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domingo, 7 de março de 2010

Guiné 63/74 - P5947: A minha série Vindimas e vindimados nada tem a ver com o meu livro Vindimas no Capim (José Brás)

1. Mensagem de José Bras* (ex-Fur Mil na CCAÇ 1622, Aldeia Formosa e Mejo, 1966/68), com data de 3 de Março de 2010:

Carlos, meu camarada
Uma ou outra vez pareceu-me que alguns camaradas tinham os meus escritos no blogue, em especial os que saíram sobe o tema genérico “Vindimas e Vindimados**, eram partes do meu livro “Vindimas no Capim”.
Neste momento, face a contactos vários de amigos, antigos combatentes, essa ideia consolidou-se.

Por isso, esta necessidade de esclarecer e negar tal facto, afirmando que nenhum dos episódios editados no âmbito da Tabanca Grande está presente no texto ou na trama de “Vindimas no Capim”, trabalho que construí, na altura sem qualquer propósito de falar de guerra ou da guerra, mas antes como tentativa de buscar os meninos que se fizeram soldados; de encontrar em que País nasceram e cresceram, em que escola, em que catequese, em que relações de poder, de pastores, de cavadores de terra, de vindimadores, de pescadores, de pedreiros, de estudantes, se fizeram militares e partiram para a guerra na crença de que era seu dever defender a Pátria.

O Capim era apenas o cenário violento onde se transformavam dia a dia em outra gente que haveria de voltar ao Cais da Rocha, ao campo de seus pais e avós, à faina da sardinha, a uma outra vida de operário, aos caminhos de França e da Alemanha.

Os textos publicados são mais directamente ligados à guerra e às suas consequências imediatas no campo de batalha, a morte, o sangue, o heroísmo e o medo, entendidos nos dois lados da contenda porque ambos compostos por homens fiéis a ideias e a ideais e dispostos, muitas vezes, a superar-se por dentro para que, por fora, se pudessem apresentar dignos de seu nome.
Portanto, aproveitando para fazer a divulgação (não confundir com publicidade) quem quiser ler “Vindimas no Capim”, vai mesmo ter que adquirir o pedir emprestado a amigo ou na biblioteca municipal.

Outra coisa é o futuro, e por aí não garanto que alguns dos textos editados na Tabanca, não venham a aparecer em livro brevemente. Direi até que tem nome, está em análise em editor, tem 182 páginas entre Guiné, Rio de Janeiro, Salvador, Angola, Canadá, and so on, terras todas de um lote maior por onde andei nesta vida e que uns poucos camaradas conhecem já.

Portanto… ”Vindimas no capim” é uma coisa, “Vindimas e Vindimados” é outra coisa, e “Lugares de Passagem”, que sendo um pouco e de outro modo, a mesma, é ainda outra.

Abraços
José Brás
__________

Notas de CV:

(*) Vd. poste de 17 de Fevereiro de 2010 > Guiné 63/74 - P5830: Controvérsias (66): A questão colonial (II): Colonização portuguesa - Particularidades (Descolonização e Conclusão) (José Brás)

Ver postes da série Vindimas e vindimados de autoria de José Brás

quinta-feira, 16 de julho de 2009

Guiné 63/74 - P4696: Vindimas e Vindimados (José Brás) (7): Nhala I

1. Mensagem de José Brás (*), ex-Fur Mil da CCAÇ 1622, Aldeia Formosa e Mejo, 1966/68, com data de 14 de Julho de 2009:

Companheiro Carlos

Aqui vai mais uma estória a incluir na série “Vindimas e Vindimados

A esta irá seguir-se “Nhala II” e vem do centro de um pequeno tsunami, parte ocasionado pelo que conheces e já esquecemos, e parte gerado neste processo de chamar de novo imagens e emoções difíceis de esquecer mas também difíceis de recordar por dentro.

Um abraço
José Brás


Nhala I

Que porra é esta pessoal
Éh caraças olhem o tamanho dos clarões
É aqui pertinho, pá
A norte da estrada de Buba
É em Nhala, é em Nhala
Não há problema, já estão acostumados.
Gaita, pá, mas aquilo é de mais, rebentam com tudo
Cala a boca piriquito, não estás é habituado
Deixa que já te habituas
Se não lerpares primeiro


Gente jovem, um magote de macho, furriéis, sargentos e praças saíam à pressa do bar comum, e outros de suas casernas, olhavam agitados o topo das árvores que no limite do desmatado, para além da soleira sul da pista, fechavam o espaço físico de Aldeia Formosa e deixavam adivinhar um mundo de medos e fantasmas. Ouviam aquele som novo, telúrico e cavo, que mais lhes parecia sair da terra do que das mãos de homens, negros que fossem e do inimigo.

Quinze dias era o que tínhamos desta trampa, e trampa era, aqui para nós, qualquer coisa que não fosse a asa protectora da mãe; trampa, ainda que fosse Aldeia Formosa, um paraíso como havemos de constatar mais tarde quando elas começarem a morder.

Estes quinze dias haviam passado nas calmas, rancho melhor que no puto, cerveja fresca, sorna, serviços como na tropa de Lisboa, guarda, faxina, na fonte a partir mantenha com as bajudas da aldeia, boas como o milho, de mama rija, e atrevidas, sempre nos risinhos umas com as outras, afastando a mão branca que lhes procurava as carnes, dengosas no modo, ”iiiih pissoal branco, ca põe mão, em mim”, atiçando fogos, levantando pragas contra a mania do Capitão “já sabem, tenham cuidado com bajudas, estão prometidas e os pais contam com as vacas da troca. Nem em sonhos, malta. Não quero problemas sociais aqui”.

Sociais!? Que raio de porra seria essa, problemas sociais?

Problema social era a calada da noite no sanitário, cada um a contas consigo próprio, em auto-gestão à conta das bajudas.

A Buba, apenas uma ida, em coluna, amparados pelos velhinhos das Fox, caminho a butes por causa das minas, trinta quilómetros, mais ou menos, que na altura pareceram cinquenta e agora me parecem dez, carregar tralha do cais para o dorso de unimog's e GMC’s, voltar pelo mesmo caminho, um calor danado, lama de enterrar carros até à pança, descarregar tudo, empurrar, empurrar até a alma sair pela boca, voltar a carregar, quinhentos metros mais à frente tudo ao princípio.

Ainda era noite quando saímos. Picar estrada a passo de caracol, o Sol a sair da copa das árvores, já vermelhão, pintando de vermelho a terra da estrada, espalhando um bafo de humidade quente, o cheiro intenso de África que se irá colar a cada um até ao fim dos seus dias, sendo que uns irão ter dias curtos, ainda que o não saibam, e outros os alongarão por anos e anos, noutras guerras e diferentes, noutras paragens, remoendo passados, trazendo à memória tais cenas como se houvessem corrido em fita de cinema, cada um, personagem, actor, espectador, do seu próprio filme, envolto e encadeado numa certa realidade irreal, crescentemente irreal.

E sede. Sede como ninguém tinha tido na vida. A falta absoluta de líquido no corpo. Sede bruta que nem aceitava os avisos dos mais precavidos e capazes de a suportar, para beberem pouco de cada vez, um gole, molhar a boca, apenas, poupar na água porque a que se encontrava por ali nos charcos, melhor era nem lhe tocarem.

Gente houve que a meio do caminho já havia bebido a sua e a de outros, olhando os cantis alheios com olhos de carneiro mal morto.

Mas pronto, nem trolha tivemos em encontros maldosos, como nos haviam prometido os das Fox antes da saída nas conversas de bar da noite anterior, meio a acagaçar novato, meio a sério.

Sarrafusqueta foi, quinze dias antes, no dia da chegada. Pequena, espécie de boas-vindas, parece que habitual na recepção a branquelas acabadinhos de chegar. Uns nomes feios a mães e esposas gritados em bom português, umas rajadas, a malta a olhar-se uns aos outros, ainda incrédulos, demorados no reagir, com medo até de disparar, mas enfim, dando troco, diriam os das Fox que no risco de se aleijarem a si próprios.

Chegar ao quartel, nesse dia, chuveirada, roupa limpa, primeiro copo pago, imposto à velhice, soldados a saírem para a Aldeia em busca de fêmeas, segundo se consta, que também já esperavam por carne tenra e branca e pelos pesos que sempre haviam de dar jeito para alimentar família e comprar ronco no comerciante Fuad.

Seis dias antes estavam ainda em Lisboa, no Cais do Sodré, no Martim Moniz, no Bolero e nas baiucas todas onde se podia comprar sexo disfarçado de cerveja cara ou de whisky falso pago a preço do bom. Um dia não são dias e ninguém sabia já dos seus, para falar a verdade.

Espantava-me, eu, com a corrida daqueles gajos, desembestados, desacordados de sonos velhos, arrastados pelos que já conheciam a praça. Não me cabia na cabeça tal coisa, é certo, mas sempre nesta mania de tudo tentar entender e perdoar a humano jovem mas já muito lixado pela vida, eu remetia as culpas para um País de costumes estritos, de pecados e infernos, onde, ainda por cima, haviam fechado as casas de putas antigas onde o coito custava barato e estava garantido por inspecção médica e fiscalizações.

Naquela noite de estoiros e clarões, quinze dias após a chegada, foi a primeira vez que o pessoal da 1622 se pôs a si próprio a questão mais ou menos assim: “debaixo daquele fogo? Quem é que aguenta? deve estar o quartel meio destruído. Ainda bem que não me calha a mim”.

Também mais tarde havemos de descobrir que não é bem assim.

O Capitão pira nem precisou de mandar reunir Alferes porque Alferes não faltavam ali no ripanço da messe deles, ouvindo Bach no gira discos trazido do Funchal, acomodado a preceito, pronto, também, para cumprir seu serviço militar nos trópicos, e voltar ao puto, sem traumas, sem febres palúdicas, nem restos de blenorragias.

Dois pelotões! Rápido, porra! Bruno e PG. Imediatamente a dar uma mão àquela gente, montados até Mampatá e à pata depois.

Fox’s à frente, rádio, dois morteiros e duas bazoocas, Mg com o Banharia.

Contacto rádio daqui com Nhala, PRC10, da coluna com o quartel em escuta permanente.

Ala Milhano, ainda que leve mais tempo a executar isto tudo do que a dizê-lo.

Saiu a tropa e mal o havia feito, quinhentos metros, talvez, do quartel de Aldeia, ordem para fazer alto, tudo p’ra trás, acabou a guerra por hoje, informação de Nhala que a mão estendida já não era necessária, que não havia azar, que evitássemos a viagem não fora os gajos haverem montado emboscada ou semeado minas para a eventualidade.

Nada foi aquilo, apenas uma espécie de exercício que o PAIGC nos ofereceu, mais a nós em Aldeia, espectadores do fogo de artifício, que aos de Nhala, habituados que estavam a festas desatas. Ajeitavam almas e corpos para futuros violentos e certos.

E nem falaria disto, não fosse o acaso de querer apresentar-vos Nhala no fito de contar estória mais completa que trago encalhada há muito.

Nhala foi só um posto intermédio, quando íamos a Buba e não queríamos fazer a estrada directa, mais curta, passando perto de Missirá e um pouco antes ainda, entroncamento à esquerda por onde se ia quando o destino era Colibuia ou Cumbijã.

Bolola, logo a seguir, um lugar na carta militar da tropa portuguesa, um lugar no mapa político da Guiné Bissau ainda hoje, provavelmente local de moranças de gentes antes e depois da guerra.

O que era, então, Bulola, pelo menos entre Novembro de mil novecentos e sessenta e seis e Junho de mil novecentos e sessenta e sete?

Que me lembre, nada, se nada era o que encontrávamos no caminho, além de esporádicos e curtos encontros com rajadas, estrondos e vozearia de inimigos que eram e não eram, quando calcorreávamos o caminho de Buba, unimogues e GMC’s, tudo vazio e leve à ida, ajoujados na volta com comes e bebes que abasteceriam a pobre cozinha dos soldados da Companhia durante mais um tempo.

E a messe de sargentos num espaço melhorado em asseio e qualidade de mesa, a messe de oficiais num outro lugar ainda mais recatado, porque nestas coisas de estômagos cada casta tem o seu, nas maneiras de estar à mesa, nas convenções de acesso limitado, no guardanapo de pano, de papel ou costas da mão, copo de vidro, de plástico, púcaro de lata, no gim tónico, umas tapas de queijo antes da refeição, whisky ou conhaque, depois, cadeirão de recosto no fim, tudo respeitando o mais possível hábitos trazidos da mesa da mãe, coisas que em soldados vindos do pastoreio, das hortas, das vindimas, da construção civil, do trabalho de sol-a-sol, não se esperaria, com as excepções devidas à regra geral.

Geral era o refeitório da soldadagem. Rectângulo de alvenaria coberto de folhas de zinco e recoberto por colmo, numa plataforma ligeiramente elevada em relação à inclinação do terreno, três degraus para entrar, mesas corridas, bancos corridos em chão de cimento escuro, prato escasso para a fome de cada um, vinho do barril, baptizado no puto, rebaptizado em Bissau, com um pozinho, dizia-se, para tirar a tesão que pouco jeito dava ali, tempo curto à mesa porque quem pouco sabe depressa o reza, tudo lavado de imediato, a balde e escova rija, faxinagem de escala, duas vezes ao dia o ritual, não falando da refeição da manhã, pequeno-almoço lhe chamavam uns, café da manhã, mata-bicho.

Mampatá era o cruzamento que definia o caminho a seguir. Em frente, directos a Buba, com uma volta larga a Sul, mas a qualquer um sem apoio da carta ou mapa e na falta de referências a olho, dando a ilusão de estrada quase recta.

Ou então, voltando a Norte, por Uane, outra volta larga depois, descendo até Buba, atravessado que fora Nhala, por dentro, uns quilómetros atrás.

Voltemos, então, a Nhala, agora que perdemos tanto tempo às voltinhas a Sul e a Norte, em Buba, em Missirá, em Mampatá, em Uane, em Sare Donhe, se bem que desta nem falámos por se localizar um pouco à esquerda do nosso caminhar, voltemos a Nhala se é de Nhala que quero falar agora porque, se em Nhala comecei este falar, foi porque de Nhala queria fazer centro, hub, como na anglosaxonização (!!!) do falar português, tanta gente diz hoje, hub, querendo dizer de deambulações guerreiras na zona.

Portugal Pequenino e Darsalame eram nomes de tabancas na margem esquerda do Corubal, em linha recta tão perto do Xitole que, emboscados a cerca de dois quilómetros da primeira tabanca, ouvíamos o rio a correr e os motores das viaturas da tropa.

Não mais de quinze dias era o nosso tempo de Guiné, caras ainda enjoadas da travessia no Niassa, marcas do Inverno de Abrantes e Santa Margarida na pele, muitas dúvidas ainda nas cabeças, desconfiadas de que essa coisa da guerra, tirando o troar do ataque na Nhala, era apenas exagero de caçador, nas calmas em Aldeia Formosa com direito a banhos no Saltinho.

Ordem de cima, vá-se lá saber porquê, mandava juntar tropas de Aldeia e de Colibuia para um golpe de mão a Portugal e Darsalme. Coisa fácil, como dizia o Umarú Jaló, jovem mas feito àquelas andanças e permanentemente ansioso por acção. Eram só duas aldeias isoladas de tudo, picada a cortar mata e bolanha a partir de Nhala, coisa de quinze quilómetros.

Coisa fácil seria, apesar do caminho se alongar demais para os nossos hábitos metropolitanos. Seria, se fosse como se previa, sem merdas no caminho, sem encontros malandros, só andar, G3, mantimentos para aguentar a volta de manhã, bornal e o pouco mais que um ou outro acreditava dar jeito, caminho feito de dia, abancar a dois quilómetros do objectivo. Seria, não fora a bailarina que alguém deixara como esquecida, enterrada num chão mole logo atrás de um grosso tronco de árvore decepada por ventos velhos e de haste tripla apontando ao céu.

O João, nativo que fora já elemento do IN e agora vivia no quartel de Aldeia Formosa na sua qualidade dupla de guia de tropa branca e carpinteiro nas horas livres, chegado ao obstáculo, apoiou a mão direita no dorso da árvore, passou a perna esquerda para o outro lado, com a mão esquerda agora também apoiando o movimento, fez força para passar a outra perna.

Morreu ali mesmo, ninho de pássaros de aço, que lhe buscaram o corpo.

O Furriel Bernardes que seguia logo atrás do João, ouviu o estrondo e só descobriu que comera também a sua parte, quando as pernas se dobraram feitas trapo e o deixaram cair enrolado sobre o capim meio podre da picada.

O Alferes Baptista com pê, como sempre dizia a quem calhava apresentar-se, civil ou militar, também levou do mesmo, aliás, carga maior que a do Furriel, ou se menor, mais grave porque lhe tramou bexiga e rim.

Abortar a operação era e foi a solução a tomar, durante a noite o caminho ao contrário, um morto e dois feridos graves no lombo, a confiança abalada, a certeza que o movimento fora detectado, a dúvida se de outro local da mata não sairia alguém a cobrar mais imposto de sangue.

Dia seguinte, reconhecimento ao local, dois pelotões, um de cada Companhia. Sem nada que aparentasse mexidas, um pelotão regressa e outro fica em emboscada na expectativa de romagem à árvore derrubada.

Ficou o pelotão do Ávila e, voluntário na ida, fiquei com ele a experimentar a noite do mato, os ruídos, os cheiros, o sabor do risco, a excitação do novo.

Cada soldado com seu poncho no chão, dormindo à vez, soldado sim, soldado não, naquela correnteza de corpos estiraçados, alerta uns, acordados, alerta outros, mesmo no sono, um olho no burro outro no cigano.

Molhei-me e acordei espantado, duvidoso ainda, um eu racional embaraçado perante o outro eu instinto e descomandado.

Nem houvera sonho! Apenas a memória que navegara por dentro do tempo e do gesto mais fundo guardado em zonas do ser que não me conheço.

Ou, talvez, o sistema nervoso autónomo extravasando das suas funções.

Um orgasmo pleno e perturbador, a meio da noite de um chão duro, a dois passos do objectivo que havia de ser mais tarde, Portugal Pequenino, com o som do Corubal nos ouvidos e os barulhos nocturnos da mata, a mais de quinze quilómetros de Nhala.
__________

Nota de CV:

(*) Vd. último poste da série de 8 de Julho de 2009 > Guiné 63/74 - P4658: Vindimas e Vindimados (José Brás) (6): Achamos nós que não nos conhecíamos

quarta-feira, 8 de julho de 2009

Guiné 63/74 - P4658: Vindimas e Vindimados (José Brás) (6): Achamos nós que não nos conhecíamos

1. Mensagem de José Brás (*), ex-Fur Mil da CCAÇ 1622, Aldeia Formosa e Mejo, 1966/68, com data de 6 de Julho de 2009, com um belíssimo texto que se transcreve mais abaixo, integrado na série Vindimas e Vindimados:

Carlos, camarada

Para não perder o ritmo aqui vai mais um texto com mais um abraço. Quer dizer, com muitos abraços, como verás na leitura dele. José Brás


ACHAMOS NÓS QUE NÃO NOS CONHECÍAMOS*

Cego sou
e surdo
porque passas tão perto
e não te vejo
nem oiço
fazendo o teu caminho
no poema de Machado
prolongamento apenas
de ti próprio

Achas tu que não nos conhecemos, que nunca nos encontrámos por aí, em anos perdidos nas baiucas fadistas de Lisboa; nos aviões da TAP a caminho das praias do Brasil em setenta, oitenta, noventa; em cinquenta e tal, alombando sulfates entre cepas velhas, nas colinas de vinha em Alenquer; no Niassa, em Novembro de sessenta e seis, entrando nas escuras águas da Guiné; na pista da Portela, em noventa e três, comendo trolha da polícia de intervenção; nos Invernos do Quebeque, neve, dias de sol nas fachadas da rua Ste. Catherine, Alten Munchen à noite, música bávara, Eisbein e... gajas; nas sessões de jazz do Berkeley College of Music em Bóston; em setenta e cinco, nervos à flor-da-pele, medo a sério maior que nas matas da Guiné, por colar papéis do partido nas saídas do metro, em Nova Yorque, em lugares de passagem de portugueses duas vezes, de madrugada a caminho do trabalho, à noite de volta a Greenwich Village e ao TV diner; Em Vila Franca, em sessenta e poucos, poupando na mesa os sete e quinhentos indispensáveis para ver "A Casa de Bernarda de Alba" pelo Teatro Moderno de Lisboa; no sol das arenas, descoordenado do tempo, abraçando toiros e escutando a voz quente das multidões, nas escadarias do hotel D. João III, em Luanda, no ano da independência, protegendo colegas da TAP, mulheres sem guerras no pelo e a gramarem com ataques do MPLA à Unita, metralhadoras, bazookas, morteiro no terraço; nas noites de farra de desquitadas na discoteca do Intercontinental de S. Conrado; nos cagaços pioneiros do ultraleve.

Que não nos conhecemos, dizes, ou pensas, e até estranhas que misture aqui tão diferentes lugares e tempos, que os amasse como se a vida e o viver não fossem mais que uma página em branco no monitor do portátil onde cada qual possa escarranchar palavras, botar a palavra ao ritmo do que lhe vem à tola, mesmo que nas palavras que amontoa, nada diga sobre a vida, digo, sobre gente, sobre aspirações de cada um, os desejos, as diabruras e virtudes, sempre maiores aquelas do que estas, e que, além disso, passe pelo tempo sem direcção nem sentido cronológicos, hoje ontem e amanhã arbitrariamente amontoados.

E pelos lugares também, na estrada de Buba, segurando nos braços o Marques a apagar-se. A apagar-se lentamente como pavio sem cera que o alimente, a respiração a ir-se, cada vez mais ténue, mais ténue, mais ténue, até se apagar de vez, os olhos abrindo, abrindo, fitando não sei o quê, fitando o nada de onde viera há vinte anos e onde voltava agora, definitivo.

A estrada de Buba em sessenta e sete, antes das vinhas da Cova do Charco, em Alenquer, em cinquenta e oito.

Os teatros "Off Brodway", em setenta e quatro, antes da praça de Touros de Salamanca em setenta.

Afinal, pisaste alguns dos caminhos que eu trilhei; olhaste horizontes que também eu olhei; desejaste mulheres que eu havia desejado já, ou desejei depois; ansiaste metas que também eu sonhei; sob o fogo do inimigo, buscaste abrigo nas mesmas árvores tropicais que me haviam protegido a mim; mergulhaste nas quentes e azuis águas dos trópicos, almoçaste as mesmas salsichas, bebeste a água das bolanhas que eu bebi, quando a falta de água nos deixava ansiosos e de vontade frouxa contra a sede, sofreste as mesmas nuvens de mosquitos entrando nos olhos, na boca, no nariz, passaste o Natal dormindo dois minutos de cada vez, entre um ataque e a espera de outro, como eu dormiste dias e noites ao lado das caixas que guardavam amigos, esperando transporte para Bissau, primeiro, e depois Lisboa, aldeias no Alentejo e nas Beiras, nome de rua.

Então, porque estranhas tu que eu fale como se nos tivéssemos encontrado realmente nestes actos e nestes lugares, e em nós os milhares de amigos que connosco, entre sessenta e três e setenta e quatro se tramaram como nos tramámos nós?

Só porque não esbarrámos de frente, num desses lugares que nomeio, à hora xis do dia ípsilon, do mês tal de milnoveetrocaopasso?

Não bebemos juntos umas Sagres, ou Cuca, ou Budweiser, ou Labatt, ou Brahma Chopp numa esplanada do calçadão, olhando piranha e viadinho?

Não tomámos outro veneno qualquer no mesmo balcão de single bar, em grupo data-hora perfeitamente identificável e coincidente, nos bate-fundo do mundo?

Só porque não concordámos ou não discordámos sobre temas comuns, nas horas vazias de cada um, fosse aonde fosse, afirmando coisas como se as perguntássemos, de tantas dúvidas que nos enchiam, a mim, a ti, a todos, ou quase, apanhados do clima que éramos nos anos que deveriam ser de certezas?

O tempo e o lugar, o grande tema!

O lugar. Os lugares nem sequer nos desviaram do encontro.

Tu dizes.

Talvez! Talvez que tenhamos em comum alguns desses sítios, muitos até, posso dizer, porque além do lugar dos tiros e dos medos, terras, ruas e praças de que falas, não todos, evidentemente, já eu atravessei também, mas em tempos diferentes, no calendário, nos relógios, na posição relativa da Terra e do Sol.

O tempo. O tempo, talvez.

Mas o tempo o que é, de facto?

Olhas para trás, em sentido figurado, está visto, não com o olhar dos olhos, com a capacidade que têm de imitar a câmara fotográfica, apanhando objectos e pessoas, cenas, actos honrados ou vilezas, fixando-lhes a imagem de pernas para o ar na retina, essa espécie de película de longínqua invenção, elo apenas no transporte delas ao sistema nervoso central para identificação e feed back.

Olhas é com a memória que tens das coisas e das gentes, das cenas que representaste antes, num ponto qualquer dessas entidades que dizem ser o tempo e o lugar, as alegrias e tristezas que dizes ter vivido e trazes ao hoje como se as vivesses agora mesmo e não ontem ou há mais de trinta anos.

Retomas o lugar que decidiste ser o teu durante a noite da emboscada, coordenando o silêncio da mata, coordenando as dúvidas dos teus, escondendo as tuas porque quem comanda não pode ter dúvidas.

Retomas os passos na picada, olhos e ouvidos atentos, os nervos crispados por ti e pelos que de ti dependem, cada passo em frente uma vitória.

És tu e podia ser eu, milhares e milhares de eus iguais nas ânsias, no cansaço, na certeza de que, venha o que vier, nada há de melhor que a certeza do futuro.

Não é seguro que as emoções trazidas em cadeia no processo, sejam as mesmas que talvez tivesses sentido então, tal como eu, ou sendo, não tenham a mesma profundeza, o mesmo brilho, a mesma rugosidade.

Mas não interessa aprofundar muito isso, ou corres o risco de mentir-te a ti próprio, afirmando que sim ou que não.

Quem sabe se não é aí, nessa falha, nessa fímbria de descoordenação, que podemos encontrar a essência do tempo e, nesse caso, a mim me parecendo que não vivemos apenas uma vez mas duas, três, muitas, tantas quantas as vezes que voltamos ao vivido, então, continuamos pelos dias regressando à mata, à messe, às noites de espera, ao cheiro a podridão que o sol faz levantar da bolanha, ao primeiro som cavo da explosão da morteirada, às cinco da manhã, ao abraço, sentimento de união que só ali foi possível, e continua sendo, e solidamente real.

E mesmo esse espaço indefinido a que chamam futuro, mesmo esse que, aparentemente não conseguimos divisar, o que é?

Repara.

Nenhum homem é apenas o que é hoje, mas também, hoje, muito do que foi antes e alguma coisa do que vier a ser depois.

E assim sendo, um homem nunca foi apenas o que foi, mas a cada momento do que foi, também o que é, e alguma coisa do que vier a ser.

Um homem não será nunca, apenas o que vier a ser no futuro, mas a cada momento do futuro, também o que é já hoje e o que foi antes.

Quer dizer, então, que o antes, de algum modo, era já o hoje e o futuro.

Quer dizer então e ainda, que o hoje, o antes e o futuro, tempos aparentemente tão definidos e distantes, mas, de facto tão entrelaçados, tão confusamente emaranhados, tão dependentes uns de outros, são apenas partes do todo da vida e tanto poderiam entrar no princípio, como no meio, como no fim dela.

O nosso futuro irá ainda passar muitas vezes pelo Xitole, por Guileje, pelo K3, por Susana, pelo tarrafo, pelos rios, pelo coração de tantos amigos e, quem sabe, mesmo pelos dos inimigos, vivos todos, porque em nós vivem mesmo os que dizem ter morrido.

Como vês, milhões de vezes nos cruzámos já e muitos mais milhões nos iremos encontrar num tempo assim, sem fim nem princípio.

Por exemplo, no Saltinho, cacholando as suas águas claras; no Mato Cão, em Catió comendo ostras, no instintivo mergulho ao chão ao primeiro tiro deles, depois, o coração a retomar o ritmo certo, a segurar os acontecimentos, a segurar-se a si próprio; na padiola improvisada, carregando camarada ferido, se não morto ou caminhando para tal, vencendo o estorvo da mata apertada que fustiga a cara, as mãos, a alma, até a um "porra, caralho, puta que pariu isto!".

Que nem blasfémia é, por vir de dentro, da revolta ingénua e sentida contra o limite; ou em quarto abarracado da Guiné, jogando a lerpa e o abafa, bebendo qualquer coisa que preencha apenas vazios intermitentes no acto de beber.
Soldados fomos e certamente somos ainda, um pouco, tendo sido nesse tempo, também, o que somos hoje, civis.

E teremos ainda tempo, talvez, outras coisas para ser na vida que nos resta, marcados pelo que fomos então, marcados pelo abraço grande e colectivo que daremos sempre, no som da costureirinha e do morteiro, longínquos nos anos, segundo se diz, mas para nós, intemporais.

E achei eu, também, que não nos conhecíamos!
Todos.
José Brás

*Ao Joaquim Mexia Alves,
camarada primeiro a quem
dei troco na Tabanca Grande,
e através dele, aos outros que
estão em nós, aos nós que
estão nos outros



Quinta do Paul, Ortigosa, Monte Real, Leiria > IV Encontro Nacional do nosso blogue > 20 de Junho de 2009 > O Joaquim Mexia Alves em agradável conversa com o José Brás... Este último foi Fur Mil da CCAÇ 1622, Aldeia Formosa e Mejo, 1966/68... É autor de um premiado romance, de 1986, Vindimas no Capim (Lisboa, Europa-América) (**). Pertenceu aos quadros da TAP. Mora em Montemor-O-Novo.

__________

Notas de CV:

(*) Vd. postes de:

3 de Julho de 2009 A Guiné 63/74 - P4636: Vindimas e Vindimados (José Brás) (5): Tudo na mesma em Salancaur
e
7 de Julho de 2009 > Guiné 63/74 - P4649: Blogoterapia (114): A Honra da Companhia, os fantasmas de Guileje, os limites da tolerância (José Brás / António Matos)

(**) Informação que foi pedida ao José Brás por um significativo número de amigos e camaradas em Ortigosa, e não só, que querendo adquirir o Vindimas no Capim não conseguem encontrá-lo.

ASS: Aquisição de Livros
Mem Martins, 8 de Julho de 2009

Caro José,

Espero que esteja bem.

Vimos por este meio informá-lo que poderão adquirir o seu livro nas nossas
livrarias Europa-América (Castelo Branco, Estoril, Faro, Lisboa, Parede ou
Porto) e Lyon (Cacém, Castelo Branco, Mafra, Mem Martins ou Queluz) ou
através da nossa sede (219 267 700, e-mail: clubedeleitura@europa-america.pt
ou através do nosso website: http://www.europa-america.pt/ ).

Sempre ao dispor.
Os meus melhores cumprimentos,

Inês Valentim
Relações Públicas

sexta-feira, 3 de julho de 2009

Guiné 63/74 - P4636: Vindimas e Vindimados (José Brás) (5): Tudo na mesma em Salancaur

1. . Quinta história da série Vindimas e Vindimados do nosso camarada José Brás, ex-Fur Mil da CCAÇ 1622, Aldeia Formosa e Mejo, 1966/68, baseada no seu livro "Vindimas no Capim" (*), enviada na mensagem de 26 de Junho de 2009:

Carlos, amigo
Segue o ritmo
Pena é que duas coisas que mandei, sobre a "Conferência de Coimbra" e sobre a "lista de obras literárias" do Beja Santos, nem lhes sinta o cheiro
Aceita sem preocupação que diga amigavelmente e com admiração, que às vezes parecem ter medo da polémica.
Para mim, a polémica é apenas um meio saudável de dizer "estou aqui, não penso como tu, mas estimo-te e respeito"
Um abraço
José Brás


Tudo na mesma em Salancaur

Vês, Anamaria, a árvore grossa, ali, na direita, à esquerda do caminho que se dirige a Sul por entre a mata alta?
Vês Anamaria, na grossura da árvore, um abrigo que nesse tempo fazíamos apressadamente, debaixo do fogo que nos chegava da outra orla, dali, à direita do outro caminho que deste cruzamento sai, apontando a Norte para Fulacunda e para Nhala, terras por onde não passaste e por isso não imaginas bem onde possam ficar na geografia do mapa que trazes no carro.

Mas eu digo-te Anamaria. A primeira, a que chamo de Fulacunda, confirmando o andar a Norte, talvez uns vinte quilómetros em linha directa. A segunda, Nhala, bifurcando daí a Este, a escassos quilómetros daqui, menos que a outra, não mais de doze, talvez a dez de aonde estamos agora.

Parados no cruzamento de Buba, de costas para o lugar que será a vila e voltados de frente para a estrada que trazemos desde o Quebo, estamos muito perto da cabeceira da antiga pista de descolagem e aterragem de aeronaves.

Sei que este lugar não te diz nada para além da exuberância do verde, do calor húmido que te sufoca e te cola ao corpo a leve roupa que trazes vestida, dos ruídos da mata e da algazarra do grupo de beduínos parados na estrada do Sul, olhando desafiadores aos parentes afastados.

Nem crês no que te digo sobre o medo, sobre a inquietação que nos assaltava de cada vez que tínhamos de passar aqui, carregando coisas do dia-a-dia para o nosso lugar militar do Quebo, aliás, então, Aldeia Formosa de seu nome, nome justo, se compararmos com outros lugares da nossa peregrinação neste País agora novo. Novo porque de nós, velhos, se libertou, lutando, rajadas de costureirinha, morteirada, bazucada, sons de orquestra discorde nos graves e nos altos de cada instrumento, mandando flores de aço que se alojavam no chão à volta, nas almas de soldados, quando não mesmo em suas carnes.

Nem acreditas que alguém poderá ter sentido medo, aqui, uns anos antes. Fixas as árvores e o chão vermelho da estrada e não vez sinais de luta, nem de suor, nem de sangue de branco ou negro. Apuras o ouvido na tentativa de captar o som das armas, o último eco de algum grito velho que por aqui humano tenha deixado, a respiração ofegante do cansaço e da emoção, coisas todas que correram desbragadas nestas paragens, anos a fio.

E desanimas.

A paz que descobres neste silêncio quebrado apenas pelos gritos de aves e da macacada, não podia ter sido fendida alguma vez por raivas e ódios, por lutas de humano contra humano, por medos e coragens desmedidas, por heroísmos e cobardias, sob o troar da metralha e dos morteiros de um e do outro lado da mata.

Olhas à volta e não te apercebes da coluna de viaturas carregadas de comes e bebes, de cunhetes de balas e de caixotes de granadas. Não imaginas motoristas de nervos à flor-da-pele, esperando a cada metro, a bem dizer, a cada centímetro em frente, a explosão final que lhe decepará as pernas ou o corpo todo, numa agonia de morto em percurso final e antecipado, ou na própria alma alguma coisa decepando para o resto dos seus dias, escapando vivo de corpo para continuar a empurrar a vida em frente, na terra natal, nos bindonville de Paris, num sítio qualquer do Luxemburgo ou da Alemanha, subindo e descendo escadas de andaimes dez horas por dia a servir a maçons que lhe gritam em linguagem absurda ordens de pressas em desacordo com o cansaço que traz no corpo desde Afonso Henriques.

E pensas. Pensas que o estrondear de que te falei antes, nos dias de Lisboa, quando nem pensavas chegar aqui a esta humidade que te corta força aos pulmões e encurta oxigénio de que careces nas células e tecidos, pensas que tudo isso não passa de perturbação minha, na memória das coisas e dos factos, ou de arremedo de herói inventado na esquizofrenia de um outro eu qualquer que, a intervalos, pretenda ser.

E sabes de casos assim, em que real e desejado se misturam de tal modo que nem o dono da confusão se apercebe, tornando e tomando o falso por verdadeiro, agindo como se o fosse, e como se fosse o falso o verdadeiro.

E nem eu, que por aqui passei e sofri há trinta anos, nem eu que respirei este ar saturado, que suei a humidade que podes sentir na pele agora, nem eu, vê lá tu, nem eu estou absolutamente seguro do que digo que sei e, ou se sei, o sei porque o digo.
Até eu tenho as minhas dúvidas se a coisa foi assim mesmo ou se sou eu que numa avaria qualquer da mente, mínima que seja, e por isso difícil de detectar, a transformo e agiganto.

A sorte é que é contigo que falo e, tu, de mim, dos meus sinais de fraqueza, das coisas certas e erradas que te conto, não recontas tu com amizades de fora.
Vê bem! Há coisas que tu própria pudeste confirmar, aqui, vindo agora em férias, tendo visto da janela do avião da TAP a descida e a aproximação à pista de Bissau. Aldeias em pontas de terra, cercadas de água, rios que irradiam do mar terra a dentro, rios que correm paralelos, rios que se cruzam e seguem, cada um levando alguma coisa do outro em seu caminho próprio, bolanhas alagadas, tudo água e o verde das matas.

E perguntas-te se seria possível gente de armas na mão ter cruzado toda esta terra, ter assentado vida em quartéis espalhados pela terra, no meio dos matos. No meio de nada.

E lutado. E matado. E morrido. E suado calores de paludismo e saudades da mãe que o havia criado para outra coisa diferente desta.
Mas era. Era mesmo assim e não pinto eu agora mural de enfeite ou figuras de demência.

Neste mesmo lugar onde parámos assinalando-te caminhos, nomes de terras e bolandas várias, aqui mesmo onde pomos nós os pés sem medo de pisar mina, aqui foi que tivemos o nosso baptismo de fogo. No dia da chegada, vê tu, seis dias depois do Cais da Rocha, branquinhos do Inverno de Santa Margarida, almas penadas sem nada a que se agarrassem, incrédulos das palavras dos velhinhos em avisos sobre o cruzamento, sobre a recepção aos piras acabadinhos de chegar. Não foi grande coisa e pouca gente se assustou, acho eu, naquele primeiro dia de Guiné.

Mas eu conto-te o depois. Eu conto, agora que pareces disposta a ouvir sobre esta terra e sobre as quezílias que houve durante muito anos entre os donos dela e os portugas que a ocupavam havia séculos e não queriam abrir mão.

Já te assinalei a estrada que daqui mesmo sai em direcção a Catió, esta para onde agora volto o peito e que iremos andar nas próximas horas até ao almoço prometido em ostras e galinha de xabéu.

Se conseguires imaginar mais quatro a cinco quilómetros a baixo, à esquerda do nosso caminho, bifurcação quase imperceptível nesse tempo aos olhos de quem trilhava a paragem pela primeira vez, mas conhecida de naturais da terra que nos guiavam nesta mata que tu vês e avalias bem ou mal, adentrávamos o trilho mais uns tantos quilómetros, acercando-se a gente demasia a Salancaur, segundo me parecia, então, e confirmo hoje.

Caminhada ainda à luz do dia, pisando chão em cada passo com aquela sensação de "é agora", cem vezes, mil vezes, muitas mil vezes, andando sempre até que a palavra viesse da frente sussurrada homem a homem, Capitães que eram dois, Alferes pelo menos cinco, Furriéis uma catrefa deles, dois pelotões do Corvacho, dois pelotões da 1622, pelotão de foxes, "alto é aqui". Vamos alargando à direita e à esquerda, secções com os seus comandantes, GMC blindada e auto-metralhadoras o mais dissimuladas possível, cumprir turnos conforme indicado no "briefing, metade a dormir, metade de prontidão, a secção do arcanjo avançada em cunha na detecção de movimentos. Abancamos, cada um come a ração apenas de manhã".

Claro que tal conversa não era feita em grupo de mais de cento e vinte homens, como se o propósito fosse caçar rolas no Alentejo, mas repetida de cor pelos Furriéis já industriados na tarde de Buba e na experiência acumulada.

Está certo, Anamaria, está certo que devia ser eu mais pormenorizado no relato do movimento e dos dados, a ti que dificilmente podes imaginar estes jogos de tropas em guerra nos trópicos, se até a mim que os vivi, me parecem agora tão irreais, obrigando-me a este esforço que podes ver no meu rosto, de lembrar sítios, armas, caras de gente jovem com tanta vida para viver e ali na iminência do limite.

Cada um acostou-se como pôde nos troncos grossos das árvores e preparou-se para a noitada até às quatro da matina, hora marcada para os morfes, as rezas, mijar o medo, olhar-se cada um no escuro, afastar pensamentos maus e, seja o que deus quiser.
É bom haver deus para que cada um se agarre a qualquer coisa, se a mãe de cada um está longe e nada pode fazer, cada uma pelo seu um dela.

O objectivo desta romaria, seria o de atacar três aldeias que a informação dizia serem destacamentos da tropa guerrilheira de Salancaur, começando às cinco da manhã pela mais distante, quer dizer, pela mais próxima da grande base deles, destruir, regressar, atacar e destruir na volta outras duas.
Se ainda me recordo os nomes de tais sítios, começando pelo primeiro ataque, seriam Bantael Sila, Dalael Fula e Tombura, nomes que ditos assim nada dizem da outra gente que lá estava nos recantos das moranças, enrolando as seus dedos no arroz comum, cuidando de seus filhos, de suas mulheres, de suas galinhas, do trabalho na lavra da bolanha do dia seguinte.

E da esperança que o PAIGC vinha semeando todo ano e que floria, tanto na época da chuva como no da seca.

E tu sabes, Anamaria, isso tu sabes, que esperança e ânsias de melhor vida não são coisas só de branco, só de rico, só de gente culta.

Foi quando já assentara a agitação da chegada, cada um entregue a si próprio, virado para dentro de si próprio que era onde estava deus, de acordo com o Capelão da companhia, esse padre meio maluco, "que deus me perdoe, com conversas daquelas e cravado na cerveja como qualquer bronco", foi então, acho que já noite bem funda, foi então que começou aquele ventinho tolo, um sopro brando de início, insignificante, refrescante ali, no bafo húmido do antes da madrugada.
Mas subiu de força, pouco a pouco, querendo anunciar qualquer coisa, aumentando, agitando as ramadas altas do arvoredo, agitando ainda mais a alma da gente, tornando-se raivoso, revolvendo tudo, lascando, partindo, trazendo grossos pingos, chuva, dilúvio.
Tempestade tropical.

Cada um, soldados, sargentos e oficiais sentados de rabo nos calcanhares, dobrados em três, joelhos à boca e apertando a G3 entre as pernas, tapando-lhe a boca para evitar água, relâmpagos que iluminavam a mata como se fosse dia, dia a que faltava ainda um bom par de horas para romper, árvores a rachar atingidas pelos raios, nada nos abrigava das cordas grossas da chuva que nos entrava pelo pescoço e descia por dentro da farda, pelo peito, pelos tomates, pelas pernas, até à botas.

Uma boa meia hora nisto e trás! Uma faísca atinge a GMC blindada, pega o fogo a cunhetes de balas, granadas de bazooka e morteiro sessenta, estoirando tudo mais que castanhas em Novembro ou fogo de artifício na Feira de Castro.

Soldados crendo que o inimigo nos detectara, estás a ver Anamaria, e que nos flagelava forte e feio, desatam a disparar também, às cegas, espalhando bala e granada de morteiro a esmo, no risco de se matarem uns aos outros.
Furriéis e alferes conseguiram calar o fogo a poder de berros, mas era tarde e o mal estava feito.

A ordem agora era de defesa, montar emboscada como deus deixava, o nosso deus, está claro, porque o deus deles, que também eles tinham deus, um, ou, calhando, até mais, e esse ou esses deveriam estar agora a mexer pauzinhos para nos tramarem.
Pronto, a surpresa desaparecera e agora, ou retirávamos, ou avançávamos.
A decisão foi avançar um pouco antes da hora da madrugada que havia sido planeada para o primeiro contacto.

Diz-me tu, Anamaria, se não são, se não foram valentes tais homens, temerários, sabendo no vespeiro em que estavam e avançam só porque o rei manada avançar mas não manda chover.

Tínhamos apoio aéreo planeado e víramos mesmo os T6 na pista de Buba antes da saída, caminhando para este cruzamento onde ora estamos descansados.

E tu sabes, Anamaria, o que eu gostaria de ter sido piloto. Desde miúdo, a bem dizer, mas não fui porque não quiseram que fosse, nesse ano, Sargento miliciano piloto.

Bem!
Pouco mais de duzentos metros andámos e sofremos a primeira emboscada. Pequena, com meia dúzia de guerrilheiros que logo retiraram.
Novo avanço e nova emboscada, agora maiorzinha.
De novo retiram e de novo, mais à frente, emboscam, crescendo em quantidade os disparos e o tempo do combate.

Começámos a desconfiar, sobretudo porque a nossa disciplina de fogo não era famosa e muita gente disparava o medo nas balas que enviava.
Sabíamos que a aviação chegaria de manhã clara. Descansávamos nisso.

Quarta emboscada já muito forte e a certeza de que estávamos a entrar no meio de uma perigosa arapuca. Furriéis e até soldados interrogavam-se uns aos outros nos altos dos tiros e dos rebentamentos "mas o que é isto, o que é que querem provar os chefes?"

Ainda assim... a aviação estava ali mesmo à mão e bastava o contacto rádio, ou nem isso, porque ondas sonoras de tiros e rebentamentos chegariam a Buba quase como Relim.

Nem nos apercebemos de intervalo entre a quarta e a quinta. Apenas concluímos tarde de mais que estávamos tramados.

Uma mina anti-pessoal rebentou numa roda de GMC blindada com sacos de terra, obstruindo o trilho e o retorno, carros e auto-metralhadoras Fox já para lá do veículo danificado e sem possibilidades de voltar atrás sob o fogo do PAIGC, naquele pedaço de mata fechada, ainda no lusco-fusco.

Numa das viaturas havíamos montado um AGRC-9 e repetíamos já em desespero um contacto sem resposta. As coisas começavam a ficar mal paradas, havia gente já sem munições, o PAIGC, cercava-nos flagelando sem poupanças, chegou mesmo a haver contacto visual e de voz, um ou outro guerreiro nosso, mais calmo, fazendo tiro-a-tiro, poupando, a metralhadoras das Fox mantendo ainda em respeito o pessoal do outro lado.

Eis senão quando, a esperança retorna no ruído de motores no ar.
O Ávila com o Banharia e a MG adiantados quase a meio caminho entre nós e eles, apenas um ferido, por enquanto, O PAIGC a aproximar-se ainda mais, o PRC-10 iniciou a conversa entre pilotos e o comandante da força em terra, tudo reagrupado num último esforço.

No mergulho do passaredo as ordens correram depressa "toda a gente de cabeça na lama e ouvidos tapados". Houve quem não resistisse a espreitar por entre o emaranhado da mata e visse a intervalos os pachorrentos T6 a vomitar metralha e rockket's, parecendo até que o aviãozinho recuava em cada disparo, ali, poucos metros à nossa frente.

O bafo quente por cima de nós trouxe um cheiro nauseabundo e sufocante. Nem me lembro que os estoiros tenham sido particularmente assustadores.
Acabou tudo, Anamaria.

Por terra chegaram depois reforços que serviram para abraçar a malta e trabalhar na recuperação da GMC.

Mais tarde, já em Buba, percebemos que uma avaria no receptor do nosso rádio não nos permitia ouvir as respostas de Buba aos nossos apelos. A senhora de Fátima, ou fosse que santinha fosse, a quem o pessoal recorria também em casos destes, salvara, ao menos, o emissor.

Em Buba, como se fosse um deles, eu vestia a pele dos pilotos que mergulharam ali com suas carroças para nos safarem.
"Vá! Agora digam mal do pessoal da Força Aérea que ainda algum leva nos cornos".

E tu, Anamaria, tu que irás passar também na bifurcação à esquerda, sem te aperceberes sequer do lugar, nem eu mesmo que lá estive, embora às vezes disso tenha dúvidas, nem suspeitarás das marcas dos pés, dos berros, do som dos tiros que ali trocámos, das mãos que matavam disparando, que se juntavam em oração e se estendiam solidárias e desprendidas.
Nem suspeitarás da morte que se plantou ali em cada tiro, em cada rebentamento, de um lado e do outro, ainda que, do nosso, aparentemente tenham voltado a Buba, todos, vivos e inteiros.
Não suspeitarás sequer que, uma vez mais, tudo ficou na mesma em Salancaur.

José Brás
__________

Nota de CV:

Vd. último poste da série de 26 de Junho de 2009 > Guiné 63/74 - P4587: Vindimas e Vindimados (José Brás) (4): De bicicleta na guerra

sábado, 27 de junho de 2009

Guiné 63/74 - P4593: Controvérsias (28): As influências dos grandes mestres (Hélder Silva / José Brás)

1. Comentário de Hélder Sousa ao Poste P4587: Vindimas e Vindimados (José Brás) (*):

Zé Brás
Aquela parte do texto seguido, sem pontuação, é sem dúvida um belo teste à nossa capacidade de improvisar, imaginar as falas, os autores, até, se quisermos, podemos dar o "tom" que acharmos mais convenientes. Bem pensado!
Mas, aqui p'ra nós, não há por aí uma "inspiraçãozinha saramagiana"?
Fico a aguardar o próximo.

Um abraço
Hélder S.


2. Comentário de José Brás ao Comentário do Hélder Sousa, enviado para mim, hoje mesmo:

Pois é, Hélder!
"Cutucaste a onça com vara curta" ¹. Quer dizer, meteste o dedo na ferida.
Desatar uma pequena discussão sobre o que é originalidade e imitação, é um exercício, a meu ver, absolutamente meritório num espaço e num (a nossa terra) tempo (o nosso tempo) de suaves marés, de acomodar sem chatices num politicamente correcto que garante o verniz e a polidez do trato mas mata de hipoxia a existência de contrários, motor, afinal, que sempre empurrou o mundo em frente.

Estás de acordo, pelo menos até aqui?

Na verdade, com esse quadro, lucram os medíocres, os bufos do reino com suas macaquices e perdem os que querem romper e abanar o sistema, atirados para o saguão do esquecimento.
Quanto a mim não seria nenhum drama que o mundo se dividisse em milhões de cabeças e diferenças no olhar sobre as coisas, se se pudessem fechar as centrais da manipulação massiva e global, as máquinas triturantes do pensamento individual e, pior ainda, da capacidade individual e do desejo de pensar, fornecendo no mercado a preços cómodos, o pronto a vestir cultural.

Aqui no blogue tenho assistido com frequência a alguma retracção sobre o acto de dizer "não estou de acordo", ou então, assumindo a diferença, resvalar algumas vezes para um certo desaforo.
Nem tanto ao mar, nem tanto à terra, diremos, não é?

Mas peguemos no "Saramagismo" daquela pequena parte do "De bicicleta na guerra".

Mas peguemos-lhe com seriedade e discernimento, sem afirmações ofensivas nem recusas ofendidas; distinguindo muito bem o que é influência daquilo que, por vezes, não passa de macaqueação pobre, senão mesmo, de roubalheira chapada.

Bem! Sendo a tua pergunta já uma afirmação, não tens que te encolher por a teres colocado assim, antes e ao contrário, te sentires nela homem inteiro apenas, e amigo, ainda por cima, aguardando a minha resposta.

Pronto, lá vem ela.

Pode dizer-se que sim, Hélder... e pode dizer-se que não.
Eu cá, sem complexos nem preconceitos, dir-te-ei que talvez.
E poderei também adiantar que nem sei se é uma certeza segura se uma segura incerteza.

Necessário é dizer que, primeiro, tendo sido Saramago uma das mais galvanizantes leituras da minha já longa vida, difícil seria recusar-lhe influências.
Caramba! Então não é que Saramago me deu a conhecer aquele carreiro que com suas juntas de bois carregava calhaus para Mafra, fazendo-me sentir carreiro ou abegão ou outro nome qualquer da profissão e do trabalho de conduzir os animais e as carroças nos caminhos do mundo; chamando o gado, forçando a rota, empurrando, puxando, gritando, já com a cabeça cheia do caldo quente da noite que se aproximava, da noite com sua mulher, sentindo a cama, o arredio coito. Sentia-me eu, também, naquela linhas do "Memorial", na dor da ausência semanal, no gozo antecipado pela memória do antes, na imagem de uma mulher à espera do seu quinhão, roubado, afinal, por ordens do senhor D. João V.

E a grandeza humana de Blimunda, mulher amante, mulher sonho, mulher terra?

E o Sete Sóis, bravo e fraco ao mesmo tempo, como todo o homem que tem a sorte de encontrar sua mulher?

Já havia vivido as dores e as coragens desta gente que se levantava do chão, em Montemor, para exigir trabalho e salário e dignidade.
Saramago foi meu amigo de alguns anos.
Não vou explicar-te aqui porque é que conjugo o verbo no pretérito, dir-te-ei, apenas que por confirmação do que ele próprio disse a uma colega minha em pleno voo para o Rio, quando o apresentei à tripulação e ela, surpreendente e corajosa se descaiu com um "o senhor não é lá muito simpático", recebendo dele como troco "os escritores são para se lerem, não para se conhecerem".

Direi ainda que Saramago foi a primeira pessoa a conhecer o "Vindimas no Capim", ainda andavam as palavras apenas fixadas em A4's caídas da minha máquina de escrever.

E mais! Que terei sido eu um dos que primeiro conheceu a Maria Sassa que com sua vara riscou o chão e libertou a Península como "Jangada" solta no mar em busca das metades que todos nós temos em África e na América.
Não irias tu, Hélder, imaginar que tal admirador e amigo ficaria imune à riqueza da palavra do mestre!

Aliás, armado em xico esperto, poderia mesmo dizer-te que, em termos de arte, está tudo inventado e somos todos apenas relógios de repetição e eco do que outros disseram antes ou... que irão dizer no futuro.

O próprio Saramago há-de parecer outro qualquer em algum sítio do que fala e escreve.
Com efeito, então, pode aceitar-se que aquele pedaço de escrita, amontoando falas de faladores diversos e diferentes nas convicções, nos medos e nas coragens, se chega muito à forma Saramagina.
Porém, a meu ver, também se diferencia num pormenor, sendo em Saramago o meio de colocar no mesmo saco o narrador e o leitor, quer dizer, desatando a trama em dois tempos num só, na minha forma de escrever, quase sempre, e também ali, eu tento envolver o narrador, o personagem e o leitor, três tempos portanto, na mesma trama.

É minha intenção, de facto, retirar o personagem do simples papel de relatado numa pessoa que se conta, sendo contado, e se envolve com o contador (emissor) e com o leitor (receptor) transportado também para o centro do drama.
Quando saiu o "Vindimas no Capim" críticos e jornalistas da especialidade perguntavam-me como havia conseguido. E eu que nem me havia apercebido da coisa, respondia apenas: - "Não sei. Serei assim mesmo na vida".

Também alguns adiantaram que o livro sabia ainda a neo-realismo. Eu relia, comparava e não achava onde, pensando que talvez o dissessem porque estava lá escarrapachado a vivência em Vila Franca e no caldo cultural de então, ou, mais distante, o facto de nele se falar de abusados e explorados, de senhores e abusadores.
Continua a parecer-me, porém, que, fora isso, na forma e no estilo narrativo, as semelhanças serão muito poucas.

Outra coisa bem diferente é alguém pensar-se escritor (e eu não me considero tal), despreocupado da realidade e do seu povo, abusado e sofrido.
E tu sabes disso. Disso e de que não vem mal ao mundo nos sinais de tal alegada influência, apanhada aqui e ali.

E para já... um grande abraço, preferindo enviar o meu comentário ao teu comentário porque, imodestamente me parece pedagógico este exercício, ainda que possa suscitar dúvidas a sua publicação.
José Brás


3. Comentário do Editor:

Caros camaradas
Resolvi publicar hoje mesmo estes comentários do Hélder Sousa e do José Brás, porque nem sempre se trocam impressões a este nível.

Obrigado a ambos.
CV
__________

Notas de CV:

(*) Vd. poste de 26 de Junho de 2009 > Guiné 63/74 - P4587: Vindimas e Vindimados (José Brás) (4): De bicicleta na guerra

Vd. último poste da série de 26 de Junho de 2009 > Guiné 63/74 - P4590: Controvérsias (21): O helicóptero do PAIGC, visto na zona do Cacheu pela 1ª vez na madrugada de 13/10/64 (António Bastos)

sexta-feira, 26 de junho de 2009

Guiné 63/74 - P4587: Vindimas e Vindimados (José Brás) (4): De bicicleta na guerra

1. Quarta história da série Vindimas e Vindimados do nosso camarada José Brás, ex-Fur Mil da CCAÇ 1622, Aldeia Formosa e Mejo, 1966/68, baseada no seu livro "Vindimas no Capim" (*), enviada na mensagem de 18 de Junho de 2009:

Carlos
saiu um... entrou outro
o poder é teu
Sábado lá estaremos
e mais um abraço
José Brás


DE BICICLETA NA GUERRA

- Alferes Ávila, prepare um grupo para ir ao Xitole buscar um médico, temos aí um civil acidentado, com a cara em muito mau estado, escureceu e ninguém virá por ele de Bissau senão de manhã, o Furriel enfermeiro confessa-se incapaz de fazer mais pelo homem e o diabo pode arranjar um infecção grave antes da evacuação.

Era o Capitão Loja, sempre preocupado com os habitantes da aldeia, não por qualquer relação com a lenga-lenga oficial da psico mas por genuína e pessoal humanidade.

- Capitão, sabe onde é que o meu pelotão passou a noite, não me parece que estejam descansados para fazer agora cem quilómetros, toda a noite numa estrada como esta...

- É claro. E eu deixo morrer o homem!

- Não... porra, Capitão, se for necessário até lá vou eu. Sozinho. Sozinho com um motorista.

- Deixe-se de bravatas, alferes, arranje aí uma secção reforçada e um furriel para segurar aquilo. O da ferrugem já tem uma GMC e um motorista.

Conversa entre dois ilhéus, um madeirense, outro açoriano, oficiais milicianos do exército português numa companhia em quadrícula na terra Fula de Aldeia Formosa, a África mais próxima que o império ia tocando como podia, teimando, teimando, prolongando os quinhentos anos até espremer completamente o limão, queimando os dedos de tanta e tão longa acidez.

Os dois insulares que mal vos apresentei ainda, aqui engalfinhados de palavra, cada um com suas boas razões, não estavam tão longe como o mar que lhes separa as ilhas na visão sobre aquilo, sobre a posição dos manda-chuva do regime e sobre a inutilidade da sua própria acção nas emboscadas que faziam e que sofriam, nos assaltos a aldeias de gente pobre e espantada, nas matas a norte de Nhacra, nas picadas, nas estradas de Buba, nos bairros de lata onde viviam fora da sede da companhia, Cumbijã, Chamarra, e este nem bairro de lata era mas acampamento de ciganos, coisa que fisicamente mais parecia, e que parecia o Furriel Pixa Negra, que mais pareciam os soldados da sua secção, ocupantes do lugar, chupando calores e mosquitos naquela anarquia besuntona, dormindo como os locais, em escassas casas de adobe e capim, ou ainda pior, pela precariedade da estadia.

Não generalizemos, entretanto, mais do que convém, porque importa esclarecer, tratando-se de gente, as diferenças culturais de cada um, o olhar que, coincidindo na generalidade, se separava no específico da estrutura humana, Capitão um e doutor em humanidades, alinhado já com oposições, escrevendo em jornais do contra, agarrado e ali colocado a comandar cento e tal homens contra outros homens de quem não discordava, outro, Alferes generoso e espalha-brasas, estranhando somente a necessidade de violência, recusando-a mesmo sem maiores profundezas que o desabafo.

- Tá bem, Capitão! Vou ver se engato um desses Furriéis que saem menos a ver se algum está disposto a fazer o frete!.

- Okey, concordo, mas apresse-se com o resto porque em relação a Furriel, estou a vê-lo mesmo daqui e ele está a ouvir a conversa. Já sabe o que lhe calha esta noite.

Cada um foi à sua e a sua do Capitão era eu, salvo seja, naquela emergência. No fito dele estava escolhida a vítima para a noitada.

- Ouviu a conversa, Furriel? Sabe já o que se passa com o civil. Tem alguma coisa a opor?

- Não, nada, até gosto de ir ao Xitole. Pena é que seja de noite. Dê-me licença, apenas de escolher dois ou três dos soldados que irão comigo e que obtenha acordo deles e dos seus Furriéis!

E com esta conversa entre o Loja e eu, acabam os diálogos que só entraram por melhor servirem o esclarecimento da situação, estando já, nesta altura, a impedir a circulação prática das ordens dadas e recebidas, que na tropa e na guerra nem carecem de explicações mas de cumprimento.

Tudo a andar, sete ou oito soldados, dez, se não me engano, GMC, mensagem para o Xitole a confirmar a ida, e lá partimos à aventura.

A estrada nem estava mal e fazia-se até muito bem, tirando um ou dois atravessamentos de linhas de água, sobre pontes improvisadas, um tronco de cibo para cada rodado e olhinhos do condutor, sobretudo ali no escuro da noite.
Às duas por três, a mais de meio caminho para Contabane, avaria a GMC.

- Porra! E agora?

- Bem malta vamos falar baixo estamos mais perto de Contabane e o Sambel tem uma bicicleta que nos empresta para um de nós poder voltar na gáspea à Aldeia trazer outra viatura nesta escuridão Furriel de bicicleta é quase impossível e Contabane está em auto-defesa ainda algum que lá vá leva um tiro a estrada é direita e á vista do posto de sentinela deste lado não tem árvores nem nada a Contabane vou eu com um soldado os outros vão armar emboscada fora da estrada a dez metros da viatura olhos e ouvidos abertos então e quando ouvirmos o barulho da bicicleta a noite não está escura tenham cuidado que aqui ninguém sabe imitar o pio de pássaros nem isto é um filme quem é que vai comigo vou eu e que seja o que deus quiser.

Posta aqui da maneira que lêem, esta mancha de palavras mais parece conversa de doidos ou então relato de analfabeto ainda hoje enervado com a situação de então.

Mas o que é que vocês querem? Eu não tinha já avisado que não continuaríamos pôr aqui a dialogar os protagonistas da crónica, Capitão isto, Alferes aquilo, Furriel isto e aquilo, como se estivessem em palco de teatro, deixando as falas na cadência ensaiada e nos lugares marcados para parecer real, o que real era já de si próprio?
Disse ou não disse?
Agora, desunhem-se, separem vocês as falas, este disse isto e ou outro coisa diferente, e tal.

O trabalho da construção das imagens que devem saltar de um texto, seja ele história, estória, poema, ficção narrativa ou mesmo relatório, não deve ser apenas do emissor. Quem lê, sobretudo vocês que chuparam com muitos trambolhões parecidos, conhecem o chão e o ar quente que ali se respira, o RDM, os salamaleques de militares ainda que mais aligeirados ali no mato do Sul da Guiné, deve também fazer o seu esforço no recordar da vida ali, no momento e na situação e... imaginar o resto.

Separem vocês as falas, repito, sabendo que umas são minhas e são outras dos camaradas que haviam embarcado no chaveco em Aldeia Formosa com rumo a Xitole e a missão de trazer médico, acredita-se, mais apto que enfermeiro, ainda que este o fosse e dos bons.

O certo é que nos fomos, eu na frente, olhos e ouvidos alerta, tentando agarrar os sons da mata e prevenir surpresas, o soldado caminhando atrás, rezando, creio, forma talvez mais eficaz de nos salvar de maus encontros, se calha ter deus andado por ali naquela noite.

Fizemos dois ou três quilómetros à pata. Na recta que antecede a tosca entrada na aldeia, parece que estou agora a ver o chão arenoso e solto do caminho, o soldado quase implorava para pararmos na crença que do outro lado atirariam assim que se apercebessem de presença humana e caminhante. Havíamos combinado que ao primeiro ruído de metal metendo bala na câmara, o nosso destino imediato, ainda antes do tiro, seria o chão. Outro remédio não teríamos senão gritar quem éramos e esperar que de lá entendessem e acreditassem.

Andando, andando cautelosamente e com os sentidos todos à flor-da-pele, entrámos na aldeia como quem não quer a coisa e sem oposição de sentinela, pedidos de BI ou outro elemento identificador, e nem o ladrar da canzoada trouxe gente alarmada ao nosso encontro.

Buscámos a casa de Sambel, exaltámos quatro mulheres, e outras que se foram chegando ao grupo, explicámos ao que vínhamos e o soldado lá se foi no escuro da noite, agora fazendo o caminho ao inverso e só.

O Sambel destacou dois milícias dos dele para que eu não andasse abandonado por aqueles ermos e ganhei de novo a GMC e o pessoal que lá havia ficado.
Tudo corria sobre rodas, quer dizer, se despachava como esperado.

Mais de duas horas depois vislumbrámos as luzes da outra viatura que vinha substituir a avariada e que trazia outro Furriel e mais dois soldados para continuarem a viagem interrompida, devendo eu retornar à Aldeia.

Aceitei os soldados e recusei a substituição. Já agora queria ir até ao fim.

Passámos de novo Contabane, agora a cavalo, como se diz aqui no Alentejo, mesmo quando o cavalo não passa de tratori, chegámos ao Xitole noite alta, voltámos com o médico para Aldeia Formosa e nem eu já sei se o civil se salvou ou não e como evoluiu a coisa com ele, evacuado de manhã de heli para Bissau.

Por volta da hora do almoço, já retemperado, procurei o soldado da bicicleta e encontrei-o bem abatido do medo do que fizera durante a noite, pensei eu.
Pensei mal. Ou por outra, medo o homem deve ter tido toda a viagem, pedalando e vendo fantasmas em cada sobra de árvore.
E isso nem é de admirar se pensarem bem, se se pensarem vocês no lugar do soldado, alta noite na pasteleira, naquele lugar da Guiné, desejando ardentemente o fim da estrada.
Mas agora o problema do soldado era outro.

- Óh meu Furriel! Agora quem é que paga a bicicleta ao Sambel?

- Como assim? Pagar a bicicleta porquê?

- É que aí a uns dois quilómetros da aldeia, de repente, no escuro atravessou-se-me um bicho grande na frente, bati contra barriga do gajo, caí e ele fugiu

Eu já não aguentava o riso na imagem ali criada com a maior das simplicidades e o soldado olhava-me atrapalhado com o desrespeito.

- Diga-me, quem é que paga? - repetiu.

- Já falaste ao Furriel da tua secção?

Abanou a cabeça na negativa e esperou que lhe desse uma solução para o problema bicudo.

- Óh pá! Pensando bem, o melhor a fazer, é ir à procura do bicho. Talvez que ele acabe por pagar o prejuízo e é bem feito para não andar aí a atravessar a estrada a horas que são de estar na cama. Assim, na próxima, pelo menos, olha antes de atravessar, não vá aparecer outro branco maluco montado em bicicleta de Régulo.

José Brás
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Vd. último poste da série de 18 de Junho de 2009 > Guiné 63/74 - P4551: Vindimas e Vindimados (José Brás) (3): O Santinhos da Artilharia

quinta-feira, 18 de junho de 2009

Guiné 63/74 - P4551: Vindimas e Vindimados (José Brás) (3): O Santinhos da Artilharia

1. Terceira história da série Vindimas e Vindimados do nosso camarada José Brás, ex-Fur Mil da CCAÇ 1622, Aldeia Formosa e Mejo, 1966/68, baseada no seu livro "Vindimas no Capim" (*)

Carlos
Cá vai o terceiro (para cumprir o ritmo).
Quanto às fotografias é um problema. Eu sempre convivi mal com elas, quer a ficar (nelas), quer a fazê-las.
De qualquer modo, vou tentar que te cheguem um grupo na Guiné e cá no puto.
São muito más e não sei se aproveitarás alguma coisa.

Um abraço
José Brás


José Brás à civil


Fooooo...go!

O Santinhos era um gajo curioso. Study of case, pode dizer-se hoje, tempo diferente em quase tudo do de então, democratizada que está a informação sobre as coisas da vida em geral e em específico, dizem alguns que para melhor nos mentirem.

Mas não importa isso, aqui e agora, importa, sim, falar-vos do Santinhos, Alferes comandante das peças de obus que guarneciam os quatro lados do quase quadrado da nossa convivência em Medjo naquele tempo.

Alferes e competente, dizia-se por lá, no acerto daquilo sempre que era necessário apontá-los a alvos definidos. Sob a sua orientação se construíram uns espaldares que exteriorizavam a paliçada, desbordando-a em semicírculo, com o cano sobrando no-de-fora para tiro directo para zonas que dessem tempo ao salto da cavilha entre o disparo e a cabeçada do percutor contra qualquer obstáculo.

A mim, observando os lugares dos rebentamentos da garrafa, após os ensaios realizados no fim da obra, arrepiou-se-me a alma na imaginação da coragem necessária para enfrentar os estilhaços que se semeavam à volta do local da explosão. Enormes, cortantes, divisores incontornáveis de corpos, ainda que fossem feitos de matéria mais resistente que esta carne que nos envolve o sonho.
Uma coisa desmanchava, contudo, esta imagem de Alferes competente que venho aqui a sugerir e vocês começavam já a assumir como projecto de homem e militar.

Bebia.

Gaita! Beber, gostar da pinga, nem é crime, nem reduz as grandezas humanas que todos possuímos, mesmo quando gostamos de beber.

Sejamos mais rigorosos. O Santinhos gostava de beber muito, usando aqui o advérbio de um modo que garanta que muito é mesmo muito, seja qual for o conceito que construamos sobre quantidade, dizendo eu isto, e, ouvindo-o cada um de vós.

Lembram-se das meias garrafas de cerveja, seis decilitros ou coisa assim, que pedíamos no bar ao Cabo Carneiro, aliás, pedia eu, pedia o Santinhos, pediam os oficiais, os sargentos e os soldados todos da minha Companhia 1622, e pediam vocês, nas vossas Companhias a Cabos com outros nomes. Se disse Carneiro, é porque depois da Guiné, Carneiro, para mim, é nome de Cabo barista, seja lá onde for que esteja, hoje e no futuro, tal qual eu sou Zé, apenas porque com esta minha cara, só podia mesmo era ser Zé.

Aonde eu queria chegar, desculpem vocês esta minha tendência para divagar, aonde eu queria chegar era ao número de garrafas daquelas que o Santinhos bebia durante um dia. Sei que não estou num concurso de televisão onde se fazem perguntas tão pategas como esta, mas não resisto à vontade de vos perguntar.

Respondam. Quantas?

Vinte e duas, vinte e três, vinte e quatro, dependia.

Mas não julguem que só de cerveja vivia o Santinhos. Isso era durante o dia. À noite, ele era scotch, ele era vodka, ele era cognac

Uma noite, tendo eu que levar mensagem urgente ao capitão, passei na secretaria a caminho dos quartos dos oficiais e quem é que eu topo?

Com o Santinhos deitado em novelo naquele espaço que há nas secretárias para meter as pernas, fileira vertical de gavetas à direita e à esquerda das ditas, quando em trabalho. Com ele, meia bebida, meia entornada, uma garrafa de aguardente velha.

Ninguém sabia onde metia o homem tanto álcool, numa figurinha de um metro e sessenta, magro e escanzelado.

Nunca o vi senão de jeens, quase sempre sujos, a cair-lhe do corpo, mostrando o anúncio da separação das nádegas, coberto apenas nas madrugadas de frio pelo dólmen da farda malhada.

Cabelo sempre comprido e sujo, barba dias e dias por fazer, deambulando pelo quadrado de olhar entre o vazio e o espantado.

Num dia de visitas de Bissau a Medjo, brigadeiros, coronéis e tal, descem do heli, entram no quartel e logo ali deparam com o espantalho que, desajeitado e hesitante, lhes bate uma palada cómica. E eu danado para largar à gargalhada na ópera cómica, ali à minha frente, fugindo de mãos na boca para evitar a bronca.

Mas nada disto de que tenho estado a falar tem importância. A importância dou-lhe eu no engano de vos fazer compreender melhor a encomenda do Santinhos no episódio burlesco que, desde o início vos quero relatar.

Comecemos pelo princípio!

Em certo tempo, que como vocês sabem não é o mesmo que tempo certo, em certo tempo foi programada em Bissau uma Operação das grandes, destinada ao assalto e ocupação de Salancaur. Tal Operação envolvia várias Companhias que passaram a noite deitados pelo chão do quartel de Medjo, bombardeamentos prévios nos dias precedentes pela aviação, jactos no ar à hora que devia ser do assalto, bombardeamentos com os obuses do quartel antes da entrada.

As quatro peças foram deslocadas dos seus espaldares para o exterior da paliçada, alinhadas lado a lado e apontadas ao objectivo com regulação do tiro a partir do voo de um DO.

Diz-se que o homem põe e Deus dispõe, querendo justificar-se a coisa torta. A Operação que deveria ser de um dia, naquela mata quase virgem, evitando sinais de picada à força de catana, chegou-se à ante-câmara do destino apenas na terceira madrugada. Fome, sede, medos, etc., esfrangalharam corpos e convicções. As evacuações começaram em catadupa, umas absolutamente justificadas e outras, provavelmente, oportunistas.

Na frente da tropa de assalto havia agora um enorme espaço de bolanha nua que era necessário passar para chegar ao objectivo.

Ordem para iniciar procedimentos de tiro de obus, tudo a postos, cada peça com seu apontador e municiador, eu ouvindo em PRC-10 as ordens do DO ao Santinhos e em wallkie talk, a comunicação entre o Santinhos e o apontador de cada obus, conversa para a qual peço a vossa inesgotável imaginação, recriando a manhã naquele lugar, quente e húmida, abafada ainda mais pelo stress da espera; meia dúzia de soldados que haviam ficado a garantir a segurança das peças encarrapitados na bancada da paliçada; o DO esvoaçando e dando indicações, não tão longe dali que não se pudesse enxergar-lhe a evolução a olho nu, a voz do Santinhos nas perguntas ao avião, nas ordens às peças, pastosa, embrulhada na língua, augurando tensões.

Primeira bateria?
Pronto meu alferes!

Segunda bateria?
Pronto meu alferes!

Terceira bateria?
Pronto meu alferes!

Quarta bateria? Quarta bateria? Quarta bateria?

Fooooo...da-se!

Buuum, ecoando inesperadamente nos meus ouvidos e no susto dos ocupantes do DO que voavam em frente, não muito acima da linha de tiro!

- Tirem-me daqui - esganiçou o Alferes. - Tirem-me daquiiiii!

Um médico de fora que por ali cirandava para a possibilidade de ter de servir na Operação, diagnosticou sintomatologia histeriforme e solicitou evacuação para o Alferes.

O helicópetero que o veio buscar carregou já para Medjo o seu substituto, outro Alferes, açoriano, diferente do Santinhos no talhe físico e na atitude.

Para aquele dia nem valia a pena a pressa da substituição.

A Operação havia acabado. Do DO para a tropa na orla da mata a ordem foi a de recuar, porque do outro lado eram muitos os morteiros prontos para bater a bolanha.

Não morreu ninguém, do nosso lado, pelo menos.

E do Santinhos, Alferes ou civil, engenheiro brilhante, segundo se dizia, e contestatário, nunca mais ouvi dizer fosse o que fosse.

JB
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Nota de CV:

(*) Vd. poste de 9 de Junho de 2009 > Guiné 63/74 - P4486: Vindimas e Vindimados (José Brás (2): Coágulos

terça-feira, 9 de junho de 2009

Guiné 63/74 - P4486: Vindimas e Vindimados (José Brás (2): Coágulos

1. Segunda história da série Vindimas e Vindimados do nosso camarada José Brás, ex-Fur Mil da CCAÇ 1622, Aldeia Formosa e Mejo, 1966/68, baseada no seu livro "Vindimas no Capim"


COÁGULOS

Ninguém é novo demais, ou velho, para morrer.
Morre-se, simplesmente, na hora certa, no fim da vida, tenha-se ou não vivido muito, esteja-se ou não cansado disto e pronto para partir.

Morre-se de imprevisto, sem ninguém esperar, às vezes por uma coisinha insignificante, um momento de distracção, até parece.

A vida toda a correr bem, vendendo saúde, amigos no convívio, afectos... e, pumba. Uma escorregadela, um parafuso que salta, um travão que falha, uma curva apertada... uma veia, uma artéria que ninguém tinha visto apertada, uma gota de sangue, um coágulo que se intromete no fluir corrente... uma bala perdida.

Ou se morre, simplesmente, quando todos já o esperam, de doença descoberta e prolongada, acompanhada por médicos e tratamentos, o corpo exaurido, a alma esfrangalhada, sem forças nem vontade para continuar.

Ninguém é novo demais para morrer, repito.
A vida chega-nos sem que nada tivéssemos feito antes para a ter, oferecida, em berço d'ouro ou enxerga, e respirámo-la, sorvemo-la, agarramo-nos como náufragos desde o primeiro momento, incrédulos ainda de aqui estarmos, tão perto do nada do minuto precedente, do vazio que era o não ser... e enchemo-nos dela, ávidos, por um temor qualquer, imediato e instintivo, de regressarmos ao nada, ao limbo, à outra zona do não conhecer e do onde viemos.

Mais tarde julgámo-nos os donos do mundo!
Mamamos na teta, na da mãe e na da cabra. Trambolhões, escapamos duma, escapamos de outra. A vida corre e engrossa-nos a confiança, a certeza de que tudo corre sobre rodas, o sentimento de que o mundo é justo ou injusto; a convicção de que a água, correndo sempre para baixo, num sítio qualquer da corrente, podemos pará-la, podemos contê-la por momentos, inverter-lhe o fluir, levá-la de novo à nascente.

Ninguém é novo demais para morrer, trerepito!
A vida não se mede aos quilos, bem ou mal pesados, excessivos ou roubados no peso, nem nos anos que se contam na cédula pessoal, no B.I., no processo individual da empresa que nos paga os dias de trabalho, no caderno de recenseamento eleitoral, na ficha da polícia se já nos convocaram para entrevista em esquadra, ou mesmo que não.

Morre-se, simplesmente, quando Deus quer, dizia na minha aldeia o Manuel da Cruz, ou um tio se distrai, acrescento eu.

Como no caso da Guerra.

Dizem-nos: - A Pátria está em perigo! Tens de a defender até ao sacrifício da própria vida - e lá vamos nós cumprir a sina, de saco na mão e arma ao ombro da coragem ou do medo, da sorte ou do azar, às vezes morrendo ou vivendo por pequenas coisas, por um quase nada.

Como aconteceu com o Dias, Soldado de Transmissões da minha Companhia de Infantaria, destacada na zona de Guiledje, numa terrinha chamada Medjo, rodeada de mata densa, bicharada, aquartelamentos do IN tão próximos que quase nos podíamos ofender de voz, pessoalmente gritada, de cá para lá e de lá para cá.

Ao Dias disseram que estava no tempo certo de largar a aldeia, o ofício de mecânico que começara a aprender mal saíra da primária, de agarrar no bornal e se fazer ao caminho da tropa.

Foi a primeira vez que largou a asa da mãe, passou a Serra da Neve e se afastou a Sul do mapa pendurado na escola do Caldeira.

Havia de lhe calhar, mais tarde, depois de andanças pela geografia do País, fechado nos muros altos de dois ou três quartéis, ordem unida, Mauser, AN-GRC9, o PRC-10, os Alfa, Bravo, Charlie, Delta, embarcar na Rocha do Conde de Óbidos, despejado, por assim dizer, cinco dias depois, em cascos de rolha.

Não vamos falar aqui das coisas interiores do Dias, das suas esperanças, do modo de ver a vida, do convívio com o anarca do Arnaldo, e com o outro, o da PSP que queria ser da PIDE e prender comunas, coisa que nunca chegou a saber o que era.

Nem falaremos da sua figura física de portuga das Beiras, aldeão, fazendo diariamente o caminho da aldeia à vila, e vice-versa, pendurado numa bicicleta de segunda ou terceira mão, para ir aprendendo sobre cárteres, pistons, velas, bobines e o diabo a sete dos motores de explosão.

Não falaremos destas coisas, embora eu lhas conheça bem, para não perdermos tempo com desimportâncias, porque importante mesmo seria ver-lhe a qualidade de soldado, no número de identificação que lhe gravaram na chapa dependurada do pescoço, picotada a meio para os fins que sabemos, na devoção com que se entregava ao saber sobre os emissores/receptores, no ar de submissão que trazia da aldeia e se acentuara sob as ordens dos senhores sargentos e oficiais.

Provavelmente porque a Guiné cansava mais do que outros lugares da nossa guerra, e talvez porque de Super-constelation se fazia em pouco mais de sete horas (mais tarde, em cerca de metade no Boing 727-100) quase todos os que conseguiam reunir meios para passar um mês de férias na terra, compravam o bilhete da TAP e faziam o seu baptismo de voo.

Cheguei à minha aldeia, no início de Julho, de gravador Sony nas mãos queimadas dos canos da G3 que no escuro da noite, soldados me passavam à vez, na boca de um abrigo feito de cibos, lata e terra (preferia morrer a céu aberto) e eu despejava por cima da paliçada, em inimigos que não via mas adivinhava pelo rastro das rastejante e pelas saídas de morteiros e canhões sem recuo.

Fim de Julho, festa de Verão na aldeia, banda de música no coreto, bailaricos, gado bravo no cercado, o forcado que era antes da partida, estão a ver a felicidade quase sólida ali nas mãos, mesmo que faltassem apenas dois dias para voltar a Mejo.

Na Segunda-Feira da festa, entre umas imperiais e uns tremoços, o carteiro entrega-me um telegrama que havia chegado da Guiné, curto, seco, violento.

"Dias morreu Xinxi-Dari. Ponto. Outro morto feridos outras secções. Ponto. Oliveira ferido grave Hospital Estrela. Ponto. Dá apoio antes voltares. Ponto. Loja".

Grande murro no estômago!

De repente desabou tudo sobre mim.

Olhava, tanto quanto me lembro e os amigos diziam depois, olhava de olhar parado, a gente à volta, falando comigo "o que é que foi pá diz lá porra" e, nada, niqueles, perdera a palavra.

O meu pai tirou-me o telegrama da mão e leu. Ficou parvo também mas não perdeu nem a fala, nem a ternura. Tirou-me da cadeira já as lágrimas me corriam abundantes.

O Dias era Soldado da minha Secção e morrera sem mim.
O Oliveira era da minha Secção e jorrara o seu sangue em Xinxi-Dari sem mim.
E os outros de quem não constava nome no telegrama, que eram da minha Companhia, haviam morrido sem mim.

Logo ali, à frente de todos, o meu pai garantia:

- Agora é que vais mesmo para fora. Já não voltas a essa terra de doidos. O Salazar que se f...

Naquele momento nem ripostei. No dia seguinte, bem cedo, autocarro da Bucelence, Lisboa, voltas e mais voltas na Estrela, um mundo de mortos-vivos, até que encontrei o Oliveira. Não iria morrer, pareceu-me, embora me tivesse afiançado que alguém na mata lhe apanhara intestinos. De mais importante para lhe dizer apenas a merda de um consolo vazio no estado de alma que tinha de lhe esconder. "Olha, Oliveira, daquilo estás safo!"

À noite, de novo em casa, poucas falas para trocar, o meu pai seguro de que me poria na fronteira e eu remoía ainda os pequenos nadas da tragédia.

Antes da cama tudo ficou claro entre nós. Medjo iria continuar a ser a minha Pátria por mais alguns meses. A mala já estava feita. O meu pai iniciou ainda a argumentação, mas calou-se com as lágrimas que me haviam rebentado de novo.

E nem precisei de dizer-lhe que me sentia miserável por ter deixado morrer aqueles amigos sem a minha presença de arma na mão.
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Nota de CV:

Vd. primeiro poste da série de 2 de Junho de 2009 > Guiné 63/74 - P4453: Vindimas e Vindimados (José Brás) (1): O Correio da Malta... e o enfermeiro, herói do dia

terça-feira, 2 de junho de 2009

Guiné 63/74 - P4453: Vindimas e Vindimados (José Brás) (1): O Correio da Malta... e o enfermeiro, herói do dia



1. Primeira história da série "Vindimas e Vindimados", baseada no título do livro de José Brás, ex-Fur Mil da CCAÇ 1622, Aldeia Formosa e Mejo, 1966/68, "Vindimas no Capim", que foi Prémio de Revelação de Ficção de 1986, da Associação Portuguesa de Escritores e do Instituto Português do Livro e da Leitura.



O Correio da Malta

O Correio da Malta

Era dia de DO.
Sabíamos que era dia de DO porque recebêramos de Bissau em mensagem cifrada e passada a claro no bidão, por mim próprio, Furriel de Transmissões da Companhia, fuçando sozinho no emaranhado dos códigos, privado do trabalho do Cabo Telegrafista em visita ao hospital da cidade.

Chamávamos de bidão ao meu quarto privativo, talvez o lugar mais recatado de Medjo por ser nele que funcionava a xerete do sítio, não mais que mesa tosca no cantinho ao fundo do pardieiro, junto aos pés da cama, pastas com nomes adequados, codoper, codoperex, Horus, Zeus, uns de linguagem quase aberta, outros complicados de abrir.

E bidão lhe chamávamos, porquê?

Por isso mesmo. Porque era um bidão, latão de duzentos litros, aberto à bordoada cortante, tornado lata mais ou menos direita e posta na vertical de molde a utilizar o lado mais comprido como pé direito da sala. Várias latas daquelas interligadas por lâminas de adobe, um telhado de zinco com duas águas, dois e meio por dois e meio de anchura, e aí tínhamos um verdadeiro e secreto escritório dos Serviços de Transmissões da Delegação do Exército Português, neste caso a minha Companhia que calhava estar por aquelas bandas naquele tempo, a meia dúzia de quilómetros do corredor de Xinxi-Dari e de Salancaur, com estrada fechada para Bedanda e aberta para Guiledje, se não estou em erro, sete quilómetros de boa travessia em tempo seco e como vocês sabem, de trabalho cansado e longo em tempo de chuva.

A saída a Guiledje tinha dois objectivos. Um, levar o Capitão que apanhava a DO de regresso a Bissau; outro, o de agarrar os sacos do correio para a malta que dele carecia tanto como de pão.

E falo de pão, talvez sugestionado pela falta que frequentemente nos fazia, sempre que o PAIGC nos visitava na cortesia de morteiro e canhão sem recuo e nos abatia o forno mais uma vez.
Nunca entendi bem que diabo de construção era aquela que desabava tão amiúde.

Por via das coisas (as coisas aqui eram a proximidade de vizinhos tão incómodos e a existência de população civil dentro do quartel), deu-se a esta saída, com era hábito rotineiro, um carácter muito sigiloso, apenas duas Secções que fingiam ir por água à fonte, antes mesmo da passagem do aviãozinho que sabíamos viria abanar asas à vertical, momento azado para a teatral e exuberante faz de conta da surpresa, como se fosse aquele o instante exacto da tomada de conhecimento da coisa, "éh pá, correio! Tá bem mas hoje já não pode ser, fica para amanhã, sargentos do quarto, organizem-se! Porra, é sempre ao quarto que calha o prémio", coisas do estilo, ingenuidades de quem ensinava o padre nosso ao vigário.

A estrada estava seca, minuciosamente picada na ida, capitão entregue, sacos na mão, dois unimogues de motor aceso, ala que se faz tarde, de regresso a Medjo, condutores batidos, rectas prolongadas, cem à hora na pressa de fazer o caminho, pressa maior ainda do que a vontade de chegar.

E um Cabo Enfermeiro!

E um Cabo Enfermeiro que veio de Bissau para nos ajudar em Medjo e não podemos esquecê-lo retido em Guiledge, no risco, depois, de nada do que se dirá adiante poder ser dito porque não acontecido.

Expliquemos!

Cada Companhia em quadrícula tinha, como é que hei-de dizer, a sua Delegação de Saúde, própria para tratar de equimoses, de sinais de enxaquecas, de blenorragias… às vezes, mesmo, de pequenas cirurgias apressadas.

Um Furriel e um Cabo ou dois.

Acontece que na minha Companhia, episodicamente ficámos sem ninguém, o Furriel de férias em Lisboa e o Cabo de baixa em Bissau, de filarse, de caganeira, ou de simples maluquice.

Bissau resolveu enviar-nos um que ocupasse o lugar durante a falta dos nossos, e foi ali que caiu, de pára-quedas, quase, na mesma DO do correio.

Era um tipo de bom talhe físico, exuberante em trejeitos e maneiras de falar, assim como… costumamos chamar de femininas, esquecendo que dentro de cada homem, mais nuns que noutros, existe sempre, também uma parte da mãe que nos pariu.

Os soldados logo ali se reuniam em cochichos e olhares de lado, risinhos abafados, e tal.

Aí a meia viagem, sei lá, a uns cinquenta metros, se tanto, de uma ligeira curva à esquerda, as rajadas estoiraram no coração de cada um.

O unimog da frente, directamente atingido por fogo feito a poucos metros, chupa com um rajada em cheio, começa a travar, sai da estrada e imobiliza-se logo ali, ligeiramente atravessado, ligeiramente inclinado em pranchamento à direita mas ainda com parte da carroçaria na berma.

Dos ocupantes, um Alferes apanhou com três balas numa perna, um Soldado negro de Aldeia Formosa que havia apanhado boleia na DO só para vir matar saudades que tinha da malta, leva também a sua conta, dois Soldados mortos na carroçaria, um que nem chegou a levantar-se, tendo caído de imediato sobre umas baterias que viajavam connosco para substituições, outro que se levanta, é atingido e malha no pó ainda antes da paragem da viatura.

O Cabo Calçada é apanhado já em pleno salto. Uma rajada nas costas que lhe há-de levar a maior parte de um pulmão, deixa-o também fora de combate.

Isto tudo passa-se em menos de um ai, por assim dizer, que nestas cenas, soldados sentados no duplo banco corrido da carroçaria de um unimog, têm molas nas pernas e não iriam esperar que a viatura parasse para comodamente dela descerem.

Já nem me recordo se houve mais feridos, lembro sim que ficámos com sete ilesos e a disparar o troco, cabeças na orla da mata, com as rajadas inimigas a varrerem o meio da estrada, sem poderem utilizar a bazuca contra a barreira de mata no nariz do pessoal, nem o morteiro sessenta, pelas mesmas razões e porque o combate se travava com uma distância de quinze ou vinte metros entre os dois lados. O Soldado Lixa, nem se lembra porquê, arrisca o salto para um bagabaga e do outro lado descobre guerrilheiro inimigo. Recua e grita:

- Olha um turra - ouvindo o outro que também recua e grita:
- Olha um branco.

A coisa estava preta e a tropa que saiu de Medjo na convicção que a escaramuça se desenrolava a um quilómetro, se tanto, que teria de correr três ou quatro para dar a mão aos amigos. Contudo, como o Pelotão de Auto-metralhadoras Fox com a sua Brownning 12,7 saiu de Guiledje a abrir e a malta do PAIGC, que também não deveriam ser muitos, achou por bem dar às de Vila Diogo, a corrida nem chegou a meio.

Outra coisa que ninguém mais esqueceu foi a imagem do Enfermeiro chegado de Bissau, indiferente ao tiroteio, cirandando sem parar debaixo daquele fogo danado, rastejando de ferido a morto, de morto a ferido, dando-lhes o melhor apoio que lhes podia dar na circunstância.

Nem um arranhão sofreu e o pessoal não acreditava como podia ser isso, se o fogo era intenso e certo e ele circulava por entre as balas como anjo imune.

No quartel, intervalando o choro pelos amigos mortos e feridos, o pessoal comentava: - O enfermeiro, hein?!

Foi mais uma verdade que antes tinham como certa e que ali se desfez nas cabeças e no coração, voltando o mundo de pernas para o ar e deixando-os de palavra presa na garganta.

Ter entre eles, como seu igual, o mais bravo, praticamente o único herói daquela bernarda em que se haviam visto, um homossexual assumido e evidente, ainda por cimo acabado de chegar do ar condicionado, era demais para as certezas com que haviam embarcado no Niassa.

Com muitas coisas se espantavam na Guiné estes soldados portugueses, cidadãos precários de Medjo.

E foi assim, naquelas partes da Guiné e naquele dia de estação seca, no ano da graça de 1967.

José Brás
__________

Nota de CV:

(*) Vd. poste de 4 de Maio de 2009 > Guiné 63/74 - P4279: Blogoterapia (101): Obrigado, Manuel Maia, emocionaste-me até às lágrimas (José Brás)