Queridos amigos,
Não vou esquecer tão cedo que folheei de janeiro a dezembro o Boletim Official da Província da Guiné à procura de quaisquer comentários não só alusivos ao facto de que a colónia da Guiné, pela primeira vez, tinha a definição da sua superfície, indo ocupar espaço no interior onde a presença portuguesa era mais do que diminuta, como igualmente este relatório de Marques Geraldes, chefe do presídio de Geba, que vê publicado o seu documento depois de Ziguinchor passar a ser possessão francesa, há aqui qualquer coisa de grotesco, de ausência de comunicação entre Bolama e Ziguinchor, ver um chefe de presídio a diagnosticar um quadro de penúria e negligência, pedindo meios, quando era irremediável a perda do território a que ele se referia. Virão depois os protestos daqueles que queriam manter a presença portuguesa, mas a Convenção Luso-Francesa entrara em vigor, diplomatas como Andrade Corvo julgavam que entregar o Casamansa à França fariam dela uma aliada para defender o Mapa Cor de Rosa, que gente tão ilusória.
Um abraço do
Mário
A Província da Guiné Portuguesa
Boletim Official do Governo da Província da Guiné Portuguesa, o importante relatório do chefe do presídio de Ziguinchor, Marques Geraldes, 1887 – 2 (13)
Mário Beja Santos
O relatório do chefe do presídio de Ziguinchor, enviado para Bolama no início do ano de 1886, é uma peça de indiscutível interesse, será porventura a peça mais detalhada que ficará para a historiografia sobre a presença portuguesa, com a Convenção Luso-Francesa de 12 de maio desse ano, todo o Casamansa passou a ser parte da África Ocidental francesa, incorporado no Senegal. Marques Geraldes faz uma recensão histórica, apresenta o presídio, releva os problemas existentes, é bastante frontal a expor a degradação em que se encontra o património. Dando continuidade ao texto anterior, ele passa em revista a saúde pública, o comércio, a indústria, a agricultura e a instrução pública.
“A não ser alguns casos de sarampo benigno que apareceram de abril a agosto de 1884, e as febres palustres que mais ou menos atacam os habitantes nos meses de outubro a novembro, devida às exalações pútridas que emanam dos arrozais da transição do tempo pluvioso para o seco; a não ser isto, digo, nada mais houve que alterasse o estado sanitário do presídio e subúrbios, devido às enérgicas e sábias providências adotadas pela Junta da Saúde da província, por ocasião de aparecerem doenças contagiosas na Goreia, sendo certo que este ponto está em constante comunicação com a praça. Eram eles que maior contingente fornecia aos mercados europeus com os produtos que anualmente saem deste rio. É também devido a eles, em grande parte, que a agricultura se ostentava em todo o seu viço, fornecendo géneros alimentícios tanto as tribos Mandigas com os povos deste lado que ali vão negociar.”
Marques Geraldes deplora o rendimento do presídio, considera que os negociantes deviam ampliar os seus negócios e faz o seguinte comentário:
“Grande parte das produções que aqui aparecem são novamente levadas pelos seus donos a outros pontos, já porque aqui os preços são elevados, já pelo amesquinhado do negócio. Além disso, os preços das mercadorias em Selho e Carabane são muito mais convidativos e incitam o gentio a ir fazer os seus negócios naqueles pontos. O comércio está aqui atualmente representado por quatro negociantes: Frederico Chambas, súbdito francês e residente nesta praça há perto de 24 anos; Samuel Lisck; Manuel Pereira da Cruz e José Gomes Pereira, africanos.
Os dois primeiros recebem a crédito as mercadorias de Selho; o terceiro de Cacheu, e o quatro costuma ir diretamente a Goreia, onde compra à vista, e por consequência mais barato, as mercadorias que necessita.”
Dá conta do rendimento da delegação fiscal aportada ao ano de 1882 e não deixa de fazer o seguinte comentário: “Bom seria que se aplicassem os rendimentos cobrados nesta delegação em obras de que tanto carece este presídio, para evitar as despesas que anualmente se fazem com rendas de casas para aquartelamento das praças, delegação fiscal e residência do chefe. De grande conveniência, pois, se tornava o proceder-se o levantamento de um quartel ao centro da povoação; casa para delegação fiscal próxima à praia e reedificação da igreja que se acha quase em ruínas.”
Na vertente industrial, o chefe do presídio menciona exclusivamente o fabrico de sal. E faz largo comentário ao estado agrícola:
“A cultura do arroz em todo o rio é que tem mais incremento, sendo por isso utilizados grande parte dos terrenos baixos que estão mais próximos do rio. Os lugares elevados são empregados na cultura do milho maçaroca do Brasil, feijão, alguma mandioca e batata-doce. A vinda de colonos europeus ou das ilhas, para este e outros pontos da província, bem auxiliados pelo Governo, com a condição de se dedicarem somente à agricultura e à introdução de instrumentos agrícolas, dava benéficos resultados. Em frutas, a que maior quantidade se encontra em terra de Banhuns é a laranja. Há matos imensos só de laranjeiras. Aparecem também algumas papaias e bananas. A colheita nos povos circunvizinhos da margem esquerda foi regular; a da margem direita foi insignificante, motivadas pelas guerras contínuas que os Mandigas ali estão promovendo à laboriosa raça de Felupes.”
Por último, Marques Geraldes debruça-se sobre a instrução pública:
“Funcionou com regularidade a aula de instrução primária. Cabe aqui dizer que a escola está completamente despida de tudo o quanto lhe deve ser inerente. Principia por não haver casa para tal fim, vendo-se o professor obrigado a dar a aula no seu próprio quarto.
Até hoje não têm sido satisfeitas as requisições da maior parte dos objetos, indispensáveis, de forma que o grau de instrução que se nota nos alunos, embora haja boa vontade do professor, não é tal qual se devia esperar, se as escolas estivessem munidas de tudo quanto lhes é necessário.
Os pais, na sua quase totalidade, são pobres e, portanto, é da máxima conveniência que o Governo, embora lhe custe sacrifícios, auxilie alunos e professores, para que a sua instrução progrida, sendo certo que só da geração nova nós devemos esperar os benéficos resultados da civilização que desejamos ver espalhada por todas as nossas províncias, e não da velhada a quem coisa alguma deste mundo será capaz de desarreigar os costumes retrógrados em que foram criados e que de certo modo passarão para a mocidade, se o Governo não atalhar este mal prontas e sábias providências.
Cabe aqui dizer, que sendo a câmara municipal de Cacheu a quem compete remediar em primeiro lugar tais faltas, nenhumas providências deu até hoje, apesar das repetidas reclamações já do chefe do presídio, já do próprio professor, sendo pressentir tal procedimento quando é certo que Ziguinchor tem dado não pequeno contingente pecuniário para o cofre do município.”
Quando se acaba a leitura deste relatório, não se pode deixar de ficar estupefacto como o chefe do presídio propõe medidas de fundo, no total desconhecimento que as autoridades em Lisboa estão a assumir diligências diplomáticas que levarão a que Ziguinchor, meio ano depois de Marques Geraldes enviar o documento a Bolama, deixe de ser território colonial português. Não encontrei no Boletim Oficial nenhum texto oriundo do Governo em Bolama que desse a saber que aquele território seria em breve possessão francesa. Depois virão as reações de quem vive em Ziguinchor e das autoridades gentílicas. Mas era demasiadamente tarde.
Mapa muito antigo onde se revela que o território da Guiné era, segundo o cartógrafo, parcela integrada do que se chamava a Etiópia Anterior, aparecem ali designações como Senegal e Terra dos Negros
Ziguinchor nos tempos modernos
Os Fijus di Terra, na região do Casamansa, que 500 anos depois da chegada dos portugueses, não se identificam em pertencer ao Senegal(continua)
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Nota do editor
Último post da série de 4 de dezembro de 2024 > Guiné 61/74 - P26231: Historiografia da presença portuguesa em África (455): A Província da Guiné Portuguesa - Boletim Official do Governo da Província da Guiné Portuguesa, o importante relatório do chefe do presídio de Ziguinchor, Marques Geraldes, 1887 – 1 (13) (Mário Beja Santos)
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