Lisboa > Base Naval do Alfeite > 30 de abril de 1974 > Da esquerda para a direita: Coronel António Vaz Antunes, Brigadeiro Leitão Marques, General Bettencourt (ou Bethencourt) Rodrigues e Coronel Hugo Rodrigues, todos oficiais afastados no Golpe Militar de 26 de Abril em Bissau.
"Não procurando promover qualquer interpretação, chegar a juízos gerais ou encerrar os eventos abordados numa dada problemática, o grupo entrevistador foi seguindo os relatos e aceitando as visões dos seus interlocutores, embora não deixasse de lhes solicitar esclarecimentos por vezes incómodos."
1. Voltamos aos depoimentos produzidos no âmbito dos Estudos Gerais da Arrábida [A descolonização portuguesa > Painel dedicado à Guiné > 29 de Agosto de 1995 > Depoimentos de General Mateus da Silva, Coronel Matos Gomes, José Manuel Barroso e Coronel Florindo Morais]
Iremos reproduzir alguns excertos das enrevistas para ficarmos com uma ideia mais viva, precisa e detalhada do que foi a 23ª hora do último com-chefe do CTIG, gen Bethencourt (ou Bettencourt) Rodrigues, e concomitantemente o que se passou nos dias 25 e 26 de abrl de 1974 em Bissau.
Os antigos combatentes da Guiné, qualquer que seja o ano em que moram mobilizados para o território, de 1961 a 1974, têm o direito de saber como é que acabou a guerra. E é bom lembrar que parte destes homens que arriscaram vidas e carreiras, na "conspiração" do MFA na Guiné-Bisau, já morreram, como é o caso do ten-gen Mateus Silva.
Sobre o "golpe militar de Bissau", iremos trancreer parte das entrevistas a:
- Eduardo Mateus da Silva [1933-2021] : Engenheiro militar da Arma de Transmissões; chega à Guiné em Junho de 1972, como tenente-coronel; membro do MFA desde os primórdios; encarregado do governo da Guiné depois do 25 de Abril;
- Carlos Matos Gomes (n. 1946): Oficial dos Comandos, comandante de Tropas Nativas Especiais; em Moçambique, participou na operação “Nó Górdio”; fez a sua missão na Guiné de Julho de 1972 a fins de Junho de 1974; pertenceu à primeira Comissão Coordenadora do Movimento dos Capitães na Guiné; foi membro da Assembleia do MFA;
- José Manuel Barroso [n. 1943] : jornalista, capitão miliciano na Guiné de Julho de 1972 a Maio de 1974; colaborador directo do general Spínola, na Guiné; membro do MFA da Guiné;
- Florindo Morais [n. 1939] : só vai para a Guiné, como major, nos primeiros dias de Junho de 1974, sendo o último comandante do batalhão de Comandos Africanos na Guiné e regressa na véspera da independência. (Notas biográifcas dos organizadores dos Estudos Gerais da Arrábida
2. O Golpe Militar de Bissau (##)
Entrevistadores: Manuel Lucena (1938-2105), Luís Salgado Matos (1946-2021)
Entrevistados, Mateus da Slva (1933-2021), Matos Gomes (n. 1946), José Manuel Barroso (n. 1943)
[...] General Mateus da Silva:
Há um aspecto que também é único no MFA da Guiné: é que o MFA em Lisboa, tinha principalmente capitães, muito poucos majores e não tinha os comandos das unidades.
Na Guiné, porque o ambiente era totalmente favorável ao MFA, podíamos ter envolvido, na conspiração, todos os capitães que quiséssemos, mas como não nos interessava isso, porque ia alargar muito, escolhemos os comandantes das unidades: envolvemos o comandante do Batalhão de Comandos, o comandante e o 2º comandante do Batalhão de Paraquedistas, o comandante da Polícia Militar, o comandante das Transmissões (as comunicações eram essenciais), o comandante da Engenharia, o comandante da Artilharia, e, quando quiséssemos carregar no botão e tomar o poder, era só querermos.
Luís Salgado Matos:
Qual era o papel do general Bettencourt
Rodrigues? Percebia o que se estava a passar? Sabia do que se estava a passar?
Tinha alguém em quem tivesse confiança?
Coronel Matos Gomes:
Ele sabia muito pouco. Há uma história que demonstra a forma diferente do general Bettencourt Rodrigues exercer a sua função de comando, como comandante-chefe. O general Spínola falava com muita facilidade à hierarquia, até cá abaixo. Qualquer capitão podia muito facilmente obter acesso ao general Comandante-chefe. Portanto, estes circuitos funcionavam quase em ligação directa.
Ao passo que o Bettencourt Rodrigues, até por questões de feitio pessoal e de formação militar e profissional, como oficial de Estado-Maior, a primeira acção que lhe corresponde como comandante-chefe é cortar essa ligação, e coloca um fusível na ligação, que era o seu Chefe de Estado-Maior, o coronel Hugo Rodrigues da Silva, passando a ser impossível um comandante de uma unidade falar com o comandante-chefe ou com outro operacional. Tudo passava pelo coronel Chefe de Estado-Maior.
Para os
comandantes das unidades, habituados a negociar concretamente com Deus Nosso
Senhor, as coisas passaram a ser muito complicadas e a reacção é deste género:
«Bom se ele não quer saber, não sabe e pronto!» E passa a saber muito menos
coisas. Além de não saber aquilo que era o estado de espírito, passa a não
saber também coisas [concretas] essenciais.
José Manuel Barroso:
[...] Eu penso que o general Bettencourt Rodrigues (eu continuei a lidar com ele, não do modo como lidava com o Spínola, mas quase diariamente) tentou aguentar o que estava, não quis fazer grandes alterações, criar grandes problemas, grandes conflitos. Tentou aguentar o que estava em função das instruções que levava.
Simplesmente, o que sucede, quando o general Bettencourt Rodrigues lá chega - e até pelo facto do general Spínola regressar à metrópole -, é que havia já um desencanto total em relação à evolução.
Quer dizer, a própria retirada do general Spínola do terreno de operações (e do poder político na Guiné) significou, para a grande maioria dos oficiais, não só [para] os que conspiravam lá abertamente, quer fossem spinolístas ou não, mas também [para] os próprios milicianos, uma forma de dizer: «Isto não tem safa, tem que haver uma outra evolução qualquer». Ou: «O próprio Spínola já não tem qualquer hipótese e vai-se embora.»
Pelo general Bettencourt Rodrigues, havia respeito, não era da «brigada do reumático». Mas ele era um corpo estranho.
General Mateus da Silva:
[…] Bom, nós reunimo-nos na véspera [do 25 de Abril], estivemos até cerca da 1:00 hora, não conseguimos informação nenhuma de Lisboa, sobre se realmente tinha acontecido ou não alguma coisa. Nós tínhamos um centro de escuta no Agrupamento de Transmissões, que era óptimo. Escutávamos em permanência a Reuter e a France-Press, e tínhamos um tele-impressor ligado e apareciam as notícias em catadupa.
Escutávamos todas as emissões de rádio dirigidas contra nós, desde a Rádio-Moscovo ao PAIGC, tudo. E todos os dias, era editado um documento, acho que era o Boletim Periódico de Rádio. São documentos que não sei se existem, se foram arquivados. E nós gravávamos, e transcrevíamos todas as emissões em português que eram dirigidas contra nós. Tínhamos as agências noticiosas e, antes de regressarmos a casa, nessa noite, avisei o oficial de dia, que era o alferes Rodrigues, para estar com muita atenção no centro de escutas, que podia acontecer qualquer coisa.
Às 5 ou 6 da
manhã, quando os tele-impressores da Reuter e da France-Press começaram a
debitar as primeiras notícias, ele percebeu que realmente tinha acontecido
qualquer coisa em Portugal. Telefonou-me logo para casa e eu avisei todos os
outros pelo telefone e imediatamente soubemos o que se passava. Lembro-me de
que o alferes Rodrigues até chorava a contar o que tinha acontecido.
Isto foi a noite antes do 25 de Abril, e depois ia falar no
dia 25 de Abril.
Quando nós tivemos as primeiras notícias do dia 25 de Abril, avisei o major Freire, que era o comandante da polícia e que também estava connosco (todos os comandantes das coisas importantes estavam envolvidos).
E o major Freire diz-me assim: «Oh pá! Eu tenho de ir agora às 8 horas com o director da PIDE para a Ilha das Galinhas visitar os presos políticos. O que é que eu faço?» Eu respondi: «Oh pá! Só tens um remédio, vais!»
Então, às 8 horas da manhã, ele foi para a ilha das Galinhas, com o director da PIDE. Passaram lá uma manhã estupenda, almoçaram, regressaram a Bissau e o director da PIDE não sabia rigorosamente de nada do que se estava a passar em Lisboa.
Depois, reunimo-nos várias vezes para decidir o que é que fazíamos, o que é que não íamos fazer. E tentámos contactar com Lisboa, mas ninguém nos ligava nenhuma em Lisboa, estavam noutra.
Ao fim da tarde, apareceu um telegrama do almirante Ferreira de Almeida, chefe do estado-maior da Armada, que, apesar de ser um homem muito ligado ao regime, disse logo que, tendo o poder político mudado, a Marinha estava com o novo poder político. Tomou logo essa decisão, mesmo antes de ser substituído.
O comandante naval em Bissau, comodoro Almeida Brandão, perante aquela mensagem, vai ao general Bettencourt Rodrigues, mostra-lhe a mensagem e diz-lhe:
«Olhe, sr. comandante-chefe, passa-se isto… O chefe do Estado Maior da Armada já está com o 25 de Abril, o que é que o senhor quer fazer?»
O Almeida Brandão também era um militar, digamos, democrata e aberto, e mandou uma mensagem para Lisboa a dizer que a Marinha na Guiné estava com o MFA.
O general Bettencourt Rodrigues não tomava posição, estava à espera
de receber instruções, e passou toda a noite assim.
No dia 26 de Abril, logo de manhã, nós, este grupo que estava mais ligado, reunimo-nos no Batalhão de Paraquedistas, em Bissau, às 8.30h, a discutir o que havíamos de fazer.
E foi nessa reunião que decidimos intervir e, digamos, fazer aquilo a que eu chamo um golpe militar em Bissau, que na altura não teria esta percepção, mas, a posteriori, considero que de facto foi um golpe militar.
Discutiu-se quem ia ficar como encarregado do
Governo, eu propus que fosse o secretário-geral, o dr. Libânio Pires, todos os
outros acharam que devia ser eu, como militar mais graduado. Escolhemos o
comodoro Almeida Brandão para futuro comandante-chefe, porque era o mais antigo
e, além disso, tinha já tomado a decisão de mandar um telegrama para Lisboa, a dizer
que aderia ao MFA.
[...] Às 9h (era feriado municipal em Bissau), fomos ao gabinete do comandante-naval, comodoro Almeida Brandão, convidá-lo a ser o nosso futuro comandante-chefe. Também tem piada porque, antes de destituirmos o governador, já estávamos a convidar o futuro comandante-chefe.
O comodoro hesitou um bocado e disse que não podia aceitar. Nós até queríamos que ele também fosse logo connosco ao gabinete do Bettencourt Rodrigues. Recusou-se mas acabou por dizer que aceitava ser comandante-chefe.
Em seguida, ainda passámos pelo Palácio do Governador mas ele não estava, estava no comando-chefe na Amura. Fomos então à Amura. Na altura, houve uma companhia da polícia militar que cercou o comando-chefe, e também havia tropas paraquedistas nossas que estavam ali à volta.
Entrámos de rompante no gabinete do general Bettencourt Rodrigues, o ajudante meteu-se à frente e levou um pinhão que voou por ali adentro… A porta abriu-se de escantilhão e nós entrámos.
Agora imaginem, do ponto de vista do general comandante-chefe, que vê um grupo aí de doze oficiais (###), entrarem-lhe assim pelo gabinete…
Ele ficou logo desequilibrado psicologicamente. Quando falámos com o coronel Hugo Rodrigues da Silva, que era o intermediário de tudo com o governador, ele recriminou-nos por termos feito aquilo sem o informar primeiro.
O brigadeiro Leitão Marques teve uma reacção perfeitamente despropositada, disse assim:
«Meus senhores, hoje acabou a minha carreira militar, os senhores prendam-me, matem-me, fuzilem-me, façam-me o que quiserem.»
Uma coisa perfeitamente dramática e despropositada.
O general Bettencourt Rodrigues perguntou se estava preso, e este também é um aspecto que acho muito interessante. É evidente que ele estava pelo menos bastante coagido, mas eu disse:
«Não, o meu general não está preso, simplesmente vai ao palácio, faz as suas malas e embarca hoje no avião para Lisboa.»
E foi o que ele fez, mas muito civilizadamente. Eu tenho aqui fotocópias, está aqui um texto escrito mais tarde num jornal pelo general Bettencourt Rodrigues:
«A perguntas minhas, aqueles oficiais acrescentaram que devia seguir para Lisboa nessa manhã, em avião que vinha de Luanda e sairia da Guiné em liberdade».
Isto é dito por ele próprio e acaba com a polémica.
Do meu ponto de vista, foi o general Spínola, directamente ou alguém por ele, que prendeu o Bettencourt Rodrigues, o que tem a sua lógica, porque o general Spínola não podia com o Bettencourt Rodrigues, pois achava que tinha destruído a sua política da «Guiné melhor». [...]…
Luís Salgado Matos:
Quando diz ao Bettencourt Rodrigues que
não está preso, tem é de fazer as malas para voltar para Lisboa, o que é que
ele responde?
General Mateus da Silva:
Ele não respondeu, ele aceitou. Fez uma cena mais ou menos dramática, quase com as lágrimas nos olhos, a dizer:
«Meus senhores, estão aqui os oficiais que mais considero na Guiné, os comandantes das principais unidades, fulano esteve ontem aqui sentado ao meu lado, a falar comigo, outro não sei que mais, eu não podia esperar jamais que me fizessem uma coisa destas, estou profundamente magoado.»
Foi mais ou menos esta a reacção dele. […]
Coronel Matos Gomes:
Só houve três oficiais que se
solidarizaram com ele, o Leitão Marques, o coronel Rodrigues da Silva e,
posteriormente, na sala de operações, o coronel Vaz Antunes.
General Mateus da Silva:
Eu acho que foi um mal-entendido, porque o Leitão Marques era um homem democrata e nós até gostaríamos que fosse ele a substituir o Bettencourt Rodrigues. Nós saímos do gabinete do general Bettencourt Rodrigues e dirigimo-nos à sala de operações. Como era feriado, o briefing era às 10h e, quando avança aquele grupo comigo à frente, na sala de operações, falando como as coisas são e se passaram, eu senti imediatamente que os coronéis e outros oficiais mais graduados do que eu me abriram alas e me cumprimentaram logo com toda a deferência.
Entrei na sala de operações e sentei-me na primeira fila, no lugar do general Bettencourt Rodrigues. Antes de me sentar expliquei o que é que se passava e foi nessa altura que o coronel Vaz Antunes disse que não podia aceitar uma situação destas, que estava solidário com o general Bettencourt Rodrigues. E o Almeida Brandão virou-se para ele e disse:
«Se está solidário, saia!»
Já o Almeida Brandão a assumir-se como comandante-chefe. E depois teve lugar o briefing com toda a naturalidade.
Às 3h da tarde, depois de uma grande informação pela rádio, tomei posse como encarregado do Governo. Antes de tomar posse, chegou ao nosso conhecimento a directiva da JSN, dispondo que nas províncias de governo simples o governador devia ser substituído pelo secretário-geral. Então pôs-se a dúvida se eu tomaria posse, ou daria posse ao dr. Libânio Pires e até à última hora estivemos em contacto com Lisboa, que acabou por aceitar: «Está bem, pronto então toma posse.»
Isso foi de tal maneira que eu pedi ao José Manuel Barroso
para me escrever o discurso que eu diria no caso de não tomar posse. Nunca o
pronunciei, mas está aí escrito com a letra dele e pelo punho dele. Tomei
posse, mas isso foi o próprio MFA da Guiné que decidiu, contrariamente à
JSN.
Manuel de Lucena:
Da JSN, quem deu o aval
à sua posse?
General Mateus da Silva:
Não foi ninguém, foi um intermediário, foi um dos oficiais que gravitava ali à volta, não me lembro exactamente quem foi. Aliás ouvia-se muito mal, as comunicações telefónicas eram muito más, confesso que não me lembro. [...] (#)
(Seleção, revisão / fixação de texto, negritos, parênteses retos, notas, para efeitos de publicação deste poste: LG)
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(#) Atual endereço do sítio do AHS - Arquivo Histórico Social, ICS/ULNota do editor:
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