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segunda-feira, 16 de junho de 2025

Guiné 61/74 - P26925: Notas de leitura (1809): Guiné - Os Oficiais Milicianos e o 25 de Abril; Âncora Editora, 2024 (1) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 30 de Maio de 2024:

Queridos amigos,
Aparece finalmente uma coletânea de depoimentos dos milicianos que intervieram entre 1973 e 1974, em convergência com os oficiais do quadro permanente, na formação e atividade do MFA da Guiné, são depoimentos que em alguns casos forçosamente se repetem mas há em muitos deles a singularidade do testemunho, um olhar lúcido sobre a evolução da guerra, a participação nas conversações com os quadros do PAIGC, muitos deles dão conta do anacronismo das pretensões de Spínola fazer um referendum na Guiné quando já houvera o reconhecimento internacional para um Estado soberano que terá a liderança do PAIGC. Esta obra, que se saúda pela pertinência dos testemunhos, tem o poder de complementar um acervo de depoimentos e análises do MFA da Guiné, em que constam nomes como Sales Golias, Duran Clemente, Carlos de Matos Gomes e António Duarte Silva.

Um abraço do
Mário



Os milicianos no MFA da Guiné (1)

Mário Beja Santos


Muito se tem escrito sobre a formação e atividade do MFA da Guiné, intervenientes como Sales Golias, Duran Clemente, Carlos de Matos Gomes, investigadores como António Duarte Silva, são algumas das figuras mais salientes desse fenómeno original de um movimento altamente sigiloso formado em 1973 e que ganhou vida própria. É facto que a presença dos milicianos não é descurada da narrativa, aparece sempre a figura do capitão José Manuel Barroso, mas quanto à competição do desempenho dos milicianos ainda não existia um conjunto organizado de depoimentos, e daí saudar-se esta obra coletiva intitulada "Guiné Os Oficiais Milicianos e o 25 de Abril", com doze testemunhos de participantes, e aonde não falta a lembrança daqueles que já partiram como José Aurélio Barros Moura, Luciano Avelãs Nunes, Jorge Cabral Ventura e Joel Hasse Ferreira, Âncora Editora, 2024.

O primeiro depoimento cabe a Álvaro Marques que dá ênfase à crise académica de 1969 e à incorporação nas Forças Armadas. Esteve em Mafra e em Santarém, aí conheceu Salgueiro Maia, é amnistiado em 1970, reincorporado em 1972, tem uma troca de palavras com Spínola, este convida-o para um jantar no Palácio, não esconde ao general que aquela guerra perdeu sentido, segue depois para Aldeia Formosa, recebe o convite do capitão José Manuel Barroso para vir para Bissau trabalhar no PIFAS, vai fazer parte do Núcleo de Luta Anticolonial, irão juntar-se, entre outros, Celso Cruzeiro, Barros Moura, Sacadura Botte, estes pretenderam ser advogados de Coutinho e Lima, que estava preso no Cumeré, a ira de Spínola não se fez esperar, Barros Moura foi despachado para S. Domingos; o núcleo alargou-se, vão assistir à criação do MFA em Portugal, o MFA da Guiné passa a ter estatuto próprio, incluindo o projeto de desencadear o golpe de Estado, caso falhasse o de Lisboa.

Os milicianos terão desempenho na criação do MAPOS, um movimento para a paz que em 1 de julho aprovou uma moção onde se repudiava qualquer solução local e unilateral que não fosse aceite pelo Governo central em Portugal, exigindo que fossem imediatamente reatadas as negociações com o PAIGC e, ponto curioso, “Apelar para que os militares portugueses encarem a sua presença atual e estrutura na Guiné como uma forma de prestar a sua cooperação desinteressada ao povo da Guiné, assim contribuindo para o pagamento da dívida histórica criada pelo colonialismo português.” Álvaro Marques refere o seu trabalho na publicação Voz da Guiné.

O segundo depoimento pertence a Amaro Jorge, que foi alferes miliciano no Batalhão de Intendência de Bissau, também esteve ligado à crise académica de 1969, pertenceu aos Serviços Auxiliares, assim chega à Intendência de Bissau, colocado na chefia da Secção de Reabastecimentos, dá-nos conta da delicadeza do que era organizar a listagem de bens, combustíveis e outros, havia sempre comida a estragar-se ou a desaparecer. Foi destacado da Intendência para o Palácio do Governo, para adjunto do Governador, tendo ficado com os assuntos do pessoal e das relações de trabalho. Regressou a Portugal em 1 de setembro.

O terceiro testemunho vem de Canhoto Antunes, foi capitão miliciano, este em Madina Mandinga, Nema e Empada. Estagiou na Guiné integrado na CAOP 2 (Gabu), voltou a Mafra, forma a CCAÇ 4944, conta por onde andou, a atividade operacional, incluindo em 26 de maio de 1974 que houve 10 feridos numa emboscada. Chegou a Empada em 4 de junho, estabelecem-se contactos com o PAIGC. Regressa a Lisboa em 28 de setembro, em plena manifestação da “maioria silenciosa”, o que os obrigou a vários stops nas estradas até casa, até pensou que saíra de uma guerra para entrar noutra.

O quarto testemunho pertence a Celso Cruzeiro, da chefia do serviço de Justiça do Quartel-General, redator do Voz da Guiné. Chamo a atenção para o reconhecimento que os jovens capitães cedo fizeram do papel desempenhado pelos milicianos, eles contribuíram para melhor compreender a guerra como fenómeno dependente dos interesses do poder económico e do sistema de influência geopolítica. Salienta a importância dos encontros na Guiné em 1973 entre os jovens oficiais do quadro permanente e o conjunto dos oficiais milicianos ali presentes, ao longo dos primeiros meses de 1974 foram-se estreitando os laços. Recorda o abaixo-assinado lançado no dia 28 de abril de 1974 e dirigido ao Presidente da Junta de Salvação Nacional, solicitando um cessar-fogo imediato e conversações prontas com o PAIGC; fará um historial das etapas subsequentes, as conversas havidas entre Fabião e Spínola, a importância dos Movimento para a Paz, à institucionalização do MFA da Guiné, a ira de Spínola que convocou para Lisboa vários oficiais do quadro permanente e milicianos e recorda, em jeito de conclusão, que a participação dos milicianos tinha a dupla preocupação de colaborar com o MFA no processo de descolonização da Guiné e, por outro lado, fornecer uma base mínima de politização ao contingente dos soldados portugueses. Não deixa de lamentar como o novo país independente vestiu rapidamente o manto dramático da tragédia em que permanece.
Gadamael, maio de 1974. A primeira visita do PAIGC à tabanca e aquartelamento de Gadamael: Em primeiro plano, ao centro, o Comandante do COP5 (Cap Ten Fuzo Patrício); do seu lado direito está o comissário político do PAIGC, de cigarro russo na boca. Imagem retirada do nosso blogue
Pirada, primeiros contactos com o PAIGC, junto à fronteira do Senegal com o fim de combinar a "passagem de testemunho", dirigido pelo Comandante Jorge Matias, do BCAV 8323. Fotografia de António Rodrigues, com a devida vénia
China, Amílcar Cabral e o PAIGC: um namoro em três tempos Delegação do MPLA e do PAIGC na China, em Agosto de 1960, a convite do Comité Chinês de Solidariedade com África e Ásia. Imagem da Associação Tchiweka de Documentação

(continua)

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Nota do editor

Último post da série de 13 de junho de 2025 > Guiné 61/74 - P26916: Notas de leitura (1808): Lembranças do que foi o Museu da Guiné Portuguesa (Mário Beja Santos)

sexta-feira, 9 de maio de 2025

Guiné 61/74 - P26783: In Memoriam (548): Recordar o meu amigo Carlos de Matos Gomes (1946-2025), o escritor Carlos Vale Ferraz (Mário Beja Santos)

Carlos de Matos Gomes (1946-2025), escritor Carlos Vale Ferraz


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 6 de Maio de 2025:

Queridos amigos,
Foi na apresentação do mais recente livro de José Brás, na Casa do Alentejo, que estive presencialmente com Carlos de Matos Gomes, já ele denotava um visível abatimento. Foi uma estima de cerca de um quarto de século, tínhamos sempre histórias para contar, livros para a permuta, momentos houve nos nossos diálogos em que eu pressentia nas suas perguntas a procura de respostas para o contexto das suas obras. Eu confessava-lhe a minha incredulidade, nunca percebi como é que ele arranjava tempo para tanta escrita, creio que a invasão da Ucrânia lhe deu ensejo para artigos quase diários que ele enviava para amigos e para a imprensa, e escreveu mesmo recentemente uma obra só com as suas reflexões políticas. Pertenceu ao núcleo fundador do MFA/Guiné, tal como Sales Golias e Duran Clemente. Não hesito em dizer que Nó Cego é referência máxima da literatura da guerra colonial, mas a sua autobiografia, Geração D, é um depoimento enriquecedor dos valores em que ele acreditava como cidadão e homem independente da esquerda.

Um abraço do
Mário



Recordar o meu amigo Carlos de Matos Gomes, o escritor Carlos Vale Ferraz

Mário Beja Santos

Carlos de Matos Gomes não ficou insensível às laudes que teci ao seu romance Nó Cego, teve a sua 1.ª edição em 1983. Tendo eu procurado compulsar o que de mais significativo se escreveu na literatura da guerra colonial, dei este romance como obra-prima absoluta, e mantenho sem hesitação tal qualificação. 

A nossa aproximação aconteceu quando um dia, num alfarrabista de Campo de Ourique, de saudosa memória, encontrei uma dúzia de exemplares de outra obra sua, Soldadó, uma narrativa humorística sobre um herói fruto do acaso, obra injustamente esquecida, telefonei-lhe para lhe anunciar a oferta, marcámos encontro à hora de almoço. E assim preparámos mais de um quarto de século de encontros amistosos, trocas de referências, cumplicidades. E dez dias antes do seu passamento telefonei-lhe para lhe pedir ajuda quanto a detalhes daquela operação a Cumbamori, onde ele esteve numa das frentes da operação do Batalhão dos Comandos Africanos. Disse-me que ia fazer tratamentos na Fundação Champalimaud, “mais uma batalha, a ver o que acontece, depois voltaremos à fala”

Não voltámos, fui-me despedir dele no velório, na Capela da Bemposta, agradeci-lhe tudo quanto me ensinou, por exemplo, o livro que escreveu com Aniceto Afonso, Guerra Colonial, Porto Editora, 2020, é um monumento de precisão e rigor, demorará muitos anos a ser reatualizado e enriquecido. E a sua obra autobiográfica Geração D, também da Porto Editora, 2024, é de uma sinceridade tocante, um poderoso testamento político.

Mas há um livro de 2017, A Última Viúva de África, que continuo a reter pelo deslumbramento da escrita, em sua homenagem aqui deixo alguns desses parágrafos que selecionei como eloquentes. Logo a dedicatória:

Aos que se interrogam.
Aos que vivem e deixam um rasto.
Aos que procuram as nascentes dos rios.
Aos que sofrem a inevitável derrota que sempre sucede quando um tirano esgota a esperança do seu povo e manda os seus soldados combater numa terra de que não é rei.
Aos meus netos e a todos os netos, para que tenham um futuro.


O fulcro da história é uma tal Madame X, o nome de código de uma informadora residente em Leopoldville, onde os movimentos independentistas angolanos, em particular a UPA/FNLA, tinham a sua base de onde recebiam o apoio político de Mobutu. No romance ela é Alice Oliveira, nascida e criada no Minho, emigrou para o continente africano, tornar-se-á, nesses tempos turbulentos do início da República do Congo em que havia mercenários que combatiam a favor da separação do Catanga, tornou-se numa informadora exímia, várias polícias secretas ficarão a dever favores, acabou por intervir nos acontecimentos de Angola, em 1975, e no fim do Apartheid na África do Sul, já nos anos 1990. Vai aparecer como amiga de Jean Scrame, um dos míticos comandantes das tropas mercenárias. Alice Oliveira, que se considerava a última viúva de África, iria morrer na Nova Zelândia. O filho, que ela viera entregar ainda bebé aos avós, em Portugal, pretendeu trazer o seu corpo lá para o Minho, depositá-lo numa igreja, consagrada como o Panteão. E assim começa a história.

Uma empresa cinematográfica vai centrar-se num filão promissor, parece um bom argumento, lá num ponto do Minho um milionário quer prestar uma homenagem à mãe, transferi-la de um outro continente para uma capela da quinta, uma equipa desloca-se, iremos ouvir falar de Miguel Barros, será uma figura central, cabe-lhe ilustrar acontecimentos que envolvem a Madame X e Jean Scrame, comandante dos Leopardos.

Ao chegar ao acampamento de Jean Scrame, caía o dia, Miguel Barros deparou-se com um inesperado cenário de dezenas, centenas de fogueiras. 

“Miguel Barros viu reunidos na messe, numa bacanal à volta de uma mesa coberta por uma toalha de bordados de Bruxelas, com travessas de loiças de Limoges cheias de restos de antílopes assados, de javalis, de macacos, garrafas de champanhe, copos de cristal da Bohemia, trazidos nos saques às casas abandonadas pelos colonos. Uma mulher grande e loira, que usava cremes e pós para a maquilhagem como se fossem estuque para cobrir fendas nas paredes, servia pedaços de carne abanando as mamas espremidas num vestido de seda costurado para o corpo de uma colona magra fugida da independência. Os homens gritavam pelo nome dela: ‘Ivette!’. Ela levantava a saia para deixar ver parte das coxas. Bebiam pelo gargalo garrafas do caríssimo champanhe Dom Pérignon, da Moët et Chandon, abandonado nas fazendas e nas lojas, a aguardar os dias de festas que nunca mais alegrariam. Só um deles, a um canto, de tronco nu, de cabeça rapada à navalha, com uma cruz de ferro pendurada por uma fita ao pescoço, bebia cerveja e berrava em alemão. O mercenário viera das estepes geladas para as savanas em brasa de África continuar a matança de comunistas e eliminação das raças inferiores.”

Vamos agora ver Miguel Barros no Victoria Hotel, em Stanleyville:

“Do Tennis Club de Stanleyville e do Cercle Hippique restavam os courts e as pistas cobertas de vegetação. No antigo hospital para os europeus estavam agora negros sentados à porta, à espera, eternamente à espera, afastando moscas e entrelaçando as cabeleiras. Das paredes dos edifícios iam desaparecendo os anúncios de agências de viagens da Wagons Lit e do American Express, de oficinas de mecânica e de stands de automóveis, de empresas de construção civil, de médicos e dentistas que já não davam consultas. As placas, tão esburacadas de tiros como as estradas pelas falhas de alcatrão continuavam a indicar as direções de Leopoldville, Elizabethville, Kampala, Goma.

Dos cerca de 5 mil europeus que residiam em Stanleyville e arredores antes da independência, restavam menos de metade. Quando desembarquei em Stanleyville corriam boatos entre os negros assimilados e os europeus que ali permaneciam da tomada de zonas importantes da Província Oriental pelos Simbas do Exército Revolucionário de Pierre Mulele. Em agosto, os Simbas capturaram Stanleyville – uma guarda avançada de apenas quarente negros drogados, descalços e armados de catanas, liderados por xamãs cobertos de peles de animais, com guizos de cobra nos pulsos e nos tornozelos, mascarados com cabeças de macacos. Em poucas semanas, cerca de metade do Congo caíra sobre o controlo dos Simbas. As portas do inferno tinham sido abertas. O monumento a Lumumba na praça central de Stanleyville transformou-se num altar onde Nicolas Olenga e os seus lugares-tenentes sacrificaram o que restava da antiga elite mestiça e europeizada de Stanleyville, os que se designavam como évolués. Ali foram levados, nus, os políticos, os jornalistas, os professores acusados amigos dos brancos, de traidores, e esventrados de pé, de mãos amarradas, retirados os fígados com eles vivos e dados a comer aos pigmeus Simbas.”


Mais tarde, deu-se o contra-ataque, vieram os paraquedistas, entraram depois em Stanleyville os Terríveis, comandados por Jean Scrame e mercenários brancos. Saquearam as povoações vizinhas, incendiando-as com os habitantes no interior das casas.

” Durante vários dias continuaram os tiros por toda a parte, principalmente para os lados do rio, onde eram executados os Simbas que não conseguiram escapar e os que não os haviam apoiado.” 


A lei do mais forte passara para Mobutu.

Obviamente que há mais trama neste romance que todo o horror que se viveu naquele período no Congo e posteriormente. A longuíssima carta que Miguel de Barros manda a Inácia Luz ilustra perfeitamente o sucesso cinematográfico com base nesta Madame X, Alice Oliveira, uma espia talentosíssima, a mãe dos mercenários, a guerreira que comanda os mortos, que estabelecera redes de contactos que informou as autoridades portuguesas do que iria acontecer no Norte de Angola, e que torna deslumbrante toda a trama do Romance, ela é a viúva branca de um paraíso perdido com a descolonização.

Ocorreu-me esta obra de Carlos Vale Ferraz, que recebeu o prémio literário Fernando Namora 2018 para lembrar o escritor que legou a mais bela obra da literatura da guerra colonial e uma referência na investigação da História contemporânea de Portugal que me honrou com a sua amizade. E assim me curvo respeitosamente em sua memória.

Junto como apêndice um texto que o Carlos escreveu no blogue A Viagem dos Argonautas sobre este seu romance:

A descolonização é um absurdo.

O romance desenvolve a reflexão do absurdo como atributo inerente do fenómeno que é habitualmente designado por “movimento descolonizador” de África feita por várias personagens. No início do romance, o narrador, um jovem português, estudante de filosofia na universidade de Lovaina, na Bélgica, fotógrafo por desejo de aventura, confrontado com as notícias e as reportagens dos tumultos que se seguiram à independência do Congo Belga, em 1960, considera como primeira impressão que os europeus andavam por África a extrair o que necessitavam para viverem melhor nas suas terras de origem, aonde regressariam após a campanha, como os pescadores de bacalhau que cumpriam temporadas na Terra Nova. Ou cumpriam penas de degredo longe das suas pátrias. O narrador apoiava as independências porque considerava um anacronismo a exploração direta de África pelos europeus: 

“Para mim, descolonizar constituía uma prova de inteligência. Não apoiava as independências das colónias por ser um direito dos povos colonizados. Não me converti ao anticolonialismo por ideologia, nem por moral, mas por pragmatismo. Quis conhecer os mercenários do Congo e Jean Scrame, em particular, para perceber porque lutava depois de administrar uma propriedade da qual já havia tirado o proveito que lhe permitia estabelecer-se noutro país, ou regressar à Bélgica.”

O narrador comete aqui a mais vulgar das confusões: refere-se, não à colonização, mas ao colonialismo. É de colonialismo que fala. O Congo Belga, como toda a África a sul do Sara, nunca foi colonizado, com exceção da Colónia do Cabo, onde os ingleses ensaiaram o que viria a ser o seu modelo de administração colonial (indirect rule). O Congo Belga (que começou por ser propriedade pessoal do rei dos belgas) foi sujeito ao fenómeno do colonialismo e o colonialismo foi um sistema de exercício violento de direitos de exploração de matérias-primas instituído e acordado na Conferência de Berlim, em 1885, entre potências europeias, para satisfazer as necessidades dos complexos industriais desenvolvidos com a energia da máquina a vapor. O colonialismo é um fruto da máquina a vapor e da revolução industrial.

Até à II Guerra Mundial foi indispensável as potências europeias assegurarem a exploração direta das matérias-primas, depois, passou a ser mais rentável delegar essa tarefa em agentes locais, as elites indígenas entretanto assimiladas e integradas na cultura e nos processos europeus. Mas houve, entre os europeus que foram para África executar tarefas de exploração direta, um grupo que, por razões diversas, assumiu aquelas terras como o seu destino final – que afirmaram ser a África, fosse o Congo, Angola, a Rodésia, Moçambique ou o Quénia, a sua pátria! Em Portugal utiliza-se o termo de “cafrealização” para designar esse processo, na Bélgica ele foi designado por “zairização”. O comandante de mercenários designado no romance como Jean Scrame e a portuguesa Alice Vieira, a última viúva de áfrica, pertencem a esse grupo. O narrador descobrirá, contudo, que nem eles – mesmo assumindo a sua nova identidade de africanos brancos – se opõem ao processo de independência das colónias, a um governo de negros, porque percebem que o sistema de administração e exploração delas se mantém, apenas mudaram os executores diretos, que passaram a ser títeres locais nomeados pelos brancos, europeus e americanos. O colonialismo manteve-se enquanto sistema de exploração de riquezas. O “Movimento Descolonizador” foi apenas uma mudança de tripulação num navio que continuou a realizar as mesmas viagens, transportando os mesmos produtos entre os mesmos portos.

Não existiu qualquer movimento descolonizador, que foi e é apenas uma designação utilizada para referir o movimento de transição da administração das colónias dos funcionários das potências europeias para uma elite de funcionários e políticos negros aculturados – ditos “assimilados” ou évolués, que, no essencial, replicam os métodos dos europeus e servem os seus interesses. Em termos políticos não existe qualquer descolonização. Não existe também qualquer libertação.

Mas não existe também descolonização em termos civilizacionais. Colonizar é a instalação de um grupo de uma dada sociedade no território de outra e implica troca de experiências, saberes, valores, relações comerciais e humanas, de forma mais ou menos pacífica ou mais ou menos violenta. Colonizar é sempre uma exportação de bens civilizacionais, da língua à religião. Entre o colonizador e o colonizado estabelece-se uma relação como a de uma gota de tinta que cai num copo de água. A gota de água dissolve-se e não é possível reconstituí-la, retirá-la da água onde se dissolveu. É por isso impossível reverter a colonização, retirar dos povos colonizados o essencial do que os colonizadores levaram e lhes inculcaram.

Nós, os portugueses devíamos conhecer bem a impossibilidade de descolonizar. Fomos colonizados pelos romanos e pelos árabes, mantemos fortes marcas dessa colonização – não fomos descolonizados até hoje. Colonizámos alguns pontos do mundo, e deixámos lá as nossas marcas, como os romanos e os árabes nos tinham deixado. O Brasil, Angola, Moçambique, a Guiné, Cabo Verde, São Tomé, não foram descolonizados, tornaram-se entidades políticas independentes, estados-nação com bandeira, hino, gravatas de seda ao pescoço dos hierarcas, número de ordem nas Nações Unidas e embaixadores que falam inglês. Tanto o discurso comum da “malvada descolonização”, como da “descolonização possível” são absurdos. O discurso da “entrega” é patológico, com origem na exacerbação de sentimentos que bloqueiam o raciocínio.

As antigas colónias europeias de África não se descolonizaram, não reverteram as instituições de governo introduzidas pelas potências coloniais, retomando as suas tradições do tempo antes da chegada dos colonizadores europeus. Pelo contrário, os dirigentes dos movimentos independentistas, do movimento descolonizador do pós II Guerra, foram particularmente violentos na aniquilação das autoridades tradicionais e dos costumes ancestrais – quase sempre com o aplauso dos antigos colonizadores e das suas instituições, com relevo para a ONU e as suas agências, que os elogiaram pela luta anti-tribalista, tomada como uma acção de modernidade.

O movimento descolonizador dos pós-II guerra é um gigantesco embuste. A descolonização de África foi, de facto, a adoção pelos africanos da “ordem” do colonialismo – constituição de estados-nação com os mesmos princípios dos estados-nação que instituíram o colonialismo, imposição dos seus sistemas políticos e jurídicos, das suas línguas, até dos seus deuses e, principalmente, das suas armas, do canhangulo à AK, do jipe ao Mirage. Não existiu qualquer libertação de África, a África política e a África dos povos estão sujeitas às mesmas regras e normas dos países que enviaram os seus exploradores ao continente africano no século XIX e que o dividiram em Berlim.

O facto de não ter existido nem descolonização, nem libertação de África não é nem bom nem mau – não existiu Mal, nem Bem, nem desastrosa descolonização, nem criminosa entrega, nem falsa libertação, houve sim uma realidade: a imposição por parte das antigas e novas potências coloniais de uma nova grelha de domínio de África, de uma grelha que facilita a relação e a exploração, pois quer uma quer outra se realizam segundo a regra dominante. O resto, o que subsiste da antiga África antes do colonialismo, das danças às mezinhas dos feiticeiros é folclore que serve de atração turística. Resta uma pergunta que Alice, A Última Viúva de África e Scrame, o último dos grandes comandantes de mercenários, colocam: Porque não podem e não puderam eles e os europeus manter-se em África como africanos brancos? Porque não pode ser a África uma pátria de brancos, como foram e são as Américas?

O romance ensaia uma resposta. A ficção é mais adequada a abordar questões difíceis que a análise política e histórica…
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Notas do editor

Vd. post de 13 de abril de 2025 > Guiné 61/74 - P26683: In Memoriam (542): Carlos Matos Gomes (1946-2025), membro do MFA no CTIG, cor cav 'cmd', ref, escritor e historiógrafo, e grande amigo da Tabanca Grande

Último post da série de9 de maio de 2025 > Guiné 61/74 - P26781: In Memoriam (547): Maria Rosa Exposto, ex-alf enf pqdt (Bragança, c. 1940 - Portalegre, 2021), pertencia ao 4º curso (1964) e passou pelo CTIG... Rosa, que descanses em paz!

sexta-feira, 18 de abril de 2025

Guiné 61/74 - P26698: In Memoriam (544): Carlos Matos Gomes (1946-2025): o último adeus, anteontem, no cemitério do Alto de São João ... O Hélder Sousa representou condignamente a Tabanca Grande.





Lisboa > 25 de abril de 2020 (?) >  Carlos Matos Gomes (1946-2025) e a filha Carla. Cortesia da página do Facebook do nosso camarada, que se despediu da Terra da Alegria no passado dia 16. A notícia da sua morte, dada pela sua filha, teve mais de 2,5 mil comentários e cerca de 500 partilhas.
 
Tinha 4,3 mil amigos no Facebook, 230 em comum. Era amigo do Facebook da Tabanca Grande, mas não integrava o blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné


1. Mensagem do Hélder Sousa, nosso colaborador permanente, provedor do blogue da Tabanca Grande:

Data - 17 abr 2025 18:07

Assunto -O funeral de Carlos Matos Gomes

Caros amigos

Na passada terça-feira foi indicado que o velório desse nosso camarada decorria das 19:00 às 23:00, salvo o erro.

Mas não fui lá, pois estive na tomada de posse dos elementos eleitos para os diversos Órgãos  da minha Ordem profissional, a OET (Ordem dos Engenheiros Técnicos), onde também preenchi um cargo.

Isso decorreu na Sala Macau da Fundação Oriente. Finda a cerimónia, seguiu-se um jantar.

No dia seguinte, tinha sido divulgado que as exéquias iriam ter lugar às 11:00, mas depois veio uma informação que seria a partir das 13:00, finda a qual o corpo seguiria para o Crematório do Cemitério do Alto de S. João.

Desloquei-me então para Lisboa e fui direto ao Cemitério, aguardando por lá, em conversas de circunstância com algumas pessoas presentes, a chegada do caixão, o que ainda demorou algum tempo e sob um tempo de chuviscos.

Foi formada uma guarda honra que disparou três salvas à entrada do caixão. Essas salvas foram de algum modo impressionantes dado o "teto baixo", o que fez ecoar fortemente na parada do Alto de S. João.

Da entrada ao Crematório é uma pequena distância, percorrida atrás da viatura.

Houve uma "encomendação" por intermédio de um oficial padre (não registei a sua patente mas creio que major). Finda a mesma, tomou a palavra o coronel Vasco Lourenço, fazendo o elogio fúnebre e exaltando as qualidades e o contributo que o coronel Matos Gomes deu para a Democracia e depois o Dr. João Soares, na qualidade de "civil", amigo pessoal, relembrando também peripécias vividas em comum.

No final cantou-se a "Grândola, Vila Morena" e depois o Hino Nacional.

Ao despedir-me da filha, disse que estava ali em meu nome e também em nome do Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné.

Boa "passagem" para vós.

Abraços, Hélder Sousa

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Nota do editor:

segunda-feira, 14 de abril de 2025

Guiné 61/74 - P26688: S(C)em Comentários (64): o blogue da Tabanca Grande, segundo Carlos Matos Gomes (1946-2025)


Carlos Matos Gomes (1946-2025)
Foto de José Morais
(com a devida vénia...)

1. Excerto do poste P26683 (*):


(...) Penso, sem qualquer lisonja, para a qual tenho espinha demasiado rígida e a boca demasiado dura, que este blogue é algo de extraordinário. Um daqueles casos que nos aquecem a esperança e nos incham a alma.

É extraordinário a vários títulos: pela ideia de reunir antigos combatentes num espaço democrático (o que quer dizer de livre expressão de cada um e de obrigatório respeito por todos e cada um dos outros), onde relatassem as suas experiências de há 30/40 anos, revivessem a sua grande aventura dos 20 anos, restabelecessem contactos, amizades e camaradagens, recordassem através da escrita e da imagem os lugares, os acontecimentos e as pessoas com quem partilharam os seus tempos da guerra, que servisse até de veículo de ajuda.

É extraordinário porque tem mantido o diálogo entre pessoas com diferentes visões da guerra e das situações num elevado nível de tolerância, mesmo quando o calor provoca reacções mais ásperas.

É extraordinário porque o colectivo do blogue conseguiu criar um "espírito de corpo" entre os tabanqueiros, que se reveem nas histórias, nos convívios que se vão multiplicando, nas acções que se desenvolvem, seja de solidariedade e ajuda ao povo da Guiné, seja a camaradas em dificuldades, seja ainda a familiares que procuram reconstituir as histórias de parentes seus na guerra.

O bloque e a Tabanca são um espaço de pureza e generosidade.

A pureza do blogue e dos seus tabanqueiros tem a ver com aquilo que é a sua matriz, a sua característica fundadora, o seu ADN: o blogue serve para relatar, contar, descrever, para transmitir emoções, para despejar pesos acumulados.

O blogue é a camaradagem, o que desaconselha grandes reflexões, análises e explicações. Deve continuar assim. É a sua força. (...) (**)
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Nota do editor:


(**) Último poste da série > 13 de abril de 2025 > Guiné 61/74 - P26682: S(C)em Comentários (63): Era o que faltava um miliciano, como o Rui Alexandrino Ferreira, com uma Torre e Espada! (Antº Rosinha)

Guiné 61/74 - P26684: In Memoriam (543): Carlos Matos Gomes (1946-2025): velório, dia 15, terça, a partir das 19h, na Capela da Academia Militar, funeral no Alto de São João, quarta, pelas 11h


Foto nº 1


Foto nº 2

~
Foto nº 3


Foto nº 4

Guiné-Bissau > Bissau > Fortaleza da Amura > 7 de Março de 2008 > Amura: um lugar repleto de história(s)

Fotos e legenda: © Luís Graça (2008). Todos os direitos reservados. [Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



Visita no âmbito do Simpósio Internacional de Guiledje (Bissau, 1 a 7 de Março de 2008), no último dia do evento. Na foto nº 1, o cor cav 'cmd' na situação de reforma, Carlos Matos Gomes (1945-2025), um homem do MFA da Guiné e um conhecido e talantoso autor de romances de guerra como Nó Cego, Soldadó ou Fala-me de África (que assina sob o pseudónimo literário de Carlos Vale Ferraz)... É também não menoso notável historiógrafo da guerra do ultramar / guerra colonial, coautor, juntamente com Aniceto Afonso, de diversas publicações.

 Na foto, por detrás do Matos Gomes, vê-se o edifício, em ruína, da antiga 2ª Rep do QG/CCFAG, a famosa Rep Apsico, onde trabalhou Otelo Saraiva de Carvalho e Ramalho Eanes... e que tutelava o popular PIFAS (Programa de Informação das Forças Armadas) que fazia concorrênmcia a não menos famosa "Maria Turra" (a Rádio Libertação, do PAIGC; que emitia a partir de Conacri).

Nas fotos nºs 2, 3 e 4 , vemos o Matos Gomes a servir de cicerone ao Paulo Santiago e a mim próprio. Entre os edifícios históricos, há o do antigo Com-Chefe (foto nº 4). Foi aí que um grupo de conspiradores entrou de rompante no gabinete do Com-Chefe, e deu voz de prisão ao General Bettencourt Rodrigues, na manhã de 26 de Aril de 1974, o chamado golpe de Estado do MFA na Guiné. Portanto, foi na Amura e não no palácio do Governador que tudo aconteceu...

Desse grupo de oficiais revoltosos faziam parte: ten-cor eng trms Mateus da Silva, ten cor eng trms Maia e Costa, maj 'comd' Raul Folques,  maj pqdt Mensurado, cap art  Simões da Silva, cap enf trms Sales Golias, cap 'cmd' Carlos Matos Gomes, cap 'cmd0 Batista da Silva, Cap 'cmd' graduado Zacarias Saiegh, cap ten Pessoa Brandão (Armada ) e cap mil José Manuel Barroso.

O Carlos Matos Gomes, na altura capitão do Batalhão de Comandos da Guiné (a par do maj Raul Folques e do cap grad Zacarias Saiegh) foi um dos protagonistas do 25 de Abril neste palco da história recente dos nossos dois países.. Voltaria lá, à Amura, 34 anos depois...

Hoje, na Amura, repousam os restos mortais de Amílcar Cabral e de outros "combatentes da liberdade da pátria", como Osvaldo Vieira, Domingos Ramos, Tina Silá, Pansau Na Isna, 'Nino' Vieira e Rui Djassi.
 

1. Mensagem da filha do nosso camarada, Carla Lickfold Matos Gomes (que tem mais informação sobre o pai, na sua página pessoal no Facebook):

Aos amigos que nos quiserem acompanhar nas despedidas do meu pai, algumas informações: 

  • O velório estará aberto ao público em geral, terça-feira, a partir das 19h e até às 23 na Capela da Academia Militar. 
  • As cerimónias fúnebres serão na quarta-feira pelas 11h, com missa de corpo presente, de onde partirá para o Cemitério do Alto de São João para ser cremado.
 
Grata a todos pelas vossas mensagens, bem sei do privilégio de ter tido este pai. Foi para mim uma honra acompanhá-lo na doença até esta fase final que encarou com a bravura, humor inteligente e força que lhe era tão característica até ao último minuto. Falámos de política até ao fim. Vamos ter muitas saudades dele.

Fonte: Página do Facebook de Carlos Matos Gomes, domingo, 13 de abril de 2025, 19:48

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Nota do editor:

Último poste da série > 13 de abril de 2025 > Guiné 61/74 - P26683: In Memoriam (542): Carlos Matos Gomes (1946-2025), membro do MFA no CTIG, cor cav 'cmd', ref, escritor e historiógrafo, e grande amigo da Tabanca Grande

domingo, 13 de abril de 2025

Guiné 61/74 - P26683: In Memoriam (542): Carlos Matos Gomes (1946-2025), membro do MFA no CTIG, cor cav 'cmd', ref, escritor e historiógrafo, e grande amigo da Tabanca Grande



Carlos Matos Gomes, cor cav 'cmd', ref; capitão de Abril; escritor, historiógrafo (Vila Nova da Barquinha, 1946 - Lisboa, 2025). Ia completar 79 anos em 24 de julho. Do seu CV militar destaque-se: fez part do curso de cadetes de 1963 na Academia Militar; oficial dos 'comandos', passou pelos 3 TO, com destaque para  Moçambique, onde participou na operação “Nó Górdio” (1970); esteve no CTIG  de julho de 1972 a fins de junho de 1974, participando em diversas operações com o Batalhão de Comandos da Guiné (por ex., a Op Ametista Real, 1973);  pertenceu à primeira Comissão Coordenadora do Movimento dos Capitães na Guiné; foi membro da Assembleia do MFA em 1975;


Guiné-Bissau > Bissau > 7 de Março de 2008 > Simpósito Internacionald e Guileje (Bussau,. 1-7 de março de 2008) > Visita à Fortaleza da Amura > Amura: um lugar repleto de história e de histórias... Visita no âmbito do Simpósio Internacional de Guileje, no último dia do evento. Na foto, o coronel de cavalaria do Exército Português, Carlos Matos Gomes, na situação de reforma, um homem do MFA da Guiné e um celebrado autor de romances de guerra como "Nó Cego", "Soldadó" ou "Fala-me de África" (que assina sob o pseudónimo literário de Carlos Vale Ferraz); a seu lado, o catalão Josep Sánchez Cervelló (n. 1958), professor universitário, em Tarragona, especialista em história sobre o 25 de Abril e a descolonização portuguesa...

Por detrás, o edifício, em ruína, da antiga 2ª Rep do Comando-Chefe, a famosa Rep Apsico, onde trabalhou Otelo Saraiva de Carvalho e Ramalho Eanes. Matos Gomes, na altura capitão dos comandos, foi um dos protagonistas do 25 de Abril neste palco da história... Recorde-se que a Amura é hoje o panteão nacional da Guiné-Bissau, onde repousam os restos mortais de Amílcar Cabral e de outros heróis da pátria guineense, como Osvaldo Vieira, Domingos Ramos, Tina Silá, Pansau Na Isna ou Rui Djassi.

Foto e legenda: © Luís Graça (2008). Todos os direitos reservados. [Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



1. O Paulo Santiago deu-me a desoladora notícia, esta manhã: morreu o Matos Gomes. E confirmei, de imediato,  na sua página do Facebook:
 
"A todos os amigos e seguidores do meu pai, Carlos Matos Gomes, é com profunda tristeza que informo que faleceu hoje, 13 de Abril, no Hospital Cuf Tejo. Partiu sereno e com músicas de Abril. Direi por aqui todos os pormenores sobre as cerimónias que se seguem. Grata a todos pelo carinho e admiração que tinham por ele."


2. Comentário do editor LG: 

Morreu o Matos Gomes, um amigo e camarada da Guiné que tinha na Tabanca Grande muitos e bons amigos. Fico desolado por mais esta perda da nossa comunidade de antigos combatentes. (*)

Já não o via há largos anos, mas também nunca fomos íntimos. Propus o seu nome, como participante, ao Pepito, organizador do Simpósio Internacional de Guileje (Bissau, 1-7 de março de 2008) (**). Viajámos juntos e estivemos juntos nesse evento. Estive também com ele nalgumas sessões de lançamentos de livros e conferências.

Não, não fazia parte da Tabanca Grande, pelas razões que ele próprio, em vida, apresentou. Nem eu agora, à revelia da sua vontade, vou "dar-lhe honras de Tabanca Grande"... Tem mais de 100 reeferências no nosso blogue.  Foi uma "espécie de marginal-secante", interagindo connosco sempre que entendia oportuno ou que nós o solicitávamos...

Era um espírito muito livre,  independente, rebelde, culto e crítico. E um combatente com uma grande folha de serviço. Capitão de Abril, escritor, historiógrafo, "influencer"...  Confesso que não o seguia no Facebook,  como de resto não sigo ninguém em especial.

Li, dele, para além das obras de  historiografia militar, dois livros que considero incontornáveis para quem quiser conhecer melhor a nossa geração a quem coube fazer a(s) guerra(s) da descolonização, mas também a paz e o 25 de  Abril: "Nó Cego" (1983), romance, escrito sob o pseudónimo Carlos Vale Ferraz  e "Geração D: da Ditadura à Democracia" (2024).  O "Nó Cego" é já uma clássico da literatura portuguesa. E a "Geração D" também a li de um fôlego...

Deixemos, porém, aos nossos leitores, e sobretudo aos camaradas que o conheceram melhor do que eu, a honra (e o dever...) de o lembrar aqui.

Como fundador, administrador e editor deste blogue (que já tem mais de 20 anos)), recordo dois apontamentos da autoria do Carlos Matos Gomes que sempre nos deu força e motivação para continuar a manter vivo, ativo, proativo, produtivo e saudável o nosso blogue. Temos para com ele mais esta dívida, a de gratidão.


(i) Mensagem enviada aos editor Luís Graça e Carlos Vinhal:

Data - segunda, 23/04/2012, 18:32
Assunto -Parabéns

Meus caros amigos, estive a ver as fotos da festa da Tabanca (Grande) (**). Queria deixar aqui os meus parabéns, mas também expressar a admiração pelo convívio e pela sã troca de afetos e memórias entre aqueles que passaram pela Guiné no cumprimento do serviço militar. 

Todos ficamos enriquecidos ao visitar esta Tabanca. Em especial ao Luís Graça e aos editores, o meu bem hajam e o estímulo para que continuem. Para todos os que aqui partilham os seus segredos, os seus pensamentos, os seus sentimentos vai o meu obrigado pelo que me têm ensinado. 

Um grande abraço para todos do Carlos Matos Gomes

(ii)  Mensagem, de 17 de janeiro de 2010,  do cor cav ref Carlos Matos Gomes, conhecido estudioso e analista da guerra colonial, investigador e também romancista e argumentista (autor de, entre outras obras, sob o pseudónimo, do romance "Nó Górdio", 1983). (***)


Meu caro Luís, a propósito de uma resposta minha ao post do Jorge Félix relativo ao vídeo da viagem pelo Rio Cacheu Acima , fizeste-me uma proposta de integrar esta Tabanca, que me fez reflectir com serenidade antes de ter responder.

A primeira reacção foi: é claro que sim!... Preencho todos os requisitos, tenho ali (na Tabanca) tantos amigos, conhecidos. O local é bem frequentado, isto é, a frequência é de boa gente, são boas as intenções e a finalidade dos que frequentam a Tabanca. 

Une-me aos que aqui se reúnem recordações de lugares e de tempos e ainda o afecto pela terra da Guiné e das suas gentes. Nada a obstar, antes pelo contrário, tudo me levaria a sentir-me, além de honrado, disponível para integrar este grupo como membro de pleno direito.

Mas… vamos aos mas…

Sou leitor e frequentador assíduo e muito interessado da Tabanca. Tenho um juízo sobre esta Obra. Penso, sem qualquer lisonja, para a qual tenho espinha demasiado rígida e a boca demasiado dura, que este blogue é algo de extraordinário. Um daqueles casos que nos aquecem a esperança e nos incham a alma.

É extraordinário a vários títulos: pela ideia de reunir antigos combatentes num espaço democrático (o que quer dizer de livre expressão de cada um e de obrigatório respeito por todos e cada um dos outros), onde relatassem as suas experiências de há 30/40 anos, revivessem a sua grande aventura dos 20 anos, restabelecessem contactos, amizades e camaradagens, recordassem através da escrita e da imagem os lugares, os acontecimentos e as pessoas com quem partilharam os seus tempos da guerra, que servisse até de veículo de ajuda.

É extraordinário porque tem mantido o diálogo entre pessoas com diferentes visões da guerra e das situações num elevado nível de tolerância, mesmo quando o calor provoca reacções mais ásperas.

É extraordinário porque o colectivo do blogue conseguiu criar um "espírito de corpo" entre os tabanqueiros, que se reveem nas histórias, nos convívios que se vão multiplicando, nas acções que se desenvolvem, seja de solidariedade e ajuda ao povo da Guiné, seja a camaradas em dificuldades, seja ainda a familiares que procuram reconstituir as histórias de parentes seus na guerra.

O bloque e a Tabanca são um espaço de pureza e generosidade.

A pureza do blogue e dos seus tabanqueiros tem a ver com aquilo que é a sua matriz, a sua característica fundadora, o seu ADN: o blogue serve para relatar, contar, descrever, para transmitir emoções, para despejar pesos acumulados.

O blogue é a camaradagem, o que desaconselha grandes reflexões, análises e explicações. Deve continuar assim. É a sua força.

Ora eu, pelos rumos que a minha vida tomou, se ainda mantenho a minha generosidade, perdi a pureza de reviver a guerra colonial. Isto é, eu bebo do blogue, leio o que os homens da minha idade e da minha geração que passaram pelos locais por onde eu passei escrevem sobre ela, tento perceber como, em termos coletivos, a minha geração viveu este período da nossa História. Cada pequena descrição, ou relato, ou fotografia, ou filme, que cada um coloca é para mim um objecto de análise. 

Não tenho, pois, a pureza indispensável para me intrometer neste ambiente, não me sentiria confortável a fazer de mais um, quando afinal eu era e sou o que está a observar.

Um dos muitos factores de interesse do blogue é ser, além de um extraordinário local de convívio para os antigos combatentes da Guiné, uma futura fonte de conhecimento para a História da guerra colonial. 

E este conhecimento assenta em informações, por vezes únicas, sobre determinados acontecimentos e só isso já seria muito e bom serviço, mas o mais importante é que este blogue vai permitir aos historiadores e aos interessados do futuro pela História de Portugal, pela história colonial, pela história das forças armadas portuguesas e pela História da Guiné uma visão muito real sobre os actores que estiveram no terreno.

Raramente, na história em geral e na história militar em particular, é possível aceder ao sentimento, ao pensamento dos homens comuns que a fizeram. Este blogue dota os futuros estudiosos desse precioso elemento que é o de lhes fornecer o relato em primeira mão do soldado, do sargento, do subalterno, do capitão que estavam no mato, a bordo de navios, nos aviões.

Eu, pelo facto de ter enveredado muito cedo pelo trabalho de análise da guerra colonial, sou alguém que polui essa fonte.

 Se aceitasse pertencer à Tabanca e aceder ao teu convite, estava a seguir o meu instinto e a fazer o que eu gostaria, mas não estava a prestar um bom serviço à Tabanca (tenderia a apresentar análises e a fazer interpretações que gerariam tensões e desviariam a atenção dos puros tabanqueiros), nem estava a prestar um bom serviço ao futuro estudo da guerra colonial, pois introduziria factores de distorção na análise. Estava a fazer o que gostava, mas não o que devo,

É por tudo isto que aqui tentei resumir e sem ter a certeza de ter sido claro que, meu caro Luís, te peço para me deixares neste lugar de entreportas, a vaguear pela Tabanca como um estrangeiro adotado, respeitando os usos e os costumes, falando quando me autorizarem, ou quando me pedirem, saudando os que assumem a responsabilidade de manter o fogo aceso, o gado alimentado, os fracos protegidos. Sendo agradecido pelo muito que o vosso labor me proporciona, pelo que aprendo e pelas amizades que criei.

Um grande abraço

Carlos Matos Gomes.

NB: Desculpa a extensão da resposta, mas não consegui resumir e devia-te, e a todos os membros da Tabanca, uma explicação séria, sem falsas humildades, mas principalmente sem deixar qualquer mal-entendido sobre a recusa a partilhar um espaço como este que, reafirmo, honra todos os que a ele pertencem e me honraria a mim também, se não fossem as razões que tentei expressar.

[ Revisão / fixação de texto, título: L.G.]

 
(iii) Comentário de L.G., com data de 24/1/2010:

Carlos:

Em meu nome e dos demais editores, o Carlos, o Eduardo e o Virgínio, bem como de todos os demais amigos e camaradas da Guiné que se reconhecem neste blogue, agradeço as palavras que dizes a nosso respeito e que são um estímulo, público, para continuar...

Às vezes, as nossas forças também fraquejam e a gente tem dúvidas, legítimas, sobre o caminho a seguir... Tu bem sabes, da longa e dura experiência dos três TO por onde passaste, a começar pela Guiné, como as picadas pareciam não ter fim... As tuas palavras são um doce bálsamo para as dores do caminho e um bom tónico para prosseguir, apesar de alguns conflitos, incompreensões e escaramuças que, inevitavelmente - e por que não, saudavelmente - surgem neste percurso comum...

E queremos prosseguir, não exactamente por sentido de "missão" (não somos heróis nem iluminados, somos apenas 'common people'), mas pela simples razão de termos criado, quase sem o querer, uma comunidade de desvairadas gentes que têm, como menor denominador comum, uma experiência de guerra e o conhecimento, vivido, de uma terra...

A guerra colonial e a Guiné-Bissau (ou o discurso sobre) não são monopólio de ninguém, nem sequer mesmo dos guineenses... Este período da história comum de portugueses e guineenses está longe de estar encerrado. Vamos continuar a esforçarmo-nos por manter este espaço plural e aberto, e cultivar nosso espírito de partilha, de tolerância e de discrição.

Dito isto, entendo inteiramente as razões por que gostarias de, mas não podes nem deves, aceitar o meu/nosso convite para integrar a Tabanca Grande. 

És uma figura pública, um autor com obra feita sobre a história e a ficção da guerra colonial, não queres com a tua presença inquinar ou enviesar as fontes subterrâneas que alimentam este blogue... É de um grande honestidade intelectual: tu não queres ser o eucalipto que seca tudo em seu redor, os poilões, os bissilões, as cabaceiras, o mangal... da nossa Tabanca Grande.

Em contrapartida, deixa-me aceitar a tua proposta de seres uma espécie de marginal-secante, alguém que está fora e está dentro, que intersecta dois sistemas... Não propriamente esse "estrangeiro adotado" de que falas, mas sim alguém que ocupa esse "lugar de entre.portas, a vaguear pela Tabanca (...), respeitando os usos e os costumes, falando quando me autorizarem, ou quando me pedirem, saudando os que assumem a responsabilidade de manter o fogo aceso, o gado alimentado, os fracos protegidos"...

Carlos, aparece sempre que te der na real gana, entra e sai: não precisas de bater à porta...

Como bem sabes, nesta Tabanca Grande não há moranças com portas nem janelas, não há bunkers nem abrigos, não há portas de armas nem cavalos de frisa, não há cercas de arame farpado, nem muito menos campos de minas e armadilhas... No dia em que nos impuserem tal, serei eu o primeiro a escolher a picada do exílio...


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Notas do editor:


(**) Vd. poste de 25 de abril de 2012 > Guiné 63/74 - P9800: Tabanca Grande: oito anos a blogar (10): Parabéns! (Carlos Matos Gomes / António Vaz)

segunda-feira, 9 de setembro de 2024

Guiné 61/74 - P25925: Notas de leitura (1725): "A Guerra Colonial: realidade e ficção" (livro de actas do I Congresso Internacional), organização do professor universitário e escritor Rui de Azevedo Teixeira; Editorial Notícias, 2001, com o apoio da Universidade Aberta e do Instituto de Defesa Nacional (1) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 11 de Maio de 2023:

Queridos amigos,
De Rui de Azevedo Teixeira conhecia a sua tese de doutoramento intitulada "A Guerra Colonial e o Romance Português" e o seu romance "O Elogio da Dureza", ambos já referenciados no blogue, este I Congresso Internacional incluiu uma plêiade de intervenientes, tais como António Costa Pinto, John P. Cann, Álvaro Guerra, Roberto Vecchi, A. do Carmo Reis, jornalistas e cineastas reputados. Na impossibilidade de todos escutar, faz-se uma seleção de textos em função dos 10 temas escolhidos, a saber a guerra e os militares; a oposição e guerra; a natureza da guerra, consequências físicas e psicológicas da guerra; a guerra e a literatura, a guerra e o jornalismo, e a guerra e o cinema. Como observou no ato inaugural Rui de Azevedo Teixeira: "Decidimos desde o início recusar qualquer forma de segregação, fosse ela disciplinar, política ou mesmo geográfica. Acolhemos especialistas das mais diversas áreas; não impusemos qualquer controle político-ideológico. Convidámos estrangeiros, lusófonos e lusófilos. Também abrimos as portas aos mais jovens, porque é neles que o futuro da investigação sobre a temática da guerra colonial, ou do Ultramar, reside."

Um abraço do
Mário



A Guerra Colonial: realidade e ficção (livro de atas do I Congresso Internacional) (1)

Mário Beja Santos

O volume "A Guerra Colonial: realidade e ficção" (livro de atas do I Congresso Internacional), teve como organizador o professor universitário e escritor Rui de Azevedo Teixeira, Editorial Notícias, 2001, com o apoio da Universidade Aberta e do Instituto de Defesa Nacional. Participaram dezenas de comunicadores. Na altura em que foi editada, a obra era assim apresentada:
“Neste livro, que recusa a tirania da coisa política sobre a História ou a Literatura ou a insidiosa pressão do mediaticamente correto, correm textos de estudiosos da guerra e de grandes guerreiros, de portugueses e estrangeiros (lusófilos, lusófobos e lusófonos), de homens e de mulheres, de nomes consagrados e de novos investigadores da temática da Guerra Colonial ou Guerra do Ultramar. Académicos, militares, académicos militares, escritores, psiquiatras, cineastas, jornalistas, gestores e outros contribuem nesta obra para uma compreensão mais alargada e mais profunda da guerra de guerrilha que, fechando o Império, obrigou a uma definitiva mudança de paradigma da nossa História.”

Na impossibilidade de aqui se reproduzirem súmulas de todas as comunicações, iremos respigar alguns parágrafos de diferentes intervenientes. Vejamos algumas observações do professor Fernando Rosas:
“Há alguma responsabilidade concreta entre o Estado Novo e a guerra? A resposta que proponho é a seguinte: é claro que o Estado Novo foi o único regime que foi colocado perante uma situação histórica absolutamente específica, é o único regime que foi colocado perante a tarefa da descolonização e não a fez. E isto pelo simples facto de que os outros não podiam, historicamente, fazê-la porque o problema não se colocou, historicamente, nem no fim do século XIX, nem na primeira parte do século XX. E, quando ele se colocou historicamente, aquele regime não foi capaz de descolonizar, e preferiu à política da descolonização uma política que se traduziu, com efeito prático, na guerra.

Portanto, a relação específica que há entre o Estado Novo e a guerra é que ele foi o regime que, historicamente, em Portugal, foi colocado perante a tarefa de descolonizar e que não soube, não pôde, não quis – deixemos essa discussão –, e que por não o ter feito, precipitou o país numa guerra de 13 anos. Há, a meu ver, uma relação entre a guerra e aquele regime político particular. A orientação política para aquela questão, naquele momento histórico, foi fazer a guerra, enquanto, noutros países, outros regimes não a fizeram ou fizeram-na, mas encontraram uma solução política para ela e este não encontrou.

Porque é que o regime seguiu essa política e não seguiu outra?
O discurso ideológico do regime do Estado Novo em relação a África não foi sempre o mesmo. O ministro das Finanças Salazar é singularmente desinteressado da questão africana, estava dominado pela questão orçamental. O regime de Salazar, até à guerra, do ponto de vista das despesas públicas que estão calculadas, é um regime que nunca gasta com o Império, apesar da retórica imperial, mais de 4% das despesas públicas.

Digamos que é uma retórica que não tem correspondência, é um Salazar muito pouco interessado com a visão colonial. Então, quando é que muda? Muda com Armindo Monteiro, ministro das colónias, o homem que introduz o discurso imperial, a mística. Mas, atenção, é um império com cabeça e membros, é um império darwinista, é um império onde os brancos têm um papel superior aos outros. Em 1951, e com a descolonização à vista, há uma mudança de política. É que entre o império colonial de supremacia branca e o Ultramar de Minho a Timor, há uma alteração de filosofia, a filosofia é a que substitui na retórica ideológica do regime, a supremacia branca pelo luso tropicalismo.”


Retenho da intervenção de Carlos de Matos Gomes os seguintes parágrafos:
“Porque suscitou a guerra colonial nos primeiros tempos uma assinalável adesão popular?
No estado de desinformação e de férreo controlo em que a sociedade portuguesa se encontrava quando a guerra colonial começou, tudo era novidade e os propagandistas do Estado Novo lançaram, como D. Quixote, a mão à História e reescreveram-na de modo a comparar a situação de 1960 com a do século XV, quando o Infante iniciou o programa de expansão marítima. 

Diga-se que realizaram este truque com alguma eficácia, embora apenas num ponto a comparação fosse legítima: num posto de comando estava um homem, Salazar, que tal como Henrique, dito o Navegador, jamais saíra, nem estava disposto a sair de terra firme (o Infante ainda foi a Ceuta). Tudo o resto era radicalmente distinto.

Ao contrário da época do início da expansão da Europa para outros continentes, o Portugal de Salazar e dos seus ministros estava agora contra a História. Na época das Descobertas, a Europa e o mundo ocidental expandiam-se, Portugal era uma nação que dominava as técnicas mais evoluídas do tempo, da construção naval, à artilharia, da cartografia à matemática, enquanto em 1960 a Europa se retraía e Portugal era o mais atrasado país europeu em todos os domínios.
Felizmente, restou, para contrariar a insensatez, a avidez e a beata arrogância dos poderosos, o povo de que se fez a tropa.

Convocado pelos editais dos regedores das freguesias, instruída à pressa, despedido à beira Tejo com lágrimas, missas e palavras inflamadas, desembarcado nas costas de África com uniformes amarelos tão desajustados ao corpo como as armas que lhes entregaram estavam para a guerra, o povo a quem desta feita os poderosos queriam que fosse soldado (como já fora marinheiro), percebeu rapidamente que, mais uma vez, o haviam metido em maus lençóis. 

Em vez da ficção de um Império de cristandade, descobre a realidade da exploração colonial e do abandono que, na curiosa sintaxe de alguns dos seus impenitentes defensores tem sido considerada a bondade e especificidade do relacionamento dos portugueses com os outros povos.

Uma bondade tão específica que contemplava o trabalho forçado, os impostos ignominiosos e a justiça ad hoc, a deslocação obrigatória de populações, tudo assente numa hipócrita base de racismo ou de relaxe puro e simples, patente na ausência de serviços e infraestruturas, da educação à saúde, das estradas aos equipamentos básicos de recolha de água ou produção de energia.

A ficção que se desenrolou à volta da guerra promove, assim, a descoberta de duas realidades com as quais os militares portugueses para ela convocados se têm de confrontar:
- A descoberta de África, tendo de um lado o encanto do território e dos seus povos e do outro a iniquidade das relações que ali se haviam estabelecido;
- A descoberta da guerra, com os seus horrores e sacrifícios e também com os novos e fortíssimos sentimentos da camaradagem entre os guerreiros nos momentos de perigo.

Estas duas descobertas levam os soldados mobilizados a interrogar-se (mesmo que de forma pouco elaborada, ou inconsciente) sobre a justeza da sua missão. Levam também os que combateram em África a criar e a manterem uma corrente de afetos com aquele território, com aquelas gentes e com os seus companheiros de armas que se prolongou até hoje.

Atrevo-me a dizer que a ação das Forças Armadas portuguesas em África é pautada por este estado do espírito dos seus soldados. Um tipo de atuação que só um velho e causticado povo poderia impor. Uma guerra em que os soldados aguentaram em condições dificílimas a situação militar durante 13 anos, precisamente porque não procuram a decisão da batalha, nem da guerra. E são os soldados que impõem aos seus oficiais e aos seus comandantes este tipo de atuação em que a norma é evitar um empenhamento.”

Embarque para Angola, 21 de abril de 1961

(continua)

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Nota do editor

Último post da série de 6 de setembro de 2024 > Guiné 61/74 - P25916: Notas de leitura (1724): Factos passados na Costa da Guiné em meados do século XIX (e referidos no Boletim Official do Governo Geral de Cabo Verde, ano de 1873 e 1874) (19) (Mário Beja Santos)

quinta-feira, 2 de maio de 2024

Guiné 61/74 - P25471: Testemunhos - Será Que Pertenço à Geração D? Acho Que Sim (António Inácio Correia Nogueira, ex-Alf Mil da CCAÇ 16 - CTIG, 1971 e ex-Cap Mil, CMDT da CCAV 3487 / BCAV 3871 - RMA, 1972/74)


1. Mensagem do nosso camarada António Inácio Correia Nogueira, Doutor em Ciências Sociais, especialidade em Sociologia, ex-Alf Mil da CCAÇ 16 (CTIG, 1971) e ex-Cap Mil, CMDT da CCAV 3487 / BCAV 3871 (RMA, 1972/74), com data de 30 de Abril de 2024:

Caro camarada Carlos
Boa saúde, meu amigo.
Como pode ter interesse, envio-te um texto designado Geração D que está ligado a um Capitão da Guiné: Carlos de Matos Gomes.
Podes divulgar.

Abraço do amigo agradecido.
António Inácio Correia Nogueira



Testemunhos

Será Que Pertenço à Geração D? Acho Que Sim


Tenho a honra de ser amigo e admirador do autor do livro, publicado recentemente e que se intitula Geração D Da Ditadura à Democracia. Perguntei-me no final da viagem: será que pertenço à geração D, que o autor refere?

Carlos de Matos Gomes, um conhecido Capitão de Abril, foi um distinto oficial do Exército, com comissões em Angola, Moçambique e Guiné, onde protagonizou feitos que o classificam como combatente notável. É um douto investigador de história contemporânea, com inúmeras publicações em nome próprio ou em co-autoria. Com o pseudónimo literário de Carlos Vaz Ferraz, publicou dezenas de romances de entre eles Nó Cego – um fabuloso trabalho – testemunho sobre a Guerra Colonial – porventura, um dos melhores.

Pertenceu ao MFA da Guiné, o movimento charneira do 25 de Abril, de onde emergiram alguns dos seus heróis, feitos na guerra de Guidage e de muitos outros lugares de perigosidade maior, assim tornados pela guerrilha do PAIGC. De entre eles, reconheço, Salgueiro Maia.

Como afirma no seu livro, “Optou por lutar sem esperança de vencer em vez de tentar vencer sem coragem de lutar”.

Escrevi uma obra [Capitães do Fim do Quarto Império] para a qual Carlos de Matos Gomes me privilegiou com uma entrevista e comentou, posteriormente, da seguinte forma: “Um excelente livro para quem queira, com seriedade intelectual, perceber o esgotamento dos quadros na Guerra Colonial que foi uma das causas do seu fim. Contraria as bravatas dos patrioteiros e de mixordeiros da história… tem números, documentos…”.

Nesse livro, comentado pelo autor da Geração D, atrevo-me a escrever:

“Nos anos terminais da Guerra Colonial, a Academia Militar deixou de cumprir, por falta de candidatos, a sua missão capital: formar as elites militares intermédias de combate. Os Capitães do Quadro Permanente soçobraram. Ficou-se em presença de um Exército quase miliciano, num clima de forte contestação à guerra e de fraca motivação para lhe dar continuidade. No entanto, a defesa do Império, a todo o custo, era a política vigente, apesar do visível cansaço da Nação.

Para ajudar a obviar este desiderato, foi decretada a formação acelerada de Capitães milicianos na Escola Prática de Infantaria. Formaram-se à volta de cento e sessenta por ano. Em cerca de catorze meses fazia-se de um estudante universitário, quase sempre em estádio avançado de licenciatura, ou de um licenciado, um Capitão combatente para actuar nos teatros de guerra mais exigentes de Angola, da Guiné e de Moçambique. O modo de selecção destas novas elites pelejadoras, e a formação apressada a que foram sujeitas, deram ensejo a que alguns as apelidassem, desdenhosamente, de “Capitães de proveta” ou “de “aviário”. Eu fui um desses Capitães do Fim. Levei muitos meninos – soldado atrás de mim com a missão de os enquadrar, o melhor possível, em zonas de guerra intensa e evitar a sua morte. Passei o 25 de Abril pertinho de perecer, mas lutei para viver, eu e eles.

O livro do meu amigo, se bem entendi, fala da geração de militares que fizeram o 25 de Abril. Eu não fiz o 25 de Abril, mas contribui para que se desse. Pertenci, pois, à Geração D, “de dilemas, desobediência e também dever”.

Diz o autor da Geração D: “Esta geração protagonizou a grande mudança da história de Portugal, a que acabou com a guerra, a que acabou com a ditadura.” É a geração das lutas estudantis, dos partidos jovens de protesto, da deserção, da descolonização, das discussões políticas de café, da dialéctica, da utopia, da denúncia, da transgressão…

Como diz, mais à frente, Carlos de Matos Gomes: 

“A Geração D viveu sob um «regime de doidos» do Império e libertou-se dele, calhou-lhe ser a primeira geração que, pela liberdade e universalidade do voto, foi inteiramente responsável pelo seu futuro…

O D dos dilemas é também o do desafio e o do desprezo pelos desprezíveis da Geração D.”

Grande livro, para ler e meditar. Passaram 50 anos, viva o 25 de Abril…

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Nota do editor

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