terça-feira, 2 de junho de 2009

Guiné 63/74 - P4453: Vindimas e Vindimados (José Brás) (1): O Correio da Malta... e o enfermeiro, herói do dia



1. Primeira história da série "Vindimas e Vindimados", baseada no título do livro de José Brás, ex-Fur Mil da CCAÇ 1622, Aldeia Formosa e Mejo, 1966/68, "Vindimas no Capim", que foi Prémio de Revelação de Ficção de 1986, da Associação Portuguesa de Escritores e do Instituto Português do Livro e da Leitura.



O Correio da Malta

O Correio da Malta

Era dia de DO.
Sabíamos que era dia de DO porque recebêramos de Bissau em mensagem cifrada e passada a claro no bidão, por mim próprio, Furriel de Transmissões da Companhia, fuçando sozinho no emaranhado dos códigos, privado do trabalho do Cabo Telegrafista em visita ao hospital da cidade.

Chamávamos de bidão ao meu quarto privativo, talvez o lugar mais recatado de Medjo por ser nele que funcionava a xerete do sítio, não mais que mesa tosca no cantinho ao fundo do pardieiro, junto aos pés da cama, pastas com nomes adequados, codoper, codoperex, Horus, Zeus, uns de linguagem quase aberta, outros complicados de abrir.

E bidão lhe chamávamos, porquê?

Por isso mesmo. Porque era um bidão, latão de duzentos litros, aberto à bordoada cortante, tornado lata mais ou menos direita e posta na vertical de molde a utilizar o lado mais comprido como pé direito da sala. Várias latas daquelas interligadas por lâminas de adobe, um telhado de zinco com duas águas, dois e meio por dois e meio de anchura, e aí tínhamos um verdadeiro e secreto escritório dos Serviços de Transmissões da Delegação do Exército Português, neste caso a minha Companhia que calhava estar por aquelas bandas naquele tempo, a meia dúzia de quilómetros do corredor de Xinxi-Dari e de Salancaur, com estrada fechada para Bedanda e aberta para Guiledje, se não estou em erro, sete quilómetros de boa travessia em tempo seco e como vocês sabem, de trabalho cansado e longo em tempo de chuva.

A saída a Guiledje tinha dois objectivos. Um, levar o Capitão que apanhava a DO de regresso a Bissau; outro, o de agarrar os sacos do correio para a malta que dele carecia tanto como de pão.

E falo de pão, talvez sugestionado pela falta que frequentemente nos fazia, sempre que o PAIGC nos visitava na cortesia de morteiro e canhão sem recuo e nos abatia o forno mais uma vez.
Nunca entendi bem que diabo de construção era aquela que desabava tão amiúde.

Por via das coisas (as coisas aqui eram a proximidade de vizinhos tão incómodos e a existência de população civil dentro do quartel), deu-se a esta saída, com era hábito rotineiro, um carácter muito sigiloso, apenas duas Secções que fingiam ir por água à fonte, antes mesmo da passagem do aviãozinho que sabíamos viria abanar asas à vertical, momento azado para a teatral e exuberante faz de conta da surpresa, como se fosse aquele o instante exacto da tomada de conhecimento da coisa, "éh pá, correio! Tá bem mas hoje já não pode ser, fica para amanhã, sargentos do quarto, organizem-se! Porra, é sempre ao quarto que calha o prémio", coisas do estilo, ingenuidades de quem ensinava o padre nosso ao vigário.

A estrada estava seca, minuciosamente picada na ida, capitão entregue, sacos na mão, dois unimogues de motor aceso, ala que se faz tarde, de regresso a Medjo, condutores batidos, rectas prolongadas, cem à hora na pressa de fazer o caminho, pressa maior ainda do que a vontade de chegar.

E um Cabo Enfermeiro!

E um Cabo Enfermeiro que veio de Bissau para nos ajudar em Medjo e não podemos esquecê-lo retido em Guiledge, no risco, depois, de nada do que se dirá adiante poder ser dito porque não acontecido.

Expliquemos!

Cada Companhia em quadrícula tinha, como é que hei-de dizer, a sua Delegação de Saúde, própria para tratar de equimoses, de sinais de enxaquecas, de blenorragias… às vezes, mesmo, de pequenas cirurgias apressadas.

Um Furriel e um Cabo ou dois.

Acontece que na minha Companhia, episodicamente ficámos sem ninguém, o Furriel de férias em Lisboa e o Cabo de baixa em Bissau, de filarse, de caganeira, ou de simples maluquice.

Bissau resolveu enviar-nos um que ocupasse o lugar durante a falta dos nossos, e foi ali que caiu, de pára-quedas, quase, na mesma DO do correio.

Era um tipo de bom talhe físico, exuberante em trejeitos e maneiras de falar, assim como… costumamos chamar de femininas, esquecendo que dentro de cada homem, mais nuns que noutros, existe sempre, também uma parte da mãe que nos pariu.

Os soldados logo ali se reuniam em cochichos e olhares de lado, risinhos abafados, e tal.

Aí a meia viagem, sei lá, a uns cinquenta metros, se tanto, de uma ligeira curva à esquerda, as rajadas estoiraram no coração de cada um.

O unimog da frente, directamente atingido por fogo feito a poucos metros, chupa com um rajada em cheio, começa a travar, sai da estrada e imobiliza-se logo ali, ligeiramente atravessado, ligeiramente inclinado em pranchamento à direita mas ainda com parte da carroçaria na berma.

Dos ocupantes, um Alferes apanhou com três balas numa perna, um Soldado negro de Aldeia Formosa que havia apanhado boleia na DO só para vir matar saudades que tinha da malta, leva também a sua conta, dois Soldados mortos na carroçaria, um que nem chegou a levantar-se, tendo caído de imediato sobre umas baterias que viajavam connosco para substituições, outro que se levanta, é atingido e malha no pó ainda antes da paragem da viatura.

O Cabo Calçada é apanhado já em pleno salto. Uma rajada nas costas que lhe há-de levar a maior parte de um pulmão, deixa-o também fora de combate.

Isto tudo passa-se em menos de um ai, por assim dizer, que nestas cenas, soldados sentados no duplo banco corrido da carroçaria de um unimog, têm molas nas pernas e não iriam esperar que a viatura parasse para comodamente dela descerem.

Já nem me recordo se houve mais feridos, lembro sim que ficámos com sete ilesos e a disparar o troco, cabeças na orla da mata, com as rajadas inimigas a varrerem o meio da estrada, sem poderem utilizar a bazuca contra a barreira de mata no nariz do pessoal, nem o morteiro sessenta, pelas mesmas razões e porque o combate se travava com uma distância de quinze ou vinte metros entre os dois lados. O Soldado Lixa, nem se lembra porquê, arrisca o salto para um bagabaga e do outro lado descobre guerrilheiro inimigo. Recua e grita:

- Olha um turra - ouvindo o outro que também recua e grita:
- Olha um branco.

A coisa estava preta e a tropa que saiu de Medjo na convicção que a escaramuça se desenrolava a um quilómetro, se tanto, que teria de correr três ou quatro para dar a mão aos amigos. Contudo, como o Pelotão de Auto-metralhadoras Fox com a sua Brownning 12,7 saiu de Guiledje a abrir e a malta do PAIGC, que também não deveriam ser muitos, achou por bem dar às de Vila Diogo, a corrida nem chegou a meio.

Outra coisa que ninguém mais esqueceu foi a imagem do Enfermeiro chegado de Bissau, indiferente ao tiroteio, cirandando sem parar debaixo daquele fogo danado, rastejando de ferido a morto, de morto a ferido, dando-lhes o melhor apoio que lhes podia dar na circunstância.

Nem um arranhão sofreu e o pessoal não acreditava como podia ser isso, se o fogo era intenso e certo e ele circulava por entre as balas como anjo imune.

No quartel, intervalando o choro pelos amigos mortos e feridos, o pessoal comentava: - O enfermeiro, hein?!

Foi mais uma verdade que antes tinham como certa e que ali se desfez nas cabeças e no coração, voltando o mundo de pernas para o ar e deixando-os de palavra presa na garganta.

Ter entre eles, como seu igual, o mais bravo, praticamente o único herói daquela bernarda em que se haviam visto, um homossexual assumido e evidente, ainda por cimo acabado de chegar do ar condicionado, era demais para as certezas com que haviam embarcado no Niassa.

Com muitas coisas se espantavam na Guiné estes soldados portugueses, cidadãos precários de Medjo.

E foi assim, naquelas partes da Guiné e naquele dia de estação seca, no ano da graça de 1967.

José Brás
__________

Nota de CV:

(*) Vd. poste de 4 de Maio de 2009 > Guiné 63/74 - P4279: Blogoterapia (101): Obrigado, Manuel Maia, emocionaste-me até às lágrimas (José Brás)

6 comentários:

manuel maia disse...

oO RITMO, A CADÊNCIA QUE UTILIZAS NO RELATO DA OCORRÊNCIA DÁ À TUA ESCRITA UM MOVIMENTO PRENHE DE REALISMO E UM CUNHO PESSOAL QUE O GRANDE PUBLICO DE IMEDIATO APREENDE.

O HERÓI DESSA EMBOSCADA,O MENOS PREVISIVEL POR TODAS AS RAZÕES E MAIS UMA,MOVIMENTANDO-SE NUM AFÃ DIGNO DE ENCÓMIOS,PERFEITAMENTE ABSTRAÍDO DO PERIGO,FOI TRATANDO DOS QUE DELE CARECIAM INDIFERENTE
ÀS BALAS E AOS GRITOS CIRCUNDANTES.

O MAIS PROVÁVEL É QUE NÃO TENHA SIDO MEDALHADO(NADA NARRAS A RESPEITO...) PORQUE ISSO ACONTECIA SEMPRE, OU QUASE SEMPRE, AOS PROFISSIONAIS QUE LONGE DOS PERIGOS BRINCAVAM ÀS GUERRAS NO BEM BOM DAS CIDADES,CRIANDO VERDADEIROS MITOS À SUA VOLTA...
OS MEUS PARABÉNS.

UM ABRAÇO
MANUEL MAIA

Luís Graça disse...

Zé Brás:

Não podias começar melhor a tua série a que deste o título "Vindimas e vindimados", inspirado, por sugestão minha, no próprio título do teu livro...

Passei em Mejo, em Março de 2008, mas estava longe de imaginar que outros camaradas como tu - gente com rosto, com identidade, com história - tinha lá passado muito antes, tinha lá lutado, morrido ou sido ferida, nos já idos anos de 1967...

Tanto tempo, tanta lonjura... E Mejo, 1967, agora aqui tão perto, tão próxima de nós... É a isso que se chama talento (literário)!

Obrigado... Luís

João Seabra disse...

Isto passa-se em que mês, José Brás? Vocês no Mejo eram reabastecidos via Gadamael-Guileje? Se não, quais eram os itinerários rodoviários e/ou fluviais utlizados para o efeito?
E onde é que a guarnição do Mejo ia à água?
A Fox é a mesma do meu tempo (72/73).
Uma ida e volta a Guileje com duas secções, parece-me deveras temerário. O IN estava a N/NE da estrada?
Até ao dia 20/6 e um abraço
João Seabra

João Seabra disse...

P.S.: A referência à "ligeira curva à esquerda", sugere que isto se verificou perto de Afiá, a cerca de 3 Km de Guileje.

Juvenal Amado disse...

Meu caro José Brás

Uma emboscada, mortos e feridos e um heroi inesperado.

Quando fui para a a Guiné não tinha consciência da quantidade de homossexuais, que combatiam nas nossas tropas. Falava-se que o RDM excluia das forças armadas, quem tivesse essa orientação sexual. Não sei se lá dizia ou não, mas a verdade é que em algumas companhias aprendemos a conviver com homossexualidade.

Embora tratados depreciativamente de início a forma como combatiam em nada os diferenciava dos outros e acabaram integrados.
Também nunca me constou que algum camarada tivesse sido assediado.
Para quem esperava uma atitude mais medrosa ficou admirado como eu fiquei.
Uma coisa é certa não era apanágio de uma classe social pois havia de todas as classes.

Um abraço
Juvenal Amado

Hélder Valério disse...

Amigo Zé Brás, em boa hora começaste a tua série (será assim em relação ao livro, será continuidade ao que já aqui nos presenteaste).
Sublinho a idéia expressa pelo Manuel Maia sobre o ritmo que imprimes à tua escrita, sobre o facto de "quase estarmos lá", em função das descrições.
Agora sobre o aspecto menos esperado, digamos assim, da tua história, relativamente à homossexualidade, é curioso que tal facto deve ter acontecido em muitos locais, mas nunca o tinha visto referido.
Por exemplo, quando estive em Piche, havia por lá um Fur. Mil. que era referido por ser "o Silva" de Buruntuma, de Canquelifá, ou até mesmo de Piche, conforme o local onde estava destacado (confesso que agora não sei onde originalmente pertencia)e que era conhecido por ter essas "tendências".
Não havia qualquer animosidade quanto a isso (não sei como foi a reacção inicial pois cheguei lá já o Batalhão levava mais de 6 meses) nem também havia quem se queixasse de qualquer assédio.
A coisa mais próxima disso foi uma vez em que estávamos muitos numa das camaratas dos Furrieis a preparar uma petiscada com queijos, chouriços assados, patês, etc e alguém pergunta:
- "Óh Silva, alinhas no chouriço?"
ao que ele respondeu:
- "Promessas!Promessas! É claro que alinho, seja ele qual for"

Um abraço
Hélder S.