quarta-feira, 2 de março de 2022

Guiné 61/74 - P23044: Historiografia da presença portuguesa em África (306): "Subsídios para a História de Cabo Verde e Guiné", as partes I e II foram editadas em 1899, o seu autor foi Cristiano José de Senna Barcelos, Capitão-Tenente da Armada (10) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 20 de Abril de 2021:

Queridos amigos,
Sendo facto que se procura dar desenvolvimento ao trabalho produzido por Senna Barcelos, começa agora a ser compreensível, para quem acompanha os sucessivos episódios, a importância historiográfica do mesmo. Este oficial da Marinha foi meticuloso na investigação e retirou da poeira dos artigos documentos de primeira grandeza quanto ao que se passava na Guiné. Temos aqui descritos tumultos em permanência, rebeliões dos próprios militares portugueses, pilhagens, um sobressalto praticamente permanente em torno das praças e presídios; para haver boas relações com a vizinhança eram obrigatórios presentes; o período em análise é de extrema agitação em Portugal, teve obrigatório impacto tanto em Cabo Verde como na Guiné. 

No que a Cabo Verde tange, Senna Barcelos esmiuça depredações, a violência dos assaltos e piratarias, o cortejo das fomes, as manifestações de descontentamento. A Guiné, insista-se, vai minguando, já existe governador do Senegal e a França quer aumentar o seu espaço territorial à custa de Portugal, já que não tem coragem de enfrentar os ingleses que se instalaram no rio Gâmbia; e os ingleses saem da Serra Leoa e querem Bolama e o Rio Grande. 

É na iluminação deste cenário que se pode perceber o comportamento excecional de Honório Pereira Barreto, o pai fundador da Guiné-Bissau que os descendentes teimam em valorizar o papel que ele desempenhou na defesa e consolidação de um território que passou de colónia a estado independente. Se a História da Guiné escrita durante o período da luta armada se podia dar ao luxo de praticar o panfleto, um Estado consolidado há meio século tem o imperativo de tratar condignamente os criadores da sua Pátria, colocando-os, de acordo com a história das mentalidades, no lugar certo para a interpretação dos factos e não para o uso e abuso da interpretação à custa de uma mera conjuntura.

Um abraço do
Mário


Um oficial da Armada que muito contribuiu para fazer a primeira História da Guiné (10)

Mário Beja Santos

São três volumes, sempre intitulados "Subsídios para a História de Cabo Verde e Guiné", as partes I e II foram editadas em 1899, a parte III, de que ainda nos ocupamos, em 1905; o seu autor foi Cristiano José de Senna Barcelos, Capitão-Tenente da Armada, oficial distinto, condecorado com a Torre e Espada pelos seus feitos brilhantes no período de sufocação de sublevações em 1907-1908, no leste da Guiné. O levantamento exaustivo a que procede Senna Barcelos é de relevante importância e não há nenhum excesso em dizer que em muito contribuiu para abrir portas à historiografia guineense.

É um período fértil de acontecimentos, sempre as pressões a norte no Casamansa e a Sul de Bolama e Rio Grande de Bolola. Em fevereiro de 1854, era governador-interino Honório Pereira Barreto, foi feita uma convenção com os régulos de Bolor que cederam à coroa o território de Egual. Revela-se verdadeiramente apaixonante as cópias de correspondência trocadas entre o governador da Guiné com o delegado do governador francês no Selho, tudo por causa da questão do presídio de Ziguinchor, esta documentação foi enviada pelo governador-geral António Maria Barreiros Arrobas ao Ministro da Marinha. O ministro respondeu pedindo que em termos de cortesia o governador-geral se dirigisse ao governador do Senegal, pedindo-lhe que ordenasse ao delegado de Selho que não pusesse impedimento à navegação portuguesa no Casamansa e que houvesse de ambas as partes uma conduta que era devida entre nações amigas. Mas o delegado francês revelava-se imparável, enviou uma nota ao comandante de Ziguinchor protestando contra o facto de três canoas portuguesas que chegaram a Selho subissem o rio com destino a Pacau, onde os gentios assassinaram muitos franceses que ali foram negociar, roubando uma parte das mercadorias.

As intenções britânicas em Bolama exploravam conflitos com os povos dos Bijagós. Recorde-se que Honório Pereira Barreto tinha feito tratado com os régulos dos Bijagós e fizera-se o reconhecimento da soberania portuguesa na margem esquerda do Rio Grande de Bolola. É nesse contexto que Honório Pereira Barreto envia um imp
ortante relatório sobre Bolama ao governador-geral, com data de 7 de maio de 1856:

“Em janeiro deste ano soube com mágoa que estrangeiros combinados com portugueses indignos deste nome intentaram concorrer para que nas dependências de Canhambaque se estabelecesse uma feitoria estrangeira que servisse de canal para o contrabando que devia ser introduzido nesta praça (Bissau). No dia 18 às 7 horas da noite larguei para o Orango cujo rei tem uma decidida influência sobre todas as outras ilhas Bijagós; são todas independentes, mas sempre consultam o rei de Orango em casos graves. Cheguei a Orango no dia 20 ao meio-dia, fui recebido com uma salva de artilharia. É este o único que por toda a Guiné merece o nome de rei; apenas desembarcados fomos em direitura a sua casa, que é coberta de telha, conquanto seja construída de barro e feita à maneira das outras. A sua figura denota que é um monstro engolfado em todos os meios que produzem uma crassa ignorância, e um poder absoluto e tirânico. Ele é o único senhor das pessoas e bens dos seus súbditos; nas suas expressões se vê que ele tem consciência do brutal poder que exerce, julga-se igual a Deus, conquanto falando ironicamente se pinte a si mesmo como um pobre e humilde, quando tudo nele demonstra uma selvagem vaidade”.

Senna Barcelos não deixa de observar que o resgate dos escravos decretado em 1854 só se efetivou em 1857, com consequências de toda a ordem. O comércio na Guiné chegou a uma tal decadência que o governador Barreto chegou à atenção do governador-geral em 21 de março de 1857, propondo-lhe medidas para salvar a colónia. 

E o autor observa que “muito trabalhava aquele governador, empregando a sua influência e os seus meios, para evitar ali a crise comercial que se manifestava gravemente devido à barateza dos géneros estrangeiros que eram vendidos aos gentios por um preço inferior aos que podiam vender os negociantes portugueses. O passivo de Bissau era grande e as casas comerciais só giravam com créditos e não com fundos, e os estrangeiros que eram os maiores credores, e os únicos que vendiam a crédito, resolveram cessá-los, limitando-se a vender à vista. Encaminhando os estrangeiros um negócio para o Rio Nuno, Selho e Gâmbia, e retirado o crédito aos portugueses, passaram os gentios a permutar os seus géneros com aqueles. Era de esperar esta crise com o fim da escravatura”.

Barreto tornara-se na figura mais influente na Senegâmbia Portuguesa, de tal modo que em 7 de junho de 1857 foi dirigida uma representação dos moradores de Bissau ao governo pedindo a recondução dele naquele governo, por ser Barreto desinteressado e probo, tendo sacrificado os interesses da sua casa em Cacheu às necessidades do país. O ministro deferiu o requerimento de Honório que solicitava a demissão. O governador-geral propôs para que a Guiné se constituísse como governo independente uma vez que se estabelecessem comunicações entre Bissau, Goré ou Gâmbia. E é nesta atmosfera que se reacende a questão de Bolama. O ministro de Portugal em Londres, conde de Lavradio, apresentou a Lord Malmesbury um enérgico protesto em janeiro de 1859, este responde-lhe sustentando que a ilha de Bolama pertence à Grã-Bretanha. Um ano depois o então governador Zagalo escreve ao governador-geral dizendo que a presença inglesa em Bolama aumentara e recebera do governador da Gâmbia três impressos que este chamava tratados e pelos quais declarava pertencer à Grã-Bretanha não só a ilha de Bolama, mas outros lugares. Ele responde-lhe refutando a argumentação britânica e observa:

“Além das circunstâncias apontadas, ainda hoje existem, tanto em Bolola, como em Guinala e Buba, grandes vestígios dos antigos estabelecimentos portugueses, e atualmente existem em todo o Rio Grande, até Bolola e Guinala, trinta feitorias portuguesas, e apenas uma só feitoria pertencente a David Lourenço, que se diz inglês, não obstante ter nascido escravo no Rio Pongo, território português”.

Quando não é a questão de Bolama e de Bolola voltamos à questão do Casamansa. Há informações que os franceses pretendem atacar os Felupes de Varela. As autoridades portuguesas jogam na antecipação. Em 19 de abril de 1861, Salakir, regente de Varela, faz a declaração da solene sessão e reconhecimento da Coroa de Portugal como possuidora do território. Nesse mesmo dia, o governador da Guiné, António Cândido Zagalo, participa ao comandante de Goré e ao governador do Senegal a ocupação de Varela. Zagalo viaja para Ziguinchor e descobre as péssimas condições em que se vive no presídio, com armamento rudimentar. Os presídios de Farim e Ziguinchor eram defendidos por uma estacada e por baterias de barro, que se cobriam de palha. No presídio havia dois bairros: o do Poilãozinho e o de Vila Fria e para ambos havia um juiz do povo. Nomeou o governador dois destes juízes subordinados ao delegado administrativo. O comércio em Ziguinchor estava representado por duas casas francesas: o comércio em todo o rio, era quase só feito por franceses e em Ziguinchor o mais importante era o do sal. A força militar estava reduzida a dois soldados; Zagalo organizou provisoriamente uma companhia de 2ª linha, na qual se alistaram voluntariamente a maioria dos moradores. De Ziguinchor seguiu para Bissau, onde teve conhecimento pelo encarregado do governo do conflito que houvera entre o presídio de Geba e os Beafadas de Badora. O encarregado do governo fora a Geba para apaziguar uma questão com aqueles gentios; estes prenderam-no e para ser solto teve que satisfazer condições bem onerosas para o presídio e para o governo. Voltemos um pouco atrás para observar o talento e firmeza com que Honório Pereira Barreto respondia às provocações vindas dos representantes franceses.

Quando o delegado francês descreve ao comandante de Ziguinchor, este prontamente reencaminha para Honório Pereira Barreto que lhe responde com frontalidade:

“A mim só é que pertence responder a Vossa Senhoria, pois é da minha exclusiva competência, como governador da Guiné, a direção das relações com as autoridades estrangeiras dos portos vizinhos; e, portanto, rogo a Vossa Senhoria de sempre se dirigir a mim em idênticos casos. Agradeço, como deve, a Vossa Senhoria a bondade que quis ter, segundo diz, de buscar evitar que a canoa de Ziguinchor passasse até Pacau, pelo receio que tinha dos gentios daquele país atacarem a dita canoa, pois os franceses têm a deplorar o assassínio de muitos comerciantes e o saque de muitas mercadorias praticado pelos mesmos gentios. Porém, achando-se o meu governo com força suficiente para se vingar das afrontas e vexames que os gentios desse rio intentarem fazer aos nossos, podemos prescindir do apoio e forças de Vossa Senhoria. Sinto não poder ter a honra de satisfazer ao pedido de Vossa Senhoria sobre manifesto e matrícula para as canoas que forem mercadejar nesse rio, porque havendo os portugueses, verdadeiros descobridores desta costa, sempre feito este comércio, livremente, não é justo que hoje se lhe ponham peias e embaraços, não só inúteis, mas prejudiciais; e eu tenho estrita obrigação de proteger o comércio português. Estou certo da justiça de Vossa Senhoria e da grande nação francesa, sempre generosa, que não haverá abuso da força para impedir a passagem, dessa Feitoria, às canoas portuguesas, porque os franceses passaram em frente de Ziguinchor, para ir fundar este estabelecimento, e, portanto, não pode haver hoje direito de impedir aos portugueses navegar e comerciar por todo esse rio. Permita-me Vossa Senhoria que lhe faça uma simples observação: esse rio não pode de maneira alguma ser considerado, de facto, exclusivamente francês como Vossa Senhoria parece julgar. Não quero entrar na questão de direito porque esse pertence ao gabinete das nossas Nações”.

Veremos adiante como Honório Barreto se manterá incansável na defesa dos interesses portugueses.

(continua)

Mapa histórico da Senegâmbia em 1707
____________

Nota do editor

Último poste da série de 23 DE FEVEREIRO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23020: Historiografia da presença portuguesa em África (305): "Subsídios para a História de Cabo Verde e Guiné", as partes I e II foram editadas em 1899, o seu autor foi Cristiano José de Senna Barcelos, Capitão-Tenente da Armada (9) (Mário Beja Santos)

Sem comentários: