sábado, 25 de agosto de 2018

Guiné 61/74 - P18952: Os nossos seres, saberes e lazeres (281): De Aix-en-Provence até Marselha (13) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70) com data de 6 de Junho de 2018:

Queridos amigos,
Aqui finda o périplo iniciado na formosa Aix-en-Provence e que culminou por uma larga deambulação em Marselha. Como todos os viandantes, escutam-se diferentes opiniões quanto à mais-valia de qualquer cidade, este viandante não auscultou comentários altamente lisonjeiros à imponente cidade portuária e há até mesmo comentários veladamente xenófobos, para não dizer racistas, acerca da sua população ou das gentes que por aqui circulam. No entanto, a cidade é muito mais que uma lembrança do passado, dos seus hotéis luxuosos, da majestade graciosa do Porto Velho. Tem panorâmicas inigualáveis, como estar no ponto mais alto de Notre-Dame-de-la-Garde e ver para um lado um Mediterrâneo aparentemente infindável e virar as costas para as cordilheiras dos Alpes que parecem aqui descansar.
Inesquecíveis férias na Provença. Em junho, o viandante espera aterrar em Toulouse e visitar os territórios dos Cátaros e dos Albigenses e pela primeira vez na sua vida assentar nos Pirenéus sem ser de passagem.

Um abraço do
Mário


De Aix-en-Provence até Marselha (13)

Beja Santos

Regresso, em jeito de despedida, a Notre-Dame-de-la-Garde, a 162 metros de altitude, aqui foi edificada a igreja de peregrinação com o mesmo nome. As imagens falam por si, a cidade avança nas suas cores puras para o Atlântico, por detrás deste altíssimo ponto de peregrinação estão ao Alpes, guardam na sua cumeeira o último gelo do inverno. Aqui o viandante medita sobre o que já viu na imponente Marselha, surpreendeu-o as destruições ao tempo da II Guerra Mundial, os alemães derrubaram as construções do bairro em torno do Porto Velho, como medida de precaução; da cidade levaram judeus e oposicionistas, à partida, em agosto de 1944, houve mais destruições no porto. Mas aqui em cima respira-se a paz, a imensidão do casario aviva-se com o céu tão azul, que beleza e que tranquilidade!




A Basílica atual data do II Império, naquele momento do século XIX a França expande-se, o seu império colonial tornou-a próspera, e daí os meios para esta edificação em estilo romano bizantino. A igreja alta está ornada de mosaicos e de numerosos ex-voto, testemunhos eloquentes da fé popular. No ponto mais elevado, o campanário, está a estátua monumental da Virgem dourada, folheada a ouro nas oficinas Christofle.



Regresso à cidade, nova itinerância, pretendia-se visitar um museu de arte contemporânea que está em obras, contempla-se agora a Ópera, Marselha tem os seus pergaminhos na música operática. A primeira Ópera foi construída no início do século XVII, aqui, Lully criou uma academia de música, é um edifício gracioso, pena é que esteja tão entaipado, não permite ao viandante que expanda o olhar fora do cerco do casario. É uma construção do século XVIII, foi parcialmente destruída por um incêndio em 1919, da origem só conserva as paredes-mestras e a fachada principal e a sua colunata jónica. Foi reconstruída em Arte-Deco, o que trouxe originalidade a toda a composição.


A França digeriu sempre mal a sua derrota em 1940, os seus colaboracionistas, o seu antissemitismo, demorou décadas a enfrentar a realidade. E é nestas deambulações que encontramos lápides dessa realidade, tão dolorosa, a partida de judeus e oposicionistas para uma viagem sem regresso.


É nisto que o viandante se depara com uma exposição em que pontifica o vermelho, na casa do artesanato, onde primam diferentes valências, ora vejam a indumentária feminina, um instrumento musical e a elaboração de livros, é gratificante percorrer esta amostra tão graciosa, tudo tão bem exposto, sobre a égide do vermelho.





Está na hora de partir, dizer adeus a esta cidade com 26 séculos de história, encruzilhada de civilizações entre a Europa, África e Ásia, veio o viandante com tanto entusiasmo à procura do velho porto, das suas fortalezas, com destaque para o Forte de S. João, os seus bairros antigos, os seus museus, o panorama de Notre-Dame-de-la-Garde. Sucesso completo, não foi total por falta de acesso ao Parque Nacional Des Calanques, mais uma razão para voltar, e então nessa oportunidade partir de Marselha para a ilha rochosa de If, mundialmente conhecida pelo romance “O Conde de Monte-Cristo”, de Alexandre Dumas. O maciço des Calanques proporciona um espetáculo natural único, com as suas escarpadas agulhas rochosas de pedra calcária branca a precipitarem-se sobre o mar verde-azulado.
O viandante despede-se mostrando a rua onde viveu, daqui se vai para a artéria principal La Canebière, a espinha dorsal da velha Marselha, e na gare toma-se comboio até ao aeroporto.
Foram umas férias felizes, o viandante promete voltar.

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Nota do editor

Último poste da série de 18 DE AGOSTO DE 2018 > Guiné 61/74 - P18933: Os nossos seres, saberes e lazeres (280): De Aix-en-Provence até Marselha (12) (Mário Beja Santos)

Guiné 61/74 - P18951: Parabéns a você (1488): Manuel Carmelita, ex-Fur Mil Radiomontador do BCAÇ 3852 (Guiné, 1971/73)

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Nota do editor

Último poste da série de 24 de Agosto de 2018 > Guiné 61/74 - P18948: Parabéns a você (1487): António Fernando Marques, ex-Fur Mil Inf da CCAÇ 12 (Guiné, 1969/71)

sexta-feira, 24 de agosto de 2018

Guiné 61/74 - P18950: Notas de leitura (1094): Os Cronistas Desconhecidos do Canal do Geba: O BNU da Guiné (48) (Mário Beja Santos)

Câmara Municipal de Bolama, fotografia de Francisco Nogueira no livro “Bijagós Património Arquitetónico”, Edições Tinta-da-China, 2016, com a devida vénia.


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 2 de Fevereiro de 2018:

Queridos amigos,
Aqui se falará de um Casino Hotel, que nunca saiu do papel, da amargura de um inspetor do BNU que presenciou o movimento revolucionário de 1931 que considerou que a administração em Lisboa não teve um mínimo de reconhecimento pela sua compostura, pede-se mobiliário para o primeiro andar da filial em Bissau, e ficamos a saber que a Sociedade Industrial Ultramarina é um empreendimento do BNU, em Bandim fabricavam-se telhas de boa qualidade. E igualmente ficamos a saber que caso ocorresse qualquer tumulto ou levantamento revolucionário, era determinado que as notas seriam perfuradas e no caso de haver bloqueio se fechava a dependência até à normalização da situação.
Naquele ano de 1932, a situação financeira de um empreendimento agrícola supostamente modular, a Sociedade Agrícola do Gambiel, começa a derrapar. Não é o primeiro e não será o último colosso agrícola a soçobrar na Guiné, lamentavelmente.

Um abraço do
Mário


Os Cronistas Desconhecidos do Canal do Geba: O BNU da Guiné (48)

Beja Santos

Introdução 
De V. Senhorias para V. Exas.

Com data de 30 de Abril de 1927, o Governador Leite de Magalhães vê publicado no boletim oficial da Guiné o diploma legislativo provincial n.º 353, do seguinte teor:
“Lutando a colónia com dificuldades para a instalação conveniente dos funcionários que a servem e não podendo o Estado dispor de verba que seria precisa para a rápida construção dos edifícios necessários ao seu alojamento;
Considerando, porém, que, se o Estado promover e auxiliar a construção de hotéis em boas condições de higiene e de conforto, onde os funcionários e suas famílias possam deparar, a preços acessíveis, o bem-estar de que carecem, também por essa forma se conseguirá melhorar as suas condições de vida da colónia;
Considerando mais que, para os olhos estranhos, um país que não saiba oferecer comodidades na sua hospedagem é um país que se não tolera e que a si próprio se condena pelo atraso que revela nos hábitos da sua vida… Hei por conveniente determinar o seguinte:
Artigo 1.º - Na tabela de despesa extraordinária para o ano económico de 1927-1928, será inscrita a verba de cem mil escudos, para garantia de juro de capital necessário à construção de um hotel em cada uma das cidades de Bolama e de Bissau, obrigando-se o Estado a conceder anualmente, e durante dez anos, a mesma garantia relativamente ao capital que não estiver amortizado.
Art. 2.º - Os hotéis a construir deverão oferecer todas as condições de higiene e conforto, preferindo-se as construções em pavilhões destacados e, quando possível, em parques ajardinados.
Art. 3.º - Os concorrentes à construção dos hotéis deverão apresentar as suas propostas até ao dia 30 de Junho do corrente ano, na Direção dos Serviços de Obras Públicas, fazendo-as acompanhar das respetivas plantas e memórias descritivas, e com indicação das vantagens que oferecem ao funcionalismo da colónia no tocante a preços de alimentação e de hospedagem”.

Em Junho desse ano José Granger Pinto escreve ao gerente do BNU em Bolama, anexa um projeto de construção para um Casino Hotel no total de seiscentos mil escudos, e declara:
“Não tendo o numerário necessário para esta construção, pedia a V. Ex.ª a fineza de apresentar à Direção do BNU em Lisboa o referido projeto e propor o financiamento da construção, mediante a respetiva hipoteca nas seguintes condições: o Governo da colónia garantia o juro de 10% sobre o capital empregado, durante dez anos; o peticionário comprometia-se a pagar todos os anos 10% do capital abonado pelo Banco, mas a amortização só começaria a vigorar depois de concluída a construção. 
E escrevia, em jeito de despedida: 
“Atrevo-me a fazer esta proposta, estimulado por Sua Excelência o Governador, calculando que a Direção desse Banco desejará prestar o seu auxílio a uma obra de beneficiamento para esta colónia, aonde por enquanto nada existe como melhoramento”.

Não se conhece seguimento deste processo, do Casino não há memória, o BNU cederá o seu belo edifício de Bolama para Hotel de Turismo e Bissau conhecerá ao longo das décadas, pensões, residenciais e até uma unidade que dava pelo nome de Grande Hotel, não era grande e tinha pouco de hotel.

Há um silêncio documental que abarca o período de 1928 a 1930, não falta documentação sobre a chamada “Revolução Triunfante” que sacudiu a Guiné em 1931, o relatório de execução é bem elucidativo do que se terá passado, na perspetiva do gerente de Bissau. Da documentação arquivada encontra-se o texto do telegrama que o gerente de Bissau tentou enviar para Lisboa, a Junta Governativa da Guiné não permitiu a sua expedição, respondia ao telegrama enviado pelo BNU de Lisboa que pretendia saber se o Governador da Província ainda estava preso. De facto, o Governador Leite de Magalhães fora preso em 17 de Abril, posto a bordo, com outros oficiais da Guarnição e suas famílias, seguira no vapor de carga “Maria Amélia”, com destino a Lisboa.

1964 - Equipa de basquetebol do Grupo Desportivo e Cultural dos Empregados do BNU.

Com data de 7 de Maio, o administrador do BNU Fonseca Monteiro expede uma circular com caráter reservado onde se escreve, sob o título “Acontecimentos Anormais”:
“Os recentes e graves acontecimentos que se desenrolaram nos arquipélagos da Madeira e dos Açores e na Província da Guiné, e a lição que desses factos colhemos, aconselham-nos a determinar a todas as gerências das nossas dependências do Ultramar que em caso de tumultos, greves revolucionárias, guerra ou estados semelhantes, defendam as nossas notas, perfurando-as; e que em caso de bloqueio regularmente estabelecido, se considerem em país inimigo e procedem de conformidade, fechando a dependência enquanto a situação se não normalizar. Estas instruções são de caráter permanente.”

A revolução abortada deixou sequelas como se pode verificar do documento confidencial emanado do Serviço de Inspeção com data de 6 de Agosto de 1931, onde se começa por dizer não haver qualquer comunicação, aconselhando o gerente de Bissau a emitir a favor dos revoltosos um cheque de doze mil francos sobre Dakar.
Os revoltosos desistiram do saque desse cheque e só exigiram notas de francos, houvera igualmente por parte do Gerente recusa no fornecimento do código telegráfico, e tece as seguintes considerações:
“Em ocasiões como aquela em que os factos se desenrolaram, não é fácil deixar de satisfazer pedidos formulados com cortesia, porque atrás desta está a violência pronta a efectivá-los.
A revolução na Guiné foi feita com gente de boa moralidade, com outra de moral muito duvidosa e com dezenas de bandidos da pior espécie que o Governo da Metrópole tinha deportado e que o Governo da Colónia até conservava isolados numa das ilhas dos Bijagós.
Atrás dos mandantes estavam estes que até aqueles temiam. Bem armados e municiados tiveram a colónia inteira à sua discrição; atravessámos tal emergência conseguindo, com o nome proceder, que não fosse feito o mais ligeiro desacato às dependências do Banco, que não nos fosse exigido, a bem ou a mal, um escudo sequer, e no fim, quando supúnhamos ter prestado, sós sem o auxílio do gerente, um serviço ao Banco, digno pelo menos de umas ligeiras palavras de louvor, apenas nos é dado ler recriminações à maneira como procedemos.
Não estivéssemos nós na Guiné naquela ocasião, ou tivéssemos logo ao eclodir o movimento retirado para o território francês que, estamos certos, para o Banco não teriam corrido as coisas como correram e nem sabemos o que teria acontecido ao gerente.
Procedemos com as circunstâncias da ocasião e a apreciação no local, no meio dos acontecimentos, nos aconselharam; e, ao terminar o movimento quando os cofres da Fazenda foram atingidos, quando outro tanto sucedeu ao de uma circunscrição administrativa e algumas firmas comerciais tiveram de fazer fornecimentos e não lhes pagaram, o Banco nada sofreu.
O nosso proceder foi tão imparcial que de ambos os campos adversos, durante o movimento e depois da sua jugulação, recebemos sempre provas de deferência.
Preso e expulso para Portugal, o chefe da secretaria militar, o Major Carvalhal, regressado à colónia, quando vamos a Bolama, oferece-nos um almoço e acompanha-nos até à ponte de embarque; o actual governador, Tenente-Coronel Zilhão, quando também ultimamente fomos a Bolama convida-nos para o jantar à oficialidade do cruzador Carvalho Araújo, não pudemos aceitar por motivos escusados de aqui dizer, mas não nos dispensa, todavia, de irmos almoçar com ele; à partida, agora de Bissau, o comandante militar e os oficiais que os revoltosos, ao eclodir o movimento, haviam preso e expulso, vão a bordo apresentar-nos as suas despedidas, faz-se um inquérito aos acontecimentos, são ouvidas dezenas de testemunhas, não somos convidados ou intimados a depor; outro tanto sucede com o inquérito acerca do ex-Governador Leite de Magalhães. Tudo isto demonstra que o nosso proceder, se não feriu os revoltosos, irritando-os ou provocando represálias, não foi de molde a susceptibilizar ou provocar a antipatia dos seus adversários, hoje de novo senhores da colónia.”

1964 - Empregados do Banco, suas esposas e os representantes dos orgãos informativos, após o almoço de confraternização.

A vida continuava e nos finais de Novembro de 1931 o gerente de Bissau informava Lisboa que era necessário mobilar, sem luxo mas com decência, o primeiro andar do edifício da agência, a mobília existente já não correspondia às necessidades e solicitava autorização para a compra e o envio de uma mobília de sala completa, com o mínimo de 12 cadeiras, uma mobília de sala de jantar com 12 cadeiras, uma mobília de quarto e um conjunto de tapetes, e dava-se a seguinte justificação:
“A necessidade destes tapetes é flagrante, porque o pavimento é de mosaico. As mobílias terão de ser de tamanho grande, dado o espaço dos aposentos a mobilar. Não podemos deixar de frisar a V. Ex.ª que ao pedirmos estes artigos de mobília não temos em vista rodearmo-nos de luxo – que bem dispensamos – , mas tão somente prover o edifício com aquilo que julgamos indispensável".

No ano seguinte, em Outubro, o gerente de Bissau dá noticias para Lisboa acerca da Sociedade Industrial Ultramarina, a fábrica de cerâmica, sediada em Bandim estava em laboração, e escrevia-se que com uma considerável diminuição de despesa em relação à exploração dos anos anteriores:
“Basta dizer a V. Ex.ª que, em regra, se gastavam vinte latas de petróleo para a moldagem de seis mil telhas e agora só se gastam três latas. Por mais estranho que o caso pareça, é assim mesmo.
Estamos tratando sobretudo de produzir telha bastante para tentar a sua colocação no vizinho arquipélago de Cabo Verde, visto estarmos informados de que ali se importa da Metrópole número apreciável desse produto.
Para tanto, escrevemos por esta mala às nossas dependências naquela colónia pedindo-lhes várias informações, preços, consumo provável, etc., tendo em consideração a boa qualidade da nossa telha.
Se conseguirmos introduzir naquele importante mercado estas nossas cerâmicas, estamos crentes de que bons resultados se colherão.
Mas para que o nosso esforço tenha o êxito que esperamos, pedimos a V. Ex.ª o favor de mandar recomendar o maior interesse aquelas dependências, o que antecipadamente a V. Ex.ª agradecemos.”

1932 é também o ano em que surgem graves problemas com a Sociedade Agrícola do Gambiel, fora prevista para se transformar num impressionante empreendimento agrícola, modelo até no uso da maquinaria, nela participará Armando Cortesão, que passará à História como um dos maiores cartógrafos de reputação mundial.

(Continua)
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Notas do editor

Poste anterior de 17 DE AGOSTO DE 2018 > Guiné 61/74 - P18931: Notas de leitura (1092): Os Cronistas Desconhecidos do Canal do Geba: O BNU da Guiné (47) (Mário Beja Santos)

Último poste da série de 20 DE AGOSTO DE 2018 > Guiné 61/74 - P18940: Notas de leitura (1093): Nó Cego, por Carlos Vale Ferraz; Porto Editora, 2018 (3) (Mário Beja Santos)

Guiné 61/74 - P18949: A galeria dos meus heróis (8): os seminaristas (Luís Graça)

Mais uma história da série A galeria dos meus heróis,  parada há oito anos... 

Arranjo tempo (e disposição), em agosto, para a retomar, a partir dos "rascunhos" guardados no meu baú...

A última história publicada data de 9/8/2010 (*)

Foto do autor, à esquerda, em Contuboel, Junho de 1969

Foto (e texto): © Luís Graça (2018). Todos os direitos reservados.


A Galeria dos meus heróis (8) > Os seminaristas

por Luís Graça


Os seminários da Igreja Católica forneceram às forças armadas portuguesas, e sobretudo ao exército, importantes contingentes de graduados, milicianos, durante a guerra colonial. Furriéis e alferes, mas também capitães. Em quantidade e qualidade. Em geral, eram jovens com boa formação moral e intelectual, com hábitos de disciplina, sacrifício, resiliência e abnegação, e em princípio mais protegidos contra as "ideias subversivas" (ou "dissolventes") que grassavam nos liceus e universidades, sobretudo a partir da crise estudantil de 1962… 

Tinham, além disso, competências relacionais (liderança, trabalho em equipa, gestão de conflitos) que eram relevantes para a condução de grupos de combate. Tinham também uma boa cultura geral e alguns animaram os "jornais de caserna" no mato…

Muitos eram oriundos do meio rural, mais conservador do que o meio citadino, e vinham de famílias pobres ou remediadas. Em geral, eram cooptados por toda uma vasta rede informal de professoras do ensino primário, catequistas e párocos, angariadores de potenciais vocações sacerdotais de entre os melhores alunos do ensino primário obrigatório. 


Os seminários menores e maiores, nomeadamente diocesanos, ofereciam a estes jovens oportunidades de educação e mobilidade  social ascendente que, à partida, lhes eram vedadas pela sua origem sociofamiliar. O acesso, nomeadamente ao ensino liceal, era limitado a certas camadas da população urbana. A barreira começava na preparação e nos exames de admissão ao liceu. As provas, escritas e orais, eram feitas em geral nas capitais de distrito, bem longe das pactas vilas e aldeias do interior do país…

Está por estudar o papel dos ex-seminaristas na nossa longa guerra colonial (1961/74)… Muitos deles, depois da saída do seminário, eram rapidamente chamados para a tropa… Recorde-se que, por força da Concordata de 1940 (assinada entre Portugal e o Vaticano), os sacerdotes católicos estavam dispensados do serviço militar obrigatório, podendo depois servir a Pátria como capelães castrenses, dependendo da vontade do seu bispo e das necessidades das Forças Armadas. Os seminaristas gozavam do mesmo privilégio.

Sobretudo os que deixavam de frequentar o seminário maior (curso de teologia, que se iniciava no 7º ano, de um total de 12 anos de seminário) eram rapidamente chamados às fileiras do exército. Recorde-se que as suas habilitações literárias não eram automaticamente reconhecidas pelo sistema de ensino oficial. Davam equiparação apenas para efeitos de emprego público e para a tropa. Os ex-seminaristas, com o 7º ano ou mais, não podiam inscrever-se automaticamente (e prosseguir os seus estudos) na escola pública e muito menos na universidade. Ou seja, o 7º ano do seminário (equivalente a 11 anos de escolaridade) não tinha os mesmos efeitos legais do 7º ano do liceu.


Não tinham, por isso, direito a "adiamento", como os estudantes universitários que não reprovassem… Não admira, por isso, que em quase todas as unidades ou subunidades houvesse um ou mais alferes miliciano, ou furriel miliciano, ex-seminarista.

Faltam-nos histórias de vida, relatos autobiográficos, depoimentos, entrevistas, trabalhos de investigação, estatísticas… Temos vinte e tal referências com o descritor "seminário", no nosso blogue. Há já alguns romances sobre este tema: recorde-se aqui, entre outros: (i) "O Seminarista e o Guerrilheiro”, de Cândido Matos Gago (edição de autor, 2015); e (ii) "Cabra-cega: do seminário para a guerra colonial", de João Gaspar Carrasqueira (pseudónimo do nosso camarada A. Marques Lopes) (Lisboa, Chiado Editora, 2015). Mas também temos aqui o testemunho de vários capelães militares, membros da nossa Tabanca Grande: por exemplo, Horácio Fernandes, Mário de Oliveira, Arsénio Puim…

Este texto que se segue é um pequeno contributo para começar a colmar essa lacuna (o conhecimento sobre a participação de ex-seminaristas na guerra colonial). Trata-se de um longo diálogo sob a forma de entrevista, sendo B o entrevistador, que faz o papel de investigador, em contexto académico. Naturalmente que o texto é parcialmente ficcionado, de modo a se poder dizer que "qualquer semelhança com a realidade é pura coincidência"… (LG)




A – Não sou um tipo de ação, sou um contemplativo. De preferência, fico no meu cantinho, com as minhas pantufas e o meu gato, em lugar de tomar o avião e dar uma volta ao mundo.

B – Felizmente tens uma boa reforma, podias bem dar-te a esse luxo…

A – Mas, não. De resto, detesto viajar. E, mais ainda, de andar de avião.

B – Fobias, quem não as tem ?!

A – É mais fobia social do que outra coisa… E logo eu que fui diretor de pessoal toda a vida… Em grandes empresas, com centenas ou até milhares de colaboradores.

B – Claustrofobia ?

A – Também… Não ando de metro, não ando de avião. Isso também limitou, de certo modo, a minha carreira. Podia ter feito uma carreira internacional, cheguei a ser sondado por algumas multinacionais, nomeadamente do setor farmacêutico. Mas isso implicava viajar com frequência, viver no estrangeiro, hoje no Rio de Janeiro, amanhã no Dubai… O dinheiro não é tudo na vida…

B – Tudo tem um preço, é verdade…

A – Mesmo assim não consegui salvar o meu casamento… A minha ex-mulher era muito mais ambiciosa do que eu… Devíamos, os dois, ter trocado os papéis, eu ficar em casa a tomar conta dos putos…

B – Mas é mesmo horror aos espaços fechados?

A – Com a idade, tem-se vindo a agravar… Multidões, estádios, manifestações, espaços confinados… São imagens de infância, do "quarto escuro", de ficar sozinho em casa, enquanto a minha mãe ia às compras… Não sei… Acredita, não gosto de viajar, sobretudo de avião, barco, comboio, metro… Até de carro, em viagens de longo curso. Prefiro um bom passeio, a pé, à beira-mar, na maré vazia…

B – Mas… nem mesmo um cruzeirito às ilhas gregas ?

A – Nem isso, nem sequer uma excursão às Berlengas. Dispenso. Sei que moras para esses lados ou és dessa região… Peniche, não é ?!

B – Bem, sou da região, do Oeste, Estremadura… Compreendo, já te bastou o teu cruzeiro até à Guiné, em finais de 1968…

A – Sim, o nosso cruzeiro, já me esquecia que também foste, meses depois de mim, no "Niassa"…

B – O maldito cheiro do "Niassa"!...Eu sei lá, uma estranha mistura, merda, nafta, óleo, creolina, vomitado, maresia... A mim levou-me anos a sair-me das narinas…

A – Um cruzeiro felizmente de ida e volta…

B – … E com tudo pago pela Pátria, não te esqueças… Exceto bebidas no bar… Eu fui em classe turística, tu em primeira… A Pátria lá sabia fazer as suas distinções…

A – Sabes bem que houve quem regressasse em caixão de chumbo.

B – E alguns, coitados, por lá ficaram aos bocados, nas picadas, ou a apodrecer nos rios, tarrafes, bolanhas, matas da Guiné…



Fez-se um silêncio, tácito, de cerca de um minuto, religiosamente respeitado pelos dois. Eu, que fazia o papel de entrevistador (A) para um trabalho académico sobre histórias de vida de ex-combatentes da guerra colonial, e o meu velho conhecido (e, porque não , também amigo e camarada de armas), o B…, cuja identidade não vou revelar, a seu pedido expresso… É demasiado conhecido ainda no seu meio profissional… Vou tratá-lo simplesmente por Zé… (Era, de resto, uma entrevista com consentimento informado e garantia de anonimato.)

A – Pois é, meu caro, se eu fosse um gajo de ação (ou de "tomates", para usar um termo do nosso calão militar…), eu não teria feito sequer aquela guerra!

B – Terias desertado, é isso ?!

A – Não, não gosto do termo, muito menos da ideia… Bem sabes como era difícil desertar no teatro de operações da Guiné… Cá, antes do embarque, talvez te safasses … Alguns tentaram e tiveram sorte… Mas não os considero heróis. Nem todos terão desertado por razões nobres!... Por exemplo, aos objetores de consciência ainda os posso respeitar e até admirar…

B – Ser contra a guerra, aquela guerra, já era um motivo de peso…

A – Para mim, era uma questão de honra e de coerência: se eu me meto nas coisas, mesmo que depois me venha a arrepender, é para ir até ao fim… Tirando o medo (pouco racional) de viajar de avião, até acho que sou um gajo com um mínimo de coragem física… Na guerra, pelo menos não fui medricas, sem nunca me ter armado em herói…

B – Qual quê ?!... Tu até tinhas bons contactos em França, se bem me lembro, do tempo de seminário… Não te era difícil pores-te daqui para fora…

A – Enganas-te… E, de resto, a minha fantasia era a Suécia e as suecas…

B – Ah, sim ?!... Muito me contas!...E hoje poderias lá viver, casado ou descasado, talvez pai de filhos e avô de netos lourinhos que não falariam uma única palavra de português…

A – Sim, era o meu sonho: engenheiro eletrónico, reformado, admirador de Olof Palme e dos Abba… Um grande país, que eu muito admiro, pela sua capacidade de concertação social e de sensibilidade ecológica… E só lá estive uma vez, num congresso…

B – … E, para além de uma reforma dourada,  talvez também um pequeno monte no Alentejo, para matar saudades da Pátria perdida e depois reencontrada…

A – Nada disso, sou sentimental mas não saudosista… Com uma casa, sim, à beira do lago, em Varmland… Não te esqueças que continuo a detestar viajar… A Suécia ainda fica longe, mas continua a atrair-me… Acho que nasci no país errado, no tempo errado… que me perdoem os mais patriotas do que eu.

Fiz questão de solidarizar-me com as "tentações do pecado" do meu amigo ( e antigo companheiro de seminário), neste caso a de "dar à sola", "dar o salto", “fugir”, antes da tropa… Era um pecado mortal, um crime de lesa-pátria…

B – Não foi nada, Zé, que não me tivesse passado também pela cabeça… A mim, e a milhares de mancebos em idade militar… Só que eu não tinha, como tu, os contactos e a “guita”… Qualquer passador, para te pôr em França, a são e salvo, exigia-te, adiantados, 10 contos… Naquele tempo, por volta de 1968/69, era muita massa. Equivaleria hoje a mais de 3 mil euros…

A – Desertar não desertava. Não faz o meu género. Era algo que me repugnaria, sobretudo depois de ter feito o juramento de bandeira. Para mim, um juramento é algo de sagrado. O juramento de bandeira é um juramento de sangue. Mas faltar às sortes, ou à inspeção militar, ou até ser refratário… era coisa que eu devia ter feito, no devido tempo, e que não violava a minha consciência.

B – Como aconteceu, de resto, a centenas de milhares de gajos da nossa geração… que deram o "salto", os tais que votaram com os pés contra a situação, a ditadura, a miséria (para muitos), a guerra em África… Dizem que refratários foram para aí uns 250 mil… Faltosos não sei se há números, terão sido dezenas e dezenas de milhares, seguramente. Desertores, quase que se contam pelos dedos… Se não contarmos os africanos, sobretudo no final da guerra…

A – A porra toda foram os meus pais, se queres que te apresente um alibi… Filho único, mãe católica, beata, devota de Nossa Senhora de Fátima, pai republicano, do "reviralho", mas conservador, daqueles – e eram muitos! – com dúvidas sobre o destino a dar ao nosso glorioso império…

B – Em boa verdade, devias ter dado o salto antes de perfazeres os teus 18 anos, depois de teres acabado o 7º ano… Mas tens razão, Zé, um gajo não escolhe os pais, o país, a história… E depois o coração tem razões que a razão desconhece…

A – Pode ser uma atenuante, mas não é uma desculpa. Eu, na altura, era já um convicto existencialista, tinha lido o Sartre e o Camus, autores que estavam na moda, e só tinha uma opção a tomar: escolher a liberdade, a autodeterminação, como se diz agora… Sim, não me deveriam ter apanhado no "Niassa"…

B – Se, se, se… Bem sabes, pelo que me conheces (, e puxando agora um pouco pelos meus galões, como "académico", "investigador", "sociólogo", que é o papel em que estou aqui a entrevistar-te…), sabes que o "se" (ou o "if", em inglês) não existe em história, na historiografia… Não vais agora reescrever a tua história de vida, nem tu nem eu… De resto, até tens uma bela história de vida…

A – Bela ?!... Não gozes comigo!... Se eu pudesse voltar atrás, à encruzilhada dos meus 18 anos, eu teria cortado à esquerda… Virei à direita, ou melhor, segui em frente, com o rebanho, todos direitos ao matadouro…

B – Bolas!, tens passado, presente e futuro. Há quem o não tenha, muita gente da nossa geração não tem presente nem futuro… E vai ficar na "vala comum do esquecimento", como eu gosto de dizer. Tens, ao menos, uma família, uma carreira, tens saúde, uma boa reforma… E uma pátria!... Bolas, tens uma pátria, com mil anos de existência… Uma língua que é trinta vezes mais falada que o teu adorado sueco que nunca chegaste a aprender e a falar!... Desculpa, se me excedi…


Aqui o meu entrevistado, interrompeu-me com um ar que tanto podia ser de amargura como de irritação:

A – Carreira ?!... Tirei o curso que não queria, direito, para fazer a vontade ao meu pai que trabalhava num tribunal, e por causa da merda do latinório, e acabei por fazer o papel sabujo e burocrático do sargento na gestão de recursos humanos… Passei por muitas empresas, quase sempre para fazer o jogo dos patrões, ou melhor, dos chefões do conselho de administração. Que os patrões, a esses, nunca se lhes via a cara…

E, continuando em registo de (in)confidência, o meu entrevistado, o Zé, acrescentou:

A – Na guerra, não sei se matei… É possível que sim, mas nunca ou raramente se via a cara do gajo que te queria matar… em emboscadas nas picadas ou nos ataques ou flagelações aos aquartelamentos e destacamentos… Vias-lhes as caras só quando prisioneiros ou deixados mortos no capim… Mas nas empresas cortei muitas orelhas, cabeças, pernas, braços, tripas, corações… E sobretudo, cortei muitos sonhos… Apanhei o pior da gestão de pessoal (hoje diz-se, eufemisticamente, "gestão do capital humano", coisificam-se as pessoas…). Refiro-me às empresas nacionalizadas, no nosso desvario revolucionário do 11 de março de 75, e que depois foram (re)privatizadas…

B – "Gorduras", cortaste muitas "gorduras"… Não era assim que se dizia, algo cinicamente, com a moda da "lean production", a produção limpa ou magra, na nossa indústria transformadora ?

A – Trabalho de carniceiro, devia ter vergonha de o reconhecer e dizer. E até nem me pagavam mal…

B – Alguém tem sempre de fazer o "trabalho sujo", seja nas empresas seja na guerra… Tal como esse camarada que tu foste substituir no tal Pelotão de Caçadores Nativos…

É uma história algo insólita que merece ser retomada mais adiante. Para já anote-se a resposta que me deu o meu entrevistado:


A – Não me fodas com essa, bem sabes que eu era um gajo com princípios e valores… Andei no seminário, casei pela igreja, ia à missa aos domingos, … Como tu, tive uma boa educação, nalguns dos melhores colégios internos do país de Salazar,que eram os nossos seminários, tirei um curso superior…

B – Todos éramos bons rapazes, simplesmente não tínhamos vocação para padres ou então foi Deus que não foi suficientemente convincente para nos motivar…

A – Nem para soldados… Deixa-me contar-te: numa empresa que trabalhava para a Lisnave, mandei uma vez mais de uma centena para a rua, tudo gajos "velhos" e "inaptos", acima dos 40 anos, só com a 4ª classe ou menos… E alguns, coitados, tinham passado, como eu, pela Guiné, e tinham bocas para sustentar, filhos a estudar, empréstimos do apartamento a pagar ao banco… Mas nessa altura, em finais de 80 ou princípios de 90, ainda tínhamos vergonha de falar da guerra. Ninguém dizia que tinha estado na Guiné, nem no seminário, mas eu sabia pela história deles, o cadastro de pessoal…

B – Tempos difíceis, não queria estar na tua pele… E, confesso, também não saberia o que fazer no teu lugar…

A – Nessa altura, eu ainda era um bom católico, praticante… Falava com Deus e tinha um bom diretor espiritual… Hoje vai-se ao psicólogo por tudo e por nada. Vivi esses dramas de consciência, sozinho, quando muito com a presença, distante, de Deus e a santa paciência do meu confessor, dominicano, um bom homem, mas de outro século, que nada sabia de economia nem de finanças…

Tive a infeliz ideia de o interromper para lhe perguntar:

B – Ainda continuas crente ?

Fulminou-me com um olhar de reprovação:

A – Por favor, não me voltes a fazer essa pergunta, que é do foro mais íntimo de um homem. Combinámos que íamos apenas falar do nosso tempo de Guiné…

B – Desculpa, Zé, percebi que estavas a entreabrir uma porta ou uma janela. A conversa é como as cerejas, e eu não tenho um guião rígido de entrevista. Nem quero que abras o livro todo… Eu, por mim, já te contei que fui parar a uma companhia africana (… não, dizíamos "companhia de pretos"). Mas não me posso queixar: safado, safei-me e voltei inteiro (ou talvez não tão inteiro quanto isso)…

A – De acordo… Eu, por mim, passei por Mafra e Vendas Novas, fiz os mínimos para merecer os galões (ou as divisas ?, nunca sei a diferença) de aspirante a oficial miliciano… Como sabes, fui sempre bom aluno, no seminário (em Santarém, em Almada, nos Olivais) e depois na faculdade de direito de Lisboa, mas a carreira de tiro e a instrução física não eram o meu forte… Não era dado ao desporto, fui apenas guarda-redes de hóquei em patins… Lembras-te ?!… Era mau no futebol, no atletismo… Em suma, podia ter chumbado, e ir parar a cabo miliciano ou até a soldado básico…

B – O que não te convinha… Pelo que te encheste-te de brio…

A – Pois, não… Queria acabar a merda da tropa, casar-me, trabalhar, continuar a estudar, ter filhos… Na instrução, safei-me, como muitos outros. E sem fazer batota. Claro, fui parar a atirador. Nunca meti uma cunha, e até tinha um colega nosso nos psicotécnicos…

B – E, tal como eu, foste parar à Guiné e a uma companhia africana… Pior sorte, não era possível…

A – Não, fui parar a um Pelotão de Caçadores Nativos, pior ainda…

B – Conta-me lá como foi isso…

A – Fui mobilizado e integrado num batalhão de artilharia, fazia parte de uma unidade de quadrícula. Era alferes miliciano, atirador de artilharia, que eu nunca soube o que era, por comparação com os atiradores de infantaria… Mas não deu para aquecer o lugar… Passado pouco tempo, uns meses, fui chamado para substituir, em rendição individual, um alferes que comandava um Pelotão de Caçadores Nativos, lá para os lados de Farim, na região do Óio…

B – Chegaste a estar com ele ? A conhecê-lo ?

A – Não, já estava de baixa psiquiátrica,ou talvez na metrópole, depois de ter levado uma porrada do Spínola. Havia um pacto de silêncio entre os soldados do pelotão, que era interétnico, com uma maioria relativa de origem fula, e os poucos graduados metropolitanos (2 cabos, 2 soldados condutores, 2 furriéis e poucos mais).

B – A minha companhia era composta por pessoal fula. Os fulas eram "ingénuos", quero eu dizer, não sabiam ser cínicos nem politicamente corretos. Contavam-me muitas histórias, de boa fé, algumas macabras, do início da guerra. E alguns aceitavam, como parte dos seus deveres de lealdade e disciplina, "fazer o trabalho sujo" que nós, brancos, os "tugas", detestávamos fazer… Como, por exemplo, os interrogatórios, com tortura, de prisioneiros, civis ou guerrilheiros… Nenhum de nós tinha sido treinado para isso, em Mafra, em Vendas Novas, em Tavira, em Lamego… Os fulas eram leais (e preciosos "auxiliares" das NT, tanto as milícias como os soldados do recrutamento local). Os mais velhos tinham uma boa experiência de guerra, e sabiam "pôr a cantar" qualquer prisioneiro…

A – Pois, esse alferes que eu fui substituir, era ainda do tempo do Schulz e batia-se à cruz de guerra. Disseram-me que era valente. Outros, que era doido varrido. Não sei muitos pormenores, porque o pelotão não me recebeu bem e fechou-se em copas… De resto foi transferido para a região do Cacheu antes de eu lá chegar.

Só pela consulta do arquivo na "secretaria" do meu Pel Caç Nat, é que eu vim a  descobrir que o tipo era do distrito de Braga, e – imagina! - que também tinha andado no seminário dos franciscanos… Onze  anos ou mais, já não me recordo. Devia estar quase a chegar a padre.

B – Não terá sido um caso virgem…

A – Resumindo: o tipo não chegou a receber a tão almejada cruz de guerra das mãos do Schulz, levou, isso sim, uma porrada do Spínola, logo em princípios de 1969. Veio-se a descobrir que ele se autopromovera em "senhor da guerra", fazendo a guerra à sua maneira, à revelia, em grande parte, da cadeia hierárquica… Havia quem dissesse que não era bem assim, que ele tinha as costas quentes, tanto no QG como no comando do batalhão, ou pelo menos por parte do major de operações que estava ao corrente do que ele fazia… e que o protegia. Ambos eram minhotos e "bons católicos".  

No seu destacamento (isto passou-se na região do Óio, na região fronteiriça, que eu nunca conheci), ele tinha formado, logo em meados de 1967, um "grupo especial" (cerca de 15 a 20 homens da sua inteira confiança, incluindo alguns milícias, fulas). Faziam raides em tabancas sob duplo controlo, ou em "áreas libertadas", em "barracas" (acampamentos temporários) do PAIGC, sobretudo na zona fronteiriça com o Senegal. O objetivo era o "ronco" (de preferência, captura de armas, munições de armas pesadas, liquidação de elementos ou simpatizantes do IN, isolados ou de passagem pelas tabancas e corredores fronteiriços).

B – Que me lembre, no meu tempo, o Marcelino da Mata era o único que tinha um "grupo especial" desse tipo, mas às ordens do com-chefe, dizia-se… Em Angola, havia os "Flechas", ligados à PIDE/DGS, se não me engano…

A – Ao que parece, este alferes e o seu "grupo especial" atuavam à revelia da hierarquia militar. Mas o tipo era considerado um "grande operacional"… E incontestavelmente deu provas de grande coragem. Tinha, com ele, um sargento miliciano ou do QP, não sei ao certo, já com duas comissões de serviço na Guiné: usava, ao que parece, um cavalo marinho e encarregava-se dos interrogatórios, falava bem o crioulo…. E inclusive estava este Pel Caç Nat autorizado a usar armamento e fardas do PAIGC, no tempo do Schulz, para certas "missões de reconhecimento" na zona fronteiriça… No pelotão, ainda fui encontrar algumas Kalash, já usadas…

B – Um dia, eles teriam mesmo que dar nas vistas, não?!

A – Metade do pelotão (incluindo os 2 cabos e os 2 furriéis) mais o grosso da milícia ficavam a guarnecer o destacamento durante as saídas do "grupo especial", à noite ou de madrugada… Oficiosamente, iam fazer emboscadas ou patrulhamentos ofensivos.

Segundo a versão do nosso entrevistado, a coisa parece que funcionou sob rodas durante meses e meses. Não houve baixas e ganhou-se dinheiro a rodos com os "roncos"…


A – Como sabes, o armamento capturado era trocado por "pesos"… O patacão, justiça se faça ao meu antecessor, era distribuído por todo o pelotão, e não apenas pela malta do "grupo especial"… Eu acho que a guerra é viciante como a droga… Enfim, tudo corria bem até à morte do sargento, que pisou um fornilho, num trilho que ia dar a uma "barraca", já abandonada… Houve mais 3 feridos graves. E foi preciso chamar o heli para as evacuações. A operação era "clandestina" (ou só conhecida do tal major de operações)… 


Aí chegou a mostarda ao nariz do Spínola: alguém do comando do batalhão levou com os patins, o major de operações, creio eu, e o alferes foi destituído do comando do Pel Caç Nat. Se bem me lembro, apanhou 30 dias de prisão disciplinar agravada. Com uma boa cunha, acabou na psiquiatria no HM 241 e, passadas umas semanas, foi evacuado para a metrópole. Acabou a guerra sem honra nem glória…

B – Não me lembro desse caso… Mas em 1970 encontrei, nos Adidas, em Bissau, dois camaradas que estavam à espera de julgamento em tribunal militar, um capitão e um furriel de uma companhia que estava na região do Cacheu… Eram acusados de tortura e liquidação de prisioneiros, rapto e violação de bajudas… Não sei qual foi o desfecho…

A – Também ouvi falar desse caso… Creio que o capitão foi ilibado, e o furriel apanhou uns anos de prisão…

B – E então é aqui que tu entras neste filme…

A – Recebi ordens para fazer as malas e ir comandar o pelotão, já colocado na região do Cacheu. Não foi fácil dar a volta à situação: havia uma crise de autoridade no pelotão. E de falta de confiança no oficial, que era eu, que veio substituir o anterior líder, um militar carismático, sem dúvida, e lendário, para os seus homens… 

– O pelotão devia sentir-se "órfão" e "injustiçado", não ?!

A – Levei muitos meses a gerir toda esta crise… E não sei se o consegui, quando acabou a minha comissão... Em contrapartida, abracei de alma e coração a política spinolista "Por Uma Guiné Melhor", fiz reordenamentos e o melhor que podia e sabia fazer na área da ação psico-social… Confesso que admirava o nosso comandante-chefe e sobretudo o governador-geral, António Spínola.

B – Em suma, fizeste a guerra e a paz…

A – Podes escrever aí, que sim… Fiz a guerra, defendi-me a mim e aos meus homens, sem nunca me armar em "rambo"… Mas também abri uma escola para os meus soldados, para as mílícias e para os "djubis" da tabanca, construí um poço e um fontanário, apoiei a extensão do posto sanitário do batalhão a que estávamos adidos, fizemos uma horta, oferecíamos legumes à população e às famílias dos nossos homens, pus as nossas parcas viaturas ao serviço da população, transportámos doentes e sacos de arroz e mancarra...

B – Sei que tiveste uma condecoração qualquer…

A – Não, não tive uma cruz de guerra, mas sim um belíssimo louvor do general Spínola, que ainda hoje muito me honra e cujo teor já um dia mostrei aos meus filhos, quando eles já eram crescidinhos, com idade para ouvir falar da guerra em que o pai andou… 


Confesso que fiz mal em esconder, no meu currículo, durante tantos anos, o facto de ter feito uma comissão de serviço militar na Guiné… E, já agora, de ter omitido, no meu CV profissional, a minha passagem pelo seminário, de que guardo, de resto, as melhores recordações…

E aqui termina a 1ª parte da nossa entrevista, gravada em ficheiro áudio. A segunda parte ainda está por transcrever, um trabalho moroso: gasta-se um hora para se transcrever  cerca de 10 minutos de conversa (
incluindo a tarefa de rever e fixar o texto). 
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Nota do editor:

Último poste da série > 9 de agosto de 2010 >  Guiné 63/74 - P6839: A galeria dos meus heróis (7): Furriel Carvalho, ou melhor, Car...rasco, o homem do 'tiro de misericórdia' (Luís Graça)

Guiné 61/74 - P18948: Parabéns a você (1487): António Fernando Marques, ex-Fur Mil Inf da CCAÇ 12 (Guiné, 1969/71)

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Nota do editor

Último poste da série de 23 DE AGOSTO DE 2018 > Guiné 61/74 - P18947: Parabéns a você (1486): Fernando Cepa, ex-Fur Mil Art da CART 1689 (Guiné, 1967/69)

quarta-feira, 22 de agosto de 2018

Guiné 61/74 - P18946: Historiografia da presença portuguesa em África (128): Duas publicações sobre a Guiné na Fundação Mário Soares (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 6 de Abril de 2018:

Queridos amigos,
Como tem sido largamente referenciado aqui no blogue, a Fundação Mário Soares possui um arquivo histórico exemplar de consulta obrigatória, quem vai ao sítio da Fundação e procura “A Casa Comum” sai mais esclarecido.
A cooperação com a Guiné-Bissau tem sido profícua no restauro de diferentes materiais de incontornável valor histórico, e a Fundação tem-se associado a projetos como o do inventário da arquitetura durante a presença colonial, como aqui se refere.
Resta dizer que o livro de fotografias “Raízes”, que encerra preciosas imagens restauradas de fotografias que foram publicadas no Boletim Cultural da Guiné-Portuguesa ainda está à venda ao preço módico de 7 euros.

Um abraço do
Mário


Duas publicações sobre a Guiné na Fundação Mário Soares

Beja Santos




Raízes, o olhar da etnografia em tempos imperiais

A calamitosa Guerra Civil de 1998-1999 refletiu-se brutalmente no património histórico e documental da Guiné-Bissau. As instalações no INEP-Instituto Nacional de Estudos e Pesquisa, que acolhera o património do Museu da Guiné Portuguesa, desde escultura, passando por cartografia, biblioteca até material fotográfico, foram ocupadas e transformadas numa base militar cerca de um ano que durou a Guerra. As instalações, para além de alvo de bombardeamentos, foram depredadas pelos efetivos senegaleses que utilizavam precioso material histórico para fazer fogueiras. O salto foi arrasador, mais de 60% dos acervos documentais da única biblioteca e arquivo histórico foi severamente atingido. Em consequência, a Fundação Mário Soares estabeleceu um protocolo para a recuperação de muito desse arquivo do Museu da Guiné Portuguesa / Centro de Estudos da Guiné Portuguesa. Recorde-se que um dos documentos mais importantes que se produziu entre 1946 e 1973 foi o Boletim Cultural, hoje completamente digitalizado e disponível on-line no site “Memória de África”, em http://memoria-africa.ua.pt/.

Da recuperação destas fotografias que tinham sido utilizadas no Boletim Cultural fez-se uma seleção e a exposição intitulada Raízes. O projeto de recuperação destinava-se a salvar 3374 negativos a preto e branco, 1212 provas a preto e branco, incluindo fotografias referentes à luta de libertação. Fez-se limpeza e expurgo, reprodução digital em boa resolução e o respetivo restauro. Tive a felicidade de visitar esta exposição em novembro de 2010, no INEP, na companhia do seu Diretor de então, Dr. Mamadu Jao, entregara-lhe um presente de valor, em nome do blogue, uma coleção integral das cartas da Guiné, que todos os militares usavam ou conheciam.

A exposição optou por apresentar imagens de homens e mulheres da Guiné-Bissau na sua faina diária ou nas circunstâncias em que se reuniam. Podemos dizer, muitas décadas depois de terem sido tiradas, que encontramos e reconhecemos as raízes de muitas das etnias do país, identificamos com mais ou menos facilidade os seus usos e tradições. O que aqui se mostra são alguns exemplos dessa altíssima qualidade fotográfica de um álbum que qualquer um de nós pode adquirir a preço módico na Fundação Mário Soares.

Mestre muçulmano a instruir os seus alunos.

Balantas trabalhando na construção de um orique.

Rapazes Felupes com trajes e armas tradicionais.

Tatuagem de rapariga Manjaco, região de Cacheu.

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A arquitetura colonial e sítios históricos da Guiné-Bissau

A exposição Urbanidades – Arquitetura e sítios históricos da Guiné-Bissau, de iniciativa da Fundação Mário Soares e do Centro de Estudos sobre a Mudança Socioeconómica e o Território do ISCTE-IUL, resultou de um levantamento elaborado pela arquiteta Ana Milheiro e equipa, rastrearam por todo o país exemplares da ocupação colonial, logo a fortaleza de Cacheu, a fortaleza da Amura, vestígios da soberania portuguesa em Bolama onde operou o engenheiro de minas José Guedes Quinhones que também traçou os planos da nova cidade de Bissau, deve-se-lhe o plano urbanístico de 1919.

Escreve-se no texto da exposição que “A segunda metade do século XX corresponde ao arranque da consolidação urbana na maioria dos núcleos urbanos guineenses graças a uma arquitetura de representação que ocupa localizações proeminentes, este processo está ligado à actuação do Gabinete de Urbanização Colonial criado em Lisboa, em 1944, por Marcello de Caetano, então Ministro das Colónias.”

A exposição permite visualizar o que era essa cidade nova, o zonamento que delimita em áreas específicas da cidade as funções residencial, hospitalar, desportiva, escolar, militar, etc.

Uma palavra sobre a arquitetura tradicional. Na última fase do período colonial, multiplicaram-se as missões aos habitats tradicionais, tudo começou com o levantamento coordenado por Teixeira da Mota, A Habitação Indígena da Guiné-Portuguesa, equipas de arquitetos irão procurar pôr de pé um novo protótipo da casa guineense, proposta que nunca será concretizada. A exposição aludia a Cacheu, à fortaleza de S. José da Amura, mostrava o património arquitetónico com mercado municipal, monumentos, edifícios ligados à administração, residências para funcionários, instalações escolares e hospitalares e outros. Também eram contemplados os núcleos fora de Bissau como Gabu e Mansoa, mostrou-se com destaque o edifício dos CTT no centro de Bissau, a antiga Associação Comercial, Industrial e Agrícola da Guiné (hoje sede do PAIGC) e a Administração do Porto de Bissau apresentado como um exemplar da arquitetura tropical.


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Nota do editor

Último poste da série de 8 DE AGOSTO DE 2018 > Guiné 61/74 - P18905: Historiografia da presença portuguesa em África (126): Exposição Colonial do Porto, 1934: imagens inéditas para o nosso blogue (Mário Beja Santos)

Guiné 61/74 - P18945: Blogues da nossa blogosfera (101): "Dossier de Lutas", de Francisco George: uma pequena grande aventura na pátria de Cabral: Catió, 1983, o avião Dakota, aos comandos do lendário comandante Pombo, que pegou de empurrão...

Francisco Geoge. Foto da
Direção-Geral de Saúde
(Com a devida vénia...)

1. Francisco George é uma figura pública. Durante anos a sua figura carismática entrou pela casa dentro do portugueses, através da televisão, transmitindo segurança, sabedoria, empatia, confiança... 

Foi diretor-geral da Saúde entre 2005 e 2017. Jubilou-se em 31 de outubro de 2017, aos 70 anos, por ter atingido o limite de idade, legal, para exercer funções na administração pública.

É pois da mesma colheita do que eu, ambos nascemos em 1947. Foi meu colega, professor convidado na Escola Nacional de Saúde Pública da NOVA, e colaborador da revista que eu dirigi durante anos, a Revista Portuguesa de Saúde Pública.  Na mesma escola, em 1977, fez o Curso de Saúde Pública , tornando-se especialista em saúde pública. A partir de 1976, foi delegado de saúde, primeiro no concelho da Cuba e depois no concelho de Beja. Foi, de resto, aí que eu o conheci, em finais dos anos 70. A sua casa em Beja era uma verdadeira tertúlia. Tinha (e tem) o gosto de bem receber e era (e é) um notável conversador e contador de histórias. 

Do seu vasto currículo, destaca-se o seu papel, entre 1980 e 1991,  como funcionário da Organização Mundial da Saúde (OMS). Para além de Bissau e Harare, foi consultor em missões da OMS nos mais diversos pontos do globo (Pequim, Xangai, Brazzaville, Genebra, Rio de Janeiro, Maputo, Praia, São Tomé, Luanda, Bamako, Antananarivo, Maseru e Lusaka). E é aqui que se passa, na Guiné-Bissau, em 1983,  uma das histórias, deliciosas, que ele nos conta na sua página pessoal, "Dossier de Lutas".

Na qualidade de funcionário da OMS, ele fora designado, em  1980, como chefe do projeto Desenvolvimento dos Serviços de Saúde, na República da Guiné-Bissau.  E em 1986 é nomeado representante da OMS  neste país lusófono. Falou sempre da Guiné-Bissau como um grande amigo. É um poço de energia, incapaz de parar. Está hoje à frente da Cruz Vermelha Internacional, desde novembro de 2017.

Aqui fica, com a devida vénia, uma das suas pequenas grandes aventuras, passadas em África: Dossier de lutas > Memórias de África >  O avião que pegou de empurrão – Quinta Aventura.  A história tem a particularidade se passar, em Catió, em 1983, e de envolver também um conhecido nosso, o saudoso comandante Pombo, membro da nossa Tabanca Grande. 

Aproveito paa desejar ao dr. Francisco George muita saúde e longa vida porque ele merece tudo. Cada um de nós foi à sua vida e eu, lamentavelmente, não o pude homenagear, em devido tempo, quer na Direção-Geral de Saúde quer na Escola Nacional de Saúde Pública da NOVA. Aqui fica também esta pequena manifestação do  nosso apreço e amizade, na qualidade de editores do Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné. 


2. Memórias de África > O avião que pegou de empurrão: quinta aventura

por Francisco George

Em 1983 as dificuldades nas ligações entre as várias regiões da Guiné-Bissau eram, ainda, imensas. Ir de uma localidade a outra impunha, quase sempre, cuidadosa e justificada preparação. O clima ditava escolhas e condicionava a programação, sobretudo no que se referia à estimativa de horas necessárias para as viagens.

Ora, como no início da estação das chuvas daquele ano, estavam previstas iniciativas de avaliação do Programa de Vacinação que decorria no Sul, era preciso planear meticulosamente o trabalho de campo e escolher os transportes mais apropriados.

Na Guiné Independente, o primeiro Governo do PAIGC tinha criado uma pista em Catió para os aviões da companhia aérea guineense poderem aterrar em regime de escala, nos voos regulares entre Bissau e Conacry. A construção do “aeroporto” tinha sido uma espécie de homenagem às populações das tabancas de Tombali que tinham participado na Luta. Era considerada uma medida para reduzir os efeitos do isolamento. A pista, rudimentar, sem torre nem comunicações, não dispunha mesmo de qualquer abrigo a imitar uma aerogare.

O espectáculo era sempre constante: o avião Dakota  aterrava depois de sobrevoar a pista para afastar o gado. Logo a seguir uns passageiros saíam, enquanto outros esperavam junto a uma balança colocada à entrada do porão a fim de pesarem as respetivas bagagens. Mais à frente, alinhava-se a fila de espera para o embarque na aeronave.

Quando acabou a visita de avaliação, acompanhado pela minha Colega pediatra, Clotilde Silva, no final de uma semana fora de casa, fomos ao encontro do voo que em meia-hora ligava Catió a Bissau. Os nossos bilhetes tinham sido previamente adquiridos e os lugares estavam garantidos. Já no local reservado ao embarque, surgiu, à hora prevista, o avião que viria a aterrar sem animais na pista.

aos comandos do seu Cessna  dos TAGP, c. 1972/74 
(Foto de Álvaro Basto, 2008)
Passados os habituais procedimentos, entrei no avião pela escada da frente que dava acesso ao
corredor central. Ao todo seriam cerca de 50 passageiros que completavam a lotação. Ocupei o meu lugar ao lado da minha Colega, ansioso por voltar a casa. Já com a porta fechada, o Comandante Pombo e o co-piloto tentavam, sem sucesso, ligar o motor do Dakota As hélices permaneciam teimosamente paradas. A ignição não funcionava. É então que o Comandante se levanta e pede a alguns passageiros para saírem e empurrarem o avião (tal como se faz aos automóveis quando a bateria falha). Lá fui com mais cinco. Imediatamente depois dos primeiros metros do empurrão, o motor pegou sem outros aparentes problemas.

Voltamos a entrar e já de novo com a porta fechada, a minha Colega vira-se para mim e com assinalável espanto perguntou-me:
– Francisco, tu vais? Viajas para Bissau num avião que pegou de empurrão?
– Eu cá não, respondeu ela com firmeza.

Sem a demover, expliquei que eu iria ver a família, uma vez que estavam à minha espera e que uma semana longe de casa era muito tempo. Disse-lhe, também, que por terra a viagem era muito longa e ainda mais arriscada, mesmo em jeep.

Imediatamente depois das minhas palavras, Clotilde saiu do avião. Quando cheguei a casa, relatei, com emoção, a aventura à família. Nessa mesma noite, durante um convívio de cooperantes Portugueses, voltei à mesma história que provocou rasgados risos. Mas, para meu espanto, ninguém acreditou…

Francisco George
Verão, 2013
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Nota do Editor:

Último poste da série > 19 de agosto de 2018 > Guiné 61/74 - P18937: Blogues da nossa blogosfera (100): Jardim das Delícias, blogue do nosso camarada Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547 (19): Palavras e poesia

Guiné 61/74 - P18944: Parabéns a você (1485): Carlos Cordeiro, ex-Fur Mil Inf do CIC (Angola, 1969/71) e José Luís Vacas de Carvalho, ex-Alf Mil Cav, CMDT do Pel Rec Daimler 2206 (Guiné, 1969/71)


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Nota do editor

Último poste da série de 21 de Agosto de 2018 > Guiné 61/74 - P18941: Parabéns a você (1484): Vasco Santos, ex-1.º Cabo Op Cripto da CCAÇ 6 (Guiné, 1972/73)

terça-feira, 21 de agosto de 2018

Guiné 61/74 - P18943: Convívios (870): Encontro e almoço do pessoal da CCAV 3366/BCAV 3846, a levar a efeito no próximo dia 8 de Setembro de 2018 no Parque das Nações, em Lisboa (Delfim Rodrigues, ex-1.º Cabo Aux Enf)

Em mensagem de 20 de Agosto de 2018, solicita-nos o nosso camarada Delfim Rodrigues (ex-1.º Cabo Auxiliar Enf.º da CCAV 3366/BCAV 3846, Suzana e Varela, 1971/73) para publicitarmos o Convívio da sua Companhia, a levar a efeito no próximo dia 8 de Setembro, no Parque das Nações, em Lisboa.


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Nota do editor

Último poste da série de 20 DE AGOSTO DE 2018 > Guiné 61/74 - P18939: Convívios (869): 10º Encontro dos Ex-Combatentes do Seixal, Lourinhã, Participantes da Guerra Colonial, 12 de agosto de 2018

Guiné 61/74 - P18942: (In)citações (121): festa comunitária com deficientes: exemplos e momentos inspiradores que nos vêm da Eslovénia (João Crisóstomo)

1. Mensagem do nosso camarada e amigo João Crisóstomo que está a passar férias na terra sua esposa Vilma, a Estónia:

Data: 18 de agosto de 2018 às 13:14
Assunto: exemplos e momentos inspiradores

Caro Luís Graça,

Nã sei se o que segue é matéria pertinente para teu/nosso blogue ou não. Deixo-o ao teu critério .  A verdade é que  o que acabo de viver e experimentar foi algo  emocionante  e inspirador  que  acho podia ser copiado e repetido; e para que tal suceda a primeira coisa a fazer é divulgá-la para que não seja "luz  debaixo do alqueire".

Estou ainda na Eslovénia. Não te vou falar das belezas naturais desta "Suíça pequenina", como é conhecida, que isso me parece mais matéria para facebooks e coisas assim.   Mas se as suas belezas naturais são coisas que não ficam despercebidas, outras menos faladas merecem ser  conhecidas também , até como possíveis exemplos para outros. Como este caso:

Já me tinham falado  que os bombeiros locais costumam ir de povoação em povoação  organizar acontecimentos de diversão e cultura popular  em diferentes aldeias que pelo seu pequeno  tamanho por si sós não podem realizar. A Vilma e eu convidamos um casal de portugueses  ( os únicos de que tenho conhecimento aqui nas redondezas )  e fomos a um destes eventos.

A povoação era pequena, uma centena de habitantes na minha estimativa, mas fomos encontrar uma tenda enorme  para umas centenas de pessoas  e meia dúzia de outras tendas para as costumadas cervejas, salsichas etc., etc.  Um espectáculo  impressionante, especialmente para quem como eu esperava ir encontrar um acontecimento pequeno, mais de acordo com o tamanha da povoação onde este tinha lugar. Mas não era o caso:   de facto as pessoas das redondezes frequentam e patrocinam estes acontecimentos com entusiasmo e vêem  de perto e longe para tomar parte   e a assistência é sempre grande. Nesta a que assisti houve uma participação, na minha estimativa, superior a duas mil pessoas.

Vilma e João Crisóstomo
O que mais me impressionou porém,  e é esta razão porque decidi escrever-te, foi um facto que
me muito me comoveu: antes do espetáculo começar começaram a aparecer pessoas com dificuldades físicas, deficientes em cadeiras de rodas. Estas eram levadas imediatamente para a frente do palco, onde ficavam nos melhores lugares à frente de toda a gente ( cada  pessoa deficiente com uma pessoa a atender essa pessoa).

E depois quando começaram as danças  eu não pude conter a minha emoção ao ver pessoas  do meio da assistência a levantarem-se e irem  cantar e  "dançar" com estas pessoas deficientes (na maioria dos casos as pessoas deficientes nem se podiam levantar das cadeirinhas de rodas.) A alegria destas era visível no rosto de cada um. Num  certo momento em que eu "dançava" com uma delas,  sentada na sua cadeira,  uma jovem do lado porque estava momentaneamente só e  sem parceiro de dança, estendeu o seu braço a pedir para partilhar aquela dança connosco.

Não te vou dizer mais nada.  Só sei que tinha de compartilhar isto com os meus amigos.  Quem sabe podíamos fazer o mesmo em Portugal…

Um abraço e até breve.
João

[João Crisóstomo (ex-alf mil, CCAÇ 1439, Enxalé, Porto Gole e Missirá, 1965/67, que vive hoje em Nova Iorque, e que tem dado a cara por causa nobres, sociais e culturais, que muito nos honram a todos nós, portugueses: Gravuras de Foz Côa, Timor-Leste, Aristides Sousa Mendes, etc.; tem cerca de 7 dezenas de referências no nosso blogue)]
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Nota do editor:

Guiné 61/74 - P18941: Parabéns a você (1484): Vasco Santos, ex-1.º Cabo Op Cripto da CCAÇ 6 (Guiné, 1972/73)

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Nota do editor

Último poste da série de 20 de Agosto de 2018 > Guiné 61/74 - P18938: Parabéns a você (1483): Manuel Amaro, ex-Fur Mil Enfermeiro da CCAÇ 2615 (Guiné, 1969/71)

segunda-feira, 20 de agosto de 2018

Guiné 61/74 - P18940: Notas de leitura (1093): Nó Cego, por Carlos Vale Ferraz; Porto Editora, 2018 (3) (Mário Beja Santos)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 2 de Julho de 2018

Queridos amigos,
Justifica-se plenamente que aqui se insira o que se publica na contracapa deste precioso livro:
"Nó Cego é hoje um clássico da literatura portuguesa. Objeto de estudo e de atenção nos meios universitários, é sobretudo um grande e poderoso romance dos nossos dias, essencial para as atuais gerações de portugueses viverem esse período crucial da nossa História que foram os anos da guerra colonial e o fim do regime de ditadura, bem como para conhecer os dramas, as angústias, as alegrias e as tristezas da geração que fez a guerra e que a terminou, abrindo Portugal à modernidade".
Continuação de boa leitura e um abraço do
Mário


Nó Cego, a obra maior de toda a literatura da guerra colonial (3)

Beja Santos

"Nó Cego", por Carlos Vale Ferraz, Porto Editora, 2018, impôs-se ao longo de 35 anos, como leitura obrigatória, é o mais universal dos romances, o mais poderoso, melhor arquitetado e de dimensão clássica. Romance centrado numa Companhia de Comandos, acompanhamo-la desde a sua primeira operação, como numa encenação teatral vão-se apresentando os protagonistas, capitão e alferes, sargentos e praças, há segredos e preconceitos, há dramas ocultos, diálogos truculentos, naquela região do Planalto dos Macondes algo está a mudar, o Tio Abílio deu lugar a um oficial que quer resultados, custe o que custar. Concluiu-se a operação A Volta ao Mundo, há estranhas manifestações de fúria, o Tino, numa ira imprevista, atira uma garrafa de cerveja à cara do Três Centímetros, o capitão vai falar com o médico, o Três Centímetros não deveria ficar cego mas teria de ir ao hospital de Nampula, e somos embrenhados na vida do quartel, mais queixas, desta vez o agente Celestino da PIDE/DGS queixava-se do Cardoso, fora insultado.

E temos agora a primeira operação que iam realizar sob as ordens do novo comandante do batalhão de M, o substituto do Tio Abílio. Não esquecer que havia já sinais de mudança com a chegada do general K ao Comando-Chefe de Moçambique. É apresentado este novo comandante de batalhão:
“De cabelos brancos prateados, muito lisos, com o rosto de feições corretas bem escanhoado, magro, a farda impecavelmente passada a ferro, estava para o Tio Abílio como um nobre proprietário de terras para o feitor. Trouxera com ele, para seu oficial de operações, um major seráfico, de olhos fundos e nariz comprido”. A Companhia de Comandos iria fazer um golpe de mão à Base Provincial 25, os dois guias, prisioneiros, tinham dado a sua versão ao agente da PIDE quanto ao local do acampamento. “Pelas contas do capitão, deviam estar perto da base que a Frelimo tinha instalado na antiga machamba do Kavandame”. O mais velho dos guias é espancado, quando os Comandos descobrem que estavam a andar às voltas. E a guerrilha não perdoou, responde com fogo, o Casal Ventoso estava todo perfurado, o Cardoso prestou os primeiros socorros.
É uma descrição lancinante, neste tempo em que se discute a morte assistida e o que a diferencia da eutanásia, é útil ler esta passagem:
“ – Ma-mate-me, meu capitão, que-que eu já não aguento mais. Ma-ma-te-me, por amor de Deus. Dê-me um tiro, u-uma injeção…

O capitão retorcia-se a seu lado segurando-lhe a mão.
- Dá-lhe mais morfina, Cardoso, duas, três doses – mandou num sopro.
- Não lhe posso dar mais que uma injeção de cada vez. Senão… mato-o! – respondeu, indignando-se ao tomar consciência dos pensamentos e esconjurando-os: - Eu não o mato!
- Ninguém disse para o matares.

Também o Lino fitou o capitão, a cara branca de cera a indagar da dúvida.
- Dá-lhe a morfina toda! – exclamou o Brandão, explodindo o ar dentro dos pulmões, um estoiro de balão de criança mordido pelos dentes finos. Ele, que parecia dormir noutro mundo, saltava para o meio da vida tomando decisões.

Os gritos e os gemidos elevavam-se, lúgubres, na noite de África, incitando os pássaros da noite, corujas, noitibós, a lançarem os seus pios. E os nervos dos homens picavam em descargas que lhes faziam doer o corpo. O Casal Ventoso pedia que o matassem. Não queria dar parte de fraco. Não queria morrer a chorar. Já cheirava a morto. Agarrava a terra com as mãos sujas da merda esverdeada das tripas, como se a quisesse prender à vida.
Passou a que lhe restava na ponta dos dedos pela boca, a beijá-la numa definitiva despedida.

O capitão tirou o seu cantil do cinturão, desrolhou-o e colocou o gargalo como teta de mãe na boca do Casal Ventoso, que sugou uma profunda golada.
- O meu capitão mata-o!
O Cardoso virou-se intempestivo, quase a saltar para impedir as mãos de satisfazerem o último desejo do Casal Ventoso.
- Não devia ter feito isso – disse o Lino.
O capitão sorveu ruidosamente o ar da noite, mordeu os lábios, cerrou os punhos e abriu-os antes de falar.
- Morto está ele. Que merda de moral é a vossa para prolongar o sofrimento de um homem só para que ele morra por si?”

Iremos conhecer a infância do alferes Lino, da pobreza até à vida de seminarista, são dados cruciais para perceber a evolução deste alferes que adquirirá o gosto militarista, teremos oficial para reincidir. A nova missão é montar emboscadas sobre a picada Mueda-Mocímboa da Praia durante quatro dias e quatro noites. Depois de dois dias imóveis junto à picada, o capitão decide por conta própria internar-se pelas matas, vão encontrar um trilho batido, será abatido um pequeno grupo de guerrilheiros, arma-se emboscada, os guerrilheiros da Frelimo regressam ao local para recuperar os corpos dos camaradas e a floresta irá transformar-se num palco de atores furiosos, e assim se regressa a M. O comandante ávido por resultados, interpela o capitão porque é que regressou antecipadamente, é-lhe explicado que não adiantava continuar, já estavam detetados na zona. O tenente-coronel está furioso, houvera incumprimento, admoesta aos gritos, ameaça instaurar um auto de corpo de delito.

Chegara a hora do capitão pedir um período de descanso para o seu contingente: “A Companhia de Comandos, que há meses chegara atlética, respirando saúde e entusiasmo, estava a transformar-se num grupo apoucado de fardas rotas, olheirento e triste. Os soldados denotavam cansaço, adoeciam, os ataques de paludismo multiplicavam-se. As relações com o tenente-coronel atingiam o limite da disciplina”. É durante uma batida que regressam com uma criança de dois ou três anos, o Lopes adota-o: “Passou a tratá-lo como um filho e a Companhia considerou-o sua mascote. Vestiram-no, fardaram-no de camuflado, deram-lhe o nome de Alfredo, ensinaram-no a fazer a continência, averbaram-lhe o posto de alferes dos Comandos”.

O capitão vai a Nampula, regressa com a boa-nova, dentro de em breve iriam para baixo, para um descanso bem merecido. E assim vão chegar à base dos comandos em Montepuez.
O Espanhol fizera tantas que tinha que abandonar a Companhia, a entrega do crachá é comovente, pediu ao capitão para não ir à cerimónia da expulsão:
“O capitão recebeu o crachá. Agradeceu e colocou-o no seu próprio peito. O Espanhol olhava, sem perceber o que estava a acontecer, e não queria acreditar quando o capitão lhe colocou ao peito o seu crachá.
- Fico com o teu e tu ficas com o meu! Não vais ser expulso, vais ser transferido. Podes usar o meu crachá enquanto fores digno dele e levas mais este louvor que vou mandar publicar na ordem de serviço.
O Espanhol fez meia-volta e retirou-se a afagar o crachá que tinha sido do capitão”.

A Companhia entrou na ilha de Moçambique, anoitecia.

(Continua)
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Notas do editor

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