polarizada nas questões de saúde pública e as notícias do Governador da Guiné muito tranquilizadoras, não há uma só referência ao que se passa no Forreá, absolutamente não há uma menção do cerco francês ao Casamansa, o que predomina são as questões da febre amarela, da cólera, de quem chega ao hospital ou se cura ou morre ou continua em tratamento. As tensões que se observam que se transmitem para a cidade da Praia têm a ver com o Churo ou com Geba. E não quero enfastiar o leitor com nomeações, autorizações para repouso numa das ilhas cabo-verdianas a quem está em serviço na Guiné, e não deixa de surpreender a publicação de listas dos degredados que arribam à região, ladrões, homicidas, desobedientes, muitos deles irão parar às praças e presídios da Costa da Guiné, já falta pouco para se tornar na Província da Guiné Portuguesa.

Um abraço do
Mário



Factos passados na Costa da Guiné em meados do século XIX
(e referidos no Boletim Oficial do Governo Geral de Cabo Verde, anos de 1873 e 1874) (19)


Mário Beja Santos

Não deixo de me surpreender pela completa falta de notícias sobre todos os acontecimentos que se estão a passar no Casamansa, neste período em análise, as notícias do Governador da Guiné são as tensões no Churo, quanto ao mais a Guiné para estar numa perfeita normalidade. Folheando o Boletim Official, o tema nevrálgico são os problemas de saúde pública que existem em Cabo Verde, é impressionante o número de relatórios minuciosos que se vão emitindo com enorme regularidade, as informações sobre saúde quanto à Guiné são lacónicas, até parece que tudo estava bem com exceção de casos de febre amarela, malária, sífilis, varíola, tuberculose pulmonar e muito mais. A parte não oficial tende a crescer, então as páginas de necrologia, assumem uma escrita ultrarromântica. E pela primeira vez vejo a lista dos degredados que chegam à Província, do roubo à facada assassina há de tudo, são degredados e em muitos casos irão para as praças e presídios.

Continuamos em 1873. No Boletim n.º 23, de 7 de junho, publica-se o extrato das notícias recebidas do distrito da Guiné Portuguesa, vieram pela escuna Vila de Mindelo. O estado sanitário e alimentício da Guiné era regular, o comércio pouco animado no decorrer de maio, não se tinham registado alterações na segurança pública, à exceção de Cacheu, onde alguns gentios da tribo de Churo haviam disparado uns tiros contra os baluartes da praça. As autoridades tinham suspendido as relações com aquela tribo. Sabia-se, porém, que o régulo respetivo fazia diligências junto de outros que connosco mantêm boas relações para que servissem de medianeiros em ajustes de paz com a praça; contava-se que em breve essas boas relações seriam retomadas, pelo que o Governo do distrito deixou em Cacheu as coisas bem-dispostas e instruções convenientemente dadas, aguardando um bom desfecho. No mês de fevereiro próximo deve estar pronto para embarcar em Cacheu o carregamento de madeiras que dali irá seguir para o arsenal da Marinha de Lisboa. E ainda se dá informações relativas aos réditos alfandegários dos últimos meses.

O Boletim n.º 21, de 14 de junho, dá a informação de que o Governador Geral autorizou a construção de uma cadeia civil na vila de S. José de Bissau. Pelo Boletim n.º 29, de 19 de julho, o Governador da Guiné, António José Cabral Vieira, informa o Governador Geral, enviou-lhe notícias pelo palhabote Furão: bom estado sanitário do distrito, é satisfatório o estado alimentício em todos os pontos, o comércio considera-se frouxo devido à falta de navios com sortimentos. A estação chuvosa tem sido regular, e se assim continuar prevêem-se boas colheitas. A tranquilidade pública não tem sofrido alteração em todo os distrito, o Governador junta cópias de informações que vieram de Cacheu e de Farim, eram ocorrências que deviam chegar ao conhecimento do Governador Geral. Assim, a administração do concelho de Cacheu esclarece que a comissão nomeada para tratar da paz com o gentio de Churo tem a expetativa que a reunião se realizará em breve. O chefe do presídio de Farim, Pedro Pereira Barreto, vem notificar que ali foram gentes do rei falar com ele, após debate disseram que a razão se achava do lado da parte portuguesa e prometeram fazer com que os Mouros em questão entregassem a nossa gente que eles haviam aprisionado, e nessa reunião eles entregaram um rapazinho que tinha sido presenteado ao rei local. O chefe do presídio respondeu a estes delegados do rei que lhes dissesse que enquanto não fossem restituídos todos os que tinham sido capturados, o régulo seria o único responsável. Dois dias depois, chegaram os homens grandes daquele território, mandados pelo seu rei para visitar o presídio. Também há notícia da administração do concelho de Cacheu, ele informa que duas das tribos do Churo têm guerreado ali entre si e que tem havido mortes de ambas as partes e que brevemente virão à praça para pedir a paz.

O Boletim n.º 34, de 23 de agosto, insere mais um extrato de notícias oficiais, estas recebidas da Guiné pelo palhabote Africano. Em síntese, em todo o distrito reinava a paz e tranquilidade pública, só nas vizinhanças do presídio de Geba uns gentios Fulas tinham agredido algumas mulheres e crianças das famílias Mandingas que ali residiam. O chefe do presídio havia mandado emissários ao régulo Donhá, que tem a soberania pelo território em que está situado no presídio, a pedir satisfação pelos insultos praticados pela sua gente para com os habitantes do presídio que vivem sob a proteção da bandeira portuguesa. O régulo recebeu prontamente os emissários, a quem deu satisfação cabal, mandando imediatamente matar o principal criminoso.

E assim chegamos a 1874 e, no Boletim n.º 6, de 7 de fevereiro, do título “Da Ordem à Força Armada de Janeiro”, é de destacar: tendo o capitão Manuel dos Santos Oliveira incumbido pelo Governado da Guiné Portuguesa de capturar os criminosos que no presídio de Farim praticaram atos de barbaridade contra alguns habitantes daquele presídio: manda Sua Excelência o Governador Geral louvar o mencionado capitão, pela bravura e zelo com que se houve no desempenho daquela missão.

No Boletim 17, de 25 de abril, vão notícias para a cidade da Praia no palhabote Experiência, comunica-se que o estado sanitário do distrito é bom, que é lisonjeiro o estado alimentício nos concelhos dependentes da Guiné; o comércio de Bissau e de Cacheu anda frouxo, muito animado anda o de Bolama, onde no mês de fevereiro último entraram no seu porto oito navios estrangeiros, sendo quatro franceses, um americano, dois austríacos e um italiano. Continuava a colheita da mancarra, suponha-se que a sua exportação iria atingir 800 mil busheles (medida que está hoje em desuso). O preço deste produto ainda se conservava na razão de 360 réis o bushel. A colheita de arroz, conquanto não fosse muito importante, não há receio que falte para o consumo. A tranquilidade pública não tem sido alterada salvo entre algumas tribos gentílicas, quem assina é o Governador da Guiné, António José Cabral Vieira.
Suplemento ao Boletim n.º 7, 15 de fevereiro de 1873, notícia do falecimento da Imperatriz do Brasil, avó do rei D. Luís
Planta da Praça de Bissau, por Bernardino António d’Andrade, 1796

(continua)

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Notas do editor

Vd. poste de 30 de agosto de 2024 > Guiné 61/74 - P25896: Notas de leitura (1722): Factos passados na Costa da Guiné em meados do século XIX (e referidos no Boletim Official do Governo Geral de Cabo Verde, ano de 1873) (18) (Mário Beja Santos)

Último post da série de 2 de setembro de 2024 > Guiné 61/74 - P25904: Notas de leitura (1723): Breve história da evangelização da Guiné (3) (Mário Beja Santos)