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segunda-feira, 3 de dezembro de 2012

Guiné 63/74 - P10754: Notas de leitura (436): "Elites Militares e a Guerra de África", por Manuel Godinho Rebocho (3) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 11 de Setembro de 2012:

Queridos amigos,
O Sargento-Mor Paraquedista Manuel Godinho Rebocho tem uma versão muito peculiar das razões subjacentes ao 25 de Abril. Houve para ali como que uma luta surda de classes entre oficiais do conforto, gente do quadro permanente, e oficiais milicianos com provas dadas no terreno, na génese de uma guerra corporativa que foi ultrapassada pelo turbilhão das frentes da Guiné e Moçambique, as duas fações coligaram-se para apoiar a solução política anunciada por Spínola.
Tudo quando se passou ao 25 de Abril tem o rastilho dessa luta surda de classes onde se moveu e saiu triunfante a malta emocionalmente impreparada para as guerras de África e genericamente responsável por tudo quanto ali se passou.
Por favor, leiam “Elites Militares e a Guerra de África” para fundamentarem a vossa opinião sobre o 25 de Abril até agora desconhecido.

Um abraço do
Mário


A “milicianização” da guerra (3)

Beja Santos

Chegámos a um ponto crucial das teses enunciadas pelo doutor Rebocho na sua prova de doutoramento que vieram a ser publicadas com o título “Elites Militares e a Guerra de África”. Os postulados são os seguintes. Estamos a caminhar a passos largos para os acontecimentos do 25 de Abril. Ele dá-nos o contexto: a partir de 1973, a guerra tornou-se mais violenta do que nunca; os oficiais do quadro permanente afastaram-se do teatro de operações, confinaram-se à gestão militar, a ministrar instrução, entregues à burocracia nas repartições. Os capitães milicianos tornaram-se na matéria-prima essencial, eles e os alferes milicianos, sobretudo, mas há que contar também com os furriéis milicianos. Por esta altura, o quadro especial de oficiais já não pode ser ignorado. Estala uma tensão profunda entre os operacionais que se mostram mais abertos à descolonização e os oficiais do quadro permanente a favor da presença portuguesa em África. E cita Dinis de Almeida: “A iminência de uma derrota na Guiné, criara condições para uma melhor implantação e influência do MFA que encontrava no estrato miliciano alguns dos seus mais sólidos aderentes (aí já se chegara mesmo ao ponto de entregar quase em exclusivo aos oficiais milicianos o comando das companhias operacionais).”. E documenta com a ira dos colonos da faixa central de Moçambique, profundamente desorientados com a morte da mulher de um fazendeiro europeu, em Vila Manica, distrito de Vila Pery. A comunidade branca apedrejou a messe de oficiais, esta comunidade branca, segundo o doutor Rebocho, era o alvo das seguintes quadras: "Vai para o mato,/ Chico malandro./ Por tua causa,/ É que eu aqui ando./ É que eu aqui ando./ É que eu aqui ando./ Estou farto deles,/ Da chicalhada./ Só mandam vir,/ E não fazem nada./ E não fazem nada./ E não fazem nada”.

E seguem-se os números: “Ao apreciar a lista de antiguidades dos oficiais do Exército do quadro permanente, reportada a 1 de Janeiro de 1974, verifica-se que existiam 1566 capitães de carreira, dos quais 938 da Escola do Exército e destes 471 eram de Infantaria, 183 de Artilharia e 105 de Cavalaria, os restantes eram de Armas e serviços não combatentes. Além destes, existiam 74 capitães do QEO, o que perfazia 833 capitães cujas funções deveriam ser as de comandante de companhia. No início de 1974, existiam no conjunto dos três teatros de operações, 410 companhias operacionais (…). Os capitães das armas combatentes eram mais do dobro das companhias existentes na guerra de África. Se todos os capitães comandassem companhias, função para efetivamente existem, e se permanecessem na Metrópole durante o mesmo período de tempo que no comando de companhias em África, todas elas poderiam ser comandadas por capitães de carreira. Mas não seria de exigir tão grande esforço, consideremos apenas metade, o mesmo é dizer que metade das companhias operacionais em África deveriam ser comandadas por capitães de carreira, o que não aconteceu. Ao contrário, formavam-se anualmente 260 capitães milicianos, ou 520 durante os 2 anos de uma comissão normal”.

E assim chegamos ao 25 de Abril, o último ato, segundo o autor do Decreto-Lei nº 353/73, de 13 de Julho, que criara condições para o ingresso dos capitães milicianos no quadro permanente. Revogada a legislação, as movimentações de caráter corporativo entraram numa espécie de luta entre os puros (os do quadro permanente) e os espúrios (milicianos). Spínola irá aparecer como o protetor dos milicianos e Costa Gomes o dos do quadro permanente. O manto diáfano das manifestações era a procura de uma solução política para a guerra de África. E depois o autor disserta sobre as particularidades dessas movimentações, matéria largamente conhecida mas que leva o doutor Rebocho a uma nova espiral de descobertas: o golpe de Estado militar teve à frente Andrade Moura, proveniente dos milicianos, e não Salgueiro da Maia, do quadro permanente. E está ali bem escrito, para que o leitor não entre em equívocos: “O capitão oriundo de miliciano, Andrade Moura, e o sargento Silva Brás, foram os homens decisivos do golpe militar, sem o contributo dos quais tudo se teria desmoronado”. Andrade Moura deu esclarecimentos sibilinos ao doutor Rebocho: “A arma de cavalaria não estava com a Comissão Coordenadora do MFA, mas com Spínola”. Costa Gomes, vem escrito, teve um procedimento caviloso, nem o Cardeal Richelieu se lembraria disto: “Costa Gomes sabia que, pelo menos por algum tempo, o poder ficaria nas mãos dos militares. Com a nomeação de uma Comissão totalmente fiel, preferiu liderar as forças armadas através do cargo de CEMGFA, lugar que reservou para si. Foram estes dois momentos, a nomeação da Comissão e a do CEMGFA, passados na noite de 25 para 26 de Abril, que derrotaram Spínola, provocando todos os acontecimentos seguintes, e definindo não só o futuro de Portugal, como dos territórios africanos”. Como não podia deixar de ser o golpe Palma Carlos, o 28 de Setembro, o 11 de Março e o 25 de Novembro foram altamente condicionados pelas tensões existentes entre os que acreditavam nas teses de Spínola e os que se escudavam atrás de Costa Gomes.

Chegou a hora das conclusões, depois de tanta investigação científica. Fica-se a saber o seguinte: a formação dos quadros combatentes à base de milicianos (oficiais e sargentos) constitui o maior erro praticado na condução da guerra de África, as autoridades tinham sido prevenidas e até andou por Portugal o Marechal Montgomery que alertou para a obrigação dos generais portugueses comandarem tropas; aquela guerra para ser ganha, ou ter um destino diferente da que teve, requeria oficiais com capacidades pessoais, com inteligências específicas (caso da inteligência emocional) e não só os conhecimentos adquiridos no curso para oficial; os oficiais do quadro permanente afastaram-se da guerra, muitos deles por falta de vocação e motivação profissional.

Tudo somado e conjugado, chegámos ao ponto alto da tese: “Acontecimentos motivados não por razão de ordem social, mas pelas qualidades do desempenho da guerra de África, o que determinou que os oficiais operacionais, do quadro e milicianos, seguissem o general António de Spínola, enquanto os oficiais ‘básicos’ seguiram o general Costa Gomes. As designações de esquerdistas, comunistas, moderados, direitistas e fascistas, não correspondiam assim, em minha opinião, aos comportamentos substantivos dos militares. Conforme demonstrei, os conflitos intramilitares tiveram basicamente as suas origens nas vocações e motivações que determinaram a qualidade do respetivo desempenho e o comportamento demonstrado, por sua vez derivado dos erros do processo de formação militar”.

O doutor Rebocho despede-se do leitor com o desejo que a sua investigação suscite novos trabalhos e possa contribuir para conhecer melhor a instituição militar e ajudar à elevação da sua eficácia e da sua dignidade, através de processos de seleção, recrutamento e formação consequentes com os valores que devem presidir à existência e continuidade das Forças Armadas.
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Notas de CV:

Vd. postes anteriores desta recensão de:

26 de Novembro de 2012 > Guiné 63/74 - P10727: Notas de leitura (432): "Elites Militares e a Guerra de África", por Manuel Godinho Rebocho (1) (Mário Beja Santos)
e
30 de Novembro de 2012 > Guiné 63/74 - P10740: Notas de leitura (433): "Elites Militares e a Guerra de África", por Manuel Godinho Rebocho (2) (Mário Beja Santos)

Vd. último poste da série de 2 de Dezembro de 2012 > Guiné 63/74 - P10752: Notas de leitura (435): "Amílcar Cabral Revolutionary leadership and people's war", por Patrick Chabal (2) (Francisco Henriques da Silva)

sexta-feira, 30 de novembro de 2012

Guiné 63/74 - P10740: Notas de leitura (433): "Elites Militares e a Guerra de África", por Manuel Godinho Rebocho (2) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 7 de Setembro de 2012:

Queridos amigos,
É preciso ler tudo, de fio a pavio, e reler cuidadosamente.
Temos aqui uma tese de doutoramento transformada num ajuste de contas com os oficiais do quadro permanente, incompetentes, fora do tempo, sem o sentido da liderança.
Fala-se na guerra de África mas as histórias fundamentais aqui descritas passaram-se na Guiné, sob a lente do doutor Rebocho.
Quem imagina que nas teses de doutoramento é totalmente impossível praticar assassinatos de caráter, então desiluda-se. O doutor Rebocho ensina que se chegou ao 25 de Abril, ao 28 de Setembro, ao 11 de Março e ao 25 de Novembro porque havia duas fações em disputa, irá ganhar a do quadro permanente.
Por favor, leiam este livro.

Um abraço do
Mário


A “milicianização” da guerra (2)

Beja Santos

A tese de doutoramento de Manuel Godinho Rebocho suscita a controvérsia. O título é “Elites Militares e a Guerra de África”. Os exemplos que vai buscar são predominantemente extraídos da Guiné e da sua vivência enquanto paraquedista, iremos ficar a saber os desaguisados que teve com vários oficiais. É impiedoso em referências a oficiais de carreira, de capitão para cima. Os cadetes da Escola Militar queriam era conforto, os milicianos que fizessem a guerra. A partir de 1970, formaram-se mais de 160 capitães milicianos por ano, situação que iria ter consequências quando os milicianos passaram a ingressar e a engrossar o quadro do complemento, a faísca virá de um decreto de 1973 que abrirá caminho para uma guerra de fações que irá desaguar no 25 de Abril. E num documento que devia ter probidade científica, o novel doutor dá como comprovado que houve lutas assanhadas entre os oficiais milicianos à volta de Spínola e os oficiais elitistas do quadro que apoiaram Costa Gomes. Não, isto não é para rir, vale a pena acompanhar o que escreve o doutor Rebocho, o que também dá pretexto para se rever a matéria do texto anterior.

Primeiro, os oficiais do quadro permanente foram fugindo do mato, ficaram acantonados nas sedes de batalhão (CCS) e na miríade de serviços relacionados com a gestão militar, não esquecendo o Estado-Maior que se revelou quase sempre incompetente ou fora das realidades. Foram os milicianos progressivamente que passaram a tomar conta das unidades de combate.

Segundo, vá de fazer a história da formação das elites militares, assim se irá concluir que nas campanhas de África do fim do século XIX começaram a brilhar os milicianos. O doutor Rebocho não concretiza nomes, mas pensamos tratar-se de Aires d’Ornelas, Mouzinho de Albuquerque e Teixeira Pinto. É evidente que muitos oficiais milicianos se distinguiram nas campanhas de África daquele tempo como mais tarde na Flandres. Mas fazer disto doutrina… O grande drama destas elites militares (quadro permanente, entenda-se) é que elas privilegiaram a formação científica/cultural e apoucaram a vocação e a experiência.

Terceiro, é bem verdade que na transição da década de 1950 para 1960 os altos comandos previram e propuseram reformas, aliás, na época até sopravam os ventos da NATO e já havia guerras de guerrilha para comparar, mas não houve reformas de fundo, o corpo de oficiais teve uma formação elitista, como estivesse a ser preparado para uma guerra convencional. Trata-se de gente saída predominantemente das classes médias, estavam centrados numa formação universitária, etc., etc.

Quarto, não há nada como ir buscar exemplos. Veja-se o BART 2865, foi-lhe atribuído o sector de Catió, em Fevereiro de 1969. Entre Fevereiro e Outubro de 1969 este batalhão formou 4 companhias, uma delas deslocou-se para o Norte da Guiné. Tinha adstritos vários pelotões e um dispositivo de quadrícula onde cabiam Catió, Cabedú, Cufar, Bedanda, Guileje, Gadamael Porto, Ganturé, Cacine e Cameconde, ou seja 9 unidades fisicamente separadas. O comando era, quase sempre exercido por oficiais de patente muito inferior à que seria normal. Contudo, o número de baixas foi reduzido e os atos de indisciplinas escassos. O que é que isto traduz? O factor humano era o elemento decisivo. O doutor Rebocho decidiu inquirir Canha da Silva, então capitão oriundo da Escola Militar que deu provas de liderança em empreendimentos essenciais como o reordenamento de Mato Farroba. Mas outros dois oficiais do quadro permanente que o novel doutor investigou revelaram ser oficiais que nunca o deviam ter sido. Um, Coutinho e Lima, esteve na Guiné de 1963 a 1965. Lê-se a documentação e o que é que salta à vista? 50 praças e sargentos desta companhia foram punidos, o que atesta a inapetência para o comando de Coutinho e Lima. A comissão do capitão Vasco Lourenço, está escrito textualmente, foi uma nódoa, o rancho miserável, as condições de alojamento péssimas, o armamento em mau estado de limpeza e conservação, e por aí adiante. Spínola encolerizou-se. Resultado: Vasco Lourenço não tinha aptidão para comandar. Lá para o fim da comissão, a companhia de Vasco Lourenço executou uma operação, “Última Vendetta”, durante a qual destruiu 44 moranças, 58 vacas, 15.700 kg de arroz, 1 porco, 60 molhos de capim, e por aí adiante.

Como este trabalho é científico, e o doutor Rebocho, por imperativos universitários, não pode abandonar a neutralidade, então escreve: “Operacional fui eu, em tropas de elite, durante 26 meses e nunca a minha companhia destruiu qualquer produto alimentar da população”. Será que Vasco Lourenço foi incompetente por mandar destruir alimentos destinados a apoiantes do PAIGC? E depois apanhamos uma injeção das tropas paraquedistas e elogios sem conta à unidade militar do doutor Rebocho, o BCP 12. E para demonstrar o quê, já que estamos a falar de elites: só se manda fazer a quem sabe, e os sargentos e praças paraquedistas eram uma matéria-prima de altíssima qualidade, vem até uma narrativa de uma operação em que participou o doutor Rebocho na área de Porto Gole onde se vê o desembaraço daquela tropa paraquedista. E como estamos a falar de um documento científico ficamos a saber que apareceu por lá o capitão miliciano paraquedista Henrique Morais da Silva Caldas, um homem que se relacionava muito mal com os sargentos e de quem ninguém gostava. O capitão Caldas acabou por aprender com a exemplaridade do doutor Rebocho que entretanto desatou a estudar e a fazer exames… O novo capitão, Costa Cordeiro, também foi outro osso duro de roer, mas acabou por baixar a grimpa, escreveu ao comandante de batalhão uma informação onde rezava: “O furriel Rebocho é um graduado aprumado, competente, disciplinado e disciplinador. Atualmente está a estudar, não descurando a sua valorização pessoal. Elemento muito válido e de prestígio na classe de sargentos, promete com mais experiência vir a tornar-se um opimo sargento".

Quinto, a partir de Março de 1973 as coisas complicaram-se na Guiné, a companhia do doutor Rebocho voltou ao Cantanhez e cedo se verificou que havia criatividade do lado da guerrilha e uma enorme apatia do Estado-Maior. Temos depois o relato da participação paraquedista em Guidage e depois em Gadamael Porto. E sentencia, sobre o que se passou em Guileje: “A posição de Coutinho e Lima não tem, nem pode ter a mínima justificação no campo militar. Compreende-se o seu estado de espírito, que terá motivado tão invulgar decisão, por quanto se nenhum outro oficial de carreira estava colocado a sul do rio Cacine, por que razão haveria ele de lá estar? Naturalmente que Coutinho e Lima não previu o desastre que a sua atitude iria provocar, desde logo não pode ser condenada no campo da moral”. Tudo o que se passou em Guileje, declara a sangue frio, é mais uma manifesta desarticulação do Estado-Maior.

Vejamos agora o comportamento das elites militares no pós-marcelismo. E se alguma dúvida houvesse que as teses de doutoramento andam pela rua da amargura bastava ler o que vem a seguir:

(Continua)
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 26 de Novembro de 2012 > Guiné 63/74 - P10727: Notas de leitura (432): "Elites Militares e a Guerra de África", por Manuel Godinho Rebocho (1) (Mário Beja Santos)

segunda-feira, 26 de novembro de 2012

Guiné 63/74 - P10727: Notas de leitura (432): "Elites Militares e a Guerra de África", por Manuel Godinho Rebocho (1) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 6 de Setembro de 2012:

Queridos amigos,
As teses apresentadas pelo Doutor Manuel Godinho Rebocho têm suscitado alguma controvérsia e bastantes reparos metodológicos. Segundo ele, os capitães milicianos, genericamente, desempenharam a sua função de modo cabal e a sua qualidade de desempenho residiu nas capacidades pessoais e dentro das inteligências específicas sobressaiu a inteligência emocional e em contrapartida as elites militares constituídas por membros do quadro permanente não esteve ao nível no desempenho das suas responsabilidades.
Estes e outros objetos de análise são contundentes e deviam ser alvo de mais estudos, até na perspetiva de melhorar os processos de seleção, recrutamento de informação das Forças Armadas, como diz o autor.

Um abraço do
Mário


A “milicianização” da guerra

Beja Santos

“A investigação científica que realizei provou que, no decurso da guerra de África, os oficiais do quadro permanente foram-se progressivamente afastando do comando operacional. Desta situação, inusitada, resultaria terem sido os milicianos quem, de facto, comandou as unidades de combates, nos últimos e mais gravosos anos da guerra”. É com esta declaração que Manuel Godinho Rebocho nos apresenta o seu trabalho com base na sua tese de doutoramento ("Elites militares e a guerra de África”, por Manuel Godinho Rebocho, Roma Editora, 2009. Nesta sua investigação procurou igualmente sondar os termo em que se formaram as elites militares e o impacto dessa formação na qualidade do desempenho, na guerra e na forma como se comportaram no “pós-Marcelismo”.

É um trabalho vasto onde o seu autor esclarece aspetos metodológicos e a componente científica da investigação, procede ao enquadramento histórico da guerra para concluir que as autoridades portuguesas não desconheciam, quando se chegou a 1961, as condições naturais e ambientais em que a guerra se iria travar, e a tal propósito estudou a formação dos milicianos; descreve com exaustão a organização militar na guerra, escrutinando um conjunto de unidades de combate; analisa a forma como os oficiais conflituaram entre si, designadamente no período do PREC e apresenta por fim as conclusões. Pelo que é dado verificar em textos que circulam na Net, as teses do sargento-mor Godinho Rebocho estão longe de ser consensuais, tanto pela amostra das unidades estudadas como pela caracterização a que procede sobre os oficiais do quadro permanente ao longo da guerra.

O autor começa por entrevistar um conjunto de comandantes de unidades de combate e pede-lhes apreciação sobre três componentes: formação científica/cultural, vocação e experiência. O critério a que obedecem estas três componentes tem em vista ajuizar qual na prática a componente ou componentes que pesaram no bom desempenho. E discorre sobre a natureza do conflito militar a natureza das elites, as características da liderança, como se processa a cadeia de comando, etc. Na sequência do enquadramento do seu trabalho, repertoria o quadro histórico da descolonização, à escala mundial e as reformas militares ao longo do século XX até ao período que antecede o início da guerra. Do que investigou, concluiu que as cúpulas da Forças Armadas detinham o diagnóstico perfeito da situação quanto à necessidade de orientar o recrutamento e a formação dos quadros, num horizonte de guerra. E perde-se em consideração sobre a origem social do corpo de oficiais, contesta a tese exposta por diferentes investigadores de que os oficiais revoltosos provinham, pela origem social, de extratos humildes, dá por demonstrado que os militares não se comportaram nem se motivaram em função das suas origens sociais. E expende um juízo: “O maior, senão o único, problema das Forças Armadas Portuguesas durante todo o tempo da guerra de África, foi a falta de doutrinadores e reformadores quanto à sua organização e formação. Tudo o resto se resume a pequenas questões, de solução fácil e pontual. Mas a organização e formação tiveram de ser mantidas para satisfazer a classe média, razão pela qual se manteve uma hierarquia baseada nas habilitações literárias, de todo inconsequente. Destaca-se a classe média porque a classe alta nunca teve problemas: os seus filhos estiveram sempre em lugares seguros”. E mais adiante: “A organização e formação militares, durante a guerra de África, estiveram estruturadas e diferenciadas segundo as classes sociais, mas só na componente do serviço militar obrigatório. Na componente do quadro essa diferenciação não existia. A grande clivagem verificava-se entre oficiais de carreira e oficiais milicianos, sobretudo nas patentes de capitão. Tão evidentes e profundas eram essas diferenciações, que foi ali que se iniciaram, ou foi dali que partiram, as movimentações dos capitães: Puros e Espúrios, de carreira e milicianos, respetivamente”. E nada adianta se estas reivindicações e conflitos eram exclusivamente corporativas, de modo a que os capitães chegassem rapidamente aos tais lugares de gestão militar, afastando-se das missões espinhosas das operações.

É uma investigação onde se anda à lupa a saber quem e como frequenta cursos de formação, saber a origem social dos oficiais do quadro permanente no topo ou a caminho do topo. Com uma paragem demorada na Academia Militar em 1959, mas também na Escola Central de Sargentos, nas Escolas Práticas, averiguando qual a natureza da formação complementar por onde os oficiais eram habilitados, e procedendo de idêntica forma para a formação de sargentos e conhecimentos relacionados com formação em ação psicológica, e então detém-se nas tropas paraquedistas, de onde provém, assim as caraterizando: “Estes homens eram submetidos a rigorosas inspeções médicas, físicas e psicotécnicas. Eram provas muito seletivas: só os melhores as conseguiam superar. A formação das tropas paraquedistas, enquanto tropa de elite, acompanhou de muito perto a que foi seguida no Centro de Instrução de Operações Especiais para preparar as companhias de caçadores especiais. Se a formação era em tudo semelhante, o Exército não deu sequência àquela preparação, perdendo assim boas unidades, enquanto os paraquedistas não só a continuaram como a melhoraram progressivamente”. E detalha a formação dos paraquedistas.

E assim se chega à guerra de África e ao desempenho das elites militares. Socorre-se de um trabalho de John Cann, a cuja recensão já se procedeu aqui (“Contrainsurreição em África, O Modo Português de Fazer a Guerra, 1961/1974”*, por John P. Cann, Edições Atena). Aqui havia uma questão central que era a de, numa guerra subversiva, conquistar a população ou tê-la maioritariamente do seu lado, isto a par de manter baixos custos em guerra, o que, reconhece John Cann se ficou a dever à baixa tecnologia da guerra, à baixa intensidade da guerra, aos baixos custos com pessoal. E assim conclui: “A partir do que fica analisado e desenvolvido, forçoso é concluir que os altos comandos militares orientarem estrategicamente a guerra, segundo as melhores perspetivas, face aos recursos financeiros e humanos de que Portugal dispunha e o enquadramento internacional, que nos era totalmente desfavorável. Os erros e a falta de estratégia que influenciaram os resultados da guerra de África são fundamentalmente da responsabilidade dos políticos”.

E daqui parte para uma ponderação do sistema de forças, socorrendo-se de um exemplo extraído da Guiné. Recorde-se que uma das críticas mais apresentadas à investigação de Manuel Godinho Rebocho foi a limitação de fontes, nunca usando qualquer exemplo extraído de Angola, não invocando nada sobre o comportamento da Armada, etc.

(Continua)
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Notas de CV:

(*) Vd. poste de 6 DE SETEMBRO DE 2011 > Guiné 63/74 - P8741: Notas de leitura (271): Contra-Inssureição em África, 1961-1974, O modo português de fazer a guerra, de John P. Cann (Mário Beja Santos)

Vd. último poste da série de 23 de Novembro de 2012 > Guiné 63/74 - P10710: Notas de leitura (431): "Crónica dos (Des)Feitos da Guiné", por Francisco Henriques da Silva (2) (Mário Beja Santos)

terça-feira, 22 de maio de 2012

Guiné 63/74 - P9935: Efemérides (91): Guidaje foi há 39 anos... Pergunto: Por que é que a FAP não bombardeou com napalm a área de Genicó até Ujeque ? Por que é que não se utilizou o obus 14 no apoio às colunas ? No cerco de Guidaje muito eu desejei ter uma antiaérea... (Arnaldo Machado Veiga)

1. Mensagem do nosso leitor (e camarada) Arnaldo Machado Veiga, com data de 17 do corrente:

Como introíto apresento os meus cumprimentos e elogios pelo trabalho realizado, ao concentrar a variada informação sobre a guerra na Guiné.


Para mim, que vivia fazendo conjecturas acerca dos acontecimentos em Guidaje em Maio de 73, foi um alívio e ao mesmo tempo a consternação ao saber daqueles que lá morreram que eu conhecia bem. [Foto acima: mortos da CCAÇ 19, na zona do Cufeu. Foto de Amílcar Mendes, 38ª CCmds, 1972/74].

Foi também com alegria que revejo fotos recentes de Guidaje e do Cufeu, etc. Quero também realçar as dúvidas do Sarg Pára Manuel Rebocho e das quais também sempre comunguei e que se referem ao facto de, no cerco de Guidaje, as colunas de socorro terem sido empenhadas com tantos sacrifícios humanos e não terem sido utilizados os obuses de Farim (14, salvo erro) e até mesmo a sua deslocação para Binta em apoio das diversas colunas que pretendiam seguir em direcção a Guidaje.

Porque razão não deslocaram as Panhards de Bula para o mesmo efeito, por exemplo, já que em Bula tanto quanto eu saiba pouco valor acrescentado davam ?

Porque motivo a FAP não varreu a área desde Genicó até ao Ujeque com napalm? Tinham medo dos mísseis Strela? Mas os que andavam em terra já podiam levar com todo o tipo de armamento...

Também os judeus na guerra de 73 [, a guerra do Yom Kippur,] se viram a braços com os SAM 7 mas mesmo assim os seus Mirages e pilotos não deixaram de desempenhar a sua quota parte no sacrificio da guerra.


Guiné > Região de Tombali > Gandembel / Balana >CCAÇ 2317 (1968/69) > Gandembel: A antiaérea que era pressuposto proteger o pessoal contra eventuais ataques ... dos Migs russos da República da Guiné-Conacri. Já depois do 25 de abril também foi montada uma em Pirada, junto à  fronteira norte, com o Senegal.

Foto cedida pelo António Almeida, o intérpetre do Hino de Gandembel, soldado da CCAÇ 2317 (Gandembel/Balana, 1968/69) (1). Enviada pelo Zé Teixeira, também conhecido, entre os escuteiros de Matosinhos, como o Esquilo Sorridente . Legenda: AA/LG.

Guidaje tinha obuses de 10,5 e Bigene tinha obuses de 14 mas admito que as dificuldades de reabastecimento impedisse estas unidades de prestarem apoio às colunas com esta Artilharia.

Olhando para trás, fica-me um pouco a sensação de que os Altos Comandos se limitavam na inovação e se dedicavam a exercicios/ teorias pouco consentâneas com a realidade e esta ideia ainda ficou mais reforçada quando agora na revolta da Líbia se viam as antiaérias em cima de carrinhas a fazerem grandes estragos.

Não se imagina quantas vezes quer nas colunas Guidage/Binta quer no Quartel de Guidaje quando de ataques eu desejava ter uma antiaérea das que estavam em Bissau e. se não estou em erro, também em Nova Lamego e Cufar, para utilizar em fogo terrestre.

Bem haja pelo seu trabalho e votos de sucesso.

O meu muito obrigado

AMVEIGA 


2. Comentário de L.G.:

Obrigado, camarada Arnaldo, pelas tuas amáveis palavras em relação ao nosso blogue. Sabem sempre bem, sobretudo quando a gente se esforça por trabalhar bem e para todos, procurando dar a palavra a todos os que têm a (e querem) dizer algo sobre a sua experiência de guerra na Guiné, entre 1961 e 1974. 

Não me compete, por outro lado, responder às tuas perguntas. Elas aqui ficam para reflexão. serena,  de todos nós. Vejo que acompanhas o nosso blogue e que estiveste no inferno de Guidaje, mesmo sem saber mais nada a teu respeito (posto, unidade a que pertencias, etc.). Aproveito, por isso,  para te perguntar se não queres ir mais longe, partilhando fotos e outras memórias desse tempo, na qualidade de membro da nossa Tabanca Grande. Entrar é fácil: é dar a cara (duas fotos) e contar uma história... Para que amanhã os nossos filhos,  netos e bisnetos, não perguntem: Guidaje, avô Arnaldo ? Mas em que planeta é que isso fica ?

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Nota do editor:


Último poste da série > Guiné 63/74 - P9934: Efemérides (56): Guidaje foi há 39 anos: reconstituindo a 5ª coluna, de 22 e 23 de maio de 1973 (Victor Tavares e † Daniel Matos)

 

domingo, 6 de maio de 2012

Guiné 63/74 - P9859: Excertos do Diário de António Graça de Abreu (CAOP1, Canchungo, Mansoa e Cufar, 1972/74) (15): Contam-se histórias tenebrosas sobre Gadamael...



1. Em 1973, em Maio/Junho, Gadamael era um dos três G de que toda a gente falava: Guidage, Guileje, Gadamael... Sobre Gadamael temos mais de 170 referências no nosso blogue, já tendo nós publicado diversos depoimentos em primeira mão, relativos à chamada batalha de Gadamael (em finais de maio e princípios de junho de 1973), desde o J. Casimiro Carvalho ao Pedro Lauret, do Carmo Vicente ao Victor Tavares, do Luis Paiva ao Manuel Rebocho, do Jorge Canhão ao João Seabra, sem esquecer o Manuel Reis, o Constantino Costa e outros "piratas de Guileje" ...

Qualquer destes três G têm suscitado e continuarão a suscitar as mais diversas versões, não necessariamente contraditórias, seguramente parcelares e complementares, umas mais polémicas, apaixonadas e acaloradas do que outras.


Alguns de nós, como é o acaso do nosso camarigo António Graça de Abreu (AGA), assistiram aos acontecimentos de Gadamael a uma distância relativamente confortável (desde Mansoa ou de Cufar). Para quem não estava lá, em meados de 1973, no TO da Guiné, não deixa de ser interessante ler as referências a Gadamael no diário do AGA, e ficar a conhecer as reações que a evocação do topónimo provocava nas NT... Lembro-me do mesmo temor e respeito que nos inspirava, em meados de 1969, a evocação de outros topónimos como Gandembel ou Madina do Boé, quando desembarcámos em Bissau e começamos a deambular pelas 5ªs Rep, ávidos de notícias, boatos e histórias da guerra. 

Pois aqui ficam alguns excertos do Diário da Guiné onde encontrei referências ao topónimo Gadamel. Recorde-se que há uma edição comercial do livro, e que este pode ser comprado nas livrarias ou na feira do livro que está a decorrer em Lisboa. Referência completa:  António Graça de Abreu - Diário da Guiné: Lama, Sangue e Água Pura. Lisboa: Guerra & Paz Editores, 2007, 220 pp. (*) (LG)



Guiné > Região do Oio > Mansoa > CAOP 1 > Março de 1973 > O Alf Mil António Graça de Abreu (1972/74) junto ao obus 14....
                                                                                 
Foto: © António Graça de Abreu (2010). Todos os direitos reservados



Mansoa, 22 de Maio de 1973

O PAIGC parece que vai declarar a independência, mas isso não modificará o rumo da guerra. O que tem abalado os portugueses nestes últimos meses é a quase ausência da nossa aviação, o armamento cada vez melhor, em maior quantidade e melhor utilizado pelos guerrilheiros e, acima de tudo, o estado anímico e psíquico da tropa portuguesa. No entanto, continuo a acreditar que esta guerra está longe de se resolver no campo militar e terá, só Deus sabe quando, uma solução negociada, política.
Creio que continuamos em vantagem sobre os guerrilheiros, dominamos os centros urbanos e as maiores povoações da Guiné, existem aquartelamentos espalhados por todo o território e temos muitos mais militares do que eles. Se em vez de quatro ou cinco Fiats tivéssemos vinte ou trinta aviões mais modernos, se contássemos com blindados capazes para este tipo de guerra, se a tropa portuguesa estivesse moralizada e decidida, as NT voltariam a manejar quase todos os cordéis com que se tece a guerra. Mas onde ir buscar dinheiro para tanto material militar – parece que as guerras em África consomem quase metade do orçamento de Estado, – e fundamental, como mudar estes nossos homens, descrentes, cansados, confusos?
Os senhores que nos governam ou estão cegos para a realidade ou fingem estar, querem que os pobres soldados portugueses continuem a “defender a Pátria” até ao impossível. (...)
O meu coronel [, Cor pára Rafael Durão, comandante do CAOP1] anda lá pelo sul, (...)  Guileje, Gadamael aquartelamentos junto à  fronteira que têm sido atacados quase sem interrupção. Ele já tem cá o seu “periquito”, o substituto, outro coronel pára-quedista que parece ficará em Catió, no sul, onde se diz que será criado um CAOP 3. (...)

Mansoa, 28 de Maio de 1973

O outro “Gui”, Guileje. O que se passou no aquartelamento do sul? Dizem-me que Guileje tem os melhores abrigos de toda a Guiné, em cimento armado, mas foi sendo sucessivamente flagelada, dias a fio, com o mais variado tipo de armas e, tanto quanto sei pela primeira vez na história recente desta guerra, as NT abandonaram um aquartelamento e retiraram-se para Gadamael, outro destacamento também junto à fronteira mas mais próximo de Cacine e do mar. Isto sem o conhecimento do Comandante-Chefe, general Spínola e dos estrategas de Bissau. Pelo menos é o que consta, estou a vender a notícia como a comprei, mas parece produto afiançado. (...)

Mansoa, 19 de Junho de 1973

Chegou anteontem a Mansoa uma companhia nova de pessoal destinado a Angola. Só dentro do avião souberam que vinham para a Guiné. Aconteceu o mesmo a três outras companhias de 180 homens cada, com outros destinos, que também foram desviadas para a Guiné. Estes vêm substituir uma companhia do Batalhão 4612, aqui estacionado em Mansoa e que, com oito meses de comissão, parte amanhã para reforçar Gadamael, ao lado de Guileje já evacuado há um mês pelas nossas tropas. Ontem os rapazes desta companhia estavam desesperados face ao futuro incerto que os espera, mais incerto do que o meu. Eu vou para pior, não propriamente para um matadouro. Esta companhia, ai, que Deus os proteja!...

A grande maioria dos mortos em combate na primeira quinzena de Junho, vinte e quatro no total, registou-se no sul, na região de Gadamael-Cameconde onde os guerrilheiros tentam conseguir o mesmo que em Guileje, obrigar os portugueses a abandonar mais um aquartelamento. Contam-se histórias tenebrosas sobre Gadamael. (...)

Hoje, às oito da noite estávamos os oficiais a jantar quando, diante da messe, surgiu quase toda a companhia velha em marcha fúnebre, com arcos e velas acesas sobre umas tábuas que pareciam caixões. Formaram e queriam oferecer uma garrafa de whisky ao capitão, o comandante da companhia, um homem do QP, competente, respeitado e determinado. Saiu da messe, perfilou-se, fez continência aos seus homens e mandou-os dispersar. Obedeceram logo. Depois houve grandes bebedeiras. Estive no bar de oficiais até cerca da meia-noite. Alguns alferes da companhia que segue para Gadamael, cheios de álcool, partiram garrafas e cadeiras. Não se tratou de insubordinação, apenas o extravasar de recalcamentos e medos. (...)

Cufar, 25 de Junho de 1973

Não estou encantado com o lugar que vim encontrar, mas Cufar é melhor do que eu imaginava. Em termos de guerra, segurança pessoal, companheiros de armas e instalações. (...). O que se passa lá mais para sul, em Guileje, há um mês abandonado pelas NT, em Gadamael, que esteve quase a ser evacuada, em Cameconde ou Cacine, só indirectamente tem a ver com a zona onde me encontro. Embora perto de Cufar, uns trinta quilómetros em linha recta, são regiões geográfica e militarmente diferenciadas da nossa. Lá os guerrilheiros estão a exercer uma enorme pressão mas, pelo que conheço deles, não me parece que tenham hipóteses de repetir a ocupação de qualquer aquartelamento NT. No extremo sul da Guiné eles atacam muitas vezes a partir do outro lado da fronteira. Dispõem de uma base grande em Kandiafara, uns quinze quilómetros já dentro da Guiné-Conacry, para onde regressam após emboscadas e flagelações. (...)

  Cufar, 27 de Junho de 1973

De Lisboa, contam-me as “bocas” que por lá correm. E “bocas” falsas. Fala-se em evacuar da Guiné mulheres e crianças. Mas onde e porquê? É verdade que a população nativa, os africanos das aldeias de Guidage, Guileje e Gadamael, abandonou essas tabancas por causa do perigo nas flagelações constantes do IN. Mas não houve nenhuma evacuação nem sei se tal está previsto pela nossa tropa. Também é verdade que muitos milhares de habitantes da Guiné Portuguesa procuraram fugir à guerra e refugiaram-se quer no Senegal quer na Guiné-Conacry, no entanto esta procura de um lugar mais pacífico para habitar não é novidade, começou há já alguns anos com o agravamento do conflito armado. (...)

Cufar, 2 de Julho de 1973

Catió “embrulhou” ontem às seis e meia da tarde. Seis foguetões, como de costume caíram fora do quartel. Em Cufar, ouvem-se sempre os rebentamentos mas a maioria do pessoal está tão habituado que já nem estranha. Hoje, às seis da manhã, acordei com mais pum, catrapum, pum, pum, tão diluídos na distância que voltei a adormecer. Era Gadamael. (...)

Cufar, 21 de Setembro de 1973

Tenho o cabelo um pouco mais crescido, mas os meus superiores não me chateiam com críticas ou ordens para o cortar. Também deixo crescer o bigode embora não me pareça que fique mais bonito. O bigode dá-me um certo ar rufia, um aspecto de mafioso italiano ou grego, de facalhão à cinta. Cortá-lo-ei em breve. Para um oficial usar bigode é necessário fazer um requerimento ao ministro do Exército. Não fiz nada disso, estou no sul da Guiné, quanto maior é o “buraco” em que estamos metidos, mais se ultrapassam os regulamentos. Os tipos do Chugué, Jemberém, Gadamael usam bigodes, barbas, cabelos de meses, estão-se cagando para os regulamentos. Os tipos do ministério do Exército que venham cá até ao sul da Guiné, até este esplendoroso torrão de solo pátrio, mandar vir com os soldados barbudos e cabeludos!... Eles são capazes de lhes meter uma bala nos tomates. (...)

Cufar, 8 de Novembro de 1973

Os dias fabulosos, as histórias que não conto, os whiskies que bebemos, às vezes a morte, espantalho de sangue agitado ao vento diante da menina dos olhos.
De madrugada, Gadamael, chão com cadáveres, juncado de medos. Quarenta e seis foguetões 122 disparados pelos guerrilheiros do PAIGC sobre o aquartelamento, aqui a sul, na fronteira. Apenas me apercebi de rebentamentos distantes, no sono do resto da noite. É normal, já nem estranho. Mas na mente de cada um de nós, a preocupação cresce. Quarenta e seis foguetões sobre Cufar, como seria?
As bebedeiras, cerveja, vinho, whisky, o álcool a circular no sangue temeroso. Os homens tontos de mágoa, solidão e medo. (...)

Cufar, 11 de Novembro de 1973

Outro dia duríssimo para Gadamael. Às seis da manhã, eu dormia mas acordei sonolento com os muitos rebentamentos distantes. Foram duas horas de flagelação com quarenta e dois foguetões 122. Tiveram dois mortos e muitos feridos.
Quando chegou a Cufar, o meu tenente-coronel “periquito” vinha cheio de ideias para pôr num brinquinho o que resta do CAOP 1. Começa a baixar a cabeça, a entrar na realidade. Ficou alterado com os ataques a Gadamael, hoje à noite apanhou uma bebedeira monumental. As pessoas, quer as do pequeno, quer as do grande mando, quando têm vinho dentro ficam claras como água. (...)


Cufar, 21 de Novembro de 1973

Guerra todos os dias. Ontem às seis de tarde, hoje às seis da tarde. Ontem foi Cobumba, estávamos a começar a jantar e pum, catrapum, pum, pum. Alguns de nós saltaram das mesas e começaram a correr para as valas. Cobumba fica aqui mesmo ao lado e como têm lá uma nova companhia de “periquitos”, os guerrilheiros trataram de lhes fazer condigna recepção, com foguetões, morteiros, canhão sem recuo, tudo a disparar numa cadência de fogo impressionante. O pessoal de Cobumba teve sorte, estão lá estacionados quatrocentos homens – a companhia velha e os “periquitos” que os vêm substituir – e não sofreram uma beliscadura.

            Hoje foi a vez de Gadamael, já não era atacada há dois dias e meio! Embora muito mais distante do que Cobumba, ouviam-se os rebentamentos com extrema nitidez. Foram só vinte minutos de fogo, também a um ritmo capaz de assustar o mais valente, as granadas rebentavam de dez em dez segundos. Não sei se houve consequências para as NT em Gadamael, mas a flagelação foi tremendamente feia. O ataque a Cufar dia 13 passado, comparado com estes dois que ouvi ontem foi uma brincadeira.

            Em resumo, a nossa tropa anda acagaçada. O PAIGC movimenta-se, põe, dispõe e manda lembranças. Começamos a ver a guerra com os olhos cada vez mais tortos. A aviação actua, os Fiats fartam-se de bombardear aqui em redor, numa cintura aí de quarenta quilómetros. Volta e meia ouvimos o zumbido dos aviões a jacto e os rebentamentos secos das bombas a cair.

            Só desejo que este embeber doloroso na guerra, este permanente estado de insegurança, este saber que a meu lado todos os dias morrem africanos e portugueses, não entre demasiado por dentro de mim e me marque a ferrete, com ressacas complicadas para o futuro. Não sou um tipo medroso, nem fraco. Procuro manter a cabeça fria e fazer estes jogos de guerra mantendo-me vivo e seguro. Mas custa muito ver tanta gente destruída, de ambos os lados. Os soldados parecem crianças com todos os defeitos dos homens. Bebedeiras conscientemente procuradas, reacções sem nexo, o medo escondido a crescer.
            Em mim, acho que quero, posso e mando. Às vezes, embora eu diga que não, a guerra afecta-me, e muito. Tento criar calo, uma armadura onde as sensações mais fortes batam e façam ricochete. Há o futuro, o desta gente, negros e brancos, e o meu. Faltam-me apenas quatro meses para terminar a comissão. É aguentar, e peito firme!  (...)


            Cufar, 4 de Dezembro de 1973


Mais foguetões 122 e de novo para Cufar, direccionados para o interior do nosso aquartelamento. O Chugué, há dois dias levou com vinte e cinco foguetões, sem consequências, Gadamael tem sido tão flagelada, com consequências, que já perdemos a conta ao número dos foguetões. Nós, mais humildes, fomos brindados com dez projécteis explosivos disparados durante quinze minutos. (...)


           Cufar, 21 de Janeiro de 1974


Cumpriu-se um ano sobre o assassinato do Amílcar Cabral e o PAIGC comemorou a data. Aqui na zona atacaram os aquartelamentos de Gadamael, Cafal, Cafine, Cadique, Cobumba, Bedanda, Chugué, Catió e … Cufar. (...)


           Cufar, 31 de Março de 1974



Prometi que só regressava a Cufar depois de ter resolvido o problema do meu substituto. Pois agora é verdade, já desencantaram o homem. É o alferes Lopes, apenas com quinze dias de Guiné. Tem a especialidade de Secretariado, estava exactamente destinado à 1ª. Repartição, em Bissau, e ou porque têm gente a mais ou porque eu os chateei demasiado nestes últimos dez dias, desviaram-no para Cufar. Encontrei-o na piscina do Clube de Oficiais, almocei com ele, animei-o – está um bocado abalado com a vinda para o mato, -  disse-lhe que Cufar é mauzinho mas se ele fosse atirador de Infantaria e tivesse sido colocado em Cadique ou Jemberém ou Gadamael, seria bem pior. (...)

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Nota do editor:

(*) Último poste da série > 23 de abril de 2012 > Guiné 63/74 - P9790: Excertos do Diário de António Graça de Abreu (CAOP1, Canchungo, Mansoa e Cufar, 1972/74) (14): O cap mil grad António Andrade, açoriano, terceirense, da 35ª CCmds... (ou a confirmação de que o Mundo é Pequeno e a Nossa Tabanca... é Grande)


domingo, 1 de agosto de 2010

Guiné 63/74 - P6814: Notas de leitura (140): As elites militares e as guerras de África (Manuel Rebocho)


1. O nosso Camarada Manuel Godinho Rebocho, ex-2º Sargento Pára-Quedista da CCP123/BCP12, Bissalanca, 1972/74, (hoje Sargento-Mor na reserva), cedeu ao nosso blogue a publicação do seu livro “AS ELITES MILITARES E AS GUERRAS D’ÁFRICA”, o que muito agradecemos em nome dos editores e demais camaradas.
A publicação iniciar-se-á, no presente poste, com o currículo pessoal, os agradecimentos, a constituição do livro, nota do autor e prefácio:

Currículo Pessoal
Manuel Godinho Rebocho nasceu a 4 de Dezembro de 1949, numa aldeia próxima de Évora. Ingressou como voluntário nas Tropas Pára-Quedistas aos 18 anos. Efectuou o antigo 5.º ano dos Liceus durante a sua comissão de serviço na Guiné, entre 1972 e 1974. Preparou-se para os exames do antigo 7.º ano dos Liceus durante a sua prisão, resultante dos acontecimentos de 25 de Novembro de 1975, de cujos actos foi judicialmente ilibado.
Por ordem do então Chefe do Estado-Maior da Força Aérea permaneceu em residência fixa até 1982, o que o impediu de ingressar na Academia Militar, em 1976. Como alternativa à Academia, e com a devida autorização judicial, ingressou na Universidade de Évora, em 1976.
É Eng.º Agrónomo, Mestre em Economia Agrícola e Doutorado em Sociologia (ramo Sociologia da Paz e dos Conflitos). É Sargento-Mor Pára-Quedista, na reserva, à qual passou por limite de tempo no posto (oito anos).

AS ELITES MILITARES
E AS GUERRAS D’ÁFRICA
Aos que, na Guerra de África,
Deram parte de si à Pátria
E a Pátria nada lhe deu
AGRADECIMENTOS
Quero agradecer particularmente à minha mulher, Maria Jacinta, e aos meus filhos Cláudia Leonor e Nuno Miguel, o apoio e incentivo que me expressaram.
À Professora Doutora Maria José Stock, agradeço todo o apoio que me concedeu na estruturação e leitura do texto. Creio mesmo que, sem o seu apoio, não teria alcançado o meu objectivo, nem a qualidade da obra atingiria o patamar que julgo ter conseguido.
À Instituição Militar, particularmente ao Exército, agradeço a permissão para consultar os múltiplos arquivos militares, onde obtive a informação que sustenta a obra; sem essa consulta seria absolutamente impossível efectuar a investigação com a objectividade conseguida.

O livro tem a seguinte estrutura e sequência de anexos:

Título
Dedicatória
Índice
Prefácio (páginas 1 a 6)
I Capítulo (páginas 7 a 82)
II Capítulo (páginas 83 a 240)
III Capítulo - desdobrado em 4 anexos - (páginas 241 a 428)
III I (páginas 241 a 341)
III II (páginas 342 a 369)
III III (páginas 370 a 400)
III IV (páginas 400 a 428)
IV Capítulo (páginas 429 a 506)
V Capítulo (páginas 507 a 532)
VI Posfácio (páginas 533 a 548)
VII Bibliografia (páginas 549 a 596)
Currículo Pessoal

NOTA DO AUTOR
O trabalho de investigação que desenvolvi, ao longo de vários anos, cujo resultado final constitui a presente obra, teve como fontes de informação fundamentais a análise que efectuei sobre diversos documentos militares, a minha própria experiência e um vasto número de entrevistas a Oficiais do Quadro Permanente.
A investigação científica que realizei provou que, no decurso da Guerra de África, os Oficiais do Quadro Permanente foram-se progressivamente afastando do Comando Operacional, para se instalarem nas posições de gestão militar. Desta situação, inusitada, resultaria terem sido os Milicianos quem, de facto, comandou as Unidades de Combate, nos últimos e mais gravosos anos da Guerra.
Reconhecendo esta situação e dado não ter ouvido, na dimensão adequada, os graduados milicianos, nem lhes ter dado o destaque que justamente merecem, entendi, para corrigir este lapso, convidar um miliciano para prefaciar a presente obra, para além de ter igualmente convidado um miliciano de cada uma das suas classes: Capitães, Alferes e Furriéis, para escreverem livremente um depoimento sob a forma de posfácio, enfatizando particularmente a sua experiência enquanto combatentes. Presto, assim, o meu total reconhecimento pelo trabalho desenvolvido pelos Milicianos no seu todo, ao longo da Guerra de África.
PREFÁCIO
O dado fulcral, que faz da obra de Manuel Rebocho um caso singular, escorado basicamente em procedimentos metodológicos da “nova” sociologia, a observação-acção, ou melhor a observação empenhada, como dela disse Adriano Moreira durante a discussão académica, é o ponto de partida do investigador: foi a sua participação e envolvimento directo na guerra que, anos depois, viria a despoletar o seu interesse sociológico no tema, a ponto de a estudar e de apresentar a escrutínio doutoral os resultados a que chegou.
Não espanta, por isso, que, uma vez e muitas, se pressinta alguma dificuldade de “afastamento” e “isenção” do autor face ao real que analisa. Mas isso não menoriza ou empobrece a qualidade científica do trabalho, antes o valoriza: afinal foi feito por quem, com instrumentos da ciência social, se debruça sobre o que viveu e sofreu. Este trabalho, no essencial da obra, deve ser, por isso, entendido como portador de uma parcela autobiográfica, como uma “história de vida”, como sublinhou Maria José Stock, orientadora do novel Doutor.
Se é verdade que a Guerra Colonial demorou alguns anos a tornar-se tema ficcional, já hoje há obras bastantes, particularmente testemunhos pessoais mais ou menos ficcionados, que permitem uma visão global sobre a vida no teatro de operações. O mesmo não pode dizer-se quanto a estudos académicos sobre o interior da instituição que fez a guerra, as Forças Armadas. Este trabalho de Manuel Rebocho vem iluminar zonas das nossas últimas Campanhas em África que até agora se mantinham na sombra.
A radical mudança política operada em Portugal em 1974, protagonizada, aliás, pelas Forças Armadas que triunfando sobre a ditadura abriram, “ipso facto”, caminho à sua “derrota” na Guerra Colonial, não propiciou, por isso, condições facilitadoras do estudo do processo “Guerra Colonial”.
Ao rastrear os “curricula” e a formação dos oficiais, particularmente após 1959 – ano da criação da Academia Militar –, quando se tornara imparável e acelerado o movimento independentista dos territórios africanos administrados por potências coloniais e, face à intransigente política “ultramarina” de Salazar, a guerra era inevitável. Manuel Rebocho concluiu que a Academia Militar passou então a preparar a elite não para o comando operacional, mas sim para funções técnicas e administrativas.
Em vez de comandantes operacionais, os militares do quadro permanente, na sua esmagadora maioria e nos mais diversos escalões, tornaram-se, progressivamente, ao longo dos treze anos que a guerra durou, “administradores” da logística e gestores da estratégia dos três teatros de operações.
A guerra no terreno, na frente de combate, assente numa quadrícula à base da companhia e realizada quotidianamente a nível de meia companhia ou, mesmo, de pelotão, essa, passou a ser feita quase exclusivamente, por capitães e alferes milicianos que enquadravam furriéis milicianos e praças do serviço militar obrigatório – essa foi, de facto, a “guerra” em que eu combati, no norte de Moçambique, e foi a conclusão generalizada a que chegou Manuel Rebocho. Chamou-lhe, ele, a milicianização da guerra.
Sem a triagem quantitativa que este estudo nos aporta, já outros, antes, tinham chamado à atenção para este aspecto da gestão cirúrgica do pessoal; Diniz de Almeida refere que “acentuadas diferenças de colocação dos oficiais, quer do Q. P. (Quadro Permanente) quer do Q. C. (Quadro de Complemento), determinavam ainda a vida particular e profissional dos militares originando, assim, um novo quadro de injustiça a corrigir. Deste modo, em função das mais diversas motivações, eram normalmente colocados em funções burocráticas ou em quartéis de cidade, os oficiais afectos ao regime. Quanto aos restantes, menos identificados com o regime, aguardavam-nos, regra geral, os postos longínquos e incómodos do mato.”
Após dez anos de guerra, no dia-a-dia, os pouquíssimos militares profissionais (Quadro Permanente e Serviço Geral) que estavam na frente de combate “nunca” saíam para o mato, ficando no “arame farpado” em funções de comando, colheita e coordenação de informações, planeamento de operações e apoio logístico; na picada e no mato andavam os capitães, alferes e furriéis milicianos e os cabos e soldados do serviço militar obrigatório. A estes juntavam-se, no mato, mais ou menos regularmente segundo as dificuldades do teatro de operações, companhias de comandos, de fuzileiros e de pára-quedistas, nas quais, aí sim, os soldados eram enquadrados por sargentos e oficiais do quadro permanente.
Foi essa realidade vivida na “frente” que Manuel Rebocho veio, agora, com números “arrasadores”, constatar: no Leste de Angola, de 1971 a 1974, das 68 companhias só 3 tinham capitães oriundos da Academia Militar; em Moçambique, em 1973, das 101 companhias apenas 1 era comandada por um capitão do Quadro Especial de Oficiais, e esse estava lá “por castigo”!
Reflexos dessa forma de administrar sabiamente “os riscos”, colhem-se, ainda hoje, quando se analisam as listagens de sócios da Associação dos Deficientes das Forças Armadas: o padrão médio indica-nos que cerca de 92% eram militares do Serviço Militar Obrigatório.
A gestão do pessoal afecto à guerra, feita pelas chefias militares, em seu benefício e salvaguarda, foi possível, sem escrutínio do poder político, porque o regime não permitia que, sequer, se questionasse a sua existência, nem mesmo na campanha eleitoral da “primavera marcelista”. O Ministro do Ultramar, Silva Cunha, era muito claro quanto a isso, dizendo que “o Governo não ia dizer (...) às Forças Armadas como combater” porque “a questão militar estava à parte do Governo, e a responsabilidade cabia ao Chefe do Estado-Maior General das Forças Armadas”.
Ao considerar a “Guerra do Ultramar” como desígnio patriótico, inevitável e inegociável, porque culpa do “outro” e dos ventos da história, a ditadura remetia, implicitamente o seu êxito ou inêxito para a esfera militar, tanto mais que garantia na Metrópole, na retaguarda, as condições ideais para o êxito das nossas tropas, ao não permitir que a opinião pública a contestasse, a condenasse. Tal situação até dispensou, em última análise, o poder político de apetrechar as frentes com condições logísticas e de material de combate capazes de potenciar as hipóteses de êxito militar.
Até ao fim da Guerra, uma vara ou uma cana de bambu a que se atava uma ponteira de aço afiada, era o nosso detector de minas – o que explica o número “indecoroso” de amputados e de cegos que a guerra produziu.
Por isso, às vezes, ainda acordo a meio da noite, quando não devia, no estertor de um pesadelo.
Manuel Joaquim Calhau Branco
Licenciado e Mestre em História
Ex-Alferes Miliciano; deficiente das Forças Armadas.
Textos, fotos e legendas: © Manuel Rebocho (2010). Direitos reservados
(continua)

2. Nota de Luís Graça, editor principal do blogue:

De férias, esperando um Agosto calmo como as águas da enseada da minha Praia do Paimogo ou suave como a brisa que sopra no planalto das Cesaredas, nos pedrogosos caminhos calcorreados por Pedro e Inês entre Moledo e Serra d'El-Rei, protagonistas da mais trágica paixão de amor da nossa história,  sou surprendido com o início de uma mais uma polémica bloguística, em que dois antigos camaradas da Guiné (o Manuel Rebocho e o Morais da Silva) já estão a ser utilizados, de novo,  como armas de arremesso em guerras que não são as do nosso blogue e para eventuais ajustes de contas que não são da nossa conta.

Comecemos por esclarecer a decisão do editor de serviço, Eduardo Magalhães Ribeiro (EMR), ao publicar este poste. Diz ele que que o nosso camarada Manuel Rebocho, membro de longa data da nossa Tabanca Grande, "cedeu ao nosso blogue a publicação do seu livro 'Elites Militares e a Guerra de África', o que muito agradecemnos em nome dos editores e demais camaradas"... E logo a seguir escreve: "A publicação iniciar-se-á, no presente poste, com o currículo pessoal, os agradecimentos, a constituição do livro, nota do autor e prefácio" (...).

Acontece que eu não tenho conhecimento da mensagem do Manuel Rebocho (que pode ter sido enviada por mail apenas para a caixa do correio do EMR) e, portanto, não posso avaliar os termos e as comdições em que ele autoriza a (re)publicação do seu livro... Como eu sou, legalmente, o responsável do blogue, e esta alegada cedência de direitos de autor tem implicações legais, tenho que esclarecer algumas questões prévias: a) o detentor dos direitos de publicação não é (ou não é apenas) o Manuel Godinho Rebocho: b) o livro foi publicado pela Editora Roma, que tem direitos legais sobre a obra; c) sem uma autorização expressa, por escrito, da Editora Roma, não podemos reproduzir, no nosso blogue, a obra que, de resto,  tem mais de 500 páginas (com anexos).

Por outro lado, por muita estima que eu tenha pelo camarada Manuel Rebocho (e meu confrade da academia) (como tenho por todos os membros deste blogue, meus camaradas da Guiné), não posso compromerter-me a publicar a obra na "íntegra"... Não faz sentido, por várias razões: a) o nosso blogue publica, de preferência, inéditos (o que não é o caso); b) o livro é um trabalho académico, resulta de uma tese de doutoramento em sociologia, a parte teórico-metodológica (Cap I, pp. 45-85) só pode interessar uma público mais restrito; c) Apenas o Cap III (A guerra de África e o desempenho das elites militares, pp. 220-375) tem mais directamente a ver com o 'core business' do nosso blogue; d) Tal não quer dizer que o Cap II (A formação base das elites militares, pp. 87-213) não seja importante para o debate oficiais QP/Milicianos; e) Quanto ao Cap IV (As elites militares no pós-marcelismo, pp. 375-440), é matéria que extravasa, em muito, o âmbito do nosso blogue; f) Por fim, e não menos, importante a publicação integral do livro "Elites Militares e a Guerra de África"  teria um efeito de "Caixa de Pandora": de futuro, ficaríamos comprometidos a reproduzir, no blogue, todos os livros de todos os nossos camaradas, escritores, o que não me parece razoável e, sobretudo, significaria a morte (já tantas vezes anunciada...) do nosso blogue que deve ser de todos e para todos...

O livro do nosso camarada Manuel Rebocho pode e deve merecer um lugar de destaque na literatura da guerra colonial, no domínio das obras de ensaio, de investigação académica ou outra.  Como aliás, já teve, na devida altura, na sessão de lançamento do livro. Eu próprio me comprometi a fazer uma recensão crítica do livro, prometida para as leituras de férias... Terei então a oportunidade, agora em Agosto,.  de usar excertos, mais extensos, da obra, em nosso poder, em suporte digital... A publicação, não das 500 páginas, mas de algumas das partes mais significativas da obra, terá que ser negociada e acordada  por mim, com o autor (e com o EDITOR!!!, uma vez que não se trata de uma edição de autor).

Falei com o EMR, também a caminho de férias, na Nazaré ("onde vai pôr ao sol o bacalhau"), procurando esclarecer alguns destes pontos... Ele próprio já me tinha tentado contactar, em vão, para me dar conta desta oferta, generosa, do nosso camarada,  e da sua iniciativa (dele, EMR), algo prematura, de "iniciar a publicação de uma obra", correndo (sem se dar conta) do risco de clara violação da lei sobre proprieddae intelectual. Fê-lo, como sempre, com a melhor das intenções de assegurar o pluralismo do blogue e de colmatar alguma falta de materiais nesta altura do ano...

Com votos de boa continuação de férias para os nossos leitores, colaboradores e editores. Cuidado com o stresse térmico! Luís Graça (Lourinhã, 1 de Agosto de 2010, 16h30).

Adenda (2 de Agosto de 2010, 17h):

O EMR acabou de telefonar da Nazaré (onde fazer 15 dias de férias) a explicar as circunstâncias em que se encontrou, em Évora, almoçou com ele e ele teve a gentileza de lhe oferecer um CD com o conteúdo do livro... Não terá posto quaisquer exigências ou pedido contrapartidas (, publicitárias ou outras): "Aqui tens o livro em suporte digital, utiliza-o como quiseres, no blogue"... O EMR agiu, de motu proprio, com a melhor das intenções, mas esquecendo que um livro  é um "produto comercial" e que o autor, quando edita um livro através de uma editora comercial (ou pulica um simples artigo numa publicação periódica, jornal ou revista) , "vende ou cede os seus direitos de autor"...

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Notas de M.R.:
Vd. postes relacionados desta série em:

A investigação desenvolvida e necessária para redigir a presente obra nunca seria possível sem que um elevado número de pessoas e instituições me tivessem concedido o seu apoio. Os dados estão dispersos, uns disponíveis em suporte de papel, outros constando apenas da memória de quem os viveu, deles ainda se recorda e se disponibilizou para os relatar. A todas estas pessoas e instituições, sem qualquer excepção, expresso o meu mais profundo agradecimento.

domingo, 20 de junho de 2010

Guiné 63/74 - P6621: Controvérsias (88): A ruptura do stock de capitães do QP e a milicianização da guerra (A. Teixeira / J. Manuel Matos Dinis / Mário Pinto / Manuel Rebocho)


Maia > Maio de 2007 > Três homens de Guileje (embora de épocas diferentes):  da esquerda para a direita, Nuno Rubim (Cor Art Ref), José Casimiro Carvalho e Abel dos Santos Quintas Quelhas. Nuno Rubim omandou duas das unidades que passaram por Guileje: a CCAÇ 726 (Out 1964/Jul 1966) e a CCAÇ 1424 (Jan 1966/Dez 1966). Ainda hoje é conhecido e reconhecido, pela população de Guileje (que vive em Mejo), como o Capitão Fula. Os outros dois camaradas são,  respectivamente, o ex-Fur Mil Op Esp e o ex-Cap Cav Mil, 1º Comandante da CCAV 8350, os Piratas de Guileje (1972/74).  Estes dois militares da CCAV 8350 foram entrevistados por Manuel Rebocho, no âmbito da elaboração da sua tese de doutoramento em sociologia pela Universidade de Évora, defendida em 2005 em provas públicas, sendo sua orientadora a Prof Doutora Maria José Stock e  o seu principal arguente o Prof Doutor Adriano Moreira.

Foto: © José Casimiro Carvalho (2007). Direitos reservados.


1. Comentários ao poste P6596 (*):

(i) A. Teixeirra (autor do blogue Herdeiro de Aécio), com data de 16 do corrente:

Os meus parabéns por este seu trabalho, Senhor Coronel.

É pena que,  à chegada ao fim do seu estudo, se tenham "perdido" os autores dos comentários que li neste blogue (**), ardentes defensores de teses contrárias às suas e que me pereceram baseados, numa maioria das vezes, em experiências pessoais pontuais,  quando não de "ter ouvido dizer".

Competir-lhes-á a algum deles agora a refutação com igual detalhe e rigor do que aqui deixou explicado.


(ii) José Manuel Matos Dinis , com data de 17 do corrente:

Meu Caro A. Teixeira

Não ando perdido em teses contrárias às do Sr. Coronel. Aliás, basta ver a redução drástica do número de capitães do QP que comandaram companhias de combate, acentuado a partir de 1972, conforme os quadros expostos.Onde é que eles estavam nesse período?

Por outro lado, o trabalho em apreço é, à evidência, uma estatística, não um estudo. Porque um estudo configura a conjugação de dados, e a análise sistematizada dos resultados em diferentes objectivos (v.g.,  considerar a inversão da pirâmide, quando o nº. de oficiais superiores fosse superior ao de capitães, se os resultados da guerra seriam mais ou menos vantajosos, apesar de outros factores endógenos e exógenos).

O trabalho do Sr. Coronel é, isso sim, uma ferramenta para os estudos que venham a realizar-se, e tem mérito.

Abraços fraternos
JD

(iii) Entretanto, já a 15 do corrente, o Mário Pinto se tinha feito a seguinte sugestão (que eu aceitei):

Caro camarada: Ao publicares o estudo do Coronel de Artilharia Carlos Morais e Silva, em resposta à tese defendida por Manuel Rebocho, na Universidade de Évora, e considerando a importância do tema em discussão e análise,  a meu ver terá de ser publicada a tese do Sarg Mor Pára-quedista Manuel Rebocho.

Embora já tenham sido citadas e sublinhadas inicialmente as passagens mais marcantes da tese (***), as mesmas ficam isoladas do seu principal sentido, por isso a meu ver, necessita do seu complemento para melhor análise.

Um abraço
Mário Pinto.

3. Comentário de L. G.:

O nosso blogue faz questão de dizer, alto e bom som, que todos os camaradas da Guiné, homens de boa fé e de boa vontade, têm o mesmo direito de escrever neste blogue, dentro das regras do jogo que estão definidas. Não compete aos editores defender opiniões ou posições particulares, identificadas com A, B, ou C. O papel dos editores é apenas o de facilitar a livre troca de informação e conhecimento entre os membros do blogue, e garantir a equidade no acesso à edição de postes.

Mais concretamente, as opiniões defendidas no blogue tanto pelo Cor Art Ref Morais da Silva (a ruptura do stock de capitães do QP em 1972) como pelo Sarg  Mor Pára Ref Manuel Rebocho (a milicianização da guerra colonial) podem e devem ser livre,  responsável e serenamente apresentadas e discutidas no nosso blogue. Mas não peçam aos editores, enquanto tal, que tomem partido.

O Manuel Rebocho é membro do blogue. O Morais da Silva não o é, porque nunca até manifestou interesse ou desejo em sê-lo,, embora eu já o tenha convidado. Isso em nada prejudica ou beneficia a nossa atitude para com estes dois camaradas que, de resto, conheceram o TO da Guiné e, além do mais, são pessoas com formação académica, de nível superior.

O Manuel Rebocho publicou, em livro, no ano passado a sua tese de doutoramento em sociologia pela Universidade de Évora (em 2005): A Formação das Elites Militares em Portugal de 1900 a 1975.  Prometi, em tempos, fazer a respectiva recensão bibliográfica, o que ainda não fiz por manifesta falta de tempo. O livro (com um título mais comercial, Elites Militares e a Guerra de África) está lido, pronto para a segunda leitura, mais atenta e crítica. O meu texto, possivelmente, só irá aparecer em Agosto.  Do livro, no entanto, já aqui se falou.  Temos, inclusive, no You Tube dois vídeos com excertos de intervenções públicas do autor (****).

Convirá deste já esclarecer que a famosa tese da "milicianização da guerra colonial" (em especial na Guiné) desenvolvida por Manuel Rebocho é apenas um aspecto lateral da sua tese de doutoramento. Em boa verdade, ocupa menos de meia dúzia páginas do seu trabalho de investigação. Para conhecimentos dos leitores que não leram o livro, aqui fica um pequeno excerto. Não poderemos reproduzir mais páginas, porquanto se trata de uma publicação, e como tal sujeita à legislação em vigor sobre direitos de autor...  LG

4. Excerto, com a devida vénia, do livro de Manuel Godinho Rebocho – Elites Militares e a Guerra de África. Lisboa: Roma Editora, 2009 (Guerra Colonial, 8), pp. 369-374.

(...) 3.3. A Milicianização da Guerra

Da conjugação dos elementos constantes no livro do Estado-Maior do Exército (EME, 2002), com os elementos constantes nos processos sobre as histórias das unidades que estiveram em África, existentes no AHM [Arquivo Histórico Militar], pode concluir-se que das 102 Companhias de Quadrícula, que estavam em Sector na Guiné, em Janeiro de 1974, apenas 11 tiveram algum comando de Oficiais oriundos da Academia Militar, mas só durante nove meses, em média. Durante o restante tempo, em que permaneceram em sector, tanto estas Companhias como todas as outras, foram comandadas por Oficiais milicianos.

Todavia, e não obstante esta factualidade, neste mesmo período existiam nas patentes de combate (Capitães, Tenentes e Alferes), 880 Oficiais das Armas Combatentes (Infantaria, Artilharia e Cavalaria) originários da Academia Militar, entre os quais 759 Capitães.

Obtida esta verificação, procurei apreciar o desempenho de algumas Companhias, cujo comando foi exercido por Oficiais milicianos, que estiveram estacionadas no Sul da Guiné, mantendo assim semelhanças ambientais com as outras unidades de quadrícula e especiais já estudadas. Com este objectivo recorri à consulta dos respectivos processos históricos e à entrevista de Oficiais milicianos envolvidos. Quando as circunstâncias o permitiram e fui para tal convidado, compareci às comemorações que estas unidades realizam, por norma anualmente. Foi o caso da Companhia de Cavalaria nº 8350/72, mobilizada pelo Regimento de Cavalaria nº 3 em Estremoz, a qual ficou para a história militar como a unidade que personalizou o abandono de Guileje e o drama de Gadamael, no extremo sul da Guiné, nos meses de Maio e Junho de 1973.

Das longas horas de gravação que efectuei com diversos elementos desta unidade, particularmente com o seu Comandante [, Capitão Miliciano de Artilharia Abel dos Santos Quelhas Quintas, então com 32 anos de idade], conjugadas com o meu próprio conhecimento dos factos, dos procedimentos e das situações, foi possível descrever o desempenho desta ‘unidade de milicianos’ nos seguintes termos. (pp. 369-370)

3.3.1 – A Companhia de Cavalaria nº 8350/72 (…)  [pp. 370-372]

3.3.2 – A A 1ª Companhia do Batalhão de Artilharia nº 6521/72 (…)  [pp. 372-373]

3.3.3 – A 3ª Companhia do Batalhão de Caçadores nº 4514/72 (…)  [pp. 373-374].


(...) As palavras que me escreveu [, em 13 de Julho de 2005,] o cidadão António Augusto Soeiro Delgadinho [, ex-Alf Mil, 3ª Companhia do BCAÇ 4514/72] sugerem uma pergunta e desde logo uma resposta: qual a diferença entre os Oficiais do QP e os Oficiais Milicianos ? Os valores que individualmente detinham, e a estabilidade no emprego. Nada mais. (p.374).

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Notas de L.G.:

(*) Vd. poste de 15 de Junho de 2010 >  Guiné 63/74 - P6596: Estudos (1): Guerra de África - O QP e o Comando das Companhias de Combate (António Carlos Morais da Silva, Cor Art Ref) (VI e última parte)

(**) Vd. poste de 27 de Abril de 2010  > Guiné 63/74 - P6261: Controvérsias (70): Os peões das Nicas (Mário G. R. Pinto)

(***) Vd. outros postes:

28 de Novembro de 2009 > Guiné 63/74 - P5367: Controvérsias (57): Os Oficiais do Quadro Permanente Não Fugiram à Guerra (Carlos Silva, CCAÇ 2548/BCAÇ 2879, Farim, 1969/71)