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domingo, 24 de agosto de 2025

Guiné 61/74 - P27148: Felizmente ainda há verão em 2025 (22): Em Angola, nem todos os sobas eram regedores e nem todos os regedoreseram sobas


Foto de capa da página do Facebook do FAAT-Fórum Angolano das Autoridades Tradicionais (com a devida vénia...). A página foi criada em setembro de 2021 mas parece não estar ativa.  

"Quimbo", ou sanzala, no português de Angola, é o equivalente a tabanca (na Guiné): conjunto de casas que formam uma aglomeração rural (termo que vem do quimbundo, kimbo).



1. Angola, a joia da coroa do "império colonial português" (no tempo do Estado Novo), merece que o blogue da Tabanca Grande fale dela de vez em quando. Tem, de resto, mais de 600 referências... Afinal, fomos parar à Guiné...por causa de Angola!... 

O tema de hoje,  ainda em pleno verão (*), é sobre:


Sobas e Regedores: Autoridades Coloniais Locais, em Angola


António Rosinha, Patrício Ribeiro, Fernando Ribeiro, Jaime Silva, João Rodrigues Lobo e "outros angolanos" da Tabanca Grande não precisam de ser convidados: a vossa experiência vivida de Angola dá-vos autoridade para "meter a vossa colherada"  na discussão deste tema que também interessa aos "amigos e camaradas da Guiné"...

É um tema da área da antropologia e da história da administração colonial... Alguns de nós, como eu, gostariam de saber mais. (**) 

Havia uma diferença semântica e conceptual entre sobas e regedores, na Angola do tempo colonial. Embora muitas vezes fossem usados  indevidamente como se fossem sinónimos. Não são sinónimos. (O termo usado em Angola não era régulo, mas regedor, de acordo com a oportuna chamada de atenção do Fernando Ribeiro; como, de resto, vem consagrado na carta orgânica do Império Colonial Português, Decreto-lei 23228, de 15 de Novembro de 1933).

Na Angola do período colonial, os termos soba e regedor eram frequentemente utilizados para designar as autoridades tradicionais africanas (ou "gentílicas"), mas existia uma diferença fundamental entre eles, assente na origem da figura (e do vocábulo ) e na relação com a administração portuguesa. 

Soba vem do quimbundo "soba"... Essencialmente, soba era a designação endógena e ancestral,  enquanto regedor ou  régulo era a terminologia colonial que implicava uma integração no sistema colonial e na subordinação ao poder português (o termo "régulo"era usado na Guiné e e Moçambique)

O soba era a figura de autoridade tradicional, um chefe que já existia nas estruturas sociais e políticas dos diversos reinos e povos de Angola muito antes da chegada dos portugueses. 

O seu poder emanava de linhagens ancestrais, do controlo da terra e de uma legitimidade cultural e espiritual reconhecida pela sua comunidade. 

Os sobas desempenhavam um papel crucial na:
  • administração da justiça, 
  • distribuição de terras, 
  • condução de rituais;
  • defesa e segurança do seu povo. 

A sua autoridade era intrínseca à organização social local. Existia uma hierarquia entre eles, com a figura do "soba grande", que detinha poder sobre um conjunto de  outros sobas e sobados (territórios governados por um soba).

Por outro lado, sabe-se que em determinadas regiões de Angola há (ou havia no passado) um conselho de sobas que escolhe o soba: noutras a sucessão é (ou era)  realizada por linhagem em que o sobrinho, filho de uma irmã, toma(va) o lugar do seu tio por morte deste. Não sabemos como as coisas se passam hoje, cinquenta anos depois da independência de Angola.

 Por outro lado, o termo régulo, que deriva do latim  regulu(m)  (da palavra regulus, -i, rei jovem, rei de um pequeno estado), ou melhor, regedor,  era a designação que a administração colonial portuguesa atribuía aos chefes locais que eram incorporados na sua estrutura administrativa.

Ao se referir a um soba como regedor (ou "régulo", como , de resto, ainda vem nos dicionários portugueses para agravar a confusao!), o poder colonial não só traduzia a sua função para a sua própria compreensão hierárquica, mas também o diminuía simbolicamente, em termos de estatuto: de líder soberano tradicional, carismático,  passava a "pequeno rei" subalterno...

A transformação de um soba em regedor ocorria, na prática, quando este passava a atuar como um intermediário da administração colonial. As suas principais funções enquanto regedores incluíam;

  • a cobrança de impostos:
  • o recrutamento de mão de obra forçada (o "chibalo") (***):
  •  e a manutenção da ordem, de acordo com os interesses portugueses. 

Em troca, o regedor podia receber certos privilégios ou "honrarias",  como uma pequena remuneração, uniformes ou o reconhecimento e apoio militar da administração colonial contra rivais. 

Na Guiné, uma das formas de captação das simpatias dos régulos, ainda no tempo do governador,  gen Arnaldo Schulz,  era a organização de viagens a Meca, a expensas do Estado português: vd. aqui imagens de Lisboa > Aeroporto > 1968 > Partida de régulos da Guiné para a peregrinação a Meca, depois de visita oficial a Portugal. Vídeo da RTP Arquivos (Noticiário Nacional de 1968 > 3 de março de 1968 > Preto e branco, duração 56 segundos. Sem som.)

É importante notar que nem todos os sobas eram regedores ou se tornaram regedores. Muitos resistiram à dominação portuguesa e foram, por isso, combatidos e, por vezes, substituídos por indivíduos mais dóceis à administração colonial, que eram então empossados como regedores.

Em suma, a principal diferença residia na origem e na legitimação do poder:

(i) Soba:  

  • termo de origem africana, já existente antes da colonização;
  • designava um líder com autoridade tradicional e legitimidade interna na sua comunidade ou grupo étnico, anterior e, em muitos casos, independente do poder colonial;
  • o cargo era hereditário e estava ligado às tradições, linhagens e rituais locais;
  • tinha funções políticas, jurídicas (resolução de conflitos), espirituais e sociais, sendo uma figura central na organização das comunidades.
(ii) Regedor: 
  • termo de origem portuguesa (régulo só se usava na Guiné e em Moçambique);
  • régulo: derivado de regulu(m) e usado em contexto colonial para traduzir ou reinterpretar a figura dos chefes locais africanos;
  • regedor é o que dirige uma regedoria (unidade administrativa, que na metrópole era a freguesia, até 1974);
  • designava um líder local a quem a administração colonial reconhecia e delegava certas funções, inserindo-o na sua estrutura de poder e tornando-o, na prática, um funcionário subalterno do Estado colonial;
  •  não era necessariamente o mesmo que o soba, mas no terreno, muitas vezes, os colonizadores usavam o termo para designar esses chefes;
  • no fundo, era  uma categoria administrativa colonial.

  • o Estado colonial reconhecia oficialmente alguns chefes como regedores e subordinava-os à sua hierarquia, atribuindo-lhes funções de autoridade local no quadro da administração indireta ("indirect rule", dos ingleses).


Portanto, embora na prática um mesmo indivíduo pudesse ser um soba para o seu povo e um regedor para os portugueses, os termos carregam conotações e realidades políticas distintas que refletem a complexa e, muitas vezes, contraditória e tensa relação entre as autoridades tradicionais angolanas e o poder colonial português.

 Em resumo:
  • Soba = conceito autóctone, com legitimidade tradicional;

  • Regedor = conceito colonial, oficializado para fins administrativos, podendo coincidir ou não com a figura do soba.

Muitos sobas foram convertidos em regedores pela administração portuguesa, mas nem todos os régulos eram vistos como verdadeiros sobas pelas comunidades, o que gerava tensões e até conflitos.

Apresenta-se a seguir um quadro comparativo simples  para se perceber melhor a distinção entre soba e regedor na Angola colonial (que passou a ser "província ultramarina" com a reforma de 1951):


AspetoSoba (conceito autóctone)Regedor  (conceito colonial)


Origem do termo
Línguas banto (ex.: umbundo, quimbundo)Português (tal como régulo, derivado de regulu(m) (pequeno rei; o que rege)
Natureza
Cargo tradicional e espiritual, enraizado na cultura local
Categoria administrativa criada pelo poder colonial
Legitimidade
Hereditária, baseada em linhagem, tradição e rituais
Reconhecimento e nomeação pela administração colonial
Funções
Mediação de conflitos, chefia política, autoridade espiritual, guardião dos costumes
Autoridade local no quadro da “administração indireta”, recolha de impostos, apoio ao controlo colonial
Reconhecimento
Pela comunidade, segundo costumes próprios
Pelo Estado colonial, como “autoridade gentílica” oficial
Perceção localFigura respeitada, parte integrante da identidade culturalMuitas vezes visto como uma imposição externa (quando o regedor não coincidia com o verdadeiro soba)


Em suma: 

  • o soba representava a continuidade da tradição, a legitimidade pré-colonial; 
  • o regedor representava a adaptação (e em muitos casos apropriação) dessa autoridade ao sistema colonial.

Vejamos como a distinção entre sobas e regedores afetou as relações entre colonizadores e populações em Angola durante o período colonial:

(i) Administração indireta
  • o Estado colonial português não tinha capacidade para controlar diretamente todas as regiões  (por exemplo Angola, com 1,2 milhões de km2 era cerca de 14 vezes maior que a "metrópole", o "Puto", como lhe chamavam os colonos);

  • por isso, utilizava os sobas já existentes, reconhecendo-os (ou substituindo-os) como regedores;

  • isso permitia que a autoridade colonial chegasse ao nível local através de figuras tradicionais, mas com funções adaptadas aos interesses coloniais (o mesmo se passou com o império colonial britânico).

(ii) Tensões de legitimidade

  • quando o verdadeiro soba era reconhecido como regedor, a comunidade aceitava-o com relativa naturalidade;

  • mas, quando o governo colonial nomeava como regedor alguém que não tinha legitimidade tradicional, isso gerava conflitos internos:

    • uns seguiam o “soba legítimo” (mesmo sem reconhecimento colonial);

    • outros eram obrigados a obedecer ao “regedor oficial”, imposto pela administração.

  • Esse “duplo poder” minava tanto a coesão das comunidades como a própria confiança nas autoridades locais; as suas contradições foram exploradas pelos movimentos nacionalistas que lutavam pela independência.

(iii) Instrumentalização política
  • Muitos regedores passaram a ser usados como instrumentos do poder colonial:

    • recolha de impostos;

    • organização do trabalho forçado (contratos e recrutamento) (trabalho forçado que existiu até 1961);

    • fiscalização e denúncia de resistências (implicando, por vezes, a colaboração com as autoridades militares e policiais durante a guerra colonial).

  • Isto fez com que alguns regedores  fossem vistos como colaboracionistas, perdendo 
    prestígio junto da sua própria comunidade.


(iv) Resistência e negociação
  • houve sobas que se recusaram a aceitar o estatuto de regedor, mantendo apenas a sua autoridade tradicional, mesmo sob risco de represálias;

  • outros souberam negociar: aceitavam o papel de regedor para garantir alguma margem de manobra e proteger a comunidade, mas continuavam a agir como guardiões dos costumes;

  • assim, muitos sobas/regedores desempenhavam uma função ambígua, entre mediadores e representantes do poder colonial;

  • depois da independência, houve ajustes de contas (mais violentos na Guiné e em Moçambique do que em Angola, mas isso é outra história; no caso da Guiné, por exemplo, terá havido uma "militarização" da figura do régulo, que também podia ser um cabo de guerra, comandante de uma companhia de milícias).


Em suma:  a distinção entre soba e regedor, em Angola,  criou uma fratura entre legitimidade tradicional e legitimidade colonial. Isso foi explorado pelos colonizadores para controlar as populações, mas também abriu espaço para resistências subtis ou abertas, conforme cada comunidade e cada líder.

Leitura complementar > Trabalho de um grupo de alunos da Universidade Católica de Benguela , Departamento de Ciências da Educação, 2012 >  O Sobado. Blogue Pedagogia e Vida. 27 de junho de 2013. 

Índice da monografia (com cerca de 3 dezenas de páginas):

 Introdução |  Sanzala e Sobado | Sobado | Autoridade tradicional (Soba)  | Eleição dos sobados | Poderes | Privilégios  fundamentais dos sobas | Sobas em relação ao matrimónio | Lugares sagrados | Estrutura do poder mágico-religioso | Sobetas | Conselheiros | Conclusão | Sugestões | Referências bibliográficas.



Selo da Companhia do Niassa, 1901, no valor de dois réis e meio. Cortesia de Wikipedia.


(***) Chibalo é o conceito de servidão por dívida ou ou uma forma trabalho forçado, que esteve em vigor  nomeadamente em Moçambique (...)
 
Em 1869, a monarquia constitucional portuguesa aboliu oficialmente a escravidão, mas mantiveram-se resquícios (como o trabalho forçado para efeitos de obras públicas: pro exemplo, a construção do caminho de ferro de Benguela).

Em Moçambique, o trabalho forçado era conhecido como "chibalo". Este sistema estava intrinsecamente ligado à cobrança do "imposto de palhota", um imposto de capitação que obrigava os africanos a procurar trabalho assalariado e a entrar no circuito da economia monetarizada para poderem pagar. Quem não pagava,  era compelido a trabalhar para o Estado, muitas vezes em condições piores do que as oferecidas pelo setor privado,

Chibalo foi usado para construir infraestruturas (pontes, estradas, portos, aeródromos, etc.).  Apenas os colonos portugueses e assimilados recebiam educação e estavam isentos deste trabalho forçado. (...)

Sob o regime do Estado Novo, os o chibalo foi usado em Moçambique, por exemplo,  para cultivar algodão . A Companhia do Niassa  (uma "companhia majestática") é um exemplo do tipo de empresas que poderiam florescer desde que tivessem acesso a uma força de trabalho não remunerada. (...)
 
 Todos os homens de idade adequada tiveram que trabalhar nos campos de algodão, que se tornaram inúteis para a produção de alimentos, levando à fome e desnutrição. (Fonte: Adapt de Wikipedia)

chibalo
(chi·ba·lo)

nome masculino

1. [Moçambique] [História] Regime de trabalho forçado através do qual a administração colonial fornecia mão-de-obra barata aos colonos de grandes propriedades (ex.: a duração do chibalo era estipulada pelas autoridades locais). (...)

2. [Moçambique] [História] Trabalhador submetido a esse regime de trabalho.

Sinónimo geral: Xibalo

Origem: do tsonga.

"chibalo", in Dicionário Priberam da Língua Portuguesa [em linha], 2008-2025, https://dicionario.priberam.org/chibalo.

7 comentários:

Anónimo disse...

Exmo. Senhor
Julio Graça,
Comandante em Chefe, do Sector de Banbadinca e arredores .....
Estamos a assistir a verdadeiros tratados de conhecimentos, nunca antes navegados, isto é, conhecidos, falo por mim, claro.
Quem são os historiadores e politicos (de meia tigela) que sabem desta nossa historiografia e da presença dos centenários heróis da nossa história ultramarina?
Só se for o Rosas, charlatão, e mais não digo.
Nesta época já quente demais em que todos andam de um lado para o outro, a fazer férias, para depois comentarem à mesa do café as suas desventuras, não poupando os coitados que nem ao cafezinho vão?
Em vez de participarem mais escrevendo e comentando as nossas experiências, sem fim....
Abraço,

Virgilio Teixeira


Anónimo disse...

Retifico
Exmo Senhor General de 10 estrelas, comandante em chefe das FORÇAS ARMADAS
DO SECTOT DE BANBADINCA E ARREDORES......
.....
VT

Antº Rosinha disse...

Essas normas coloniais, talvez entre pretos e brancos, só os intendentes, alunos de Adriano Moreira conhecessem Tim por tim tim.
Mas já que Luís Graça traz Moçambique â baila, temos a dizer que foi esta colónia a mais complicada para se poder dizer que foi uma colónia portuguesa.
Terá por ventura os limites terrestres, mais enviesados, mais estupidamente recortados, que os ingleses podiam inventar, por esse mundo fora.
Ainda nós andávamos a rasca com o Gungunhana, já os ingleses tinham calado os "gungunhanas" deles desde o Egito a Cape Town.
Caminhos de ferro ingleses para servir interior inglês, só grandes companhias inglesas na agro-industria com mão de obra africana, paga como o Luís explica, condução à esquerda volante à direita...e os brancos moçambicanos gabavam-se que eram mais finos e mais desenvolvidos do que os angolanos. Chá às cinco, em Luanda era mais barris de vinho para aproveitar as aduelas para vedar quintais e fazer galinheiros.
Só para esclarecer quem nunca se deu ao trabalho de ler, só com Salazar é que as grandes companhias ingleses foram indemnizadas e entregaram tudo a Portugal e de facto a boa organização inglesa ficou a refletir-se positivamente no desenvolvimento e economia colonial de Moçambique.
Portanto Moçambique, a sério foi parcialmente uma colónia portuguesa durante 40 anos.
Os comboios, continuaram nas mãos dos ingleses, tal como o Caminho de ferro de Benguela em Angola.
Este só veio para administração portuguesa com Marcelo Caetano.
Quem gostava da colonização à inglesa era Norton de Matos e outros antisalazaristas.
(Talvez Cecil John Rhodes possa, finalmente, descansar em paz, ao ver enfim realizada a anexação de Moçambique ao mundo de fala inglesa, pela qual ele lutou ...)
E também brancos moçambicanos e um ou outro angolano, mas estes muito poucos.
Com Salazar os contratados forçados ou não recebiam 10 escudos diários, 5 na mão e 5 na tabanca quando regressassem a casa (6 meses).
Eu também tive pessoalmente distribuídos , 8, 10 e mais carregadores e porta miras, igualmente dezenas várias de colegas (brancos, mestiços e caboverdeanos) e todos felizes, e todos os contratados queriam repetir, mas nem sempre era possível, o que trazia algum trauma, para alguns era uma tormenta terem de regressar à sanzala.
Pior que os meus contratados angolanos foi a fome dos jovens guineenses que em Bissau quererem trabalhar na Tecnil, no tempo de Luis Cabral, e mesmo depois com Nino, enfim, continuava mal.
Eles bem estudavam para poderem obter uma bolsa para Kiev.
Nunca se devia colonizar ninguem, e nós quase não colonizávamos, se não fosse um pouquinho o Salazar para honrar o nosso passado.




Tabanca Grande Luís Graça disse...

Vt, nem estrelas nem general...Sou um pacato blogador... Como não posso ir para longe (por razões de mobilidade), entretenho-me por aqui, na Lourinhã, blogando e rindo... Para a semana já vou para as vindimas...

Como sabes, o blogue tem de "comer" todos os dias...É preciso alimentá-lo. Eu faço a minha parte, o Carlos Vinhal faz a dele... Os demais camaradas ajudam-nos, mandando-nos material, lendo, comentando, enfim, mantendo a "chama viva"... A canícula não ajuda... Obrigado pela tua atenção. Não me esqueci da terceira parte das tuas desventuras na Nino...lândia em 1985, com o "mandjor"!

Fernando Ribeiro disse...

A palavra "régulo" não era usada em Angola. Ela podia figurar na legislação do território (não sei se figurava ou não), mas ninguém em Angola chamava régulo a um chefe tradicional. Isso era na Guiné e em Moçambique. A designação genericamente usada em Angola para designar um tal chefe era "soba".

A definição de soba está muito bem exposta na página "FAAT-Fórum Angolano das Autoridades Tradicionais" do Facebook, referida pelo Luis.

https://www.facebook.com/faat2021/posts/pfbid0ZK1YXcBbUoynDf4o9a39YRRgF87mdD9uKKCi7bdohAUqsskds1oewwGjdkE9fBYhl

A definição de soba que é dada na página referida é genérica. No concreto, existem algumas variantes, dependendo das etnias.

No próprio texto, vem a seguinte frase: «Existem dois tipos de Sobas, o Soba grande (regedor) e o Soba.» Eu nunca ouvi chamar "soba grande" a um regedor, mas, pelo menos entre os bacongos, o regedor era mais do que um soba; um regedor tinha vários sobas na sua dependência e (caso não fosse apenas um fantoche nomeado pela administração colonial) podia ser muito poderoso e influente. Conheci um regedor que era tão respeitado pelos seus súbditos que nem a PIDE se atrevia a meter-se com ele, por receio de provocar um levantamento popular... Os pides limitavam-se a vigiá-lo de longe, sem darem nas vistas.

O soberano dos cuanhamas também usava o título de soba, ainda que de facto fosse rei. O último rei dos cuanhamas foi o chamado soba Mandume, que acabou por se suicidar com um tiro de Mauser para não ser capturado, no fim das campanhas ditas "de pacificação". Eu mesmo sou testemunha da enorme admiração que os meus soldados africanos (de qualquer etnia) nutriam pelos cuanhamas, precisamente por causa da sua tenaz resistência à colonização portuguesa (em Angola) e alemã (na Namíbia). Diziam os meus soldados que não foram os portugueses nem os alemães que venceram os cuanhamas; foi a fome, provocada por uma seca entretanto surgida.

Do ponto de vista físico, os respeitados e admirados cuanhamas são um povo tendencialmente de elevada estatura e com feições que fazem lembrar as dos etíopes, sudaneses e até dos tuaregues, pelo menos em alguns casos. Praticam uma economia agro-pastoril e têm tradições guerreiras. Dito isto, será possível que haja algum laço de parentesco entre os cuanhamas e os fulas?

A imagem que se segue é muito antiga e mostra uma dança guerreira cuanhama, em que os participantes empunham arcos, flechas, lanças, etc.

https://drive.google.com/file/d/1HejkrV3PD8pNaIi4OBeq2mObQDxtTE-J/view?usp=sharing

Em Coimbra existiu uma república de estudantes chamada Kimbo dos Sobas (no plural). Ela era assim chamada por ter sido fundada por estudantes angolanos. A república Kimbo dos Sobas teve uma participação ativa na crise académica de 1969, juntamente com todas as outras repúblicas da cidade, menos uma.

A palavra quimbo é sinónima da palavra sanzala e ambas equivalem a tabanca. No norte de Angola usa-se a palavra sanzala, enquanto no centro e no sul se usa a palavra quimbo. Duvido seriamente que a palavra quimbo venha do umbundo, porque na língua umbundo não existe a sílaba ki, que é sempre substituída pela sílaba tchi. A palavra quimbo poderia ser, por exemplo, uma forma abreviada da palavra quilombo.

Angola não era a joia da coroa do império português, de maneira nenhuma. A joia do império era Goa. Angola era um território para onde eram desterrados os condenados ao degredo pela Justiça, como aconteceu ao Zé do Telhado e a muitos outros. Um território assim não pode ser joia de coisa alguma.

O selo moçambicano que se vê na última imagem é um selo da Companhia do Niassa, uma companhia majestática equivalente à sua vizinha Companhia de Moçambique. Note-se que em parte nenhuma do selo se pode ler a palavra "Moçambique", o que é muito significativo.

Tabanca Grande Luís Graça disse...

Fernando, tens toda a razão no que respeita ao uso da palavra "régulo" em Angola. Se leres o Decreto-lei 23228, de 15 de Novembro de 1933 (Carta Orgânica do Império Colonial Português), o termo consagrado para as autoridades gentílicas é regedor (soba em Angola, régulo n a Guiné e em Moçambique, liurai em Timor...).

Este diploma é um marco do regime do Estado Novo na definição da política colonial, consolidando a ideologia do império orgânico, centralizado e hierarquizado. Um império ainda em grande parte de "papel"... Lisboa gostava de gerir o seu vasto e glorioso império, "de caneta e papel"...

Sumário: Promulga a Carta Orgânica do Império Colonial Português, que dispõe sobre a administração colonial portuguesa nas seguintes províncias: Cabo Verde, Guiné, São Tomé e Príncipe, Angola, Moçambique, Estado da Índia, Macau e Timor. Estabelece os orgãos centrais de governo do imperio colonial, enunciando as suas atribuições, estrutura, competências e funcionamento. Dispõe sobre os funcionários coloniais e os serviços militares, bem como sobre a administração financeira e de justiça, a ordem social e económica e sobre os indígenas.

No que toca às autoridades gentílicas (designação para chefes locais africanos, como régulos, sobas, liurais, etc.), destacam-se os seguintes pontos:

Reconhecimento subordinado
(ii) As autoridades tradicionais são reconhecidas, mas apenas enquanto delegadas do poder colonial.
(ii) São enquadradas num sistema administrativo em que a soberania pertence exclusivamente ao Estado português.

Funções atribuídas
(i) Cobrança de impostos e taxas (nomeadamente o “imposto de palhota”).
(ii) Colaboração no recrutamento de trabalho forçado ou contratado.
(iii) Manutenção da ordem local, em articulação com a administração e forças militares.
(iv) Apoio em campanhas de “civilização” (escola, catequese, saúde).

Nomeação e demissão
(i) O poder colonial detém a prerrogativa de nomear, confirmar ou destituir chefes gentílicos.
(ii) Isto esvaziava a legitimidade “tradicional” dessas autoridades, subordinando-as a critérios coloniais de “fidelidade” e “utilidade”.

Estatuto jurídico desigual
(i) As autoridades gentílicas estavam enquadradas no Estatuto do Indigenato, com direitos políticos e civis limitados.
(ii) Não eram equiparadas a funcionários da administração colonial, mas sim auxiliares, com remuneração e prestígio dependentes da boa conduta perante os administradores coloniais.

(Continua)

Tabanca Grande Luís Graça disse...

Decreto-lei 23228, de 15 de Novembro de 1933 (Carta Orgânica do Império Colonial Português)

(Continuação)

Análise Crítica:
Instrumento de dominação indireta
(i) O sistema reproduz a lógica do “indirect rule” britânico, mas de forma menos institucionalizada.
(ii) Portugal utilizava os chefes locais para reduzir custos de administração e controle, mantendo um verniz de continuidade das estruturas tradicionais.

Ambiguidade entre tradição e colonialismo
(i) Embora se afirmasse respeitar “usos e costumes”, na prática tratava-se de uma manipulação seletiva da autoridade tradicional.
(ii) Muitas vezes, chefes hostis eram destituídos e substituídos por figuras mais maleáveis, corroendo a legitimidade das hierarquias locais.

Reforço da exploração
(i) A função principal atribuída às autoridades gentílicas era extrativa e coerciva: impostos, trabalho, disciplina.
(ii) IIsso colocava-as em contradição com as próprias comunidades, que as passaram a ver como agentes do colonialismo.

Fragmentação e dependência
(i) A política colonial dividia chefes e povos, estimulando rivalidades internas, enfraquecendo resistências coletivas e transformando lideranças locais em peças dependentes de Lisboa.

Efeito a longo prazo
(i) Após a independência, em vários territórios africanos, a herança das “autoridades gentílicas” sobreviveu de forma ambivalente: por um lado, vistas como colaboracionistas; por outro, recuperadas em certas conjunturas como mediadoras comunitárias.
(ii) Na Guiné, por exemplo, a memória da colaboração de régulos e chefes gentílicos com o poder colonial marcou o discurso político do PAIGC, que os acusava de serem “agentes do colonialismo”, "cães do colonialismo"

Em resumo:
O Decreto-lei 23228 de 1933 institucionalizou um sistema de colonialismo indireto tutelado, em que as autoridades gentílicas foram reduzidas a instrumentos auxiliares do Estado Novo, destituídas da sua autonomia tradicional e transformadas em mediadores coloniais subordinados. Embora tenha permitido algum grau de governabilidade num império vasto e com recursos administrativos limitados, comprometeu a legitimidade das lideranças africanas e criou dinâmicas de exploração, desconfiança e fragmentação social que perduraram para além da descolonização.

Vd. https://dre.tretas.org/dre/97412/decreto-lei-23228-de-15-de-novembro#anexos

(Fonte: Pesquisa: LG + IA/ChatGPT | Condensação, revisão / fixação de texto: LG)