Queridos amigos,
Foi graças a um livro de Aires Henriques sobre o Cabril e as suas belezas, que cheguei à obra poética de Alfredo Keil, "Tojos e Rosmaninhos". Depois consultei o magnífico catálogo que acompanhou a exposição de 2001, exposição magnífica que revelou que o criador da música do Hino Nacional, foi um grande pintor tardo-romântico, grande desenhador, amante da natureza, legou-nos paisagens sublimes, um bom fotógrafo e um espantoso colecionador. Percorreu a região do Cabril na companhia de Luigi Manini, um coreógrafo no Teatro Nacional de São Carlos que aproveitou alguns dos temas do Cabril para cenários de óperas de Alfredo Keil, ali mostradas ao público.
Anunciava-se a primavera, o céu estava descoberto, lancei-me por aqueles córregos para saborear a beleza ímpar daqueles pedregulhos que beijam o Zêzere, são águas que correm da Barragem do Cabril para a Barragem da Bouçã. E por ali andavam alguns sinais da primavera, e um verde intenso e as amendoeiras em flor, no fundo tínhamos chegado a fevereiro, a natureza desperta, o ciclo recomeça, tudo se transforma.
Um abraço do
Mário
Alfredo Keil, um bom pretexto para ver a pré-primavera no agreste Cabril
Mário Beja Santos
Alfredo Keil é mais conhecido por ser o autor da música do hino nacional, juntou-se a Henrique Lopes de Mendonça para compor um hino combativo a repudiar a humilhação do Ultimatum, período bem marcante da vida nacional. Keil não consta como nome cimeiro das artes plásticas portuguesas. No entanto, foi um grande artista polifacetado, mestre da paisagem, fotógrafo inovador, poeta, compositor de música de câmara, sinfónica, instrumental e operática. Quando se deslocou ao Zêzere, fez-se acompanhar de um famoso cenógrafo de óperas, Luigi Manini, está hoje comprovado que ele soube captar as penedias e o mundo rural daquela região. Numa importante exposição que veio a público em 2001, na Galeria de Pintura do Rei D. Luís, no Palácio da Ajuda, mostraram-se obras de Keil nas Lezírias ribatejanas, no Tejo em Abrantes, em Tomar, Meandros do Zêzere, incluindo até quadros a óleo com excursionistas a contemplar os desfiladeiros e as fragas a pique. Dessa grande viagem, Keil escreveu uma obra poética por ele ilustrada, Tojos e Rosmaninhos, a poesia não ficou para a história mas a arte do desenho é um deslumbramento.
O Cabril, visto por Luigi Manini, nas suas deambulações com Alfredo Keil no Zêzere
Num final de janeiro, numa tarde cheia de amenidade, e uma luz um tanto coada, com imagens das obras de Manini e Keil no Zêzere metidas no telemóvel, fui satisfazer a curiosidade de visitar esse local agreste, com águas domadas entre a barragem do Cabril e a barragem da Bouçã. Estavam a chegar alguns sinais da primavera, era oportuno saudá-los. Elas aqui ficam.
O Zêzere tem o condão de correr para o Tejo entre megatoneladas de calcário e xisto, torce-se e retorce-se em meandros, pois não tem a lisura de quilómetros a direito, encurva, tem por vezes vegetação à flor da água, mas a imponência deste curso líquido é a inclinação das margens, raramente amaneiradas com vegetação luxuriante, no essencial o que sobressai é a penedia que vem do alto, gretada, segmentada, brutal.
Enquanto se desfruta o Zêzere disciplinado pelas barragens, dá-se com o sinal pré-primaveril, é um dos primeiros, não são jacintos, são junquilhos selvagens. O português não faz turismo, como o inglês, para vir desfrutar estes avisos de que a primavera já está menos distante. Nem fazemos excursões para ver as acácias em flor, parece que a chegada da primavera está circunscrita às amendoeiras, não temos o uso nem o costume de andar a olhar o que a natureza rude exibe, bem discreta, para tocar a campainha de que a nova vida já está desperta. Mas há mais, a verdura está exuberante, aqui não virá um jardineiro roçar estes campos, verdes ficarão até fenecerem, é um verde quase mineral, o novo tapete de quem sai do sono do inverno.
Estas duas imagens de penedia agreste parecem ao viandante propícias para um bom cenário de ópera, ainda bem que o Luigi Manini por aqui andou e consagrou, são telas guardadas nos arquivos do Teatro Nacional de São Carlos. Mas a ponte filipina, da segunda fotografia, é de uma beleza estarrecedora, agora só suspiramos por aquela arte de bem construir, com dimensões harmoniosas, já ninguém se lembra, a memória apaga-se depressa, de que tempos houve em que aquela ponte era a única possibilidade de trânsito entre as gentes que saíam de Pedrógão Grande e que queriam ir até à Sertã, ou a Oleiros, ou a Proença-a-Nova, ou até mais longe. Havia uma empresa de viação em Cernache do Bonjardim, carreiras de e para Lisboa, em Cernache se enviesava para Castelo Branco e outros destinos, mas era a ponte filipina que dava mobilidade às gentes deste rincão já da Beira Interior.
Percebe-se um encantamento que provoca uma amendoeira em flor, tem algo de sinfonia pastoral, não possui a majestade da magnólia, nem a embriaguez daqueles campos de acácias que enchem de amarelo quilómetros à beira da estrada. Podem as amendoeiras formar conjuntos desta alvura de algodão rosado, mas podemos tomá-las uma a uma como odes à alegria da primavera, e daí perceber-se a atração que provocam ao fotógrafo e mesmo ao aguarelista ou pintor de telas de óleo, é um emaranhado de cor que ainda por cima se pode aprimorar quando o céu é plenamente azul, como no caso vertente. E é a saudar esta pré-primavera que o viandante se despede com promessas de regressar.
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Nota do editor
Último poste da série de 25 de julho de 2020 > Guiné 61/74 - P21197: Os nossos seres, saberes e lazeres (403): Nadir Afonso, as invisíveis cidades geométricas, ao alcance da Matemática (Mário Beja Santos)