
Queridos amigos,
Aparece finalmente uma coletânea de depoimentos dos milicianos que intervieram entre 1973 e 1974, em convergência com os oficiais do quadro permanente, na formação e atividade do MFA da Guiné, são depoimentos que em alguns casos forçosamente se repetem mas há em muitos deles a singularidade do testemunho, um olhar lúcido sobre a evolução da guerra, a participação nas conversações com os quadros do PAIGC, muitos deles dão conta do anacronismo das pretensões de Spínola fazer um referendum na Guiné quando já houvera o reconhecimento internacional para um Estado soberano que terá a liderança do PAIGC. Esta obra, que se saúda pela pertinência dos testemunhos, tem o poder de complementar um acervo de depoimentos e análises do MFA da Guiné, em que constam nomes como Sales Golias, Duran Clemente, Carlos de Matos Gomes e António Duarte Silva.
Um abraço do
Mário
Os milicianos no MFA da Guiné (1)
Mário Beja Santos
Muito se tem escrito sobre a formação e atividade do MFA da Guiné, intervenientes como Sales Golias, Duran Clemente, Carlos de Matos Gomes, investigadores como António Duarte Silva, são algumas das figuras mais salientes desse fenómeno original de um movimento altamente sigiloso formado em 1973 e que ganhou vida própria. É facto que a presença dos milicianos não é descurada da narrativa, aparece sempre a figura do capitão José Manuel Barroso, mas quanto à competição do desempenho dos milicianos ainda não existia um conjunto organizado de depoimentos, e daí saudar-se esta obra coletiva intitulada "Guiné Os Oficiais Milicianos e o 25 de Abril", com doze testemunhos de participantes, e aonde não falta a lembrança daqueles que já partiram como José Aurélio Barros Moura, Luciano Avelãs Nunes, Jorge Cabral Ventura e Joel Hasse Ferreira, Âncora Editora, 2024.
O primeiro depoimento cabe a Álvaro Marques que dá ênfase à crise académica de 1969 e à incorporação nas Forças Armadas. Esteve em Mafra e em Santarém, aí conheceu Salgueiro Maia, é amnistiado em 1970, reincorporado em 1972, tem uma troca de palavras com Spínola, este convida-o para um jantar no Palácio, não esconde ao general que aquela guerra perdeu sentido, segue depois para Aldeia Formosa, recebe o convite do capitão José Manuel Barroso para vir para Bissau trabalhar no PIFAS, vai fazer parte do Núcleo de Luta Anticolonial, irão juntar-se, entre outros, Celso Cruzeiro, Barros Moura, Sacadura Botte, estes pretenderam ser advogados de Coutinho e Lima, que estava preso no Cumeré, a ira de Spínola não se fez esperar, Barros Moura foi despachado para S. Domingos; o núcleo alargou-se, vão assistir à criação do MFA em Portugal, o MFA da Guiné passa a ter estatuto próprio, incluindo o projeto de desencadear o golpe de Estado, caso falhasse o de Lisboa.
Os milicianos terão desempenho na criação do MAPOS, um movimento para a paz que em 1 de julho aprovou uma moção onde se repudiava qualquer solução local e unilateral que não fosse aceite pelo Governo central em Portugal, exigindo que fossem imediatamente reatadas as negociações com o PAIGC e, ponto curioso, “Apelar para que os militares portugueses encarem a sua presença atual e estrutura na Guiné como uma forma de prestar a sua cooperação desinteressada ao povo da Guiné, assim contribuindo para o pagamento da dívida histórica criada pelo colonialismo português.” Álvaro Marques refere o seu trabalho na publicação Voz da Guiné.
O segundo depoimento pertence a Amaro Jorge, que foi alferes miliciano no Batalhão de Intendência de Bissau, também esteve ligado à crise académica de 1969, pertenceu aos Serviços Auxiliares, assim chega à Intendência de Bissau, colocado na chefia da Secção de Reabastecimentos, dá-nos conta da delicadeza do que era organizar a listagem de bens, combustíveis e outros, havia sempre comida a estragar-se ou a desaparecer. Foi destacado da Intendência para o Palácio do Governo, para adjunto do Governador, tendo ficado com os assuntos do pessoal e das relações de trabalho. Regressou a Portugal em 1 de setembro.
O terceiro testemunho vem de Canhoto Antunes, foi capitão miliciano, este em Madina Mandinga, Nema e Empada. Estagiou na Guiné integrado na CAOP 2 (Gabu), voltou a Mafra, forma a CCAÇ 4944, conta por onde andou, a atividade operacional, incluindo em 26 de maio de 1974 que houve 10 feridos numa emboscada. Chegou a Empada em 4 de junho, estabelecem-se contactos com o PAIGC. Regressa a Lisboa em 28 de setembro, em plena manifestação da “maioria silenciosa”, o que os obrigou a vários stops nas estradas até casa, até pensou que saíra de uma guerra para entrar noutra.
O quarto testemunho pertence a Celso Cruzeiro, da chefia do serviço de Justiça do Quartel-General, redator do Voz da Guiné. Chamo a atenção para o reconhecimento que os jovens capitães cedo fizeram do papel desempenhado pelos milicianos, eles contribuíram para melhor compreender a guerra como fenómeno dependente dos interesses do poder económico e do sistema de influência geopolítica. Salienta a importância dos encontros na Guiné em 1973 entre os jovens oficiais do quadro permanente e o conjunto dos oficiais milicianos ali presentes, ao longo dos primeiros meses de 1974 foram-se estreitando os laços. Recorda o abaixo-assinado lançado no dia 28 de abril de 1974 e dirigido ao Presidente da Junta de Salvação Nacional, solicitando um cessar-fogo imediato e conversações prontas com o PAIGC; fará um historial das etapas subsequentes, as conversas havidas entre Fabião e Spínola, a importância dos Movimento para a Paz, à institucionalização do MFA da Guiné, a ira de Spínola que convocou para Lisboa vários oficiais do quadro permanente e milicianos e recorda, em jeito de conclusão, que a participação dos milicianos tinha a dupla preocupação de colaborar com o MFA no processo de descolonização da Guiné e, por outro lado, fornecer uma base mínima de politização ao contingente dos soldados portugueses. Não deixa de lamentar como o novo país independente vestiu rapidamente o manto dramático da tragédia em que permanece.
Gadamael, maio de 1974. A primeira visita do PAIGC à tabanca e aquartelamento de Gadamael: Em primeiro plano, ao centro, o Comandante do COP5 (Cap Ten Fuzo Patrício); do seu lado direito está o comissário político do PAIGC, de cigarro russo na boca. Imagem retirada do nosso blogue
Pirada, primeiros contactos com o PAIGC, junto à fronteira do Senegal com o fim de combinar a "passagem de testemunho", dirigido pelo Comandante Jorge Matias, do BCAV 8323. Fotografia de António Rodrigues, com a devida vénia
China, Amílcar Cabral e o PAIGC: um namoro em três tempos Delegação do MPLA e do PAIGC na China, em Agosto de 1960, a convite do Comité Chinês de Solidariedade com África e Ásia. Imagem da Associação Tchiweka de Documentação
(continua)
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Nota do editor
Último post da série de 13 de junho de 2025 > Guiné 61/74 - P26916: Notas de leitura (1808): Lembranças do que foi o Museu da Guiné Portuguesa (Mário Beja Santos)