sábado, 5 de março de 2022

Guiné 61/74 - P23052: Fotos à procura de... uma legenda (162): Também me recordo da carreira de "Ambulâncias" entre Bissau e Cacheu, só não me lembro da cor dos autocarros nem da empresa a que pertenciam (António Bastos)

1. Mensagem do nosso camarada António Paulo Bastos (ex-1.º Cabo do Pel Caç Ind 953, Teixeira Pinto e Farim, 1964/66), com data de 4 de Março de 2022, onde nos fala da "Ambulância" que fazia a carreira Bissau-Cacheu-Bissau:

Boa noite a toda a Tabanca Grande.

Camaradas, já venho há umas semanas a ver se consigo lembrar-me qual a cor e a empresa do autocarro mas não saiu nada, são os anos.

Eu estive no Cacheu de 21-7-64 a março de 1965. Como sabem, aquele rio tinha a foz muito perto da fronteira com o Senegal, e era ali que chegavam os Ihomincas, como lhes chamavam no Cacheu. Aquela gente vinha carregada de tudo naquelas canoas (na 1.ª foto) eram eletrodomésticos, máquinas fotográficas, rádios etc.

Foto 1 - Canoas no Pidjiguiti

Ao desembarcarem tinham que passar pelo quartel e abrir as malas para serem vistas (2.ª foto), depois seguiam para o Posto Administrativo para pagarem a respectiva taxa (não me recordo quanto era) e depois lá iam eles apanhar a "Ambulância", assim chamavam ao autocarro com destino a Bissau.

Foto 2 - Cacheu, Novembro de 1964 > Bastos e Lopes fiscalizam as malas do gilas vindos do Senegal

A "Ambulância" fazia a carreira Bissau-Cacheu-Bissau. Também me recordo de o motorista, assim que chegava a Cacheu, geralmente ao sábado de manhã, ir logo a casa do senhor Joaquim Escada entregar encomendas e passar um pouco de tempo com ele e com a esposa. Eram um casal novo e tinham um filho com uns sete anos que mais tarde faleceu lá.

Também me lembro de numa altura em que a "Ambulância" vinha de Bissau para Cacheu, na estrada de Bula-Teixeira Pinto, ter sido atacada. Houve feridos, não me recordo quantos. Depois deste acontecimento, as carreiras foram interrompidas durante umas semanas.

Também sei que no mês de Agosto de 1964, quando os ihomincas chegaram à foz do Rio Cacheu, apanharam um tornado, tendo chegado a Cacheu com as canoas cheias de água e o material todo molhado.

Ainda tenho um rádio Sharp que lhes comprei e que ainda funciona.

Se entretanto me recordar de mais alguma coisa sobre o Autocarro ("Ambulância") logo escrevo.

Um abraço
A. Paulo
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Nota do editor

ùltimo poste da série de 2 DE MARÇO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23043: Fotos à procura de... uma legenda (161): Transportes públicos de Bissau: nos anos 50, operava a empresa A. Brites Palma (ABP), e os autocarros chamavam-se "ambulâncias"... Depois da independência, formou-se a empresa pública Silo Diata... (Mário Dias / José Colaço / Albertino Ferreira / Carlos Filipe Gonçalves / Cherno Baldé)

Guiné 61/74 - P23051: Os nossos seres, saberes e lazeres (494): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (40): Os esplendorosos jardins do Palácio dos Marqueses de Fronteira (2) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 17 de Dezembro de 2021:

Queridos amigos,
Aqui se põe termo à visita aos jardins dos Marqueses de Fronteira, azulejos admiráveis num jardim do tipo italiano, alguém disse que há a considerar neste palácio duas partes bem distintas, pois que parte da decoração interior é do século XVIII, mas o aspeto exterior, a riquíssima decoração cerâmica dos terraços e jardins, bem como a disposição geral destes, datam da primitiva e constituem o mais interessante e completo exemplo existente em Portugal de uma vivenda nobre seiscentista. Aliás deslumbra a vista do jardim e da Galeria dos Reis a partir do interior do palácio, ver a belíssima combinação entre a Casa do Fresco, nos jardins, com os anexos da capela, percorrer os painéis de azulejos no terraço, com a capela à vista, e saber que estes jardins cercados de uma azulejaria de sereias e tritões e tudo o que a fantasia oferece da vasta mitologia permite pensar que estes canteiros cercados de bucho, de acordo com as estações do ano, vêm desabrochar narcisos, margaridas, jacintos, tulipas, escovinhas, anémonas, rainúnculos e outros primores da jardinagem. Jardins e palácio são indissociáveis dada a estética harmoniosa que os completa, o que aqui se fez foi visitar ao pormenor estes primorosos jardins... E fica-nos desde já a vontade de voltar.

Um abraço do
Mário



Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (40):
Os esplendorosos jardins do Palácio dos Marqueses de Fronteira (2)

Mário Beja Santos

Em São Domingos de Benfica, confinando com um fim ao Parque Florestal de Monsanto, de paredes meias com a Quinta dos Marqueses de Abrantes, levantou-se o Palácio dos Marqueses de Fronteira, por todos considerado um dos mais belos de Portugal, um verdadeiro museu de azulejos, de cerâmica, de belo estuque lavrado, fundado pelo 2º Conde da Torre e 1º Marquês de Fronteira, D. João Mascarenhas. E se o palácio é um tesouro, os seus jardins não lhe ficam atrás. É deles que vamos mostrar imagens que não iludem as preciosidades que acolhem os visitantes. Serve-nos de bússola o livro Jardins e Palácio dos Marqueses de Fronteira, por José Cassiano Neves, Quetzal Editores, 1995.
Recorda-se que estamos a falar de jardins ao gosto italiano, um amplo espaço circundado de terraços, escadarias como a bela balaustrada em mármore de Carrara. Tal terraço é continuado por um corredor que circunda o palácio para a direita, parece uma meia moldura onde ao fundo está uma interessante fonte com conchas, búzios, vidros de várias cores, fragmentos de loiças orientais, tudo fazendo desenhos bizarros – é a fonte da Carranquinha. Rodapés de azulejos é coisa que não faltam, polícromos, do século XVII.


O visitante, é inevitável, olha surpreso para temas da fidalguia, quadros mitológicos, bustos régios, cavaleiros à moda velasqueana, cavalos empinados, a circundar a fonte. Painéis de azulejos de murete, aqui e acolá, suscitam a atenção. E percorre-se a Galeria dos Reis bisbilhotando os que são de Portugal, sabendo que os Filipes, com quem tão estrenuamente os Mascarenhas lutaram, não têm ali lugar. Mesmo na Galeria dos Reis não faltam temas mitológicos, lá está Pã. Descendo da galeria para os tanques octogonais, há para ali uma bonita e artística taça, graciosidade é coisa que não falta nos jardins dos Marqueses de Fronteira. Como esta imagem abona é perfeito o enlace entre o palácio e os jardins.

O grande lago é espetacular e monumental, faz parte da lógica da conceção do jardim, vale a pena andar ali a bisbilhotar de um lado para o outro a alta parede do fundo do lago com os seus doze painéis de azulejo, três grutas e mais dois painéis laterais, com repuxo ao centro. Grandes painéis de azulejos figuram em tamanho natural, são os tais cavaleiros em grande galopada de altivo e marcial arranque, por isso se diz que à moda de Velasquez, este genial pintor espanhol assim concebeu os seus retratos equestres do Infante Baltasar Carlos, de Filipe IV e do Conde-Duque de Olivares.

Aqui o visitante se detém à busca de pormenores, já viu os guapos cavaleiros, alguns deles bem identificados, entre a casa dos Mascarenhas, um deles tem mesmo à sua volta uma cercadura com os títulos a que deu origem: Conde de Santa Cruz, Conde de Óbidos, Conde da Torre, Conde de Conculim, Marquês de Fronteira, Marquês de Montalvão, Conde de Sabugal, Conde de Serém, Conde de Castelo Novo, Conde de Palma, Conde de Vila da Horta.
Já se visitou a Galeria dos Reis, vai-se agora a caminho de um lago em forma octogonal, entre fetos e camélias, tendo a meio três golfinhos enlaçados. Andando por esse jardim, num dos topos, temos a Casa de Água ou do Fresco, trabalho de embrechado, com conchas, fragmentos de porcelana e vidro e lascas de pedra. Aqui encontramos faunos no interior da casa e cá fora revestimentos em forma de S, representando animais marinhos.


Atenção às costas dos bancos que envolvem o tanque dos S, porventura está aqui alguma da mais prodigiosa riqueza azulejar, cenas de pesca ao coral, painel com macacos e gatos representando a ala de música e o barbeiro. E divindades mitológicas, omnipresentes.

Requer-se tempo e gosto para ver os tipos de pesca, as sereias e os tritões, os búzios e as conchas, a variedade de figuras alegóricas no meio de arcos de vegetação, entender que esta aristocracia se dava bem com os temas da música e da dança, com fantasias e efabulações, como uma orquestra composta de gatos e macacos que tocam e cantam e onde não falta a menina dos cinco olhos para castigar quem desafina… Como diz Cassiano Neves, toda esta policromia azulejar data do primeiro terço do século XVII. Atenda-se que no plano superior a este jardim, há um novo lago, de forma quadrangular, tendo nove nichos, com outras tantas figuras mitológicas, conhecido por Lago dos Pretos. E o visitante nunca deve abstrair o ambiente circundante da Mata de Monsanto onde se encontram ainda algumas espécies da antiga vegetação da Serra de Monsanto, enquadramento natural do Palácio dos Marqueses de Fronteira.
A visita por natureza é inextinguível, aqui se vem de novo reclamado por esta estética admirável, não é por acaso que estes jardins estão entre os mais belos que há em Portugal. Finda a visita, haverá um dia em que aqui se regressará para falar das coisas do palácio. Fica o elemento de ligação, o estuque brasonado que nos receberá no dia em que aqui se baterá à porta do palácio.


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Nota do editor

Último poste da série de 26 DE FEVEREIRO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23033: Os nossos seres, saberes e lazeres (493): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (32): Os esplendorosos jardins do Palácio dos Marqueses de Fronteira (1) (Mário Beja Santos)

Guiné 61/74 - P23050: Memórias do Chico: Refugiado na sua própria terra durante a guerra civil de 1998/99: 200 km e oito dias de aflição, entre Bissau e Fajonquito (Cherno Baldé) - Parte I: Bissau, 7-11 de junho de 1998


Guiné-Bissau > Bafatá > Setembro de 2000 > O filho mais velho do Cherno Baldé e de Geralda Santos Rocha, de seu nome Abduramane Santos Baldé,  "junto ao rio Geba na baixa de Bafatá, em viagem para Fajonquito, em Setembro de 2000. Teria eu, mais ou menos, a mesma idade quando fugimos de Samba-Gaya em 1964"... Hoje formado em engenharia de energias pela Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira - UNILAB.


Guiné-Bissau > Região de Bafatá > Sector de Contuboel > Fajonquito > 2006 >  Os quatro filhos de Cherno Baldé e de 
Geralda Santos Rocha. 


Guiné-Bissau > Bissau > s/d > "Minha mulher, Geralda Santos Rocha, natural de Bissau, com quem sou casado desde 1992, período que coincide com a minha passagem por Lisboa (1992/94) para frequência do curso no ISCTE"

Fotos (e legendas): © Cherno Baldé (2010). Todos os os direitos reservados. [Edição e legendagem complementa: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]
 

1.  O nosso amigo e colaborador permanente do nosso blogue, Cherno Baldé, formado na antiga União Soviética em Planificação e Gestão Económica (Universidade de Kiev, 1990), com uma pós-gradução no ISCTE-IUL (Lisboa, 1992/94), é uma testemunha privilegiada dos acontecimentos do seu tempo, desde miúdo, quando foi apanhado pela "guerra de libertação" ou guerra colonial, logo em 1964, na sua terra natal, no regulado de Sancorlã.

De 1968 a 1974 viveu em Fajonquito, tendo-se tornado um "cão rafeiro" do quartel local... Afeiçoou-se aos militares portugueses que passaram por aquele arquartelamento da região de Bafatá, sector de Contuboel, perto da fronteira com o Senegal, e que lhe puseram a alcunha de "Chico"... É autor de um notável série, "Memórias do Chico, menino e moço" (de que já publicámos, a partir de 2011, mais de meia centena de postes).  Integra a nossa Tabanca Grande desde 18 de junho de 2009. Tem  255 referências no nosso blogue.

Depois da independência, foi estudar para Bafatá, em 1975 (ciclo preparatório e parte do ensino secundário). Em 1979 vai frequentar o liceu de Bissau, que acaba em 1982. Em 1986 parte como estudante bolseiro para a URSS (Moldávia e Ucrânia). Teria já os seus 26/27 anos (nasceu por volta de 1959/60).

Regressa, com uma licenciatura, ao seu país em 1990, já depois da queda do "muro de Berlim" e a "implosão" da União Soviética. Casa-se em 1992 e faz uma pós-graduação no CEA - Centro de Estudos Africanos /ISCTE, em Lisboa (1992/94). 

Em 1998, está em Bissau, a trabalhar como quadro superior na administração pública, mais exatamente no  Ministério das Infraestruturas, Transportes e Comunicações onde exerce as funções de director do gabinete de estudos e planeamento. Vive em Brá, no chamado Bairro Militar, com algumas regalias.

No dia 7 de junho de 1998 é apanhado pelo golpe de Estado e a subsequente guerra civil de 1998/99.  É obrigado a deixar a sua casa, no Bairro Militar, e sair de Bissau com a família (ele, a esposa, o filho de 3 anos e uma sobrinha de cinco ), mais a família da irmã da sua esposa, de nome Djenaba, num total de 10 pessoas (3 adultos e 7 crianças),  refugiando-se na sua terra natal, Fajonquito. 

Deixam a casa, em Bissau, no dia 11,  chegam a Safim, procurando desesperadamente por um transporte que os leve para longe da guerra, para Fajonquito. Consegue, através dos seus conhecimentos, uma boleia para Mansoa, a 13 de junho, até apanhar um camião, que o leva ao seu "refúgio", em Fajonquito, aonde chega no dia  seguinte, passando por Bambadinca e Bafatá. Nesta viagem faz também uma "retrospetiva" do seu passado recente (os anos passados em Bafatá, em 1975/79, e depois na URSS, 1986/90).

Em 2001/02, o Cherno viu-se na contingência de ter de emigrar para Portugal, onde trabalhou na construção civil, como simples "trolha" na construção do complexo Alvalade XXI. É sportinguista de coração.

Voltamos a reproduzir, em três partes, as memórias que ele nos mandou, em 16 de setembro de 2010,  desses tempos difíceis, que ele soube enfrentar e superar com coragem, inteligência emocional,  lucidez e sentido de solidariedade (*).


 2. Excerto de mensagem que o Cherno Baldé nos mandou há quase 12 anos atrás:

Data - 16/09/2010, 12:40
Assunto - Recordações da guerra de Bissau

 Estimado amigo e irmão Luís Graça,

Juntamente envio mais um texto fazendo parte das minhas habituais crónicas ou memórias do passado. Mudando um pouco de cenário, desta vez, os acontecimentos retratados são mais recentes e centrados sobre as tribulações de uma pequena família, melhor, do seu desajeitado chefe, no início da guerra de Bissau em 1998. Propositadamente, passei por cima do período que vai dos tempos de estudante em Bafatá, depois Bissau e da passagem pela antiga URSS. Voltarei, mais tarde, a este período se houver interesse. (**)

O presente texto foi por mim escrito em 2000, alguns meses antes de emigrar para Portugal onde participei, em 2001/2002,  na construção do complexo Alvalade XXI (onde se enontra o novo Estádio José Alvalade, como servente de qualquer coisa, na verdade não tinha as qualidades requeridas mas contava com a "cunha" ou  ajuda de uma família Portuguesa com a qual mantínhamos excelentes relações de amizade e estima. 

Os encarregados topavam logo,  com o meu ar intelectual e a falta de jeito. Mandaram-me embora por duas vezes e reentrei outras tantas. Aí reencontrei os meus primos Ucranianos, enfim, foi muito interessante e enriquecedor. (...)

Cherno Baldé (Chico de Fajonquito)

PS - A foto mostra o meu filho junto ao rio Geba na baixa de Bafatá, em viagem para Fajonquito, em setembro de 1998. Teria eu, mais ou menos, a mesma idade quando fugimos de Samba-Gaya em 1964.


RECORDAÇÕES DA GUERRA DE BISSAU, 
O CONFLITO POLITICO-MILITAR DE 7 DE JUNHO DE 1998

Parte I -  Bissau, 7-11 de junho de 1998

1º dia,  7 de junho de 1998, domingo: o rebentar do conflito

Na madrugada do dia 7 de Junho de 1998 (**), ainda na cama ouvimos, de longe, tiros de armas de guerra. Na manhã do mesmo dia, ouviram-se tiros de armas pesadas,  acompanhados de rajadas de metralhadoras. 

Em casa, apercebemo-nos que se passava coisa séria para justificar tamanho tiroteio. Sentámo-nos à mesa para o pequeno-almoço. Aqueles tiros não nos incomodaram em nada, afinal já tínhamos vivido outros golpes, coisa banal, seriam escaramuças localizadas e algumas mortes mas depois tudo voltava a normalidade.

Pessoalmente, e sem estar informado de nada, já estava do lado dos revoltosos. Podia ser da idade ou simplesmente pela mania das revoluções. Fosse quem fosse, na minha opinião, achava que já era tempo de varrer o regime vigente para instaurar uma nova ordem, inverter a marcha que estava a afundar o país e aprofundar o fosso da desigualdade económica e social entre uma elite parasitária vivendo à custa do Estado e a maioria da população, cada vez mais paupérrima e despojada de recursos e de oportunidades.

Por volta das 8h00, o governo, através do seu ministro da defesa nacional, comunicou pela rádio que um grupo não identificado tinha assaltado o quartel-general (QG) mas que tinha sido rechaçado e que todos ficassem em casa até ordens ao contrário.
 É um golpe de estado, de certeza! – disse para a minha mulher, quase com satisfação.

Entretanto, pediam calma a população enquanto nos quartéis havia uma grande agitação. Todas as estradas de acesso ao centro da cidade estavam bloqueadas, havia confrontos em Santa Luzia (QG), muita agitação nos aquartelamentos de Brá e na Base Aérea, onde tropas do governo tentavam desalojar os revoltosos ou vice-versa.

Seguiu-se uma acalmia de algumas horas e, no início da tarde, houve um ataque ao quartel de Brá com armas ligeiras, sem qualquer efeito especial, pois a situação mantinha-se na mesma, ou seja, de vez em quando ouviam-se tiros de armamento pesado, seguido de um compasso de espera. 

As horas que se seguiram foram de uma grande curiosidade, toda a gente sabia tratar-se de um levantamento militar mas ninguém sabia nada sobre os cabecilhas da revolta.


2º dia, 8 de junho, segunda feira: o início de um calvário que só terminaria um ano depois, com o fim da guerra

A partir do segundo dia, 8 de junho, começaram a circular algumas informações sobre o levantamento. Agrupados a volta do antigo CEMGFA, Brigadeiro Brick-Brack (por sinal, mais um voluntário, chefe de guerra, originário dos países vizinhos, na senda de Abdul Indjai e Companhia), uma parte das tropas e antigos combatentes tinham-se amotinado contra o regime. 

As autoridades continuavam a pedir calma e assegurar que tudo era uma questão de tempo até controlarem a situação. Houve várias tentativas de tomada de assalto ao aquartelamento de Brá mas a situação continuava tensa e incerta.

Com a intensificação dos confrontos fomos avisados pela parte governamental de que devíamos evacuar a zona onde habitávamos, temporariamente, senão arriscávamo-nos a ficar entre dois fogos e sermos alvo de bombardeamentos. 

Oh, pá! Não, já não estava assim tão satisfeito com esta decisão que nos afastava das nossas casas. Era, de facto, o início do nosso calvário que só terminaria com o fim da guerra, um ano depois.

O meu irmão mais velho convocou uma reunião de emergência para nos informar que os membros da nossa família, enquadrados por ele, deviam afastar-se um pouco, mais a leste nos confins do Bairro militar, eu deveria ficar para cuidar da casa. Não houve contestação e assim, sem preparação adequada, as mulheres, pegando naquilo que podiam mais as crianças, rapidamente, seguiram para cima, a leste do Bairro, onde ficariam ao abrigo da artilharia que estava a visar a nossa zona.

Esta forma simplista e confiante de pensar que tudo se resolveria rapidamente revelou-se depois muito prejudicial, pois, o que se previa ser para algumas horas viria a durar mais de um ano, e passo a passo seriamos obrigados a seguir para mais longe, longe e longe, e finalmente seria o refúgio.


3º dia, 9 de junho, terça feira: saída da família do Bairro Militar para o Bairro da Ajuda

No terceiro dia, 9 de Junho, o meu irmão comunicou-me a sua decisão de sair de Bissau e partir para Fajonquito, nossa aldeia natal, onde iria esperar pelo desfecho da guerra em que se tinha transformado o levantamento de alguns dissidentes do regime. 

Sem saber que decisão tomar, acompanhei o meu irmão e um grupo de pessoas que tinham decidido sair de Bissau. Mandei a minha esposa e filho juntar-se à sua irmã mais velha, Djenaba, no Bairro de Ajuda, na esperança de que talvez aquilo terminava em breve. Eu fiquei em Brá, na nossa casa. Entretanto, comecei a pôr em marcha um dos princípios de Amílcar Cabral ou seja, esperar o melhor, preparar-se para o pior.

Com o dinheiro que tinha, fui comprar alguns mantimentos pois calculava que dentro em breve podia não haver nada para vender ou comprar. No mercado alguns cacifos estavam abertos, as pessoas estavam agrupadas à volta de aparelhos de rádio ouvindo as poucas informações que a RTP fornecia e comentavam os últimos acontecimentos que circulavam de boca em boca. 

Foi aí que ouvi alguém dizer que os amotinados estavam a receber reforços de outros aquartelamentos do interior e que muitos jovens estavam a aderir às fileiras dos revoltosos. A proporção que o problema estava a ganhar e a perspectiva de que o conflito poderia arrastar-se por muito tempo, desanimou-me muito.

Voltei para casa, abri o rádio para acompanhar a RTP, única rádio em funcionamento, que tentava conseguir informações sobre as razões do motim e os nomes dos cabecilhas. Tornou-se evidente que a situação no terreno não era tão favorável aos governamentais como faziam crer pela rádio nacional. Passei a noite em claro pois, os tiros eram esporádicos mas repetitivos.


4º dia,  10 de junho, quarta-feira: relembrando o pesadelo de Kiev, em 1990 ("Matem o macaco preto!")

Na manhã do quarto dia de conflito, 10 de junho, sai de casa, atravessei a estrada principal do Bairro militar, tendo reparado que a estrada estava bloqueada e vigiada por tropas governamentais e que não havia circulação de viaturas. 

Para chegar ao Bairro de Ajuda, onde se encontravam minha esposa e filho, a única maneira era atravessar a bolanha a pé, lá para os lados de “Manel Iagu”. Foi para onde segui. Estava absorto nos pensamentos que se afluíam a minha mente de forma desordenada.

Lembrei-me dos tempos de estudante em Kiev e, da tensão permanente em que vivíamos, atravessando as ruas, com medo da agressão dos jovens locais que não perdiam uma única oportunidade para nos maltratar, física e verbalmente. 

Por várias vezes, tinha sido alvo de agressões violentas, não propriamente por racismo, penso eu, mas porque estavam naquela idade quando se sente a necessidade de assumir riscos e desafiar o "status quo". Pese embora a nossa precária situação, não dávamos o braço a torcer. Uma vez, traído pelo embaciamento dos meus óculos devido ao frio, tinha entrado, sem dar conta, no meio de um bando de jovens, alguns dos quais tinham o dobro do meu peso e mediam perto de dois metros de altura numa zona considerada perigosa para os estrangeiros.

De repente senti que alguém me segurava por trás, impedindo-me de avançar. Estava com medo, mas nem por isso vacilei, virei-me para enfrentar quem quer que fosse. Os homens presentes diziam: "Matem o macaco preto!"... 

As mulheres, sempre mais humanas, gritaram-me para que fugisse. Eram muitos, aguentei por algum tempo mas depois tive mesmo que fugir debaixo das pedradas e insultos daqueles jovens ainda na idade da inocência, desprovidos de sentimentos de piedade e de amor ao próximo. 

Na briga, tinha perdido os óculos, as compras e parte das minhas vestes. As costelas, doridas, deixavam entrar o frio por todos os lados em pleno inverno russo. Consegui arrastar-me andrajoso, sob o olhar curioso dos transeuntes, até a residência dos estudantes. Não queria que os colegas soubessem, mas os sinais no corpo eram por demais evidentes, tinha levado uma sova a valer. Estávamos em 1990 e a União Soviética tinha entrado na sua fase irreversível de Perestroika e nunca voltaria a ser a mesma dantes. O perigo espreitava de todos os cantos.


“Minha Rosa - Diminga” ou a luz brilhante de um horizonte inacessível

No momento, nesse dia 10 de junho de 1998, também estava com medo. Um medo indefinível e amplo que acariciava todo o meu corpo e apresentava-se no horizonte da minha vida que ainda agora começava a florir. 

A minha situação profissional e familiar era estável, podia-se mesmo dizer boa, em comparação com a grande maioria, tinha a família que ambicionava e era director numa instituição pública ligada à manutenção das rodovias, ganhando relativamente bem.

No caminho, ainda se ouvia o ribombar dos obuses a partir da base aérea. O ruído atravessava toda a cidade para se perder nas águas do rio Geba. E cada vez que isso acontecia, instintivamente, curvava-me todo para a frente como se quisesse evitar que algo invisível me cortasse ao meio. À minha frente seguia o vulto de uma mulher que, também, fazia a mesma ginástica rítmica. Durante a marcha, caíamos e levantávamo-nos juntos sem parar, ao ritmo dos disparos, ela à frente e eu atrás.

Apesar do medo e da urgência do momento, acabei por fixar o meu olhar nela de forma insistente. Havia qualquer coisa de invulgar na sua forma de andar. Sobretudo, tinha reparado no movimento ondulatório das suas ancas. 

Porque é que insistentemente o meu olhar vai para as nádegas das mulheres? Não sei, ninguém me ensinou, deve ser hereditário. Fixei o meu olhar nas nádegas. Havia uma harmonia incrível de movimentos que me embalava e me cativava, que iniciava nos seus pés bem firmes no chão e subia, subia até as tranças dos cabelos levemente amarrados por detrás da cabeça felina. Ela possuía um corpo bem consistente, cheio e flexível que combinava com a dança frenética de subidas e descidas ondulatórias das nádegas –“unata defata ko iarta beréberé!” (1).

Era estranho, os habitantes de Bissau viviam sob o choque de uma brutal guerra de quartéis, por enquanto, e eu devia pensar em coisas sérias, ia encontrar-me com a minha família e devia pensar numa forma de os tirar de lá. O meu irmão já tinha saído e toda a cidade estava em fuga. Eu não, estava ali colado atrás de umas nádegas que não conhecia de lado algum mas que me atraíam como as flores atraem as abelhas.

Impávido e feliz por aquele momento divino de contemplação, já não andava, corria, corria atrás daquela figura que parecia uma luz brilhante no horizonte inacessível da minha vida povoada de cenários de guerras. Sim, uma luz como a lua cheia numa noite escura que brilha mas não ofusca a vista, visão celestial. Corria como um sonâmbulo com as mãos em concha estendidas para a frente, num gesto ridículo e egoísta de não deixar cair nenhuma gota daquele mel doce da minha alucinação.

Julgo que caminhámos três quilómetros.
 Ou foram sete? Não sei dizer. Aquele cenário não me era estranho de todo. Onde o teria visto ou vivido? Ah! Sim, foi no caminho de fuga entre Berécolon e a fronteira do Senegal, ainda criança na inesquecível noite do ataque dos eternos terroristas da nossa terra em 1964. 

Não, é o filme de Flora Gomes, Mortu Nega.. Estamos a caminhar com o grupo de guerrilheiros que vai reforçar a frente destroçada pelos bombardeamentos da aviação inimiga. Atravessamos a lala a correr, curvados para a frente e agora embrenhamo-nos na floresta. “Cuidado com as minas!”, é o Capitão Mamadú que, à frente da coluna, de silhueta imponente, nos ordena: “Coloquem os pés em cima das minhas pegadas, e deitem-se no chão ao menor ruído!”. 

Parece imune ao perigo que nos espreita do ar e da terra, este rapaz valente. Ainda nos avisa: “Vamos acelerar o passo e, se ouvirem o roncar de um helicóptero, dispersem-se e coloquem-se debaixo do primeiro arbusto, se não houver arbustos, então transformem-se em baga-bagas dobrando o corpo em dois!”.
 Hé, badjuda, kuma ki´u nomi? – pergunta a mulher grande à miúda a minha frente.
 Amí tchoma Diminga, Diminga de Bithame.

A velha, sorrindo insiste:
N´hundê ku-na bai ?
N´na bai djubi nh´ome k´stá na frénti – responde esta.

É isso, é a Diminga que está a minha frente. Chegamos à travessia d´água. A menina pára e vira-se para mim olhando, pela primeira vez, e cruza-se com o vazio dos meus olhos de sonâmbulo, fixos nas suas ancas largas e apercebe-se, num relance, da enormidade do desejo que me aflige. Ou não se apercebe? Pega na minha mão para ajudar-me a atravessar a água lamacenta. Sem perder tempo, aproveito o momento e a mão estendida para abraçar o seu corpo inteiramente e adormecer feito criança.
 Já cheguei! – diz ela.

Não compreendo. Como pode ela chegar se eu ainda nem comecei a andar embalado no seu peito macio, pensei comigo.
 Já cheguei a minha casa, agora podes continuar o teu caminho!  repetiu ela.
Aproveitando a abertura do seu sorriso, balbuciante, perguntei:
Kuma kí´ú nomi?
 Nha nomi´i Rosa – respondeu, baixando o seu rosto para fugir do meu olhar prenhe de angústias. 

Sem delongas, virou-se e seguiu seu caminho bambaleando levemente aquelas nádegas da minha perdição. “Rosa, chamam-te Rosa minha preta formosa, e na tua negrura, teus dentes se mostram sorrindo, teu corpo baloiça, caminhas dançando, lasciva e ridente, vais cheia de vida, vais cheia de esperança, em teu corpo correndo a seiva da vida, tuas carnes gritando e teus lábios sorrindo” (2).

Esquecido do mundo e da guerra, fiquei especado no chão a olhar infinitamente como se aquela imagem que se perdia lá longe levava também consigo o fim da minha atribulada existência de combatente do nada num mundo em constante mutação e de fugas para a frente. Lutas de libertação e/ou de apropriação, as aldeias queimadas e os campos abandonados, o fardo das regras e religiões que chegaram com o mundo novo, tudo, temperado no inevitável processo de esvaziamento da alma, a globalização, o gesto ridículo do mimetismo cultural, golpes e contra golpes, programas de ajustamento, crises financeiras…

Ela não disse se era de Bitháme. Será que isso interessa? Também não tinha perguntado. Cheguei ao Bairro d´Ajuda sem saber se tinha caminhado ou voado com as asas que a visão daquela Rosa-Diminga me tinha incorporado. 

Em casa da Djenaba, minha cunhada, reinava uma calma aparente pois, estando o marido fora, ela sozinha estava desorientada. Fazia e desfazia bagagens sem saber o que levar e o que deixar. Disse-lhes que devíamos fazer o que toda a gente estava a fazer, ou seja, sair para fora da cidade. Pegar o mínimo essencial, isto é, uma garrafa de água em cada mão.
 Não!  disse-me prontamente Vamos esperar até amanhã.

Mais tarde soube que afinal ela não se tinha decidido a sair porque os seus vizinhos ainda não o tinham feito. Voltei para casa. Os tiros tinham cessado. Àquela hora da noite, já não havia nenhum movimento nas ruas do Bairro Militar e certamente as casas também encontravam-se vazias. A noite foi silenciosa, longa e tensa. Eu, a tentar dormir, os ratos a explorar regiões antes proibidas na casa deserta, lá fora as BM (“baevie machine” - que literalmente significa máquinas de guerra em russo) a cuspir fogo de Estaline.


5º dia, 11 de junho,  quinta-feira: a guerra civil em marcha

Na manhã do dia seguinte ainda continuaram os tiros dos obuses. Dirigi-me ao mercado. Ainda havia gente aglomerada em alguns pontos tentando encontrar alguma coisa para provisão da casa ou do caminho. 

Todavia, o cenário de vaivém tinha dado lugar a uma única e longa fila de saída para fora da cidade. Depois do falhanço, um dia antes, da tentativa encetada por uma comissão "ad-hoc" de algumas pessoas de boa vontade de fazer sentar as duas partes na mesa de negociações, ficou claro para toda a gente que o conflito iria durar, transformando-se em guerra civil. 

O Comandante em Chefe não admitia negociar com um grupo de bandidos. Os primeiros contingentes de tropas dos aliados do Norte e do Sul já estavam a desembarcar no porto. Era uma situação insustentável. O fluxo das pessoas a caminho do refúgio era cada vez maior.

(Continua)
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Notas do autor:

(1) “Não pila, não cozinha mas come do melhor “– Uma elegia masculina dedicada ao balanço ondulatório das nádegas da mulher africana, na lingua Fula.

(2) Amilcar Cabral (1924-1973), antologia poética.


3. Comentário do editor LG:

Os portugueses, felizmente, não sabem o que é uma guerra civil desde os anos de 1830 (lutas entre liberais e absolutistas, 1828-1834) nem o que é a invasão do solo pátrio por tropas estrangeiras desde as invasões napoleónicas (1807-1810)...

Podemos, no entanto, tentar pôr-nos na pele dos nossos amigos guineenses, o Cherno Baldé e família, o Pepito e família, o Patrício Ribeiro e outros, que estavam lá, em 7 de Junho de 1998, quando a Junta Militar de Ansumane Mané tentou derrubar 'Nino' Vieira (o que viria a acontecer quase um ano depois, em maio de 1999, após um conflito sangrento, que incendiou todo o país e que levou muitos guineenses ao exílio  (caso do Pepito e da Isabel Levy,  por exemplo, que foram viver para Cabo Verde  durante cerca de um ano)ou a ref+ugio da terra natal (como foi o caso do Cherno Baldé e família).

É um período da história recente da Guiné-Bissau mal conhecido dos antigos combatentes portugueses que fizeram a guerra colonial... Nessa altura (1998/99) andávamos distraídos com outras coisas e, se calhar, tínhamos pouca pachorra para sequer ouvir e entender os eternos problemas dos nossos pobres amigos  guineenses... Além disso, Lisboa estava em festa, com a Expo 98, que decorreria entre maio e setembro de 1998...

O Cherno dá a verdadeira dimensão, humana, ao conflito político-militar que levaria à queda de um regime, à invasão do país de tropas estrangeiras (Senegal e Guiné-Conacri), à desertificação e pilhagem de Bissau, à miséria, fome e pobreza,  enfim, ao agravamento, ainda mais brutal, das condições de vida dos guineenses... No final, o conflito saldou-se por alguns milhares de mortos e a duas ou três centenas de milhares de refugiados,

No caso do Cherno, era preciso pôr a família a salvo, numa viagem de mais de uma semana, de sobressaltos, de Bissau a Fajonquito (menos de 200 km), passando por Nhacra, Mansoa, Bambadinca e Bafatá... Tinha o seu filho mais velho três anos...

Obrigado, Cherno, é mais um depoimento comovente mas ao mesmo atravessado por surpreendentes reflexões filosóficas e éticas sobre a condição humana...  

PS - As marcas deste grave conflito político-militar ainda hoje são visíveis, nomeadamente em Bissau. Veja-se aqui uma reportagem (com vídeo) feita em 7 de junho de 2019 pela DW - Deutsche Well, da autoria do jornalista Braima Darame ( "Guerra de 7 junho deixou Guiné-Bissau frustrada e a culpa é dos políticos".
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Notas  do editor:

(*) Vd. poste de 17 de setembro de  2010 > Guiné 63/74 - P7002: Memórias do Chico, menino e moço (Cherno Baldé) (19): Fugindo da guerra civil, de Bissau a Fajonquito, Junho de 1998 (I Parte)

(**) Trata-se de 7 de Junho de 1998 e não 1997, como por lapso escreveu o autor. Foi o início da longa e sangrenta guerra civil na Guiné-Bissau. Nesse dia de domingo, 7 de Junho de 1998, um grupo de militares, liderado formado pelo brigadeiro Ansumane Mané (antigo chefe do Estado-Maior) fez um golpe de Estado com vista à queda do presidente 'Nino' Vieira. As tropas militares rebeldes entraram em confronto com as forças presidenciais, que serão ajudadas pelo Senegal e pela Guiné-Conacri.

Este conflito vai provocar centenas de mortos e milhares de refugiados guineenses, não só em Bissau como noutras localidades, que se espalharam pelo interior e por diversos países (incluindo Portugal).

Haverá uma primeira tentativa de acordo nos dias 25 e 26 de julho de 1998, altura em foi celebrado o "Memorando de Entendimento", um documento que, em 25 de agosto, viria a dar lugar ao cessar-fogo. As delegações do Governo da Guiné-Bissau e a Junta Militar, de Ansumane Mané, concordam em fazer um trégua. 

 No entanto, as coisas iriam complicar-se... A guerra civil prolongar-se-ia por mais quase um ano, com lutas pela conquista do território e expulsão das tropas estrangeiras, aliadas de 'Nino' Vieira. 

A maior parte da Guiné-Bissau acaba por ficar sob o domínio das forças revoltosas. 'Nino' Vieira acaba por aceitar um cessar-fogo em 7 de maio de 1999. Refugia.se na embaixada portuguesa durante um mês, seguindo depois para um exílio de seis anos  em Portugal (na sua residência em Gaia, arredores do Porto).

Fonte: Adaptado de Nino Vieira. In Infopédia [Em linha]. Porto: Porto Editora, 2003-2010. [Consult. 2010-09-17].Disponível em http://www.infopedia.pt/$nino-vieira.

Guiné 61/74 - P23049: Parabéns a você (2042): Gil Moutinho, ex-Fur Mil Piloto DO e T6 da BA 12 (Bissau, 1972/73)

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Nota do editor

Último poste da série de 27 de Fevereiro de 2022 > Guiné 61/74 - P23036: Parabéns a você (2041): Luís Cardoso Moreira, ex-Alf Mil do BART 2917 e BENG 447 (Nova Lamego, São Domingos e Bissau, 1967/69)

sexta-feira, 4 de março de 2022

Guiné 61/74 - P23048: Notas de leitura (1425): "Portugal no Mundo"; Publicações Alfa - Um pouco da Guiné na obra de Luís de Albuquerque (2) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 24 de Junho de 2019:

Queridos amigos,
Felizmente, têm evoluído nas últimas décadas os trabalhos de investigação sobre a presença portuguesa na chamada Senegâmbia, há que destacar as pesquisas e estudos de Maria Emília Madeira Santos, Eduardo Costa Dias, José da Silva Horta. Nesta obra coordenada pelo professor Luís Albuquerque, o seu último grande trabalho, Maria Emília Madeira Santos debruça-se sobre os lançados na costa da Guiné, define-os com rigor, mostra a natureza do seu comércio, exemplifica com alguns lançados que tiveram prosperidade, dá voz aos dois principais autores que registaram esta presença e que foram Francisco Lemos Coelho e André Alvares de Almada. Foi sol de pouca dura, a concorrência inglesa, francesa e holandesa subtraiu-lhes a influência. Mas fazem parte do nosso património histórico pois não há estudo sobre a presença portuguesa que possa iludir estes pontas de lança internacionais, intérpretes de linguagem diversa, trocadores de produtos e muito mais, aproveitavam-se da fragilidade da presença da Coroa, mestiçaram-se e porventura estão entre os principais responsáveis por se ter falado português desde os séculos XV e XVI na Senegâmbia.

Um abraço do
Mário



Um pouco da Guiné na obra de Luís de Albuquerque (2)

Beja Santos

Em 1989, as Publicações Alfa deram à estampa o maior empreendimento editorial da responsabilidade desse grande historiador dos Descobrimentos que foi Luís de Albuquerque, falecido em 1992. Foram seis volumes que abonam a sapiência deste investigador e revelam a sua portentosa capacidade de coordenar projetos científicos de grande envergadura. É precisamente no segundo volume que Luís de Albuquerque e prestigiados colaboradores referem a contextualização histórica do primeiro período da presença portuguesa na Senegâmbia.

A Terra dos Negros possuía ingredientes pouco convidativos à fixação de populações, o Infante D. Henrique concluiu que a presença portuguesa exigia dois elementos básicos: boa comunicação com os chefes locais, com o repúdio a atos hostis e a constituição de empórios ou feitorias que dessem apoio a atos de missionação (no caso da Guiné se revelaram dececionantes). Como escreve na obra a investigadora Maria Emília Madeira Santos, uma boa parte das atividades económicas e de relacionamento deveu-se não às iniciativas do Coroa mas a um punhado de aventureiros que passou à História com o nome de “lançados”. Observa a investigadora que desde o princípio do século XVI, pioneiros portugueses registaram presença nesta região entre o cabo Verde e a Serra Leoa (mais ou menos o território que ficará conhecido como Senegâmbia Portuguesa), ignoravam a subordinação ao governador e às autoridades estabelecidas na ilha de Santiago de Cabo Verde. A Coroa tinha uma prioridade: povoar as ilhas de Cabo Verde, escala estratégica para a navegação atlântica, na míngua de povoadores estimulou a vinda de escravos. E assim foi decidido que podiam os vizinhos da ilha de Santiago navegar com os seus navios e mercadorias nesta Senegâmbia, mas apenas lhes era permitido movimentar os produtos do arquipélago, que se reduziam, naquela época, a algodão e cavalos. E para proteger Cabo Verde proibia-se rigorosamente a fixação de portugueses naquele ponto da costa ocidental africana. Mas houve vozes insubmissas, homens de diversos estratos sociais, aventureiros, renegados e cristãos-novos que se lançavam na terra firme, estabelecendo ali residência e ocupantes de comércio de produtos vários, isto sem prejuízo de manter relações comerciais com as ilhas. Ficaram conhecidos pelo nome de lançados, tangomãos, tangomaus ou tangumans. Havia judeus neste grupo, expatriados a partir de 1496. Segundo o Capitão Francisco de Lemos Coelho, que ali viveu e comerciou demoradamente, os judeus portugueses lançados na costa da Guiné “eram assaz vituperiados dos mais moradores e negros da terra e pagavam mais tributos que os brancos; e tudo sofriam por viverem em liberdade em sua lei”. Havia entre estes lançados gente rica. Foi o caso de Diogo Henriques de Sousa, que, no início do século XVII, se estabeleceu no porto de Guinala, não longe do Rio Grande, terra dos Beafadas. Outro exemplo de lançado que aqui enriqueceu foi o de Sebastião Fernandes. Viveu na povoação de Guinala com muitos navios e cabedal, foi para Cacheu com 18 embarcações onde levou 1800 negros com muito marfim e algum âmbar.

A investigadora cita o Capitão André Alvares de Almada quando este escreveu acerca dos muitos negros que “sabem falar a nossa língua portuguesa e andam vestidos do nosso modo. E assim muitas negras ladinas, chamadas tangomãs, porque servem os lançados. E estas negras e negros vão com eles de uns rios para os outros e à ilha de Santiago e a outras partes”. Havia dois tipos de acusações que impendiam sobre os lançados: faziam concorrência ao resgate de embarcações portuguesas, eram apelidados de ladrões, traidores; e viviam fora da alçada da Igreja, dedicados ao tráfico da escravatura durante vinte ou trinta anos, sem se confessarem. Os lançados para regressar ao reino tinham que pagar metade dos bens que traziam, eram igualmente obrigados a entregar dez cruzados ao Hospital de Todos os Santos de Lisboa. Mais diz a investigadora que os lançados ocupavam-se no comércio de troca entre mercadorias europeias e produtos africanos, mercadorias vindas da Europa em grande variedade. Em troca, compravam couros, marfim, cera, goma, âmbar, algália, anil, ébano, escravos e ouro. Fixavam-se de preferência na costa ou nas margens dos rios, tudo faziam para viver na melhor convivência com os reis africanos.

Esta atmosfera de resgates ir-se-á alterar com a presença dos franceses, primeiro, ingleses e holandeses, depois, a partir do terceiro quartel do século XVI. Até aí, está historicamente comprovado, no cabo Verde e angra de Bezeguiche, os portugueses comerciavam com os jalofos islamizados, e umas léguas abaixo no porto de Recife, aqui viviam os portugueses e os brancos “filhos da terra”. A presença judaica ganhou enorme expressão, são estudos efetuados por Eduardo Costa Dias e José da Silva Horta, todo o comércio no porto de Ale e no porto de Joale. O rio Gâmbia, navegado pelos portugueses desde o século XV, quando foi subido até Cantor por Diogo Gomes, podia navegar-se com navios com 80 a 90 toneladas por 130 léguas. Aqui se contatavam os Mandingas que falavam da cidade de Tombuctu e das feiras de ouro. Francisco Lemos Coelho, que exercia funções em Cabo Verde e conhecia palmo a palmo a costa da Guiné deixou-nos relatos memoráveis desta presença portuguesa no comércio do Gâmbia e da Senegâmbia em geral. A concorrência aos portugueses foi devastadora, tornou-se sumamente difícil o controlo dos navios negreiros saídos para as Américas. Cacheu tinha uma fortificação de pau-a-pique que só veio a ser substituída por uma fortaleza de pedra em 1641 com o governador Gonçalo Gamboa de Ayala, a praça passou a ter capitão-mor, oficiais de justiça e uma guarnição militar. Nem tudo era mantida nas melhores condições, como escreveu Francisco Lemos Coelho em 1669: “Consta a povoação de Cacheu de duas ruas, uma posta ao longo do rio, que chamam a Direita, e outra por detrás, que chamam de Santo António; do princípio está a modo de um bairrozinho, que chamam Vila Fria, em a qual primeira casa é de Sua Majestade em que assiste o capitão-mor, que não tem mais forte, que o nome, está a dita casa com um cerco de mangues que é a muralha, a que chamam tabanca, a casa é de adobes, coberta de palha com um grande terrado em que está a fazenda por amor do fogo, que se chama combete, e semelhante a esta são todas as da povoação, que tem pela banda do mar uma plataforma com camisa de pedra e cal em que está a artilharia que lhe põem capitães-mores…”

Os lançados judeus tinham uma relação especial com a Flandres, dado que certamente ali tinham familiares e amigos expulsos de Portugal no reinado de D. Manuel.

Os lançados em geral acabaram, a partir do final do século XVI, por estar menos ligados aos portugueses. Viviam em núcleos mais ou menos isolados, sem lei, sem justiça e sem religião, estabeleciam relações de convivência com as populações locais, pagavam mais ou menos diretamente o acolhimento e a permissão de comerciar. Com os europeus entabulavam ligações comerciais de acordo mútuo que os tornaram intermediários entre a Europa e regiões dos rios da Guiné e Serra Leoa, tornando-se pontas de lança internacionais, este papel só foi possível desempenhar pela aceitação local e pela fraqueza do poder da Coroa Portuguesa na região.

Cena de uma aguada. Representa um dos variados aspetos do relacionamento entre os europeus e os africanos. Gravura extraída da obra setecentista “Relation du voyage de Mr. De Gennes au Detroit de Magellau”
Ilustração extraída da revista “O Mundo Português”, n.º 6, junho de 1934
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Nota do editor

Último poste da série de 28 DE FEVEREIRO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23041: Notas de leitura (1424): "Portugal no Mundo"; Publicações Alfa - Um pouco da Guiné na obra de Luís de Albuquerque (1) (Mário Beja Santos)

Guiné 61/74 - P23047: Pequeno resumo dos dois anos em que estive na guerra (Joaquim Jorge, ex-alf mil, CCAÇ 616 / BCAÇ 619, Empada, 1964/66) - III (e última) Parte: 1965: A reconquista da bolanha de Ualada e a construção do "Rancho da Ponderosa"


Guiné > Região de Quínara > Empada > CCAÇ 1587 (Cachil, Empada, Bolama e Bissau, 1966/68) > Ualada > Destacamento do "Rancho da Ponderosa> O soldado Jorge Patrício, à porta do destacamento.  Em 2009,  vivia em Viseu, aposentado da função pública. 

É a única foto que conhecemos do "Rancho da Ponderosa" (*)... Foi a CCAÇ 616, sob o comando do alf mil Joaquim Jorge, quem fundou  o "Rancho da Ponderosa", começando a construi-lo a partir de  17 de março de 1965, como ele nos explica neste poste. (**)

A CCAÇ 616 foi depois substituída, no subsector de Empada, pela CCAÇ 1423   entre janeiro de 1966 e novembro, com um pelotão  destacado em Ualada. Seguiu-se-lhe a CCAÇ 1587 e depois a CCaç 1787, a partir de janeiro de 1968 (***). Teve um pelotão em Ualada até março de 1968, 

A partir daquela data deixa de haver referências a Ualada nos livros da CECA. È possível que a tabanca terá sido abandonada pela população e o destacamento desativado no segundo semestre de 1968  na sequência da retração e racionalização do dispositivo no CTIG, no início do "consulado" de Spínola, altura (2º semestre de 1968/ 1º semestre de 1969) em que foram abandonadas outras posições como Ponta do Inglês, Gandembel, Ganturé, Cacoca, Sangonhá, Beli, Madina do Boé, Cheche... 
 
Foto : Cortesia do CM - Correio da Manhã, edição de 4/10/2009. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]

 


Brasão da CCAÇ 616 (Empada, 1964/66).
A divisa, em latim, "Super Omnia", quer dizer "acima de tudo".
Foto do álbum do Francisco Monteiro Galveia
(ex-1º cabo op cripto, vive em Fronteira)




CCAÇ 616 > Empada, 1964/66 > Pequeno resumo dos dois anos
em que estive na guerra (*)



por Joaquim Jorge


III (e última ) Parte - 1965: A reconquista da bolanha de Ualada 
e a construção do "Rancho da Ponderosa"


O ano de sessenta e cinco, ao contrário daquilo que esperávamos, não nos foi muito favorável; não no aspecto de ataques ao aquartelamento, mas na questão do trabalho e entradas em operações, coisa que tinha andado esquecida pelos “maiores” desde que entráramos em quadrícula. 

Diga-se, em abono da verdade, que uma Companhia quase independente como era a minha, não podia dispor senão de dois pelotões para operações, pois não íamos deixar o aquartelamento quase abandonado quando nos tinha custado suor, lágrimas e sangue para conquistarmos uma posição mais ou menos sossegada. Mas quem manda pode e vimo-nos obrigados a entrar em operações somente com os componentes da milícia e às vezes protegidos e ajudados pela força aérea. 

Era ideia fixa a conquista da bolanha de Ualada, há vários anos inculta e mais ou menos em poder do inimigo. Não haja a menor sombra de dúvida de que a única maneira de se acabar com a guerrilha é roubar ou reconquistar os fulcros da alimentação do inimigo. Bolanha é um campo ou vários campos de cultivo de arroz banhados pelo mesmo rio por meio de ouriques. 

A bolanha de Ualada, também chamada bolanha de São Miguel, que a nossa companhia cognominou de “Ponderosa”, em lembrança da série “Bonanza” da TV. cultivada na sua totalidade, dava para cima de vinte toneladas de arroz, arroz esse que viria acabar com o problema da fome em Empada.  [ A série  do faroeste "Bonanza", com a saga da família Cartwright,  proprietária do rancho da "Ponderosa", no Nevada, estreou-se, na televisão americana, em 1959; foi um extraordinário de caso de popularidade e longecidade; começou a ser exibida na RTP em 1961. (LG)]

Depois de várias divergências entre o coronel, comandante de sector,  e eu,  comandante da companhia,  apoiado pela população,  ficou decidido que iríamos ocupar Ualada para construirmos uma posição de autodefesa à bolanha…(mais à frente relataremos em pormenor esta divergência.)

Foi com muita ansiedade e espectativa que chegou o dia dezassete de Março, pois foi neste dia que chegámos a Ualada (“Ponderosa”), distante quatro quilómetros de Empada, com armas, pás, picaretas, arame farpado, chapas de bidão e algumas rações de combate,  prontos para a sua reconquista e instalação de um novo “quartel”. 

Coube ao 2º pelotão, comandado pelo alferes Pedro Oliveira e a um pelotão de milícias a permanência dos primeiros dez dias e nesses dez dias dormiram em buracos cavados no chão abertos no primeiro dia com chapas de bidão por cima para se protegerem de possíveis ataques. 

Rapidamente e com muito esforço,  a “Ponderosa” ganhou forma e a bolanha começou a ser preparada. Além dos buracos e abrigos construímos algumas casas para aquartelamento em adobes artesanais feitos com as mãos e os pés, pois não tínhamos utensílios necessários para a sua fabricação de outra forma. Mas foi uma obra feita com gosto e entusiasmo. 

Os pelotões eram rendidos de dez em dez dias e todos queriam fazer melhor que os anteriores. Tentámos construir o aquartelamento imitando o oeste americano que conhecíamos através da série televisiva “Bonanza”, por isso batizámos o aquartelamento por “Rancho da Ponderosa”. A bolanha começou a produzir e assim a render o benefício do esforço dispendido por nós, militares, pela milícia e pela população e a "Ponderosa" começou a crescer também como “Tabanca” e a fome desapareceu da população de Empada. 

Foi um grande orgulho para a Companhia 616 esta obra que mereceu a visita e a admiração do Governador General Arnaldo Schulz, de outras altas entidades militares, assim como da Embaixada Militar Americana em Portugal e ainda de uma equipa de jornalistas de “O Século” em cujo jornal foi publicada uma grande reportagem.

No período em que andámos ocupados com as obras da Ponderosa, os “grandes da guerra” deixaram de pensar na nossa companhia para outras operações. Pensámos então nós que a "Ponderosa" tinha sido a nossa tábua de salvação, mas assim não sucedeu. Quando a "Ponderosa" já não oferecia qualquer possibilidade ao inimigo,  voltámos às operações embora já com a companhia em precárias condições gerais de saúde.  
Operações como as que efectuámos em Aidará, Satecuta, Gã-Eugénia, Batambali, Darsalame e tantas outras, para não mencionar todas, não mais se apagarão das nossas memórias, tão gravadas ficaram pelo esforço, suor, sangue e lágrimas em todos os militares da Companhia de Caçadores 616.

Não há dúvida nenhuma de que a CCAÇ 616 fez um grande trabalho a nível militar e social durante os seus dois anos de comissão em Empada Não quero com isto dizer que a nossa companhia tenha acabado com a guerra nesta região. Esse não é trabalho para uma só companhia, mas sim para um efectivo militar muito maior e bem organizado. Todavia de todos os locais que pertenciam ao nosso subsector, só nos faltou “visitar” os acampamentos inimigos de Pobreza e Cachobar. 

Lembramos que a nossa área de acção foi o maior subsector do sul da Guiné, indo, no sentido este/oeste, de Antuane e Batambali até Darsalame e Madina de Baixo, não esquecendo de Pobreza para sul. Tudo isto dava uma extensão de cerca de quarenta quilómetros no seu maior comprimento. 

O convívio constante e fraternal e o nosso trabalho de apoio incondicional criaram a amizade e a confiança de todos os nativos. Estou a recordar-me agora de um acontecimento que mostrou bem a amizade e a confiança que toda a população de Empada votava em nós: No regresso da operação a Darsalame, considerado por todos uma aventura e um mito perigosíssimo, pois há três anos que lá não iam tropas, ao regressarmos e apesar da hora tardia, vinte horas, toda a população veio para as bermas da rua que dava para o aquartelamento agradecer, incitar e gritar por Empada e pela 616.

Depois de um esforço tão grande da nossa parte e do êxito alcançado, nada melhor para retemperar as forças do que ter ouvido os incitamentos e manifestações de alegria por parte daquela magnífica e saudosa população de Empada que sabia viver e reconhecer os momentos difíceis pelos quais atravessávamos. Na luta, no trabalho, na compreensão e na amizade,  o branco era de cor e o de cor era branco.

Apesar de tudo quanto sofri, sempre sentirei saudades da “querida” Empada.

Ferrel, 8 de Janeiro de 2022 – Dia do 58º aniversário da minha partida para a Guiné.



Guiné > Região de Quínara > Carta de Empada (1961) > Escala 1/50 mil > Posição relativa de Empada e, a sudeste, Ualada, onde a CCAÇ 616 passou a ter um pelotão destacado a partir de março de 1965. O destacamento foi batizado como "Rancho da Ponderosa". A bolanha de Ualala era também conhecida como bolanha de São Miguel.

Infografia: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (2022)

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Notas do editor:


(**) Vd. postes anteriores da série > 


28 de fevereiro de 2022 > Guiné 61/74 - P23040: Pequeno resumo dos dois anos em que estive na guerra (Joaquim Jorge, ex-alf mil, CCAÇ 616 / BCAÇ 619, Empada, 1964/66) - Parte I: 1964: 30 de maio, um ataque de seis horas!

quinta-feira, 3 de março de 2022

Guiné 61/74 - P23046: Memórias do Chico no Império dos Sovietes (Cherno Baldé) - Parte VI: Com a Ucrânia hoje a ferro e fogo, o meu coração está dilacerado

1. Porque alguns dos nossos leitores mais recentes não acompanharam, na altura, a série "Memórias do Chico, menino e moço" (de que se publicaram, a partir de 2011, mais de meia centena de postes), decidimos "repescar" alguns postes do Cherno Baldé, no contexto do pós-independência da Guiné-Bissau, relacionados com o seu  percurso escolar (ciclo preparatório e liceu, em Bafatá e Bissau, 1975/1982, e depois universidade, na URSS, Moldávia e Ucrânia, 1986/1990). 

 Voltará ao seu país, em 1990, com uma licenciatura em Planificação e Gestão Económica, pela Universidade de Kiev, já depois da queda do muro de Berlim e do fim da URSS.(*)

Sobre o tempo de Kiev (1986/90), só temos alguns poemas, que republicamos, juntamente com alguns comentários sobre essa época, de que ele guarda, naturalmente,  boas e más recordações,

Recorde-se que o Cherno Baldé, que vive em Bissau, é nosso colaborador permanente para as questões etno-linguísticas e, profissionalmemte, é gestor de projetos na empresa MF CAON FED, Guiné-Bissau. (Vd. aqui a sua página do Facebook). 

Segue-se então  colagem de vários comentários e excertos de postes ainda relacionados com o seu tempo passado no "império dos sovietes", inckuindo uam seleção dos seus poemas de Kiev (1986-1990).


Memórias do Chico no Império dos Sovietes, 1985-1990
(Cherno Baldé) - Parte VI:  Com a Ucrânia hoje a ferro e fogo, o meu coração está dilacerado


por Cherno Baldé (*)


(...) Neste preciso momento a Ucrânia está a ferro e fogo. O meu coração está dilacerado e lamento que gente boa e pacífica que aprendi a gostar e admirar, esteja a sofrer por motivos que os ultrapassam.

Choro por Ucrânia, mas compreendo a Rússia. É uma guerra entre irmãos da mesma mãe, a Kievski Rush. A Russia tem suas raízes enterradas terras ucranianas apelidada nostálgicamente de "Ukraína" a nossa terra distante, longínqua.

Não há palavras para expressar nem de justificar (...)

24 de fevereiro de 2022 às 21:32

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(...) Eu estudei na antiga URSS, sim, onde, juntamente com o leite e mel servido na cama individual, também nos serviam expressões agradáveis como " Ó macaco preto,  volta para a tua terra!".

Uma vez, em Kiev, conversando entre amigos e colegas de turma de várias nacionalidades, um Russo nos interpelou cheio de curiosidade:
- Disseram-me que vocês,  africanos,  nos vossos países, vivem em cima das árvores, mas como é que conseguem montar as camas ?

E alguém dos nossos respondeu-lhe:
-Sim,  é verdade,  e se queres saber mais digo-te que o vosso embaixador que vive lá connosco, está hospedado e dorme na árvore mais alta da nossa floresta. (...)

14 de setembro de 2010

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(...) Para aqueles que não sabem (o que é pouco provável) quero informar que, também, nós, Africanos (Pretos, se quiserem), tivemos a oportunidade de viver em terras da Europa, esta velha Europa, orgulhosa e racista, mas que também sabe ser, às vezes, acolhedora e bondosa. E também nós tivemos, temos e teremos as nossas experiências não menos dramáticas com as Marias e as Natachas.

Diz um ditado popular que "o mundo é como o rabo de uma pomba" que faz viragens permanentes. Eu nunca utilizarei o termo puta porque penso que o não foram e aí o Jorge Cabral é bem explícito. Se todos os homens fossem tão humanos como o são as mulheres (todas as mulheres), o mundo seria mais justo e a vida mais fácil de viver. (...)  

20 de julho de 2009

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(...) O meu pai era um homem muito decidido e sensato para a sua época e, ao mesmo tempo, era um homem de convicções muito fortes, sobretudo religiosas. 

Da mesma forma que nunca aceitou a ideia da chegada do homem a lua, também não aceitava a teoria da terra redonda. Não discutia isso com as outras pessoas fora do circuito restrito da família, mas não admitia que os seus filhos metessem na cabeça muitas fantasias. Uma vez, ameaçou mesmo retirar-me da escola se continuasse a falar dessas coisas anti-religiosas que nos ensinavam na escola. Isso aconteceu quando ainda estudava no ciclo preparatório e depois no Liceu de Bafatá (1975/79).

Um dia, depois do meu regresso da URSS em 1990, numa conversa em família, inadvertidamente falei de uma viagem que tinha feito às cidades históricas de Samarcanda e Bucara (Uzbequistão), no âmbito de uma excursão escolar, pensando que ele ficaria satisfeito por ter perdido o meu tempo a visitar localidades islâmicas históricas. No fim, o meu pai perguntou-me onde estavam situadas. Respondi que estas cidades eram da Ásia Central, para lá da cidade santa de Meca.

Não devia ter falado. O velho levantou-se visivelmente irritado e foi para a sua casa, sem dizer mais nada. No dia seguinte atirou-me à socapa : "Tu,  Cherno, não sei o que a tua escola te serviu, pois ainda continuas a mesma criança idiota que saiu daqui há mais de 15 anos e nem consegues entender que Meca é o fim do mundo?!... Como podes afirmar que há outro mundo para lá de Meca e que tu estiveste lá?!"

Era assim o meu pai, muito corajoso e sensato, mas completamente irascível nas suas crenças, de tal modo que não valorizava muito os nossos estudos na escola dos brancos, exceptuando, claro, a contrapartida monetária que podíamos fornecer.

Ao que parece e por aquilo que aprendi das suas relações, os brancos (portugueses e franceses) desconfiavam sempre dos fulas e da sua religião islâmica, da mesma forma que os homens grandes fulas (como bem disse o Mário Migueis) aceitavam e suportavam com dignidade o domínio dos brancos, mas sempre desconfiados da sua comida, da sua ciência e das suas reais intenções a longo prazo. (...)


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Poemas da Juventude (Kiev, 1986-1990) (seleção)

PENSAR

Acontece-me pensar…Pensar…pensar…
Como aos poetas, sonhar.

No denso sepulcro da memória
No despertar inadiável da vida
O caminho ainda longo.

Acontece-me querer voltar ao passado longínquo da origem
Sempre presente em silêncio.
No passo das minhas pegadas, mal varridas pela erosão do tempo
Medir a força das lianas, razões de tropeço na caminhada.
Acontece-me pensar, acontece-me querer voltar
Aos tempos primeiros da infância
A altura daquelas montanhas agrestes, sulcadas pela corrente de suor,
Do meu corpo na luta
Uma vista de olhos passar a Baobab que eterniza a tabanca
Berço dos meus sonhos
Sentir no corpo e na alma, a brisa que embalou a infância
A voz da floresta em pranto e o gosto amargo das raízes violadas

Lá, mais para oeste …
De El-miná ou Ouida
De Badagry ou N´goré
O caminho do mar,
Em ondas lacrimosas da viagem sem regresso

(Kiev, Dezembro de 1987)



OBSERVADOR



Observador
Espectador
Nos parques
O mundo a renascer
Em cada primavera
Nas ruelas,
Em compassos lentos
Dos pares e dos sonhos floridos

E tu desvairado, aonde vais? Ao “magazin" (1)
Não! Eu vou para Magadan (2),
Ainda antes do Buran (3),
Antes do voo e das vozes do mundo,
Que estão por nascer.

(Kiev, Abril de 1990)

Legenda do autor:

1- Magazin – Loja, mercearia de produtos de primeira necessidade
2- Magadan – Localidade Russa situada algures na Sibéria oriental
3- Buran – Vaivém Espacial Soviético inaugurado em finais da década de 80


[Seleção, fixação e revisão de texto / negritos / título e subtítulo: LG]


24 de fevereiro de 2022 > Guiné 61/74 - P23023: Memórias do Chico no Império dos Sovietes (Cherno Baldé) - Parte III: Em Kichinev, Moldávia... Pôr-se em pelota, na inspeção médica perante um mulher?!... Mostrar tudo?!... Subahaanallai!...

23 de fevereiro de 2022 > Guiné 61/74 - P23018: Memórias do Chico no Império dos Sovietes (Cherno Baldé) - Parte II: Casar com uma tubab!?... Hééé Tchernô!!!...Tubab é uma senhora e senhora não é mulher