Queridos amigos,
A aranha entretece a sua teia, trata-se de um destino a dois, o que começara por ser uma inusitada proposta para ajudar a fazer um livro de memórias sobre a guerra da Guiné deu para que duas almas se fossem conhecendo, acontece que elas estão disponíveis para amar, há a vantagem mútua de não haver conveniências financeiras, ambos trabalham que se farta, nenhum dos dois precisa da gosma do dinheiro do outro, e já não escondem a dependência afetiva. Mas as memórias da Guiné continuam, e prosseguirão, mal sabe a Annette Cantinaux que tem narrativas sobre mais que um ano e meio de alegrias e dramas, muito sangue e muita fraternidade aqui serão alvo de descrição, e de Lisboa, não poucas vezes, partirão memórias embebidas nas lágrimas, há sofrimentos que nunca se reparam.
Um abraço do
Mário
Esboços para um romance – II (Mário Beja Santos):
Rua do Eclipse (13): A funda que arremessa para o fundo da memória
Mário Beja Santos
Chère, très chère Annette, estou a enviar-lhe esta carta ao fim da noite, parto amanhã para Bruxelas no voo das 6h50 da manhã, conto estar em forma para que se cumpra esse extenso e maravilhoso programa que preparou para o nosso fim de semana de três dias, e sei perfeitamente que lhe votou o maior carinho. Receberá esta carta, pois, quando eu estiver a regressar, e ainda bem que assim é. Sei que está a coligir com uma enorme devoção estes primeiros meses da minha guerra da Guiné, percebeu perfeitamente que me procuro inserir no meio, aqui ninguém é tratado por números, só por nomes, já sei distinguir Gibrilo (que vem do Anjo Gabriel, referido no Corão) Embaló de Gibrilo Mané, o primeiro é um soldado milícia que começou por falar comigo com os olhos postos no chão, manifestação de respeito, peguei-lhe pelo queixo e olhei-o de frente, “Gibrilo, somos dois homens com os mesmos deveres, o de nos respeitarmos mutuamente, não sou régulo, aceita-me como irmão”; Gibrilo Mané é também milícia, tem divisas de 1.º Cabo, é maqueiro, pouco depois de eu chegar ao Cuor foi tirar um novo curso ao hospital de Bafatá, regressou muito contente com a aprendizagem. Começaram a aparecer as histórias mais imprevistas da minha vida, imagine que uma noite destas estava eu na chamada messe a jogar ao loto com os furriéis e todos os cabos, e apareceu à porta um militar branco todo esfarrapado a perguntar onde se encontrava, caiu redondo na soleira, prontamente foi transportado para o meu abrigo, pus o quartel em estado de sítio, vigilância redobrada, como fora possível aquele homem entrar em Missirá sem ter sido detetado pelas diferentes sentinelas?
Deixei-o descansar cerca de uma hora, vinha nitidamente prostrado, coisa estranha ou tinha sido açoitado ou rasgara-se na densa vegetação, a roupa esfarrapada, golpes na carne, o calçado desfeito. Nenhuma das sentinelas dera pela sua entrada, o que me deixou estarrecido. À cautela, mandei fazer comida, quem assim chegava podia vir esfaimado. Acordou, devorou o arroz e as salsichas, bebeu desalmadamente. E contou uma história que nos pôs os cabelos em pé. Pertencia ao Batalhão de Mansoa, qualquer coisa como uma distância de 100 quilómetros de Missirá, irresponsavelmente saiu sozinho do quartel e foi banhar-se numa bolanha, aqui apanhado à mão por uma patrulha do PAIGC. Foi parar a uma base, não sabia qual, também não sabia em que dia tudo aquilo acontecera, o que interessa é que dois dias depois, e já sujeito a interrogatórios, aproveitou a calada da noite e embrenhou-se pela mata densa, correu, desorientou os perseguidores, conseguira apanhar uma estrada de terra batida, viu luzes, passou pelo cavalo de frisa sem falar com ninguém, identificou-se. Foi então que eu e o Cabo Teixeira preparámos uma mensagem para Bambadinca, tudo aquilo me parecia irreal, uma fábula, deixei o dito militar (deu nome, posto e referiu a unidade de Mansoa) vigiado e a mensagem seguiu, fui descansar, mas sempre em sobressalto, aquilo não podia estar a acontecer. Bambadinca respondeu ao amanhecer, era tudo verdade, eu que trouxesse o dito soldado desconhecido para ser recambiado para Mansoa. Annette, isto é um simples episódio da minha nova vida, aparecem-me soldados a pedir adiantamentos, uma noite destas o cabo maqueiro entrou-me na morança com um soldado milícia que pretendia dentro de dias seguir para o regulado do Cossé, queixara-se ao Cabo Adão, ele mandou-lhe baixar as calças, fiquei petrificado, aquele homem tinha um testículo que ia até aos joelhos, houve na manhã seguinte que fazer coluna e levar o doente ao médico, o cerimonial do casamento ficava adiado.
Chegou o Ramadão, solidarizei-me, num dos costureiros de Bambadinca (eles espalham-se desde o porto até ao mercado) adquiri 14 metros de popelina, mandei fazer calção, camisote e camisa, tudo branco com bordado roxo. Venho mostrar ao régulo, abraçou-me, tinha ali mais um irmão muçulmano, emprestou-me a sua espada, o cofió, o amuleto que eu ponho ao peito com um versículo do Corão, amanheceu, estou radiante por me dar tão bem com pessoas que desconhecia completamente há três meses, volto à minha morança e fardo-me, ainda usarei este fato no Ramadão, quando a convite for à mesquita para uma oração comum. Será devorado pelo fogo na noite de 19 de março de 1969, como todos os meus bens.
Este afã de vida embriaga-me, é um viver galvanizante, não há horas mortas, a despeito das profundas saudades dos meus entes queridos e eu saber que tinha sonhos e que gostava muito de ir ao cinema, ao teatro, ao bailado, à ópera, aos concertos, às exposições. É uma vida que ficou entre parênteses, aqui, agora, é procurar melhorar a existência com quem convivo.
A segunda imagem que a Annette pode observar marca uma grande alegria na minha vida: juntaram-se duas canoas para poder transportar o novo balneário de Missirá, bidons com chuveiros acoplados. Não me pode ver, estou de costas, visto uns calções manhosos, o Geba está na vazante, levamos a bom porto esta preciosa mercadoria que será transportada pela bolanha de Finete, esta noite será o assunto principal nos serões de Missirá, melhores banhos se anunciam.
Não quero incomodá-la mais com estas recordações da Guiné, a ficção do nosso romance. Mas não lhe podia deixar de enviar uma outra surpresa, a imagem do local onde vou praticamente todos os dias, e que fica a sensivelmente doze quilómetros e meio de Missirá.
Local de Mato de Cão onde fazemos a vigilância das embarcações
Estou empolgado por esta viagem, tenho muito para conversar com a Annette, sinto que se abre uma janela que ilumina o meu futuro no horizonte. Cheguei aos 50 anos, tenho os filhos crescidos, obviamente que tenho que os ajudar, mas penso ter direito à felicidade. Tal como a Annette, amo Bruxelas, as imagens que se seguem, para si particularmente comuns, deslumbram-me a qualquer momento. É seguro que iremos os dois passar por um ou mais locais aqui mostrados. Mas se lhe envio estas imagens é para lhe dizer, por minha honra, que não me importaria de aí passar mais tempo, como se essa cidade fosse minha, porque ela é muito sua, e isso dá-me um infinito prazer. Receberá esta carta depois de eu regressar, terei tempo entretanto de lhe dar conta de todos os meus sonhos em aberto. Não sei se deva dizer bien à vous ou bien à toi, iremos os dois considerar este fim de semana, afetuosamente, Mário.
Palácio da Justiça, Bruxelas, edifício mais gigantesco não conheço
Cite Hellemans, Marolles
Boulevard Lemonnier, Bruxelas
Mercados multiéticos, Bruxelas
____________Nota do editor
Último poste da série de 24 de julho de 2020 > Guiné 61/74 - P21195: Esboços para um romance - II (Mário Beja Santos): Rua do Eclipse (12): A funda que arremessa para o fundo da memória
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