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quinta-feira, 4 de dezembro de 2025

Guiné 61/74 - P27491: Recortes de imprensa sobre o império colonial (3): a nau "Portugal", vida e morte de uma réplica de um galeão quinhentista, que foi uma das principais atrações da monumental Exposição do Mundo Português (Lisboa, 1940) - Parte II



Lisboa > Exposição do Mundo Português (23 de junho a 2 de dezembro de 1940 > A "Nau Portugal", réplica de um galeão da carreiar da Índia (Fonte: Cortesia de Wikimedia Commons. Imagem do domínio público.)


1. A nau “Portugal” foi construída nos estaleiros navais da Gafanha da Nazaré, do mestre Manuel Maria Bolais Mónica, com o propósito de integrar a Exposição do Mundo Português de 1940.

 Idealizada pelo cineasta Leitão de Barros com o objetivo de mimetizar um galeão português da carreira da Índia, teve uma história atribulada: o seu lançamento á água correu mal e o fim foi trágico.

De facto, no dia do "bota-abaixo",  7 de junho de 1940, a nau acabou por tombar, para grande desilusão e tristeza de todos os presentes.

Esse momento, e os trabalhos de recuperação  da Nau "Portugal", podem ser visionados num excerto do documentário,  realizado por António Lopes Ribeiro, em 1940, para o Jornal Português  no. 22. (O vídeo está disponível na Cinemateca Digital da Cinemateca Portuguesa: vd. A partir de 12' 26''.

Ficha técnica:
Lançamento ao mar da nau "Portugal"
Cinemateca Portuguesa-Museu do Cinema
373 mil visualizações

Jornal Português nº 22 | A Nau Portugal (a partir de 12' 26'') 
Portugal, 1940
Género: Atualidades
Duração: 00:16:02, 24 fps
Formato: 35mm, PB, com som
AR: 1:1,37
 





Anúncio da Exposição do Mundo Português. "Diário de Lisboa", 7 de setembro de 1940, pág.2. O jornal avulso custava 40 centavos. O ingresso geral na Expo 40 era de 2$50 (e 3$50, com entrada no "parque de atrações,  com direito a um divertimento grátis"). Para uma família lisboeta de classe trabalhadora era caro. Mesmo assim, a Expo 40 teve 3 milhões de visitas.


Fonte: (1940), "Diário de Lisboa", nº 6393, Ano 20, Sábado, 7 de Setembro de 1940, Fundação Mário Soares / DRR - Documentos Ruella Ramos, Disponível HTTP: http://hdl.handle.net/11002/fms_dc_25593 (2025-12-4)




Anúncio da Exposição do Mundo Português. "Diário de Lisboa", 18 de agosto de 1940, pág.2

Fonte: (1940), "Diário de Lisboa", nº 6373, Ano 20, Domingo, 18 de Agosto de 1940, Fundação Mário Soares / DRR - Documentos Ruella Ramos, Disponível HTTP: http://hdl.handle.net/11002/fms_dc_25723 (2025-12-4)


Levou 3 meses a recuperação da nau, depois do desastroso "bota-abaixo" (que afetou a reputação dos estaleiros Mónica, considerados um dos melhores do país em matéria de construção de navios em madeira, responsável pela renovação de grande parte da Frota Bacalhoeira, sob os auspícios do Estado Novo, estaleiros que a partir de 1953 entraram em decadência). 

A Exposição do Mundo Português foi inaugurada em 23 de junho de 1940, e a Nau Portugal só passou a estar pronta para receber visitas a partir de 7 de setembro, já o certame ia a meio. Nesse dia, o ingresso geral na Expo passou era de 1$5'( nos outros dias, 2$50). A inauguração contou com a presemça do Chefe de Estado e de Governo.

2. Mas o que é correu mal com a Nau "Portugal" ? Terão sido sobretudo os aspetos técnicos do desenho e construção.

Aqui ficam os principais aspetos técnicos ligados à construção da nau “Portugal” em 1940,  e as razões pelas quais acabou por se revelar tão instável e .... inavegável. Naufragou no "bota-abaixo"

(i)  Construção pensada como “cenografia”, não como "navio para navegar" 

A nau foi desenhada sobretudo para efeito cénico e  visual na Exposição do Mundo Português. Isto significa que muitas das decisões, na ausência inexplicável de um engenheiro construtor naval  (!),  subordinaram-se a critérios estéticos:

  • estruturas reforçadas onde era preciso “parecer robusto”, e  não “ser robusto” 
  • ausência de cálculos rigorosos sobre estabilidade transversal;  proporções idealizadas com base em gravuras e pinturas, não em planos navais históricos.

Este é o ponto de partida para quase todos os problemas seguintes.

(ii) Problemas de estabilidade e centro de gravidade

O erro mais crítico terá sido o centro de gravidade que estava demasiado alto. Eis as razões: 

  • as superestruturas (castelos de proa e popa, mastros, ornamentação) eram pesadas e elevadas;
  • a quilha e as obras vivas (a parte submersa) estavam subdimensionadas;
  • o  casco tinha forma pouco profunda e sem lastro adequado.

Resultado: quando foi lançada à água ( "bota-abaixo", como se diz na gíria),  a nau tombou para o lado, exatamente como um objeto mal equilibrado.

Num galeão do século XVI/XVII, o casco seria muito mais profundo e largo na linha de água, garantindo estabilidade mesmo com mastros altos. A réplica ignorou isso.

(iii) Materiais utilizados

Apesar do aspeto histórico, a nau não foi construída como um navio tradicional:

  • madeiras diversas, algumas não adequadas à resistência estrutural;
  • revestimentos decorativos sobrepostos a estruturas simples;
  • elementos “fingidos”: peças feitas para parecerem pesadas sem o serem, ou vice-versa.

Isto contribuiu para uma distribuição de peso caótica.

(iv)  Falta de planos navais rigorosos

Na década de 1940 Portugal não tinha acesso completo a planos originais de galeões quinhentistas: muitos simplesmente não existiam ou eram incompletos.  Mas tinham bons engenheiros construtores navais.

A solução que se adotou foi “recriar” com base em:
  • iconografia dos Descobrimentos;
  • descrições literárias;
  • modelos estilizados do imaginário imperial do Estado Novo.

Ou seja: não se tratou de uma reconstrução te nica e científica fundamentada, mas de um idealização estética.

(v) ) Modificações de emergência após o acidente

Depois de tombar, a nau teve de ser reequilibrada à pressa:

  • adição de lastro no fundo;
  • pequenas correções de peso;
  • fixação para ficar estática como peça cénica.

Mesmo assim, nunca ficou realmente estável. Por isso a nau não navegou: foi de reboque do porto de Belém até ao rio Tejo, ficou sempre ancorada, essencialmente como cenário flutuante. 

O seu interior foi ricamente ornamentado com obras de arte, mobiliário, tapetes e talhada dourada do património nacional (que depois levaram sumiço...). Foi inaugurada em 7 de setembro com a presença do presidente da república gen Oscar Carmona e o presidente do conselho Oliveira Salazar.

3. Falaremos, em próximo poste, sobre o ou um dos  "projetistas" da réplica,  comandante Quirino da Fonseca (Funchal, 18634 - Lisboa, 1939, oficial da Marinha Portuguesa e um dos maiores especialistas portugueses em arqueologia e arquitetura navais, da época dos Descobrimentos, sendo autor de obras de referência como "Os Portugueses no mar: memórias históricas e arqueológicas das naus de Portugal" (1926).

O projeto foi baseado nas suas investigações aprofundadas em desenhos antigos e descrições técnicas de navios dos Descobrimentos. 

Quirino da Fonseca não era um engenheiro construtor naval... E isso ajuda a explicar por que é que o projeto final, executado para a Exposição, teve sérios problemas de estabilidade. O mestre construtor, Manuel Maria Bolais Mónica, da Gafanha da Nazaré, chegou a expressar dúvidas de que a embarcação pudesse estabilizar ao ser lançada à água, o que infelizmente se confirmou com o naufrágio da nau, no dia do lançamento, necessitando de métodos "pouco ortodoxos" para ser recuperada, reabilitada e rebocada para Lisboa  (aonde chega a 2 de setembro) e cumprir a sua função  expositiva.

Para ver mais imagens: 



4. Comentário adicional de LG:

É bom recordar que a Exposição do Mundo Português (que decorreu de 23 de Junho a 2 de Dezembro de 1940) foi naugurada e realizada no auge da Segunda Guerra Mundial, especialmente após a queda da França em junho de 1940:

  • ínício da invasão alemã (ataque aos Países Baixos e à França): 10 de maio de 1940.
  • entrada Alemã em Paris (e queda de Paris): 14 de junho de 1940.
  • assinatura do Armistício Franco-Alemão: 22 de junho de 1940;
  • entrada em vigor do Armistício: 25 de junho de 1940.

É verdade que Portugal era neutro. Sob regime do Estado Novo, liderado por António de Oliveira Salazar, Portugal manteve uma política de neutralidade durante o conflito (embora fosse uma "neutralidade colaborante", envolvendo-se em atividades económicas e de acolhimento de  refugiados). Este estatuto permitia ao país, em teoria, isolar-se dos horrores imediatos da guerra, embora se temesse uma possível invasão (quer dos alemães e dos espanhóis, quer dos Aliados). 

A Exposição fazia parte das Comemorações do Duplo Centenário(fundação e restauração da independência, 1140 e 1640, respectivamente) e foi um dos eventos politico-culturais mais importantes da história do  Estado Novo. 

O seu principal objetivo era a exaltação nacionalista, a glorificação da história de Portugal (em particular os Descobrimentos) e a afirmação da grandeza do Império Colonial Português.

Apesar da guerra lá fora (para além dos Pirinéus e no Atlântico), Lisboa, como capital de um país neutro, tornou-se um porto de abrigo e uma cidade cosmopolita, cheia de espiões e, mais importante, refugiados de guerra (muitos dos quais visitaram a Exposição). Havia uma bolha de aparente normalidade e festa em contraste com a tragédia europeia. Apesar do racionamento de bens essenciais e do "credo na boca"...

Para o regime, realizar um evento grandioso como a Exposição, celebrando a glória e a paz da Nação em contraste com o caos da Europa em guerra, servia para reforçar a imagem de estabilidade e ordem do Estado Novo e o seu papel providencial na História.

Visto à distância de 85 anos, o contraste era brutal: de um lado, a maior guerra da história, do outro, uma grande festa de propaganda nacionalista. Para o  regime do Estado Novo, a realização da Exposição em tempo de guerra foi sobretudo uma afirmação política e ideológica da sua "visão" para Portugal e o seu Império,

(Pesquisa: LG + Net + IA (Gemini, ChatGPT)

(Condensação, revisão / fixação de texto, título,. edição de imagens: LG)

__________________

Nota do editor LG:

Último poste da série > 2 de dezembro de 2025 > Guiné 61/74 - P27484: Recortes de imprensa sobre o império colonial (2): a nau "Portugal", vida e morte de uma réplica de um galeão quinhentista, que foi uma das principais atrações da monumental Exposição do Mundo Português (Lisboa, 1940) - Parte I

terça-feira, 2 de dezembro de 2025

Guiné 61/74 - P27484: Recortes de imprensa sobre o império colonial (2): a nau "Portugal", vida e morte de uma réplica de um galeão quinhentista, que foi uma das principais atrações da monumental Exposição do Mundo Português (Lisboa, 1940) - Parte I




A nau "Portugal", uma das principais atrações  da Exposição do Mundo Português
 Tinha 3 mastros e cerca de meia centena de canhões. Pretendia ser uma réplica de um agleão quinhentista.

(Fonte: Ilustração Portuguesa,nº 979, 7 de setembro de 1940,. pág, 6 (cortesia de Hemeroteca Municipal de Lisboa)



1. Ainda não tínhamos nascido, a maior parte de nós em 1940. Em plena II Guerra Mundial, Portugal era, milagrosamente (?), um oásis de paz. Precário, é certo. Milhares de refugiados fugidos da barbárie nazi, nomeadamente judeus, chegavam a Portugal, país neutral, na esperança de conseguir um visto e uma passagem para o Novo Mundo, e em especial os EUA.

 O Duplo Centenário (1140, "fundação da nacionalidade"; e 1640, "restauração da independência") foi o pretexto, genial, para a organização de um grande evento político-cultural de consagração do regime de Estado Novo. 

Toda a sociedade portuguesa e a sua elite (incluindo os seus melhores arquitetos, engenheiros, escultores, decoradores, pintores, cenógrafos,  artesãos, escritores, jornalistas, poetas, cineastas, etc.) foram mobilizados: cinco mil trabalhadores sob as ordens do arquiteto Cottinelli Telmo (1897-1948) ergueram um espaço equivalente a 56  campos de futebol, no tempo recorde de um ano, e com limitados recursos financeiros. Em Belém, na zona ocidental de Lisboa,entre o mosteiro dos Jerónimos e o rio Tejo, zona até então considerada pobre e periférica de Lisboa.

De 23 de junho a 2 de dezembro de 1940, a Exposição do Mundo Português, em Belém, teve 3 milhões de visitas. Gente de todo o país vinha em excursão a Lisboa, num tempo em que a mobilidade era reduzida, e um ribatejano nunca tinha ido ao Algarve, nem um transmontano conhecia sequer o Porto, e muito menos Macau ou Angola. A visita tornou-se quase obrigatório para os portugueses da época. Os clichés do Portugal do Minho a Timor vêm desse evento, do casa de sobrado colonial ao solar do Minho, da tabanca guineense à roça são-tomense. O ingresso custava 2 escudos e 50 centavos. Ficou na memória da geração dos nossos pais. Tal como ficou na nossa memória a Expo 98.


Hemeroteca Municipal de Lisboa > Efemérides | Exposição do Mundo Português (1940) (excerto) (com a devida vénia)


(...) Em plena guerra civil de Espanha, quando os regimes autoritários pareciam impor-se na conturbada cena política europeia, o Estado Novo consolidava-se.

É neste ambiente que, em 27 de Março de 1938, Salazar anuncia a realização, em nota oficiosa, de uma grande comemoração do duplo centenário da independência (1140) e da restauração (1640), para o ano de 1940.

A iniciativa assumiu então, em termos de recursos materiais e humanos, uma dimensão inédita, tornando-se o mais importante acontecimento político-cultural do Estado Novo.

O empenho político nas comemorações resulta da compreensão do que estava em jogo: passar ao acto (em forma de comemoração) a consagração pública de uma legitimidade representativa própria, desta feita, eminentemente ideológica e histórica.

Ao invés da legitimidade eleitoral dos regimes democráticos, esforçou-se o Estado Novo por associar os traços mais marcantes do seu nacionalismo – autoritarismo, elitismo, paternalismo e conservadorismo – a um passado mítico legitimador do presente.

Mais, buscou, pela mão dos artistas e a pena dos historiadores, difundir, com «a clareza» possível, essas linhas invisíveis da continuidade, que uniam a grandeza do passado, do presente e do futuro de Portugal.

Corolário de uma «política de espírito», lançada na década anterior pelo audacioso director do Secretariado de Propaganda Nacional, António Ferro, assiste-se à mais conseguida conciliação da arte com a política no Estado Novo. Efémera e irrepetível, contudo.

Ninguém escondia o valor propagandístico da exposição que o próprio António Ferro sintetizaria: «1140 […] explica 1640, como 1640 prepara 1940».

Evocação histórico-ideológica dos momentos edificantes, recheados de heróis e lições exemplares. Espécie de fábula contada em imagens, símbolos, frases e palavras. A exposição ficaria como marco crucial da cumplicidade dos artistas com o Estado Novo ensaiada nos anos 30 e, simultaneamente, o seu ponto final e de viragem.

O certo é que, enquanto em Junho os portugueses assistiam pacíficos à inauguração da sua «cidade mítica», nas chancelarias acendera-se já o alarme – a guerra alastrava por toda a Europa.

Quatro anos volvidos, e o jovem e vigoroso regime atravessaria a sua primeira crise política. A exposição viera afinal comemorar, em apoteose, o fim do ciclo mais sólido da sua existência.


Para saber mais, ver:

BARROS, Júlia Leitão de, “Exposição do Mundo Português”, in BRITO, J. M. Brandão de, e ROSAS, Fernando (dir.), Dicionário de História do Estado Novo, Lisboa, Círculo de Leitores, 1996, vol. 1, pp. 325-327;

MÓNICA, Maria Filomena, “Exposição do Mundo Português”, in BARRETO, António, e MÓNICA, Maria Filomena (Coord.), Dicionário de História de Portugal, Vol. 7, Lisboa, Livraria Figueirinhas, 1999, pp. 710-711. (...).


Fonte: excertos de © 2005 | Hemeroteca Municipal de Lisboa

Vd. também: RTP Ensina > Exposição do Mundo Português, vídeo: 23' 42''



2. A nau “Portugal” (vd. foto acima), idealizada pelo cineasta Leitão de Barros (1896-1967), construída em 1940 para a Exposição do Mundo Português, foi pensada como um símbolo grandioso da epopeia marítima e do imaginário dos Descobrimentos.

No entanto,  alguns 
historiadores e críticos culturais olham para ela como uma "encenação", uma versão romantizada e artificial de um passado que o regime do Estado Novo queria promover. Há quem, mais radical, não esconda que foi uma caricatura de um "império de papel".

De facto, a Exposição do Mundo Português (1940) foi, em grande parte, uma obra de arte efémera (e sobretudo de arquitetura), se bem que que tenha sido também um grande êxito, enquanto evento cultural e propagandístico, prestigiante para o País e para o Estado Novo. Seis dezenas de anos depois, só a Expo 98, também em Lisboa, lhe poderia pedir meças.

Muitos dos pavilhões e estruturas foram construídos com materiais baratos e temporários, tais como madeira, estuque / gesso, pasta de papel (incluindo papelão moldado e reforçado), fibrocimento, telas pintadas, revestimentos decorativos não duráveis, etc,

Estes materiais permitiam criar uma cenografia monumental a baixo custo, dado que as estruturas não eram pensadas para durar após o encerramento da exposição.

Contudo, alguns elementos mais importantes, como o Mosteiro dos Jerónimos, a Torre de Belém, já existentes, ou certas infra-estruturas de apoio, como o jardim colonial, a Praça do Império, o espelho de água, o padrão dos Descobrimentos, o Museu de Arte Popular, etc., são marcas que ainda hoje nos falam desse momento de glória, irrepetível, que foi, para Portugal e o Estado Novo, a Exposição do Mundo  Português.

3. O que infelizmente não chegou aos nossos dias foi a pobre nau "Portugal". (Tal como a nau "Catrineta", teria hoje muito que contar.)

Tópicos a reter sobre a Exposição do Duplo Centenário e o papel da nau "Portugal" que mimetizava um galeão quinhentista:

  • Propaganda do Estado Novo: a Exposição de 1940 tinha como objetivo enaltecer a “missão civilizadora” de Portugal e reforçar a narrativa de um país com um destino imperial, por desígnio divino (imperial mas não "imperialista"....); a nau servia mais como peça cénica do que como reconstrução museográfica rigorosa;
  • Falta de autenticidade e rigor históricos: embora se inspirasse nos galeões quinhentistas, a nau incorporava elementos estilizados e não seguia fielmente aas técnicas de construção naval da época nem adoptava os materias originais; daí a perceção de “caricatura”;
  • Símbolo de um império já decadente: em 1940, Portugal já não tinha o império que proclamava; a nau torna-se assim um símbolo paradoxal: imponente à vista, mas representante de um poder mais mítico do que real, um "império de faz-de-conta", gerido a distância;
  • Valor cultural atual: apesar do seu evidente  caráter propagandístico, a nau “Portugal” podia continuar a ter interesse enquanto objeto histórico, revelando como o país (o regime, falando em seu nome) quis representar-se a si próprio naquele momento político, numa conjuntura internacional de excepcional gravidade (estava-se em plena guerra e as democracias ocidentais estavam em sério risco de se desmoronarem).

Recorde-se, entretanto. que entre a união ibérica, monarquia dual ou III dinastia (filipina) (1580–1640) e a independência do Brasil (1822), Portugal enfrentou um período de enorme pressão de potências europeias (sobretudo Holanda e Inglaterra) mas também do próximo oriente (como Omã),  perdendo vários territórios, praças e feitorias estratégicas do seu império oriental e africano, ou alienando outras (como as praças de Tanger, no Norte de África, e de Bombaim, na Índia, parte do dote da princesa Catarina de Bragança...). Eis os principais: territórios perdidos:

  • Ceilão (Sri Lanka)
  • Cochim, Quilon, Cananor e feitorias menores na Índia
  • Fortes no Coromandel
  • Ormuz (Irão)
  • Mascate (Omã)
  • Mombaça (Quénia) e domínio na costa suaíli, etc,

O império português reduziu-se sobretudo no Índico e no Golfo Pérsico, devido à ascensão holandesa, inglesa e omanita. E em 1822 perdeu a sua jóia da coroa, que era o Brasil. A "redescoberta" de África vem depois da independência  do Brasil, a única colónia do Novo Mundo.

Mas voltando à nau "Portugal"... Acabou por tombar mal do saiu do estaleiro, na Gafanha da Nazaré, no chamado dia do "bota-abaixo"... E esse episódio (caricatural) reforça ainda mais a ideia simbólica de fragilidade do “império” que o Estado Novo tentava encenar com pompa e circunstância.

De facto, assim que a nau “Portugal” foi lançada à água, adornou  devido ao mau cálculo do casco e ao desajuste do centro de gravidade (defeitos de desenho e construção conjugados também com um eventual erro de manobra). 

Foi um embaraço público, especialmente porque a embarcação tinha sido concebida para representar a glória marítima portuguesa na Exposição do Mundo Português. E causou grande comoção entre o público que assistia a esse momento único.

Alguns aspetos relevantes para se entender este revés (de que vale a pena falar com mais detalhe na II Parte).

  • Erro técnico evidente: a construção foi feita com grande preocupação estética, mas menos rigor técnico; o resultado foi um navio visualmente imponente, mas estruturalmente desequilibrado;
  • Reação na época: apesar de se tentar minimizar o episódio, ficou para a posteridade como símbolo do improviso,   do efeito perverso da propaganda ( e talvez do "desenrascanço" lusitano):
  • Força simbólica posterior: alguns historiadores interpretam o acidente como uma metáfora involuntária: um projeto grandioso mas mal fundamentado, refletindo a discrepância entre a imagem do império projetada pelo regime e a realidade.

Depois do acidente inicial, a história da nau “Portugal” continua a ser, de certa forma, tão simbólica como o próprio projeto.

Depois de ter adornado, logo após o lançamento à água, em 7 de junho de 1940,  a embarcação teve de ser endireitada e estabilizada: foram feitas modificações de emergência para permitir que o navio pudesse cumprir minimamente a função decorativa e cénica que lhe tinha sido atribuída na Exposição do Mundo Português.

E foi, de facto, uma das grandes atrações da Exposição  (a partir de 17 de setembro, depois de recuperada), servindo como cenário flutuante, mais ornamental do que funcional, e tornado-se parte do percurso expositivo que celebrava a epopeia marítima...  

Enfim, era mais um símbolo do que um navio. Tinha problemas estruturais persistentes: a embarcação nunca foi estruturalmente sólida. Era demasiado pesada no cimo, pouco estável e feita sobretudo para “parecer”, não para navegar, embora tivesse sido pensada como uma réplica navegável, para ser usada depois na promoção de produtos portugueses, como os vinhos (nomeadamente no Brasil).

Teve um triste fim: depois de cumprir o seu papel cénico num ambicioso programa propagandístico, a nau deixou de ter utilidade. Uns escassos meses depois, em 16 de fevereiro de 1941, sofreu danos irreparáveis devido ao ciclone que atingiu o país e sobretudo a região de Lisboa.  O seu casco foi aproveitado para batelão ou barcaça para transporte de mercadorias no estuário do Tejo. E em 1952 acabou ingloriamente por ser abatida.

Hoje a nau "Portugal" nem sequer é  lembrada, ou quando muito é
 citada como uma "anedota", uma peça de propaganda estética do Estado Novo; um símbolo da tentativa de recriar um passado grandioso com materiais frágeis; e um caso curioso de engenharia naval que revelou os limites entre o mito e  o realidade. (Na década de 1940 Portugal não tinha acesso a planos originais detalhados de galeões quinhentistas: ou não existiam muito simplesmente ou eram incompletos.)

 (Pesquisa: LG + Net + IA / Gemini, ChatGPT)

(Condensação, revisão / fixação de texto: LG

terça-feira, 11 de novembro de 2025

Guiné 61/74 - P27409: Os 50 anos da independência de Cabo Verde (11): o 1º Cruzeiro de Férias às Colónias do Ocidente: Mindelo, agosto de 1935 - Parte I



Fotograma nº 1 > 1º Cruzeiro de Férias às Colónias do Ocidente, documentário de San Payo (1936) > Cabo Verde > Ilha de São Vicente >   Mindelo > Agosto de 1935 > O cais do porto da Baía Grande e o casario ribeirinho, vistos do paquete a vapor "Moçambique"


Fotograma nº 2 > 1º Cruzeiro de Férias às Colónias do Ocidente, documentário de San Payo (1936) > Cabo Verde > Ilha de São Vicente >   Mindelo > Agosto de 1935 > A Baía de Porto Grande (e, ao fundo, o Monte Cara). Com 4 km de diâmetro, é  formada pela cratera submarina de um antigo vulcão. A construção, ampliação e modernização do porto são já de 1962 e de 1997.E muito recentemente, em junho passado, foi inaugurado um terminal de cruzeiros, refletindo a aposta do governo de Cabo Verde no setor do turismo.
 

Fotograma nº 3 > 1º Cruzeiro de Férias às Colónias do Ocidente, documentário de San Payo (1936) > Cabo Verde > Ilha de São Vicente >   Mindelo > Agosto de 1935 >  Vista panorâmica da cidade do Mindelo e do Porto  da Baía Grande.


Fotograma nº 4  > 1º Cruzeiro de Férias às Colónias do Ocidente, documentário de San Payo (1936) > Cabo Verde > Ilha de São Vicente >   Mindelo > Agosto de 1935 >  Navio a vapor "Moçambique", que tinha partido de Lisboa a 10 de agosto... Desembarque dos excursionistas, que serão depois levados em barcos a remos para terra. Os jovens que se veem fardados,  são escoteiros, ainda não havia a Mocidade Portuguesa (será criada em 1936). 



Fotograma nº 5 > 1º Cruzeiro de Férias às Colónias do Ocidente, documentário de San Payo (1936) > Cabo Verde > Ilha de São Vicente >   Mindelo > Agosto de 1935 >  Barcos a remos em redor do vapor "Moçambique". Entre eles, os "tchabetas", os miúdos caçadores de moedas.


Fotograma nº 6 > 1º Cruzeiro de Férias às Colónias do Ocidente, documentário de San Payo (1936) > Cabo Verde > Ilha de Sáo Vicente >   Mindelo > Agosto de 1935 >  Barcos a remos aproximam-se no "Moçambique", enquanto a "miudagem", em segundo plano, em barcos a remos  mais pequenos, preparam-se para recolher, de mergulho, as moedas lançadas pelos turistas, por diversão... Fazia parte do "pitoresco" do Mindelo... Esses miúdos eram os "tchabetas".


Fotograma nº 7 > 1º Cruzeiro de Férias às Colónias do Ocidente, documentario de San Payo (1936) > Cabo Verde > Ilha de Sáo Vicente >   Mindelo > Agosto de 1935 >  Mais uma cena de "mergulhadoires de moedas", que captou a atenção do operador de imagem... Estes miúdos, que faziam parte da paisagem portuária do Mindelo,sobretudo entre os anos de 1920 e 1960, 
eram conhecidos popularmente como “mergulhadores de moedas” ou “tchabetas” em crioulo (forma derivada de "chapeta", pequena embarcação improvisada ou frágil). Mal chegava um navio com passageiros, ao porto da Baía Grande, os rapazes aproximavam-se, perigosamente, para pedir aos turistas que atirassem moedas, mergulhando depois para as apanhar: uma mistura de destreza, necessidade económica e espetáculo "exótico e pitoresco"para o forasteiro.


Fotograma nº  8 > 1º Cruzeiro de Férias às Colónias do Ocidente, documentário de San Payo (1936) > Cabo Verde > Ilha de São Vicente >   Mindelo > Agosto de 1935 > O apoio ao desembarque.


Fotograma nº  9 > 1º Cruzeiro de Férias às Colónias do Ocidente, documentário de!de San Payo (1936) > Cabo Verde > Ilha de Sáo Vicente >   Mindelo > Agosto de 1935 >  Um primeiro problema logístico: onde arranjar viaturas para tanta gente? 


Fotograma nº 10 > 1º Cruzeiro de Férias às Colónias do Ocidente, documentário de San Payo (1936) > Cabo Verde > Ilha de São Vicente >   Mindelo > Agosto de 1935 > Até carrinhas de caixa aberta serviam...


Fotograma nº 11 > 1º Cruzeiro de Férias às Colónias do Ocidente, documentário de San Payo (1936) > Cabo Verde > Ilha de São Vicente >   Mindelo > Agosto de 1935 >  O jovem professor Marcello Caetano, diretor cultural do Cruzeiro, discursando na câmara municipal.


Fotograma nº 12 > 1º Cruzeiro de Férias às Colónias do Ocidente, documentario de San Payo (1936) > Cabo Verde > Ilha de Sáo Vicente >   Mindelo > Agosto de 1935 > Receção na Câmara Municipal: as senhoras sentadas na primeira fila, com a sua indumentária característica dos anos 30...



Fotograma nº 13 > 1º Cruzeiro de Férias às Colónias do Ocidente, documentário de San Payo (1936) > Cabo Verde > Ilha de São Vicente >   Mindelo > Agosto de 1935 > Visita ao Mercado municipal


Fotograma nº 14 > 1º Cruzeiro de Férias às Colónias do Ocidente, documentário de San Payo (1936) > Cabo Verde > Ilha de São Vicente >   Mindelo > Agosto de 1935 >  A miudagem disputando as moedas deitadas para o meio da rua pelos turistas do "Moçambique"... Um espectáculo degradante, aos olhos de hoje, mas que fazia parte do "folclore" de "Soncent". A ilha, do Barlavento, a segunda mais populosa do arquipélago, continua a perder hoje o concurso dos seus melhores filhos para a Praia (a capital política) e para emigração. Apesar do desenvolmento socioeconómico da ilha e do resto do arquipélago.




Fotograma nº 15 > 1º Cruzeiro de Férias às Colónias do Ocidente, documentario de San Payo (1936) > Cabo Verde > Ilha de São Vicente >   Mindelo > Agosto de 1935 > Visita á "Oficina do Estado, instituição de ensino profissional"...




Fotograma nº 16 > 1º Cruzeiro de Férias às Colónias do Ocidente, documentário de San Payo (1936) > Cabo Verde > Ilha de Sáo Vicente > Mindelo > Agosto de 1935 > O célebre quiosque da Praça Nova (hoje Praça Amílcar Cabral, e o quiosque ainda lá está, desde 1931; quanto á praça, o povo continua a chamar-lhe Praça Nova, e não Amílcar Cabral, designação toponímica imposta em 1975 pelo governo do PAIGC) ...

A morabeza estampada no rosto desta mulher. Ainda não havia a cerveja Sagres (só aparecerá em 1940), mas já havia a Estrella...nome decalcado da famosa cerveja belga Stella.


A "Estrela" tinha fábrica em Lisboa, desde o séc. XIX, tal como as marcas "Jansen" e "Portugália". Estas três pequenas cervejeiras foram integradas na Sociedade Central de Cervejas, criada em 1934. Na época o consumo "per capita" de cerveja em Portugal era de apenas... 1 litro.


Cortesia de Cinemateca Digital, documentário "I Cruzeiro de Férias às Colónias do Ocidente", realizado em 1936 por San Payo. Disponível aqui:

http://www.cinemateca.pt/Cinemateca-Digital/Ficha.aspx?obraid=1378&type=Video


(Seleção e edição de imagens, numeração, legendagem, revisão / fixação de texto, título, negritos: LG)



1. Estas imagens, obtidas de fotogramas do filme do San Payo (Por, 1936, 91', P&B, sem som), podem ter algum valor documental, para nós, antigos combatentes. Terão seguramente para os nossos amigos e camaradas que são naturais do Mindelo ou que lá vivem ou que conhecem o Mindelo, e a quem pedimos que comentem: a Lia Medina, o Carlos Gilipe Gonçalves, o Adriano Lima, o Manuel Amante da Rosa, o Nelson Herbert...

Para já ajudam- nos a seguir a rota deste l Cruzeiro de Férias ás Colónias do Ocidente (Cabo Verde, Guiné, São Tomé e Príncipe, Angola), que ficou registado em filme, em celulolóide, e entretanto, em boa hora, digitalizado pela Cinemateca Nacional (*)

Recorde-se o contexto:

(i) a iniciativa partiu da revista "O Mundo Português", tendo juntado cerca de duas centenas de "estudantes, professores, médicos, engenheiros, advogados, artistas, escritores, industriais e comerciantes";  o financiamento do cruzeiro teve comparticipação do Estado; 

(ii) esta "revista de cultura e propaganda, arte e literatura coloniais" era dirigida por Augusto Cunha, sendo propriedade da Agência Geral das Colónias e do Secretariado da Propaganda Nacional;

(iii) foi director cultural deste cruzeiro foi o prof doutor Marcelo Caetano (1906-1980), então um jovem, com 29 anos, intelectula orgânico do stado Novo, brilhante académico, especialista em direito administrativo, doutrinador do corporativismo e entusiástico apoiante do luso-tropicalismo (será comissário da Mocidade Portuguesa em 1940 e ministro das colónias em 1944, até chegar a sucessor de Salazar, de 1968 a 1974);

(iv) o filme, de hora e meia, foi realizado pelo conceituado fotógrafo Manuel Alves San Payo (1890-1974), natural de Melgaço, política e ideologicamente próximo do regime do Estado Novo; 

(v) o documentário acabou, ingloriamente, por não passar nas salas de cinema: merece ser hoje revisto , divulgado e comentado por todos nós, nomeadamente na comemoração dos 50 anos da independência de Cabo Verde (1975) (**);

(vi) o filme tem 15 minutos dedicados à paragem em Cabo Verde, em São Vicente (Mindelo) e Santiago (Praia) (8' - 23'), um pouco mais do que a visita à Guiné (Bissau e Bolama) (23' - 37');

(vii) ainda não  existia a Mocidade Portuguesa, criada pelo Decreto-Lei n.º 26 611, de 19 de maio de 1936, em cumprimento do disposto na Base XI da Lei n.º 1941, de 19 de abril de 1936;

(viii) pelo Decreto n.º 29 453, de 17 de fevereiro de 1939, a Organização foi alargada «à Mocidade Portuguesa das colónias, de origem europeia, e à juventude indígena assimilada" (sic).

(ix) mas a ilha de São Vicente, ou melhor, o Mindelo, já era a capital cultural do arquipélago; tinha liceu, desde 1917, o único do arquipélago, o liceu Infante Dom Henrique, rebatizado Gil Eanes, em 1938; nele estudou, entre muitos outros, Amílcar Cabral; (o outro estabelecimento de ensino secundário era o seminário-liceu de Sáo Nicolau);

(x) não há, no filme (como seria de esperar, para mais com a cenura em vigor...) uma única palavras sobre as secas e as fomes ciclicas, a morbimortalidade, o desemprego, a emigração, a história atribulada da ilha de Sáo Vicente e do Mindelo

(xi) um ano antes, em 7 de junho de 1934, tinha-se dado a "revolta de Nho Ambroze", uma revolta popular espontânea contra "a miséria e a fome", decorrentes do impacto da crise eocnómica mundial e da inação do Govermo de Lisboa; o Mindelo vivia do tráfego marítimo; houve saques da Alfândega e de casas comerciais; 1 morto e vários feridos; uma revolta á medida daquela gente pacífica e sofredora;

(xi) o Nho Ambroze será deportado a seguir para Angola; é hoje um dos heróis mindelenses, "capitão Ambroze".

(Continua)
______________________


Notas do editor LG:

(*) Vd, postes de:

7 de novembro de 2025 > Guiné 61/74 - P27398: 1º Cruzeiro de Férias às Colónias do Ocidente (Cabo Verde, Guiné, S. Tomé e Príncipe e Angola, 10 de agosto - 4 de outubro de 1935), de que foi diretor cultural o jovem e brilhante professor Marcello Caetano - Parte V: preços só para meninos ricos ou gente da classe média-alta... Hoje daria para dar a volta ao mundo em 100 dias.

4 de novembro de 2025 > Guiné 61/74 - P27386: 1º Cruzeiro de Férias às Colónias do Ocidente (Cabo Verde, Guiné, S. Tomé e Príncipe e Angola, 10 de agosto - 4 de outubro de 1935), de que foi diretor cultural o jovem e brilhante professor Marcello Caetano - Parte III: um documentário de hora e meia, que diz muito (até pelo que omite) sobre o que era o "ultramar português" há 90 anos

(**) Último poste da série > 30 de agosto de 2025 > Guiné 61/74 - P27166: Os 50 anos da independência de Cabo Verde (10): Secas e fomes levaram ao longo do séc. XX à morte de mais de 100 mil pessoas

segunda-feira, 10 de novembro de 2025

Guiné 61/74 - P27406: Agenda cultural (907): Museu Nacional de Etnologia, Belém, Lisboa: Prolongada até 30/11/2025 a Exposição: “Desconstruir o Colonialismo, Descolonizar o Imaginário. O Colonialismo Português em África: Mitos e Realidades” ... Saiu, entretanto, a 2ª edição, revista e aumentada, do livro homónimo (Lx., Colibri, 2025, 360 pp.)


Benfica, mais do que um símbolo, uma "marca nacional"...  Foto da equipa, campeã europeia, tirada em frente ao Padrão dos Descobrimentos, outro ícone do Estado Novo.

Capa da revista "Benfica Ilustrado",  abril de 1961, nº 43. 
(Fonte: Biblioteca Nacional de Portugal, Lisboa). 


"Ao serviço do Benfica e de Portugal"...Mais um exemplo da utilização (abusiva= do Futebol na propaganda do Estado Novo... (neste caso, da responsabilidade da direção do clube)

 Fonte: revista "Benfica Ilustrado", novembro de 1963, nº 74 (Fonte: Biblioteca Nacional de Portugal).

Recorde-se quem eram os presidentes do Benfica nesta "época de ouro":  (i) Maurício Vieira de Brito foi o presidente durante a temporada 1960-61, culminando com a vitória na Taça dos Campeões Europeus; (ii) sucedeu-lhe em 1963 António Cabral Fezas Vital, que esteve no cargo até março de 1964; (iii) tendo-lhe sucedido Adolfo Vieira de Brito, irmão do Maurício...

O Futebol era então, pretensamente, um dos 3 Efes da nossa "identidade como povo" : Futebol, Fátima e Fado, ou Fado, Fátima e Futebol (a ordem dos factores era arbitrária).

Duas imagens que ilustram a Exposição, no painel sobre o lusotropicalismo e o(s) seu(s) uso(s) colonial(ais).






O futebol do Portugal  "plurracial e pluricontinental" foi outro dos domínios onde o "lusotropicalismo" assentou que nem uma luva... Veja-se a utilização da figura do moçambicano Eusébio ou da equipa do Benfica de 1961/62...

Imagens da exposição “Desconstruir o Colonialismo, Descolonizar o Imaginário. O Colonialismo Português em África: Mitos e Realidades”. Fotos: LG (2025)



1. Diz o António Rosinho que aqui falta a voz do "colonizado"... Bom, respondi-lhe que ela está presente,  nesta exposição, transmitida sobretudo pelos antigos estudantes da Casa do Império que depois vão ser os novos "senhores da guerra" (Amílcar Cabral, Agostinho Neto, etc. ). Há vídeos que são transmitidos em simultâneo com a exposição, com a sua cara, a sua voz, os seus discursos...

Concordo com o Rosinha num ponto (que é central): como todas as exposições sobre temas complexos de história, esta também é inevitavelmente redutora, como eram as aulas dadas no meu tempo, na universidade,   através do recurso ao "power point"  (e, antes,  das famosas "micas", em retroprojetor).

O objetivo é também didático e pedagógico:  a exposição há de a seguir, em  2026, passar por escolas de várias partes do país... "Uma seca, dirão os putos"... que já não gostam de ler e muito menos de história.

Com meia dúzia de "slides", neste caso, uns tantos pósteres, em oito painéis temáticos , arruma-se  uma período da nossa história co.um,  nossa e das ex- colónias africanas, agora países lusófonos africanos, que foi doloroso, fraturante e ainda é incómodo para muitos de nós,  portugueses, cabo-verdianos, guineenses, sao- tomenses, angolanos, moçambicanos, etc. 

É que as "guerras de descolonização" também foram "guerras civis" ou "interétnicas"... Só na Guiné cerca de 15 mil guineenses combateram, do lado das NT, contra o PAIGC... Este facto histórico não pode ser ignorada pelos historiadores... Claro, o mesmo aconteceu na Indonésia, na Argélia, no Vietname....

Falta também a crítica do anticolonialismo e pós-colonialismo, os seus mitos e realidades, incluindo os seus crimes (execuções sarias, fuzilamentos em massa, trabalho forçado nas "áreas libertadas"...).

Falta também a voz dos antigos combatentes ou dos últimos soldados do Império... Foram ignorados nesta exposição como "escória da História"... (Mas, concordo,  isso seria outra exposição, outra encomenda, outros olhares, outros arquivos, outras fontes.)

Faltam eventualmente outras abordagens teórico-metodológicas da colonização e descolonização... Está é ainda dominada pelo pensamento único. Falta-lhe o contraditório...

A história é uma ciência, mas ainda com muita conflitualidade de "escolas", isto é, conflitualidade  teórico-ideológica... Ainda é, e sempre o será.  

A Isabel de Castro Henriques e a sua equipa pertencem a uma "escola", o que não retira mérito ao enorme (diria mais: espantoso)  trabalho realizado, e que ainda pode ser vista até ao fim deste mês de novembro, no nosso Museu Nacional de Etnologia, instituição cultural pela qual eu nutro um especial carinho (mas que já teve dias melhores, nomeadamente com o meu amigo é professor Joaquim Pais de Brito: a falta de recursos humanos é gritante, chocou-me).

De qualquer modo, todos concordamos que uma foto e uma legenda "não dizem tudo", pode ser um cliché... E depois a maior parte destes especialistas, gente da academia, não viveu África (nem sequer lá esteve) como eu e o "colón" e retornado António Rosinha. Não viveu a África, colonial, a quente, a cores e ao vivo...Falta-lhes o "sangue, suor e lágrimas", o que não quer dizer que  não se pode fazer boa ciència, e logo boa história, sem estes "ingrientes" da ação. 

Os historiadores, de facto,  não têm que ser atores.  E muito menos cronistas. E na maior dos casos nem contemporâneos são dos acontecimentos. De qualquer modo, nenhum deles (e delas) terá apanhado o paludismo... nem muito menos bebeu a água do Geba ou do Quanza ou do Zambeze... 

As referências à Guiné nesta exposição são, de resto,  pobrezinhas, é a minha impressão, que já lá voltei para uma segunda visita, com visita guiada por uma afável brasileira, de origem portuguesa.  Mas a Guiné não conta, nem sequer era uma colónia de povoamento. Ou só conta porque é, equivocamente, a Pátria do Amílcar Cabral, de pai cabo-verdiano.  Que continua a ter auréola de santo junto de muito boa gente, enquanto o Spínola é diabolizado. 

E, por fim, e não menos importante: que fique clara a minha posição: o colonialismo (enquanto sistema de dominação política e económica) é indefensável. Hoje. Monárquicos e republicanos há 100 anos eram todos colonialistas. 

Temos de "descolonizar o nosso imaginário", Isabel ? Seja, mas não se pode passar com uma esponja sobre a nossa (portuguesa) presença histórica em África e no resto do mundo. 

Desta vez comprei o livro homónimo, 2ª edição, revista e aumentada. Está no catálogo da Colibri, a 36,00 euros, já com desconto. Uma boa prenda de Natal, que dei a mim mesmo, antecipadamente. 

Mas, por favor,  não percam a a exposição. Até ao fim do mês. E comentem! Não deixem que sejam os outros a comentar por vocês. Desde que o façam dentro das boas regras do nosso blogue. 







Avenida Ilha da Madeira, 1400-203 Lisboa
Telef: 21 304 11 60

Horário > 3ª feira: 14h00 – 18h00 |  4ª feira a Domingo: 10h00 – 18h00


Exposição >  “Desconstruir o Colonialismo, Descolonizar o Imaginário. O Colonialismo Português em África: Mitos e Realidades” 

Museu Nacional de Etnologia, Lisboa, Belém, 
30 out 2024 / 30 nov 2025


Folha de sala:

(i) estará patente ao público na maior sala de exposições temporárias do Museu Nacional de Etnologia entre 30 de outubro de 2024 e 30 de Novembro de 2025;

(ii) é co-organizada pelo Museu Nacional de Etnologia (Museus e Monumentos de Portugal, E.P.E.) e o Centro de Estudos Sobre África e do Desenvolvimento (Instituto Superior de Economia e Gestão, UL);

(iii) realiza-se no contexto da prioridade que o Museu confere ao estudo de proveniência das suas coleções extraeuropeias e da reflexão sobre o contexto colonial em que o museu foi fundado e procedeu à recolha das suas primeiras coleções, procurando o envolvimento do público e das comunidades na valorização e divulgação das suas próprias culturas;

(iv) concebida e coordenada pela historiadora Isabel Castro Henriques, a exposição visa apresentar as linhas de força do colonialismo português em África nos séculos XIX e XX;

(v) tem como objetivos:

  • desconstruir os mitos criados pela ideologia colonial;
  • descolonizar os imaginários portugueses;
  • e contribuir, de forma pedagógica e acessível, para uma renovação do conhecimento sobre a questão colonial portuguesa.

(vi) dois eixos centrais estruturam a narrativa da exposição:

  • o primeiro eixo organiza-se em painéis temáticos, nos quais texto e imagem se articulam, pondo em evidência as linhas de força do colonialismo português dos séculos XIX e XX, e dando a palavra ao conhecimento histórico;
  •  o segundo eixo pretende “fazer falar” as obras de arte africanas, como evidências materiais do pensamento e da cultura africanas, evidenciando a complexidade organizativa dos sistemas sociais e culturais destas sociedades, permitindo mostrar a criatividade, a vitalidade, a sabedoria, a racionalidade, a diversidade identitária e as competências africanas e contribuindo para evidenciar e desconstruir a natureza falsificadora dos mitos coloniais portugueses.

(vii) este segundo eixo da exposição é constituído por uma seleção de 139 obras, repartidas entre coleções do Museu Nacional de Etnologia, incluindo algumas peças em depósito da Fundação Calouste Gulbenkian e do colecionador Francisco Capelo, e obras de arte africana contemporânea dos artistas Lívio de Morais, Hilaire Balu Kuyangiko e Mónica de Miranda;

(viii) realizada no âmbito das Comemorações dos 50 anos do 25 de Abril, este projeto resulta das pesquisas desenvolvidas pela equipa de cerca de trinta investigadores que nele colaboraram, tendo igualmente contado com o indispensável contributo de muitas entidades, nacionais e estrangeiras, que cederam a profusa documentação iconográfica apresentada nos painéis explicativos em torno dos quais se desenvolve a narrativa da exposição:

(ix) a Comissão Executiva da Exposição é presidida por Isabel Castro Henriques e integrada por Inocência Mata, Joana Pereira Leite, João Moreira da Silva, Luca Fazzini e Mariana Castro Henriques, e a sua Comissão Científica, igualmente presidida por Isabel Castro Henriques, é constituída por 20 elementos, entre os quais António Pinto Ribeiro, Aurora Almada Santos, Elsa Peralta, Isabel do Carmo e José Neves;

(x) a museografia, instalação e apresentação ao público da totalidade das obras das coleções do Museu Nacional de Etnologia foi assegurada pela própria equipa do Museu, que igualmente assegurou a produção da exposição, com a colaboração da equipa da Museus e Monumentos de Portugal, E.P.E; 

(xi) o Projeto Expositivo e de Comunicação da exposição é da autoria do P 06 studio.

(xii) de entre o programa paralelo a desenvolver entre 2024 e 2025 no âmbito deste projeto, destaca-se-se a realização de exposição itinerante, de caráter exclusivamente documental, que circulará por escolas e centros culturais em Portugal, assim como em diversos espaços de língua portuguesa, em África e no Brasil;

(xiii) ainda em 2024 terá início, no âmbito desse programa paralelo, o ciclo Cinema e Descolonização, com projeções de filmes relacionados com a realidade pós-colonial, a decorrer no ISEG e no Museu Nacional de Etnologia, encontrando-se prevista a realização de outras ações de caráter científico, nomeadamente Conferências e Colóquios, também em parceria com outras entidades;

(xiv) a  realização da exposição é acompanhada pela edição de livro homónimo, publicado pelas Edições Colibri, em cujas 344 páginas os c. de trinta investigadores que colaboraram neste projeto,  desenvolvem os vários temas abordados. (A 2ª edição, revista e aumentada, saiu em maio de 2025, e tem 360 pp.).

 __________________

Notas do editor LG:

(*) Último poste da série : 24 de outubro de 2025 > Guiné 61/74 - P27350: Agenda Cultural (869): António Graça de Abreu, "Conversas Sábias: Os fascínios de uma grande cidade, Pequim"... 30 de outubro, quinta-feira, 17:30, Auditório do Centro Científico e Cultural de Macau (CCCM)

/**) Vd.postes de:

10 de maio de 2025 > Guiné 61/74 - P26789: Os 50 Anos do 25 de Abril (38): Lisboa, Belém, Museu de Etnologia, até 2/11/2025: Exposição "Desconstruir o Colonialismo, Descolonizar o Imaginário. O Colonialismo Português em África: Mitos e Realidades" - Parte V

10 de maio de 2025 > Guiné 61/74 - P26789: Os 50 Anos do 25 de Abril (38): Lisboa, Belém, Museu de Etnologia, até 2/11/2025: Exposição "Desconstruir o Colonialismo, Descolonizar o Imaginário. O Colonialismo Português em África: Mitos e Realidades" - Parte IV

 23 de março de 2025 > Guiné 61/74 - P26608: Os 50 Anos do 25 de Abril (37): Lisboa, Belém, Museu de Etnologia, até 2/11/2025: Exposição "Desconstruir o Colonialismo, Descolonizar o Imaginário. O Colonialismo Português em África: Mitos e Realidades" - Parte III

15 de fevereiro de 2025 > Guiné 61/74 - P26499: Os 50 Anos do 25 de Abril (36): Lisboa, Belém, Museu de Etnologia, até 2/11/2025: Exposição "Desconstruir o Colonialismo, Descolonizar o Imaginário. O Colonialismo Português em África: Mitos e Realidades" - Parte II


quarta-feira, 27 de agosto de 2025

Guiné 61/74 - P27155: Felizmente ainda há verão em 2025 (24): amigos e camaradas da Guiné, não havia régulos em Angola... apenas sobas e regedores (Fernando de Sousa Ribeiro)


Angola > s/l > s/d > Fotografia, do domínio público, mostrando uma dança guerreira cuanhama, em 
que os participantes empunham arcos, flechas, lanças, etc. O 17º (e último)  rei dos cuanhamas foi o chamado soba Mandume (1894-1917).

Imagem e legenda: Cortesia do Fernando Ribeiro. Edição: Blogue Luís Graça 



(i) ex-alf mil at inf, CCAÇ 3535 /
BCAÇ 3880 (Zemba e Ponte do Zádi, Angola, 1972/74);

(ii) membro da Tabanca Grande desde 11 de novembro de 2018, com o nº 780, tem 35 referências no nosso blogue.

(iii) engenheiro, natural do Porto, é o administror do blogue "A Matéria do Tempo"que mantém ativo desde janeiro de 2006 até hoje.


1. Comentário do nosso camarada Fernando de Sousa Ribeiro, ao poste P27148 (*)

A palavra "régulo" não era usada em Angola. Ela podia figurar na legislação do território (não sei se figurava ou não), mas ninguém em Angola chamava régulo a um chefe tradicional. Isso era na Guiné e em Moçambique. A designação genericamente usada em Angola para designar um tal chefe era "soba".

A definição de soba está muito bem exposta na página FAAT-Fórum Angolano das Autoridades Tradicionais do Facebook, referida pelo Luís.

 A definição de soba que é dada na página referida é genérica. No concreto, existem algumas variantes, dependendo das etnias.

No próprio texto, vem a seguinte frase: «Existem dois tipos de Sobas, o Soba grande (regedor) e o Soba.» 

Eu nunca ouvi chamar "soba grande" a um regedor, mas, pelo menos entre os bacongos, o regedor era mais do que um soba; um regedor tinha vários sobas na sua dependência e (caso não fosse apenas um fantoche nomeado pela administração colonial) podia ser muito poderoso e influente. 

Conheci um regedor que era tão respeitado pelos seus súbditos que nem a PIDE se atrevia a meter-se com ele, por receio de provocar um levantamento popular... Os pides limitavam-se a vigiá-lo de longe, sem darem nas vistas.

O soberano dos cuanhamas também usava o título de soba, ainda que de facto fosse rei. O último rei dos cuanhamas foi o chamado soba Mandume, que acabou por se suicidar com um tiro de Mauser para não ser capturado, no fim das campanhas ditas "de pacificação". 

Eu mesmo sou testemunha da enorme admiração que os meus soldados africanos (de qualquer etnia) nutriam pelos cuanhamas, precisamente por causa da sua tenaz resistência à colonização portuguesa (em Angola) e alemã (na Namíbia). Diziam os meus soldados que não foram os portugueses nem os alemães que venceram os cuanhamas; foi a fome, provocada por uma seca entretanto surgida.

Do ponto de vista físico, os respeitados e admirados cuanhamas são um povo tendencialmente de elevada estatura e com feições que fazem lembrar as dos etíopes, sudaneses e até dos tuaregues, pelo menos em alguns casos. Praticam uma economia agro-pastoril e têm tradições guerreiras. Dito isto, será possível que haja algum laço de parentesco entre os cuanhamas e os fulas?

A imagem que se publica acima, é muito antiga e mostra uma dança guerreira cuanhama, em que os participantes empunham arcos, flechas, lanças, etc.
 
Em Coimbra existiu uma república de estudantes chamada Kimbo dos Sobas (no plural) (imagem `^a esquerda). Ela era assim chamada por ter sido fundada por estudantes angolanos. 

A República Kimbo dos Sobas teve uma participação ativa na crise académica de 1969, juntamente com todas as outras repúblicas da cidade, menos uma.

A palavra quimbo é sinónima da palavra sanzala e ambas equivalem a tabanca. 

No norte de Angola usa-se a palavra sanzala, enquanto no centro e no sul se usa a palavra quimbo. Duvido seriamente que a palavra quimbo venha do umbundo, porque na língua umbundo não existe a sílaba ki, que é sempre substituída pela sílaba tchi. A palavra quimbo poderia ser, por exemplo, uma forma abreviada da palavra quilombo.

Angola não era a joia da coroa do império português, de maneira nenhuma. A joia do império era Goa. Angola era um território para onde eram desterrados os condenados ao degredo pela Justiça, como aconteceu ao Zé do Telhado e a muitos outros. Um território assim não pode ser joia de coisa alguma.

O selo moçambicano que se vê na última imagem é um selo da Companhia do Niassa, uma companhia majestática equivalente à sua vizinha Companhia de Moçambique. Note-se que em parte nenhuma do selo se pode ler a palavra "Moçambique", o que é muito significativo.



2. Comentário do editor LG:

Fernando, tens toda a razão no que respeita ao uso da palavra "régulo" em Angola. Se leres o Decreto-lei 23228, de 15 de Novembro de 1933 (Carta Orgânica do Império Colonial Português), o termo genérico consagrado para as autoridades gentílicas é regedor (soba em Angola, régulo na Guiné e em Moçambique, liurai em Timor...).

Já que estamos no verão de 2025 e a nossa universidade sénior não encerrou para ir... a banhos, vamos discorrer um pouco sobre esta "bizantinice"...(Ou talvez não: acho que não estamos a discutir o "sexo dos anjos"... As questões terminológicas também são importantes... Corrigi o poste P27148, substituindo régulo por regedor. E dei conhecimento a alguns dos nossos "amigos angolanos").

Este diploma de 1933 é um marco do regime do Estado Novo na definição da política colonial, consolidando a ideologia do império orgânico, centralizado e hierarquizado. Um império ainda em grande parte de "papel"... Lisboa gostava de gerir o seu vasto e glorioso império, "de caneta e papel" em cima da secretária do gabinete... Até 1936 as campanhas de pacificação e ocupação ainda continuariam (na Guiné, nos Bijagós, em Canhabaque)

Sumário: Promulga a Carta Orgânica do Império Colonial Português, que dispõe sobre a administração colonial portuguesa nas seguintes províncias: Cabo Verde, Guiné, São Tomé e Príncipe, Angola, Moçambique, Estado da Índia, Macau e Timor. Estabelece os orgãos centrais de governo do imperio colonial, enunciando as suas atribuições, estrutura, competências e funcionamento. Dispõe sobre os funcionários coloniais e os serviços militares, bem como sobre a administração financeira e de justiça, a ordem social e económica e sobre os indígenas.

No que toca às autoridades gentílicas (designação para chefes locais africanos, como régulos, regedores, sobas, liurais, etc.), destacam-se os seguintes pontos:
  • Reconhecimento subordinado:
(ii) as autoridades tradicionais são reconhecidas, mas apenas enquanto delegadas do poder colonial; 

(ii) são enquadradas num sistema administrativo em que a soberania pertence exclusivamente ao Estado português.
  • Funções atribuídas:
(i)  cobrança de impostos e taxas (nomeadamente o famigerado “imposto de palhota”);

(ii) colaboração no recrutamento de trabalho forçado ou contratado (obras públicas, culturas obrigatórias, como o algodão, o café, a mancarra);

(iii) manutenção da ordem pública local, em articulação com a administração e forças militares;

(iv) apoio em campanhas de “civilização” (escola, missões catequese, saúde).
  • Nomeação e demissão:
(i) o poder colonial detém a prerrogativa de nomear, confirmar ou destituir os chefes gentílicos;

(ii) o que vem  esvaziar a legitimidade “tradicional” dessas autoridades, subordinando-as a critérios coloniais de “fidelidade”, "submissão" e “utilidade”.
  • Estatuto jurídico desigual:
(i) as autoridades gentílicas estavam enquadradas no Estatuto do Indigenato (abolido só em 1961), com direitos políticos e civis limitados:

(ii) não eram equiparadas a funcionários da administração colonial, mas sim auxiliares, com remuneração e prestígio dependentes da boa conduta perante os administradores coloniais.

 Análise Crítica do di0ploma:
  • Instrumento de dominação indireta
(i) o sistema reproduz a lógica do “indirect rule” britânico, embira forma menos institucionalizada;

(ii) Portugal utilizava os chefes locais para reduzir custos de administração e controle, em territórios a milhares de quilómetros de distância (em relação ao Terreiro do Paço), mantendo o "verniz" da continuidade e do respeito das estruturas tradicionais.
  • Ambiguidade entre tradição e colonialismo:
(i) embora se afirmasse respeitar “usos e costumes”, na prática tratava-se de uma manipulação seletiva da autoridade tradicional;

(ii) muitas vezes, os chefes hostis eram destituídos e substituídos por figuras mais maleáveis, corroendo a legitimidade das hierarquias locais.
  • Reforço da exploração colonial:
(i) a função principal atribuída às autoridades gentílicas era extrativa e coerciva: impostos, trabalho, disciplina, obediência, "compliance";

(ii) isso colocava-as em contradição (e conflito) com as próprias comunidades, passando a ser vistos como agentes do colonialismo.
  • Fragmentação e dependência:
(i) a política colonial dividia chefes e povos, ftragmentava comunidades, estimulava rivalidades internas, enfraquecia resistências coletivas e transformava ideranças locais em peças dependentes de Lisboa.
  • Efeito a longo prazo:
(i) após a independência, em vários territórios africanos, a herança das “autoridades gentílicas” sobreviveu de forma ambivalente;

(ii) por um lado, eram vistas como colaboracionistas; por outro, foram recuperadas em certas conjunturas como mediadoras comunitárias;

(iii) na Guiné, por exemplo, a memória da colaboração dos chefes gentílicos (régulos, chefes de tabanca, cipaios, guias e picadores, milícias...) com o poder colonial marcou o discurso político do PAIGC, que os acusava de serem “agentes do colonialismo”, "cães do colonialismo".

Em resumo:

O Decreto-lei 23228, de 15 de novembro de 1933,  institucionalizou um sistema de colonialismo indireto tutelado, em que as autoridades gentílicas foram reduzidas a instrumentos auxiliares do Estado Novo, destituídas da sua autonomia tradicional e transformadas em mediadores coloniais subordinados.

Embora tenha permitido algum grau de governabilidade num império vasto  e disperso, e com recursos administrativos limitados (humanos, técnicos, logísticos, financeiros...), comprometeu a legitimidade das lideranças africanas e criou dinâmicas de exploração, desconfiança e fragmentação social que perduraram para além da descolonização.

Vd. https://dre.tretas.org/dre/97412/decreto-lei-23228-de-15-de-novembro#anexos

(Fonte: Pesquisa: LG + IA/ChatGPT | Condensação, revisão / fixação de texto: LG)


PS - Fernando, quanto ao significado e origem da palavra "quimbo"...  "Quimbo" = bairro/aldeia indigena do centro de Angola; significa «no bairro» («ku imbo»); ficou em português: «quimbo». (Explicação dada no Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, 4 de maio de 2000).


O dicionário Priberam diz que "quimbo" (ku imbo) vem do umbundo... Quem sou eu para discordar ? E parece fazer sentido: o umbundo é a língua falada pelos ovimbundos, povo originário do Planalto Central de Angola; é a língua banta mais falada em Angola. O vocábulo "sanzala" usa-se no norte, e "quimbo" no sul, como tu reconheces.

Quanto á "jóia da coroa", Angola ou Goa... Bom,  refiro-me ao período do Estado Novo e ao tempo da guerra colonial... A Índia Portuguesa ficou definitivamente perdida em 1961...

De facto, originalmente, as colónias foram um um lugar de coerção e desterro (da Guiné a Timor, passando por Angola)...

Finalmente, o selo de 1901 é realmente exclusivo da Companhia (majestática) do Niassa (um estado dentro do estado, como se costuma dizer).


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Notas do editor LG:

(*) Vd. poste de 24 de agosto de 2025 > Guiné 61/74 - P27148: Felizmente ainda há verão em 2025 (22): Em Angola, nem todos os sobas eram régulos e nem todos os régulos eram sobas