Não controlavam nada na foz do Corubal e nada podiam fazer em conjunto com o pessoal do Xime para manter aberto o itinerário Ponta do Inglês / Xime porque a Companhia do Xime ocupava também Samba Silate, Taibatá, Demba Taco e Galomaro. Assim o seu isolamento era, foi, praticamente total.
Os géneros só a Marinha os podia levar e o mesmo se pode dizer das munições, correio, tabaco, combustível, etc.
A chegada dos abastecimentos era motivo de alegria geral como se pode ver nas imagens que junto.
Por muito que o pessoal controlasse os gastos, a falta de quase tudo fazia-se sentir. Bem podia o Comando da Companhia pedir insistentemente pela vias normais a satisfação dos pedidos que não conseguíamos nada. Cheguei a tentar meter uma cunha directamente na Marinha, mas as prioridades eram outras. Como alguns géneros recebidos da Companhia que lá tínhamos rendido, estavam deteriorados, a situação ainda foi pior. Esta situação originou, a pedido do alf Madail, o Fado da Fome, que o Manuel Moreira ilustrou nas quadras populares da sua autoria.
O destacamento da Ponta do Inglês era a pequena distância da margem do Rio Corubal e tinha a forma quadrangular. A guarnição era formada por 1 Gr Comb + 1 Esq Pel Mort 1192 e pelo Pel Mil 105.
O destacamento era formado por 4 abrigos principais nos vértices para o pessoal, para a mecânica e rádio. O combustível e as munições ficavam na parte mais perto do rio Corubal; na parte central sob uma árvore frondosa (poilão?) um abrigo mais pequeno onde ficava o alferes, o enfermeiro e, logo ao lado, o forno do pão e uma cozinha, tudo muito rudimentar. Tinha o espaldão do morteiro na parte central. Não tinha, ao contrário do Xime, paliçada e apenas duas fiadas de arame farpado.
Diz o Manuel Moreira [1945-2014]
O poço era um só,
Estava longe do abrigo,
Dava a água para nós
E também p’ro inimigo.
As noites eram passadas como se calcula, com as sentinelas nos quatro cantos do quadrado e a malta a ver e a ouvir os rebentamentos que vinham da direcção de Jabadá, de Tite, Porto Gole e do Xime, claro. Pode ser sinistro mas não é difícil pensar que muitos diriam.
Como de costume, depois das tarefas de rotina, quando o calor era menos intenso seguia-se o eterno futebol com bolas dadas pelo MNF, de péssima qualidade, substituídas pelas tradicionais trapeiras. Num dos reabastecimentos que se fizeram, conseguimos levar para, além de gado mais miúdo, algumas vacas, que como sabemos, na Guiné são de pequeno porte. Como o futebol também farta, houve alguém que sugeriu tourear uma das vacas que ainda estava viva para tardios bifes.
Como o reabastecimento nunca mais chegava e o atum com arroz já não se podia ver e muito menos comer, o alf Mata teve de decidir entre o partido pró-tourada e o partido pró-bife. Não foi fácil, mas acabou por vencer este último. Convocou-se o soldado condutor J. Viveiro Cabeceiras que também era padeiro, magarefe e pau para toda a obra, que procedeu à matança. Começando a esquartejar a rês, vai ter com o alferes e informa-o que a vaca estava tísica, pulmões quase desfeitos.
− Come-se a vaca... ou não se come a vaca?
Nova discussão e resolveu-se não aproveitar as vísceras e apenas o músculo. Assim se comeu carne assada sem problema de maior. Quando esta acabou voltou-se ao atum aos enlatados, tudo coisas que já escasseavam mas o pessoal andava triste com a falta dos fins de tarde taurinos. Então o Cabeceiras foi ter com o Alferes e disse-lhe:
− Meu alferes, a malta anda tão triste que se quiser e autorizar eu faço de vaca pois guardei os... cornos.
E assim de conseguiram mais uns fins de tarde…
O que se passou nos tempos infindáveis em que o gerador esteve avariado, assunto já abordado neste Blogue, por quem o foi substituir, depois de aturados pedidos a Bissau sem que se resolvesse em tempo útil, é inenarrável. : [Em comnetário ao poste P7590 (****), o José Nunes, ex-1º cabo mec eletricidade, BENG 447, 1968/70; escreveu:
As garrafas de cerveja penduradas no arame farpado, cheias de combustível, tinham que ser continuamente acesas nas noites de chuva forte ou de vento. O risco que a malta corria nessas circunstâncias, sendo a única coisa iluminada na escuridão, tornando-se um alvo fácil, era enorme, embora, que me lembre, nunca tenha havido flagelações nessas alturas.
Flagelações houve muito poucas - seis - sem grandes consequências, a água do poço nunca foi envenenada e, mesmo sabendo que a resistência oferecida pelas NT, aquando dos ataques, fosse de nutrido fogo mantendo o IN em respeito, penso que este nunca empenhou efectivos suficientes e capazes para provocar danos consideráveis. No fundo o IN sabia que enquanto aquele pessoal ali estivesse enquistado, a tropa do Xime, com a dispersão acima referida, estaria muito menos apta a fazer operações complicadas.
As relações entre o pessoal podem considerar-se muito boas, não havendo atitudes condenáveis, que até seriam possíveis num ambiente concentracionário como aquele. A convivência com a milícia logo de início se mostrou muito favorável porque, abastecendo-se de géneros junto das NT, passaram a pagar muito menos do que anteriormente porque os preços eram os mesmos que nos eram debitados sem alcavalas de qualquer espécie.
Não me recordo da existência de familiares a viverem com o pessoal africano, mas, segundo o testemunho do tabanqueiro Manuel Moreira, uma mulher deu à luz na época em que lá esteve e foi o 1.º cabo aux enf Cordeiro Rodrigues, o "Palmela", ajudado por ele, que assistiu ao parto.
Com a falta de géneros tudo se aproveitava incluindo a caça, que se resumia a tiro de rajada para bandos de aves grandes, pernaltas (não sabemos quais) e, se caíam nas redondezas, eram o pitéu desse dia.
Felizmente com a redistribuição das Forças no terreno, iniciada pelo brig Spínola, foi a Ponta do Inglês evacuada sem problemas em 7/8 de Outubro de 1968, pondo-se fim ao disparate da sua existência.
Há uma enorme falta de informação (para mim) sobre a evacuação da Ponta do Inglês; nem na história do BART 1904, nem na da CART 1746, apenas é mencionada a data em que se efectuou. Tenho ideia que, para além do pelotão da 1746, Secção de Morteiros e Milícia, estiveram na Ponta do Inglês pessoal de outras unidades a montar segurança (mas quais?) enquanto o pessoal carregava a barcaça Bor de todo o material e bagagem da rapaziada. Estivemos nas imediações da Ponta Varela a assegurar a passagem da Bor a caminho de Bambadinca. Foi uma operação, para mim sem nome, que envolveu mais meios que não recordo.
Guiné > Carta de Fulacunda (1955) > Escala de 1/ 50 mil > Posição relativa da Ponta do Inglês, na maregm direita do Rio Corubal, fente à pensínsula de Gampará.
O pelotão da Cart 1746 chegou ao Xime sem problemas e todos tivemos uma enorme alegria por voltarmos a estar juntos. ...E na verdade o que vos doi... É que não queremos ser heróis (Fausto).
PS - Esta estória da Ponta do Inglês só foi possível com as recordações do Manuel Moreira (releiam o Fado da Fome), do João Guerra da Mata, o ex-Alferes – último comandante daquele destacamento, e de Vera Vaz nas interpretações desenhadas.
Notas do editor:
(*) Vd. postes de:
21 de agosto de 2009 > Guiné 63/74 - P4850: Os bu... rakos em que vivemos (14): O meu abrigo em Mampatá (Zé Teixeira)
3 de Julho de 2009 > Guiné 63/74 - P4632: Os bu... rakos em que vivemos (13): Sare Banda um dos bu…rakos em que morremos! (A. Marques Lopes)
8 de Junho de 2009 > Guiné 63/74 - P4481: Os bu...rakos em que vivemos (12): Cafal Balanta contribui para o desenvolvimento nacional (Manuel Maia)
18 de Maio de 2009 > Guiné 63/74 - P4369: Os bu...rakos em que vivemos (11): Banjara City, capital do Oio (Fernando Chapouto, CCaç 1426, 1965/66)
14 de Maio de 2009 > Guiné 63/74 - P4346: Os bu...rakos em que vivemos (10): Também havia um em Nova Lamego (Luís Dias)
11 de Maio de 2009 > Guiné 63/74 - P4321: Os Bu...rakos em que vivemos (9): No Mato Cão, com o Ten-Cor Polidoro Monteiro, em finais de 1971 (Paulo Santiago)
11 de Maio de 2009 > Guiné 63/74 - P4317: Os Bu... rakos em que vivemos (8): Estância de férias Mato de Cão, junto ao Rio Geba (J. Mexia Alves)
27 de Abril de 2009 > Guiné 63/74 - P4252: Os Bu... rakos em que vivemos (7): Destacamento de Rio Caium (Luís Borrega)
19 de Abril de 2009 > Guiné 63/74 - P4211: Os Bu...rakos em que vivemos (6): Banjara, CART 1690 (Parte II): Lugar de morte (A. Marques Lopes / Alfredo Reis)
12 de abril de 2009 > Guiné 63/74 - P4175: Os Bu...rakos em que vivemos (5): Guileje bem se podia considerar um hotel de 5***** (Manuel Reis)
10 de Abril de 2009 > Guiné 63/74 - P4168: Os Bu... rakos em que vivemos (4): Acampamentos de apoio à construção da estrada Mansabá/Farim (César Dias)
7 de Abril de 2009 > Guiné 63/74 - P4153: Os Bu... rakos em que vivemos (3): Acampamentos de apoio à construção da estrada T.Pinto/Cacheu (Jorge Picado/José Câmara)
5 de Abril de 2009 Guiné 63/74 - P4141: Os Bu... rakos em que vivemos (2): Bula, CCCAÇ 2790 (António Matos)
31 de Março de 2009 > Guiné 63/74 - P4115: Os Bu... rakos em que vivemos (1): Banjara, CART 1690 (Parte I) (António Moreira/Alfredo Reis/A. Marques Lopes)
(**) Vd. 7 de junho de 2012 > Guiné 63/74 - P10009: Memória dos lugares (185): Saiba V. Excia que está na Ponta do Inglês!, disse o Alf Mil João Mata para o Brig Spínola (António Vaz, ex-cap mil, CART 1746, Bissorã e Xime, 1967/69)
(***) Vd. 30 de 20 de dezembro de 2015 > Guiné 63/74 - P15553: In Memoriam (243): António [Gabriel Rodrigues] Vaz (1936-2015), ex-cap mil art, cmdt CART 1746 (Bissorã e Xime, 1967/69); nosso saudoso grã-tabanqueiro nº 544, desde 2012