sábado, 31 de maio de 2008

Guiné 63/74 - P2907: A guerra estava militarmente perdida? (12): Vítor Junqueira.


Pombal , 28 de Abril de 2007. No decorrer do nosso IIº Encontro, o Vitor Junqueira, o Luís Graça e o Ten Cor A. Marques Lopes (em 2º plano).

"Num gesto de grande simbolismo e beleza, o Vitor - verdadeira caixinha de surpresas - fez questão de ser condecorado por dois dos seus camaradas de Guiné: o A. Marques Lopes, o mais graduado de todos nós, coronel DFA na reforma, e que foi gravemente ferido em combate na zona leste; e eu, próprio, Luís Graça, na qualidade de fundador e editor do blogue...

A condecoração, sobre a qual ele foi lacónico, teria a ver com a sua brilhante folha de serviços como militar, ou seja, como oficial miliciano. Foi-lhe atribuído, segundo percebi, pelo Chefe do Estado Maior do Exército e era para lhe ser entregue no 10 de Junho de 1974, não fora o conflito com outra data, o 25 de Abril de 1974, que veio mudar o curso dos acontecimentos.A cerimónia acabou por ser adiada trinta e três anos... Simbolicamente, a medalha por bons serviços foi-lhe entregue no dia 28 de Abril de 2007, por dois camaradas seus, na sua terra, na terra que ele muito ama... Um gesto bonito num dia bonito, em que realizámos, mais uma vez, o sentido da palavra camarada... Estes fotos, mandou-mas o Xico Allen. Estavam à espera de uma boa oportunidade para aparecerem no blogue (que nem sempre é do nosso contentamento)... Vitor, sei que as vai pôr no teu álbum, com muito orgulho. Obrigado, Xico, pelo teu gesto.


Luís Graça.
Fotos: © Xico Allen (2007). Direitos reservados.

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Mensagem do Vítor Junqueira, de 28 de Maio

Amigos Luís Graça, Carlos Vinhal e Virgínio Briote,


Espero que estejam a passar uma boa noite, caso ainda estejam acordados e ao computador! Se não for esse o caso, então a noite até pode estar a ser excelente ...Mando-vos mais um escrito que gostaria de ver publicado, logo que possível para não se perder o contexto.


Obrigado e um abraço,
Vítor Junqueira

A guerra (na Guiné) estava militarmente perdida?



Cap. I



Um pouco de verdade, um pouco de especulação, um pouco de história ou como se misturam alhos com bugalhos …


I - "Quem vai à guerra dá e leva" (pop.).
Mas atenção, eu não quero bulhas com ninguém! Não desejo controvérsias nem tão pouco contribuir para alimentar uma "boa polémica" (post 2872).

Bem sei que palavra puxa palavra e, quando se contestam teorias enraizadas, há sempre o risco de ferir orgulhos e vaidades. Assim se pode resvalar para uma espécie de guerrilha de pontos de vista, sempre desagradável, senão mesmo nefasta para a saúde. Vejam o que esteve para acontecer ao Galileo! E se não está no meu íntimo fugir a uma galharda discussão, façam-me o favor de acreditar que de momento não estou para aí inclinado. Quanto a outras guerras … depois de eu abraçar e ter sido abraçado por quem me quis limpar o sebo, vou agora pelejar com quem?

À tertúlia, ofereço este (desa) bafo, gizado em tarde chuvosa, a puxar para a melancolia e lanzeirice (não está no dicionário).

Após leitura atenta do último post da autoria do Graça Abreu, dei comigo a assobiar aquela cantiga que todos conhecem:

Eu gosto muito de ouvir cantar a quem aprendeu, se houvera quem me ensinara quem aprendia era eu.

Fiquei a matutar na coisa … se houvera quem me ensinara, quem aprendia era eu! Esclarecer os ignorantes é mandamento cristão. Quem quererá ensinar-me? Mas por amor de Deus, não me mandem estudar! Já vivi o tempo suficiente para saber que burro velho não toma ensino e o papel de que são feitos os livros, aceita o que nele quiserem pôr. E o que poderia eu aprender através de uma certa produção literária e artística, prolixa e bem ao jeito do status quo, daqueles que descobriram o eldorado da guerra colonial para fazer umas massitas, esquecendo-se de convidar para a mesa de trabalho, a verdade e o rigor histórico dos factos como parece demonstrar o post nº2889, da autoria do Mário Dias?

Jornalistas, políticos, diplomatas, embaixadores e outros doutores, há-os sérios e escrupulosos. Sem dúvida. Mas são tantos aqueles que a quatro mil e quinhentos quilómetros de distância continuam a discorrer sobre a guerra e seus horrores, sem nada saberem daquilo que se passava no terreno! Ou sabem, por ouvir dizer, mas a quem? Aos do costume, naturalmente. Porque quem não se apresenta inequivocamente como curador do sistema ou não age como tal, não encontra audiência em lado nenhum. Essa é que é a verdade desde há pelo menos oitenta e dois anos (48+34).

O pobre do ouvinte, leitor ou espectador comum, não tendo parâmetros para avaliar a credibilidade da informação que lhe é oferecida, que em muitos casos não vale o peido de um caracol, está tramado. E lá vai mais um para o rebanho!
Falando de credibilidade, quem não se lembra de um alto responsável doméstico (ou domesticado?), afirmar a pés juntos que tinha visto com os próprios olhos, documentação que comprovava a existência de armas de destruição massiva no Iraque, e que não tinha dúvidas sobre as ligações de Saddam Hussein à Al-Qaeda? Repetia acriticamente, como um papagaio, a argumentação do seu master. Por mera ingenuidade? Quis ou conveio-lhe ser enganado?
E porque hão-de merecer mais crédito aqueles que há perto de quarenta anos se dedicavam em ou a partir de Lisboa, à proveitosa arte da manigância política, do golpe conspirativo, da boataria mesquinha?

Na minha opinião, nem mais nem menos. São peixe da mesma canastra. Para nós, desvalidos peões, torna-se vital exercer sobre estes passarocos apertada vigilância e sobretudo, nunca abdicar do princípio da dúvida sistemática quanto ao que fazem, dizem ou escrevem. Para não voltarmos a ser intrujados.
E já agora, permitam-me os camaradas introduzir aqui um texto recente de Mário Soares, que muitos consideram o pai da democracia portuguesa:

"O tempo passa a correr … Há cinco anos … realizou-se nos Açores a chamada Cimeira da Vergonha, em que … o homem mais poderoso da terra e três primeiros ministros europeus … decidiram unilateralmente, com falsos argumentos, intencionalmente forjados, invadir o Iraque … Porque razão – ou razões – o fizeram? A história está por fazer. Mas será feita … Quanto aos europeus, o que os moveu foi principalmente a subserviência perante o patrão americano e o deslumbramento … Mas para que lhe serviu? Que respondam os mortos no seu silêncio … e os vivos que aí estão para contar, os crimes, os assassinatos, a tortura as destruições, as pilhagens, os atentados aos Direitos Humanos, que se fizeram à sombra da arrogância e da ganância … Talvez um dia – quem sabe? – o Tribunal Penal Internacional, se lembre de os julgar pelo mal que fizeram à Humanidade."

In “cinco anos depois”, textos de Mário Soares, Lisboa, 14 de Março de 2008.

A este resumo acrescento eu um pequeno léxico:

1 – Guantanamo

2 – Abu Grahib

3 – Rendição de prisioneiros

4 – Guerra preventiva

5 – Prisões secretas

6 – Voos secretos

7 – Harsh interrogations

8 – Waterboarding

9 – Eixo do Mal

10 – Danos colaterais

…e é melhor ficar-me por aqui, porque como diz a publicidade os acidentes são reais!

A reflexão do Dr. M. Soares suscita-me outras questões.


Pergunto:

- Quem foram os grandes mentores de Saddam e dos estudantes corânicos?

- Quem armou e guiou a mão do UÇK com o objectivo último de encontrar um pretexto para intervir, arrasar e desmembrar a Jugoslávia?

- Quem bombardeou escolas, pontes, infantários, maternidades, estações de televisão, comboios, colunas de autocarros e tractores apinhados com camponeses em fuga, arraiais, festas de casamento e funerais?

Os aviões e os canhões da gloriosa Nato, claro!

Tem sido assim, já lá vai quase uma década. No Iraque, no Afeganistão, nos Balcãs.
E é a estas bandalheiras dos grandes do mundo, que as forças armadas do Portugal democrático estão a dar cobertura!?
Ou não estarão a sancionar com a sua presença, como quem assina de cruz, alguns dos crimes mais bárbaros e hediondos cometidos contra seres humanos, desde que a humanidade existe? Partem por consciência do dever, apenas, ou porque existe, dizem, um forte estímulo financeiro?

É que já me contaram algo que só pode ser boato: a primeira comissão daria uma boa entrada para um apartamento, a segunda, paga os tarecos e a terceira o automóvel. Será que a tal História de que fala Mário Soares, os vai contemplar também? Tantas dúvidas.

Ou, de outra maneira, o burro sou eu?

E que diferença de tratamento camaradas, relativamente aos ex combatentes do ultramar! Enquanto sobre os expedicionários dos tempos modernos assentam os holofotes encomiantes da comunicação social e as palmadinhas nas costas das altas patentes, alguns (muitos?) dos nossos, os mais vulneráveis, vão tentando sobreviver a todos os tipos de desprezo a que foram votados por quem pode e manda. Para já não falar de campanhas mais ou menos encapotadas, visando a honra e dignidade daqueles que serviram a Pátria nas ex-colónias.
Chegaram a ser olhados com suspeição, quase como um perigo para a estabilidade da democracia.
Perderam os apparatchiks, porque ainda que tarde, a verdade e a justiça sempre prevalecem.

Os ex-combatentes não querem mordomias, apenas exigem ser tratados com o respeito que lhes é devido, inclusive, por aqueles que dizem ter sido seus camaradas de armas. E não me acusem de ser demagogo, porque não tenho estudos para isso!


II - Diz o pagode que quem sabe da tenda é o tendeiro.

O camarada António Graça Abreu, não só sabe da tenda, como parece disposto a ensinar a quem quiser aprender. Não me repugnaria nada reconhecer a outros, uma visão igualmente abrangente e fundamentada da situação militar – capacidade operacional, êxitos no terreno, etc. – das forças em confronto no CTI da Guiné nos já longínquos anos da década de setenta.

Mas, como já disse e até o escrevi neste Blog, dadas as funções que desempenhou nos CAOPs (norte, centro e sul), parece-me razoável considerar o Graça Abreu, um profundo conhecedor nesta matéria.
Não ouso por isso acrescentar ou retirar um ponto que seja ao que escreveu. E também não me parece que entre os Tertulianos venha a perfilar-se alguém com mais autoridade do que ele para se pronunciar sobre factos. Porque em matéria de pressupostos, suposições, conjecturas e arte de adivinhação, não faltam ingenhêros.
Mas se existe por aí alguém com mais bagagem, faça o favor de dar o marcial passo em frente.
No entanto, acho que seria bem mais interessante e certamente esclarecedora, uma apreciação pessoal sobre a tese da guerra militarmente perdida feita pelas centenas de camaradas que compõem este operacionalíssimo Comando Bloggista!

E como na carta de princípios desta comunidade se pode ler "Não deixes que sejam outros a contar por ti, a tua história", torna-se imperativo, acho eu, que todos contribuam com a sua perspectiva para que se faça luz sobre esta matéria, e acima de tudo, que a mesma seja menos monocromática e mais do tipo caleidoscópico.

Se cada um de nós se pronunciar sobre a situação concreta na ZA da respectiva unidade e, existindo no nosso seio elementos representativos da dispersão das forças portuguesas por todo o TO da Guiné, como eu julgo, devemos ter uma visão global do que lá se passava.

Fica aqui o desafio.
Formulo a seguir algumas hipóteses de trabalho, frisando bem que não se trata de nenhum questionário. São meros exemplos das questões que cada um poderá colocar a si próprio.

- É verdade ou não que existiam áreas libertadas, verdadeiros santuários do PAIGC, onde a tropa portuguesa não conseguia entrar?


- Tens conhecimento de alguma aldeia, lugar ou sítio que o PAIGC tenha subtraído militarmente ao controlo das NT?


- Na tua zona, a actuação das forças inimigas indiciava qualquer estratégia de controlo territorial ou era mais do tipo bate-e-foge para a segurança das linhas de fronteira?

- Nas operações em que participaste, a força a que pertencias foi alguma vez obrigada a retirar antes de iniciar, ou sem concluir a missão?

- Nas acções da iniciativa do IN, tipo emboscada, quem retirava e quem explorava o êxito, o adversário ou a tua força?
- Como se manifestava no terreno a (propalada) superioridade armamentista das forças inimigas?


- É verdade que os guerrilheiros se apresentavam de uma maneira geral mais bem treinados e aguerridos do que as NT?

- As flagelações ao teu aquartelamento produziram estragos e perdas humanas importantes do nosso lado (mortos, feridos), ou eram na maioria das vezes aleatórias e inconsequentes?

- Durante a tua comissão houve alguma tentativa do In para tomar de assalto as instalações da tua unidade?

- Ouviste dizer que tenha havido alguma, antes ou depois de teres passado à peluda?
- Tiveste problemas com os reabastecimentos, recolha de lenha, abastecimento de água etc. devido ao aumento da pressão do In sobre o itinerário das colunas?

- No período em que permaneceste no mato, qual é o teu sentimento quanto à situação das NT no terreno: evoluiu para melhor, piorou ou manteve-se inalterada?

III - E para exemplificar, vou abrir estas pacíficas hostilidades relatando o ocorrido na área que foi adjudicada à minha Compª, à qual foi determinada, como a tantas outras, a obrigação de "eliminar ou pelo menos expulsar da sua zona de acção qualquer elemento do IN …etc., etc.", isto é: manter a casa limpa e arrumada.

Trata-se de um modesto testemunho, restrito no espaço (Mansabá, Bironque, Madina Fula, K3 e regiões limítrofes), e limitado no tempo (1970 a 1972).
Fiquem os camaradas descansados que não vou aborrecer-vos com a descrição de operações com nomes exóticos.

Sou um homem de coração mole, não gosto que me falem de mortos e feridos, emboscadas explosões e ferros, comandantes espavoridos aos berros, relatadas ao pormenor, como um jogo de futebol.
Estava então em curso, a reabertura de uma importante via de comunicação que ligava a capital ao norte do Território (e não Província, para que não dê um treco nos mais puristas).


A estrada Mansabá-Farim em Fev. 1971.
Foto de Carlos Vinhal.

Segundo ouvi da boca dos altos responsáveis militares daquela altura com quem tive o privilégio de dialogar, ir de Mansabá a Farim por via terrestre, era coisa que não acontecia havia pelo menos uns cinco anos. E não vale a pena contrariarem-me, porque o que encontrei comprova-o. Da estrada, apenas existiam escassos vestígios, já que a mesma havia sido totalmente engolida pela floresta.

Minada e sob a mira constante das armas do IN que por ali possuía alguns coutos mais ou menos permanentes e certo controlo sobre populações dispersas pelo mato, era impraticável para as nossas FA. A seu lado, corriam os trilhos logísticos que dando seguimento aos carreiros de Sitató e Lamel, permitiam a ligação entre as bases do PAIGC situadas no sul do Senegal e as dos meus vizinhos do Oio e do Morés.

Pois bem, entre Novembro de 1970 e Março de 71, a estrada foi reconstruída, devidamente asfaltada ainda hoje lá está que se pode ver. Nos meses seguintes, a região foi limpa no que se refere a estruturas permanentes do IN, e a circulação rodoviária começou a fazer-se com todo o conforto e segurança entre Bissau e Farim. As populações passaram a deslocar-se sempre que o desejavam …

E a tropa beneficiou também, com uma qualidade de vida quase faustosa, já que as colunas de reabastecimento deixaram de ser problema. Aquilo não era o paraíso mas andava lá perto. (Piada!)
Quanto aos papões do Oio e Morés, só posso dizer-vos que os comandos africanos iam lá sempre que desejável, geralmente apoiados pela nossa tropa mais especializada mas, os "arre-macho" também participavam, chegava para todos. Invariavelmente, o resultado era manga de ronco.
Este vosso amigo passeou-se lá pelas barbas e teve oportunidade de fazer uns trabalhitos com sucesso. E assim foi aumentando o nosso grau de confiança (e segurança …) até ao adeus às armas em Julho de 1972.

Eis a minha história, em tamanho reduzido, da qual cada um extrairá as conclusões que lhe aprouver. Fico a aguardar impacientemente que a vossa chegue na volta do correio. Isto é como nos casamentos, quem quiser falar que o faça agora ou cale-se para sempre! (mais uma laracha)

Cap. II

"A guerra não estava militarmente perdida, a rapaziada é que estava farta daquilo"

Apesar da busca exaustiva a que me entreguei, não consegui identificar o autor destas palavras que li há poucos dias no Blog.

Acho que quando passei os olhos por cima da frase não a valorizei como devia, certamente por achar óbvio o seu significado. Hoje venho reconhecer que são palavras sábias que dizem muito mais do que a semântica pode exprimir. Elas são o retrato a muitos milhões de pixéis de um estado de alma generalizado.

Em "a rapaziada é que estava farta daquilo"… está tudo dito.

Nesta reflexão tão simples e ao mesmo tempo tão profunda, podemos encontrar a resposta à polémica questão de saber para qual dos lados os ventos da guerra sopravam de feição.

E quem era a rapaziada?

1
- Em primeiro lugar, parece-me de elementar justiça citar sem contudo nomear ninguém em particular, muita gente honesta e inteligente que no regime pré-democrático serviu o Pais da forma que pôde e o melhor que soube, e nunca se serviu do regime em proveito próprio como viria a torna-se moda. Alguns ainda hoje estão entre nós, felizmente, prestando relevantes serviços à Nação. Eram gente culta e politicamente bem formada, que foi capaz de antecipar a tomada de consciência colectiva de que descolonizar era preciso. Tinham plena consciência de que perigoso seria continuar a navegar a contra-corrente da História.

Imagino que tenham utilizado toda a sua capacidade de persuasão e ascendente sobre os timoneiros no sentido de os levar a mudar de rumo.

Ora, como é sabido, a teimosia de uns é o desespero de outros e estas pessoas que estavam verdadeiramente na cabeça do boi, e como tal, fartas de levar cornadas dos seus homólogos nas instâncias internacionais, mais não podiam fazer do que limitar os danos.

2
– Os militares do QP. Dissipados os fervores patrióticos dos primeiros anos da guerra do ultramar (ou colonial, como vos aprouver…), alguns já iam na enésima expedição a África; muitos com família a reboque e filhos em idade escolar, saltitavam de comissão em comissão, e o fadário não tinha fim à vista.
A título de exemplo, Manuel Monge já ia na quarta comissão! Estavam fartos! Sinal do mal estar que grassava no seu seio, foi o protesto em Maio de 73 contra o apoio das FA ao governo através do Congresso dos Combatentes realizado no Porto entre os dias 1 e 3 de Junho do mesmo ano.

Fartérrimos ficaram, quando em 13/7/1973 é publicado o D.L. nº 353/73 – que permite aos oficiais do Quadro Especial de Oficiais e outros oficiais oriundos do Quadro de Complemento o acesso ao Quadro Permanente após um curso intensivo de dois semestres lectivos consecutivos na Academia Militar, em condições substancialmente diferentes das que até então regiam esse acesso.
Permite, além disso, rever o posicionamento na escala de antiguidades de oficiais oriundos do Quadro de Complemento já com o curso da Academia Militar e, portanto, oficiais do Quadro Permanente. (Centro de documentação 25 de Abril).

Aí, a malta do QP de origem não gostou nada de ser passada para trás por estes paisanos fardados. E ainda bem, porque este descontentamento irá dar origem à primeira reunião clandestina, realizada a 20/7/1973 em Bissau, embrião do que viria a ser o:Movimento dos Capitães – Movimento surgido em Agosto de 1973 no seio das Forças Armadas e protagonizado pelos oficiais intermédios e subalternos que visava inicialmente a mera satisfação de reivindicações de carácter corporativo.
Em breve se transformou num movimento de clara contestação política que culminou com o derrube do regime em 25 de Abril de 1974. (Wikipédia).
Foi o percursor do MFA, nascido de gestação a termo a 9/7/1973 no Monte Sobral – Alcáçovas e do cortejo de coisas boas (e algumas menos boas) que nos trouxe.

3 – Fartíssimos estavam os oficiais e sargentos milicianos. Oriundos na sua maioria da pequena burguesia nacional (que tinha meios para lhes pagar os estudos), imagine-se o que é que sentiam quando viam o seu nome no edital da senhora câmara ou junta de freguesia a convocá-los para irem batê-las!

Lá estava a indicação da data e local de incorporação, instruções quanto a guias de transporte etc., tudo bem explicadinho. Deixavam para trás um certo dolce far niente próprio da vida académica, o bem-bom da casa paterna ou a alcova da namorada e, os mais afortunados, o carocha ou spitfire, as romagens à Foz ou ao Guincho para assistir ao pôr do sol (e não só …), a frequência de lugares idílicos como Galeto, Portugália, Past. Ceuta e outros de que só ouvi falar quando já era Zé cadete.

Os estudos, na melhor das hipóteses, ficavam adiados, porque a possibilidade de apanhar um balázio e assim terminar precocemente a licenciatura, era bem real.
Note-se que os stocks de pessoal do quadro se encontravam completamente exauridos dado que, das centenas de admissões anuais à Academia Militar, se passou para as poucas dezenas no princípio da década de setenta.

Pelo que, o fardo das operações de combate recaía em grande parte sobre estes militares. Não obstante o esforço que todos fizemos para conservar o pêlo e a pele, o facto é que muitos, "velhas mulas" (mulicianos), fortemente endoutrinados por ideologias de esquerda que floresciam nas escolas como cogumelos, combatiam numa guerra que no fundo não desejavam vencer. Há que reconhecê-lo.

4 – Soldados e cabos, o povo fardado.

De tão fartos que estavam, começaram a dar sinais de congestão! Prova disso, foram as manifestações populares contra "a guerra colonial" ocorridas em Lisboa a 21de Janeiro de 1973.

Vaga após vaga, tinham sido já centenas de milhar os jovens retirados às famílias de que eram o único amparo, alguns casados e com filhos. Imolava-se a economia familiar num país pobre, essencialmente rural, onde uma agricultura atrasada a exigir o labor de muitos braços, se ressentia fortemente.
Partiam para as Áfricas para combater numa guerra que ao fim de 13 anos lhes era completamente alheia, tanto ao coração como à razão.

Se a guerra tem durado mais três ou quatro anos, a Pátria teria assistido à mobilização dos filhos dos veteranos mais antigos.


Não haveria povo que aguentasse por muito mais tempo tal provação, digo eu, em total sintonia com o pensamento de Vasco Gonçalves* quando afirma: "Os militares aperceberam-se que nem eles nem o povo português queriam a continuação da guerra" (O Militante nº 239), mesmo sabendo que "Não há sucesso sem grandes privações", (Sófocles, (496 – 406 aC).

*Força, força companheiro Vasco, nós seremos a muralha de aço…, cantou Carlos Alberto Moniz.


5 - Significa isto que a guerra estava militarmente perdida ou que estaríamos à beira de uma derrota militar, como gostam de apregoar os propagandistas do sistema?

Não, de maneira nenhuma. Eu voto no empate técnico! Reconhecendo contudo, que uma derrota política é sempre muito mais gravosa do que uma derrota militar.

E a derrota política, essa sim, estava em vias de consumar-se, mas aqui em casa, mais precisamente na capital do império, onde um clima de permanente guerrilha conspirativa ao mais alto nível do poder político-militar, as bem orquestradas campanhas de desinformação e contra-informação, a mesquinhês de gente pequena de uma sociedade aburguesada e corporativista, levaram Mário Soares a prever numa prosa que enviou para o "Le Monde" que há "algo de novo em Portugal e que a guerra está em risco de se perder na própria Metrópole".

Ainda que o ouçamos frequentemente defender a tese, derrotista a meu ver, da guerra militarmente perdida. Sobre este tema, conto apresentar no próximo capítulo as minhas alegações finais, se para tal me for dada a oportunidade.

Até lá, cordiais saudações para toda a Tertúlia,

Vitor Junqueira

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Notas:

1. adaptação dos textos da responsabilidada de vb.
2. Artigos relacionados em

28 de Maio > Guiné 63/74 - P2893: A guerra estava militarmente perdida? (10): Que arma era aquela? Órgãos de Estaline? (Paulo Santiago)

27 de Maio de 2008 > Guiné 63/74 - P2890: A guerra estava militarmente perdida? (9): Esclarecimentos sobre estradas e pistas asfaltadas (Antero Santos, 1972/74)

25 de Maio > Guiné 63/74 - P2883: A guerra estava militarmente perdida ? (8): Polémica: Colapso militar ou colapso político? (Beja Santos)

22 de Maio de 2008 > Guiné 63/74 - P2872: A guerra estava militarmente perdida ? (5): Uma boa polémica: Beja Santos e Graça de Abreu

15 de Maio de 2008 > Guiné 63/74 - P2845: A guerra estava militarmente perdida ? (4): Faço jus ao esforço extraordinário dos combatentes portugueses (Joaquim Mexia Alves)

13 de Maio de 2008 > Guiné 73/74 - P2838: A guerra estava militarmente perdida ? (3): Sabia-se em Lisboa o que representaria a entrada em cena dos MiG (Beja Santos)

30 de Abril de 2008 > Guiné 63/74 - P2803: A guerra estava militarmente perdida ? (2): Não, não estava, nós é que estávamos fartos da guerra (António Graça de Abreu)

17 de Abril de 2008 > Guiné 63/74 - P2767: A guerra estava militarmente perdida ? (1): Sobre este tema o António Graça de Abreu pode falar de cátedra (Vitor Junqueira)

Guiné 63/74 - P2906: Estórias de Jorge Picado (3): Cutia, II Parte (Jorge Picado)



Jorge Picado,
ex-Cap Mil,
CCAÇ 2589 e CART 2732,
Guiné 1970/72




1. No dia 24 de Maio de 2008, recebemos esta mensagem do camarada Jorge Picado, com algumas palavras ainda sobre o nosso Encontro Nacional e com a segunda parte do trabalho que ele intitulou como Cutia.

Caro Carlos
Antes de mais quero felicitar-te - e ao Mexia Alves também - pelo excelente trabalho que desenvolveram para que o III Encontro tivesse aquele explendor. Passei um dia magnifico na companhia de tantos camaradas, quase todos desconhecidos para mim, mas que fazem parte da Grande Família Guineense.

Obrigado igualmente por destacares a foto do nosso convívio, que também já tinha arquivado à parte.

Assim que tiver disponibilidade podes crer que darei um salto até Matosinhos.

Seguem então umas palavras sobre a emboscada, que o destino determinou que não ocorresse, pois caso contrário que de certeza não se podia realizar agora esta troca de mensagens.

Jorge Picado
ex-Cap Mil


Guiné> Região do Oio> Destacamento de Cutia, situado na estrada Mansoa/Mansabá.
Foto: © César Dias (2008). Direitos reservados.


Guiné> Região do Oio> Vista aérea do Aquartelamento e Tabanca de Mansabá
Foto: © Carlos Vinhal (2008). Direitos reservados.

2. Destacamento de Cutia (Parte II)
Por Jorge Picado

Tal como prometi, vou tentar alinhavar algumas palavras sobre certos factos que se passaram após o Natal de 1970.
No entanto, antes de prosseguir, quero aqui deixar um esclarecimento.

No III Encontro realizado no passado dia 17 de Maio na Quinta do Paul – gostei muito de ter abraçado ao fim de quase 37 anos três camaradas (*) com quem partilhei 52 dias de estadia nas Terras do Oio entre Mansabá e o Rio Cacheu, bem como conhecer todos os restantes – comentava-se, num dos muitos grupos que se iam formando e entre outras coisas, que era preciso ter cuidado com a precisão com que por vezes se escrevia no blogue, talvez com recurso a meras recordações, o que a esta distância temporal podia ser ficção.

Concordo plenamente. Por isso quero desde já afirmar que ao citar por exemplo, números concretos quanto a horários, faço-o, porque são aqueles que constam das parcas anotações existentes na pequena agenda de bolso que mantenho e foram lá colocados, quando me encontrava no terreno. Estes, dos horários das colunas, tem apenas a precisão de quartos de hora, mas estão lá. Por isso devo citá-los. Aliás, já nas minhas notas sobre a emboscada do Infandre (1), transcrevi precisamente aquilo a que chamei hieróglifos e procurei depois traduzir.

Quando não tenho a certeza, mas apenas uma ideia, deixo sempre expressa a dúvida ou assinalo com (?). Nesses casos, ficarei muito contente que outros confirmem ou corrijam.

Por julgar que de facto só se deve transmitir algo de que se tenha uma relativa certeza, para quem não se documentou enquanto lá esteve, é que, apesar de ter passado por tantas localidades como referi na minha apresentação ao blogue, tenho muito pouco para contar.

Passemos então aos factos sobre Cutia.

Em virtude das decisões tomadas pelo COMCHEFE de prosseguir com a melhoria (alargamento e asfaltamento) do itinerário para Farim, que à data, creio chegava ao Bironque, foi activado o COP 6, reforçados os meios estacionados em Mansabá (com a colocação de Paras, CAV – viaturas Panhard(?) e não sei se mais), além de 1 CCAÇ colocada no K-3 comandada pelo Cap Mil Cupido (natural e ainda residente em Mira, meu conhecido e do mesmo curso do CPC) e ao mesmo tempo reorganizadas as Forças estacionadas em Cutia, razão pela qual eu aí fui colocado.

A missão de que fui incumbido foi a de proteger as colunas de viaturas civis que transportavam o pessoal, maquinaria e todo o tipo de material necessário à execução de tal empreitada, entre Mansoa e Mansabá.

Assentei arraiais neste Destacamento no dia 27 de Novembro de 1970 - uma sexta-feira, mas não 13 – e iniciei a nova actividade sobre rodas logo pelas 7 horas de domingo, 29, indo a Mansabá para a partir daí efectuar a primeira das 24 escoltas a colunas que realizei levando-a a Mansoa. Aqui formei nova coluna com as máquinas e viaturas vindas de Bissau, escoltando-as até ao seu destino em Mansabá, para depois regressar a penates ao princípio da tarde.

Apesar de durante o período que decorreu até 3 de Fevereiro de 1971 (quando a CCAÇ 2589 realizou a última coluna escolta Mansabá-Mansoa 15H) ter deixado algumas vezes o comando do Destacamento ao Alferes mais graduado durante ausências que nunca excederam 2 dias seguidos, apenas falhei uma escolta no dia em que fui ao dentista ao HM de Bissau, tendo regressado a Mansoa já depois da coluna ter saído para Mansabá.

Confesso que ao efectuar esta última coluna foi com grande satisfação que, comungando com a alegria do pessoal da CCAÇ ao despedir-se daquelas paragens – já que iam aguardar em Mansoa a sua retirada para Bissau a fim de serem recambiados para as suas terras de origem –, também eu me despedi de Cutia e Mansabá onde acreditava não mais colocar os pés. Puro engano e ingenuidade deste vosso camarada de Tabanca, que julgava ser possível, só lá porque tinha 1 ano de mato, arranjar uma colocaçãozita em qualquer secretária das muitas existentes em Bissau, mas que pelos vistos se destinavam aos predestinados… Porém isso já são outras estórias…

Nestas colunas muitas vezes também se incorporavam forças da CART 2753 e, excluindo as dores de cabeça – pelo menos para mim – que os condutores civis me davam por não cumprirem as normas de manterem uma certa distância entre eles e nunca perderem a ligação com a viatura que vinha na sua retaguarda, decorreram sem que houvesse qualquer facto digno de nota, com excepção da realizada no dia 28 de Dezembro que era para se realizar em 27.

Quando a 21 de Dezembro realizei a escolta Mansabá-Mansoa 07H – 12H, para levar a coluna onde viajava todo o pessoal das obras que ia passar o Natal a Bissau, logo me foi determinado que no domingo, 27, estaria pela manhã em Mansoa para pegar na coluna de regresso. Devia trazer forças condicentes com o número de viaturas que seria maior que o normal. Assim, quando às 7 horas de 27 já nos encontrávamos sobre rodas prontos a arrancar, fomos surpreendidos pelo operador de serviço às transmissões que aos berros, dada a distância, nos avisa de que o movimento estava cancelado, por ordem de Mansoa. Confirmando via rádio tal facto, sou informado que por nova ordem de Bissau a coluna seria no dia seguinte, devendo apresentar-me em Mansoa às 15 horas.

Cumprindo ordens – para mim e para todo o pessoal foi um domingo de desfrute e ataque às bazucas de cerveja – a 28 lá estava em Mansoa a enquadrar a coluna. Na realidade maior do que o habitual – seriam perto de 20(?), quando o normal rondaria a dúzia – e com viaturas ainda mais velhas, para arrastar mais a progressão.

Desta vez não dispúnhamos de protecção das Panhard, como por vezes acontecia. Na frente coloquei três Unimog, os dois primeiros com pessoal do Pel Caç Nat e o terceiro, onde me colocava com 1 Secção da CCAÇ. Parámos em Cutia para deixar elementos da população e reordenar o combóio.

Seguindo, passámos o carreiro, a zona de estrada desmatada (tinha-o sido logo após 12 de Outubro) e entrámos no concelho de Mansabá, cujas bermas se mantinham com a vegetação natural, isto é, com o capim no auge do seu desenvolvimento, quase na berma.

Por norma fazia estes percursos a maior parte do tempo de pé e costas para a frente de modo a vigiar o atraso das viaturas da retaguarda, dando indicações ao condutor, para afrouxar ou acelerar conforme o comportamento das mesmas.

Eis se não quando sinto a viatura a parar, sem que ordenasse. Viro-me e vejo as outras duas viaturas, lá à frente, paradas e vazias. O pessoal deitado nas bermas ou melhor, numas pequenas valetas. Secou-se-me a boca. O pessoal africano sempre tão descontraído… fora das viaturas? Não tinha havido tiros aos macacos – como noutra ocasião tinham feito e depois saltaram em andamento e tudo para apanhar os feridos e mortos – então porquê?

Salto também para a estrada. Dou ordem para efectuarem a segurança e avisar o resto da coluna para manter o afastamento entre as viaturas (talvez das poucas artes guerreiras que tinha fixado nas aulas de Mafra, além evidentemente das respeitantes à Manutenção Militar). Corro pela berma esquerda para contactar com o furriel da frente. Nem sequer me passava pela cabeça qual a causa por não ouvir tiros, tal o nervosismo que de mim se apoderou!

Chegado à frente e à fala com o furriel fico estupefacto com o que vejo. Uma cratera com o diâmetro da faixa alcatroada impedia-nos o avanço. Uns bons metros mais à frente, outra. Depois, outra (**).

Começo a ficar cada vez mais apreensivo, para não dizer outra coisa. Os camaradas compreendem naturalmente como me quero expressar aos momentos vividos naquela altura. Nem sequer tive a frieza de raciocinar que durante os longos minutos que se passaram, ainda não tinha sido disparado qualquer tiro!!! Só pensava no que estaria para vir… e, afinal, não vinha nem veio nada.

Entro imediatamente em contacto com Mansabá. Transmito-lhe o que se passava. Peço reforços…e até o helicanhão e mantenho-me em contacto permanente com eles.

Entretanto mantinha tudo em guarda e à defesa… não fosse o diabo tecê-las, sem compreender ainda bem o que se passava e com toda a coluna civil nervosa.

Conferenciando com o furriel e um alferes que entretanto se chegou à frente, começámos a serenar, uma vez que o IN não aparecia e decidimos que o Sapador fosse pesquisando o capinzal, para saber da sua viabilidade de passagem apeada de modo a poder-se observar o que estava para a frente, relatando tudo para Mansabá, que já satisfizera os meus pedidos e enviava Panhard e Páras, entre outros.

A estrada mais para a frente descrevia uma ligeira curva para a direita e então, com a progressão apeada, ao mesmo tempo que se fazia avançar as viaturas meio por fora da estrada, contabilizaram-se 5 crateras no total, num percurso de 2 a 3 centenas de metros ou talvez mais…

Verdadeiramente só respirámos de alívio com a chegada dos camaradas de Mansabá e do helicanhão que, depois de bater toda zona envolvente, nos comunicou não ver sinal de presença de IN e regressou a Bissau.

Deixámos então a coluna aos cuidados do pessoal de Mansabá e regressámos a Cutia, eram 18h45m, mas como já tinha aí ordem do meu Comandante para me apresentar em Mansoa, o pessoal teve de fazer mais umas horas extras para lá me colocar.

Tendo relatado verbalmente a ocorrência, dei então conhecimento ao Comandante de que no final da tarde do dia anterior tínhamos escutado – em Cutia –, fortes rebentações relativamente perto, vindas do Norte, que nos alertaram porque julgámos serem de ataque a Mansabá, mas como via rádio nos responderam negativamente e mais ninguém referia qualquer dificuldade, esquecemos o sucedido.

Concluíram que teria estado montada uma emboscada para apanhar a coluna que deveria ter sido efectuada na manhã do dia 27, mas chegado ao fim da tarde sem que tal ocorresse, tiveram de fazer rebentar as minas colocadas na estrada e abortar a emboscada.

Não sei se isto foi comunicado ao COMCHEFE, mas naturalmente que teria sido, só sei que no dia seguinte, 30 de Dezembro, arranquei de madrugada para Cutia às 5h30m indo de seguida efectuar a segurança (próxima?) aos trabalhos de capinação e restauro da estrada até às 15h30m, actividade repetida (segurança à capinação), no dia 2 de Janeiro de 1971 (depois de ter deixado uma coluna em Mansabá) e no dia 3 das 6h30m até às 15 horas.

Uma vez explicados os 5 enormes buracos com cerca de 2 a 2,5m de diâmetro e 60 a 80cm de profundidade, ao longo de 200 a 250m a que o tertuliano Carlos Vinhal se me referiu, não posso terminar sem acrescentar o seguinte:

i) – nos dias que se seguiram à ocorrência, inclusive enquanto se fez a capinação, não me lembro de qualquer reconhecimento efectuado no terreno para verificar rastos da emboscada;

ii) – quando mais tarde, já no CAOP 1 em []Teixeira Pinto, depois de ter contado o sucedido ao meu camarada de quarto, o Cap Art do QP Borges, certo dia aparece-me com um Perintrep ou seria Supintrep(?) acabado de chegar onde vinha esquematizada a emboscada, tal como constava de documentos apreendidos numa posterior operação de assalto ao Morés, efectuada por diversas forças entre as quais a CCMDS e CCPáras, fiquei atordoado. O poder de fogo dessa emboscada era fortíssimo, incluindo posições de Canhão s/r, várias metralhadoras pesadas, além dos vulgares RPG 7 e Kalash. Ainda gostaria de saber onde existirão esses documentos, para alguém confirmar;

iii) – por outro lado e tendo-se realizado 15 escoltas até ao Natal, sem qualquer anormalidade, como é que sabiam que a 16.ª se realizava no dia 27, ainda por cima ao domingo? Como uma emboscada daquela natureza não podia ser montada dum momento para o outro, i.e. a partir por exemplo do momento em que tivessem conhecimento da nossa saída de Cutia – até porque saíamos muitas vezes para ir somente a Mansoa abastecermo-nos – ou do arranque da coluna de Mansoa, como adivinharam que era naquele dia que havia coluna e daquela importância? Não podia ser por mero acaso. Tinham obviamente de ter bons informadores… e certamente em Bissau.

iv) – pela terceira vez – na Guiné – a sorte tinha-me acompanhado, reforçando a crença que se tinha apoderado de mim, de que ao nascer já trazemos todo o percurso de vida inscrito no BI, como se fora uma fita de tempo com todos os passos marcados, ainda que a desconheçamos. Passei a acreditar que a vida está predeterminada e o que tiver e quando acontecer, acontecerá. Para mim, não há volta a dar-lhe, como se costuma dizer;


Parte de Carta Militar com a estrada Cutia-Mansabá, com os pontos A e B assinalados como locais prováveis de montagem da emboscada abortada.

v) – finalmente e à distância de 36 anos procuro localizar no mapa (que anexo) a zona da emboscada, partindo apenas de 3 pressupostos: a designação de Mamboncò e a recordação de que a estrada plana descrevia, do lado Norte das primeiras crateras, uma curva ligeira para a direita. Assim na quadrícula superior esquerda da folha 1/50.000 MANBONCÒ, está traçada a estrada que ia para Mansabá e, depois do limite dos concelhos começava a zona não capinada. Aí deparo-me com duas possíveis localizações, antes da antiga povoação de Mamboncò e que considero como mais prováveis. São essas as posições A e B. Praticamente equidistantes de Cutia e Mansabá (a 6 ou 7 quilómetros) e entre 2 pontões (1 a Sul e outro a Norte logo depois de Mamboncò) onde seria fácil criarem dificuldades aos reforços enviados de ambos os aquartelamentos e muito perto dos locais de refúgio, quer a Oeste (Santambato/Morés) quer a Este (Sara/Canjambari). Inclino-me mais para o ponto B, por ser aquele da zona mais plana, já que o A se encontra entre duas curvas de nível (dos 20 e 30 metros) muito próximas.

Um abraço
Jorge Picado
_______________

Anotações de Carlos Vinhal:

(*) - Jorge Picado refere-se a Vitor Junqueira, ex-Alf Mil da CCAÇ 2753, Inácio Silva, ex-1.º Cabo da CART 2732 que também esteve destacado no COP 6 em funções administrativas e a mim próprio que com o Jorge participei numa perigosa peregrinação a
Fátima, como ele ironicamente sita.

(**) - Da História da Unidade CART 2732, Capítulo II, Fascículo VI Período de 01DEZ70 a 31DEZ70, página 16:
Dia 28 - Encontrados 5 buracos na estrada alcatroada em MAMBONCÓ 3E6.74, feitos por explosivos, com cerca de 2 a 2,5m de diâmetro e 60 a 80cm de profundidade, ao longo de 200 a 250 metros.

Ainda da História da Unidade CART 2732, Capítulo II, Fascículo XVIII Período de 01DEZ71 a 31DEZ71, página 34:
(um ano depois, sensivelmente no mesmo local)

Dia 06 - Pelas 11h15m 1 GCOMB REF 1 SEC+1 SEC/PEL MIL 253, efectuou coluna auto a MANSOA a fim de transportar militares.
No regresso, em MAMBONCÓ 3F2.56, foi emboscado por GR IN estimado em 50 elementos, armados de RPG, granadas de mão, armas automáticas ligeiras e morteiro 82, durante 20 minutos.
O IN instalado a 2 metros da estrada; alguns elementos armados de RPG saltaram à estrada a fim de alvejarem as viaturas.
1 GCOMB do Destacamento de Cutia saiu em socorro imediato. De Mansabá saiu igualmente 1 GCOMB em socorro. NT reagiram pelo fogo de todas as armas pondo o IN em fuga. A Artilharia da MANSABÁ e a FAP apoiaram as tropas emboscadas a pedido das mesmas.
As NT sofreram 1 morto, 11 feridos graves evacuados para Bissau, 9 feridos também evacuados, 8 feridos ligeiros.
1 Unimog 404 destruído e 1 Unimog 411 parcialmente destruído
OBS:-1 dos feridos graves acabou por falecer no HM 241.
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Notas de CV:

(1) - Vd. poste de 3 de Maio de 2008 >
Guiné 63/74 - P2807: Estórias de Jorge Picado (1): A emboscada do Infandre vivida pelo CMDT da CCAÇ 2589 (Jorge Picado)

(2) - Vd primeiro poste da série Cutia, de 24 de Maio de 2008 >
Guiné 63/74 - P2881: Estórias de Jorge Picado (2): Cutia, I Parte (Jorge Picado)

Guiné 63/74 - P2905: Estórias de Guileje (11): A besta do Celestino (José Neto † , CART 1613, 1966/68)

Guiné > Região de Tombali > Guileje > CART 1613 > 1968> Estrada de Guileje > Em primeiro, uma Daimler.

Guiné > Região de Tombali > Guileje > CART 1613 > 1968> O obus 8,8 cm.


Guiné > Região de Tombali > Guileje > CART 1613 > 1968> Aspecto parcial da tabanca.


Fotos: © Luís Graça & Camaradas da Guiné (2007). (Fotos do José Neto † , reeditadas por Albano Costa). Direitos reservados.


Estórias de Guileje (11) (*) > A besta do Celestino (**) por José Neto (Subtítulos: L.G. / Homenagem ao nosso Cap Ref José Neto, que nos deixou há 1 ano) (***)


(i) Quatro obuses 8,8 cm apontados para o corredor da morte

O ano de 1968 entrou com uma novidade. O esforço sobre o corredor de Guileje diminuiu de intensidade e a actividade operacional concentrou-se mais para a zona da fronteira, com a prioridade de manter seguro o itinerário Gadamael Porto – Guileje.

Estavam para chegar as CAÇ 2316 e 2317 que iam acantonar, em condições precárias, no Mejo e em Guileje com vista a qualquer acção em grande que estava no segredo dos Deuses de Bissau.

As colunas de reabastecimento passaram a ser mais frequentes e despejaram toneladas de mantimentos numa zona contígua ao perímetro fortificado que foi desminado e aplanado para o efeito.

Numa destas colunas, o Alferes Michael, que teimava em postar-se bem alto na torre da sua Fox, até já tinha sofrido ferimentos ligeiros, foi atingido com alguma gravidade pelo fogo duma emboscada.

Veio o helicóptero para a evacuação e foi a muito custo que a 2º sargento enfermeira pára-quedista convenceu o Alferes a deitar-se na maca para ir para o hospital. Era um bravo este alferes. Uma semana depois, ainda cheio de pensos, voltou para junto dos seus homens.

Ao mesmo tempo apareceram-nos uns civis e uma secção de Engenharia, comandada por um sargento, com material para abrir um furo hertziano na área do quartel para obtenção da preciosa água potável.

Estes tiveram o azar de apanhar um festival corriqueiro logo à chegada e, após uma semana de perfuração ao ralenti, um olho na máquina e outro na mata, diagnosticaram a impossibilidade de apanhar um qualquer lençol subterrâneo de água que passasse por ali, desmontaram a traquineta e puseram-se a andar para o sossego de Bissau.

Entretanto chegaram as duas companhias, pertencentes ao BCAÇ 2835 e tivemos notícias de que a 5ª Companhia de Comandos (comandada pelo Capitão de Artilharia Comando Gonçalves) tinha sido afecta ao nosso Batalhão e estava pronta a actuar na área de Aldeia Formosa, o que adensava as expectativas do que ia suceder nos próximos tempos.

A chegada dum pelotão de Artilharia de 8,8 cm com quatro bocas de fogo, instaladas com a direcção nor-nordeste, acabou com as dúvidas de que ia haver “porrada de criar bicho”.

(ii) A Op Bola de Fogo e o Celestino em pessoa


E no dia D, fins de Fevereiro [de 1968], desencadeou-se a Operação Bola de Fogo (****). A finalidade desta mega-operação era implantar um aquartelamento em Gandembel, perto da ponte do rio Balana, a ser reconstruída e guarnecida com um destacamento de segurança, sensivelmente a meio caminho entre Guilege e Chamarra.

Aquele local era praticamente o grande portão de entrada do Corredor de Guileje e assim pretendia-se, se não acabar, pelo menos dificultar a penetração do IN no interior sul do território.

A primeira fase consistia em limpar e tornar transitável a picada, havia anos abandonada, que ia do cruzamento de Guileje a Gandembel, ou seja, a continuação do itinerário Cacine – Gadamael – Gandembel e daí para norte até Aldeia Formosa. Esta primeira fase da operação estava a ser comandada, a partir de Guileje, pelo Celestino. [Celestino era o nome com que depreciativamente tratávamos o Ten-Cor Celestino da Cunha Rodrigues, comandante do BART 1896, sediado em Buba, personagem muito sombria da minha memória pois ameaçou-me com cinco punições, nunca concretizadas. Algumas vezes o trato por besta nesta narrativa, com alguma propriedade] (*****).


(iii) Gazela caída em armadilha, rancho melhorado

Foi então que ele me ameaçou pela quinta (e última) vez com uma porrada. Para descomprimir vale a pena contar a cena:

O pessoal combatente tinha saído quase todo e, contando com a besta, estávamos vinte e três militares europeus no quartel. A segurança era feita pelo Pel Caç Nat 51 e Milícias.

Durante a noite anterior tinha sido accionada uma das nossas armadilhas e de manhã deparamos com uma gazela morta no local. Claro que o Álvaro, cabo cozinheiro, se preparou para ser dia de rancho melhorado. Não era todos os dias que nos aparecia a gostosa e suculenta carne fresquinha de gazela.

Como era da praxe, foi anunciar ao Celestino a composição da refeição, neste caso o almoço. Este, fazendo jus à sua fama de bom garfo, disse ao Álvaro para juntar uma lata de chouriço (dois quilos) para refinar a especialidade gastronómica.

Um tanto encavacado o cozinheiro observou que o animal tinha dado vinte e dois quilos de carne limpa o que, para vinte e três comensais, chegava e sobrava.
-Faça o que eu lhe mando! - berrou o Celestino.

De cabeça baixa, o Álvaro retirou-se congeminando o processo de o quarteleiro dos géneros, o soldado Melo, lhe fornecer a lata de chouriço.

O Melo não foi na cantiga. Ele conhecia bem as regras adoptadas para a recuperação dos prejuízos que já descrevi, e chutou a bola para mim.

Tomei a decisão de não se meter chouriço no tacho, mas levar, para os oficiais, um prato com um desses enchidos cortado às rodelas e preparei-me para o temporal que se adivinhava.

(iv) Um segundo-sargento que manda mais do que um tenente-coronel

Quando o Celestino enfiou o guardanapo no colarinho e inspeccionou o manjar, ordenou que o cozinheiro viesse à sua real presença.O Álvaro passou pelo sítio onde eu estava a almoçar e disse-me que o comandante, se calhasse, o ia mandar prender.
-Sossegue. Eu vou consigo.

Antes que o trombone começasse a tocar, eu adiantei-me e disse que toda a responsabilidade era minha. O cabo tinha cumprido uma ordem legítima, salientei.
-Legítima?!!! Então você contraria uma determinação do seu comandante e acha que a sua ordem é legítima?
-É sim, meu comandante. A administração desta companhia é da responsabilidade do nosso Capitão Corvacho e minha. E, como é do conhecimento de V. Exª., nós estamos a arcar com muitos prejuízos na alimentação e não nos podemos dar ao luxo de desprezar uma migalha que seja.

O homem emborcava garfadas e ia rosnando os impropérios do costume. A certa altura, virou-se para o Dr. Oliveira Martins [, o Alf Mil Médico,] e disse-lhe:
-Oh doutor, já viu a tropa que eu estou a comandar? Um reles segundo sargento manda mais que um tenente-coronel!!!

O médico, que também não morria de amores pela besta, abriu a sua resposta contemporizadora com a expressão:
-Bem, meu comandante, eu julgo...
-Você julga? Julga o quê? Você é médico, ou juiz? - interrompeu o Celestino.

Bom. Julga ou cura. Cura ou julga, o fulcro da questão desviou-me para os dois verbos e o médico, que não era pêra doce, aproveitou para lhas cantar, como se costuma dizer, forte e feio.

A porrada ficou pendente, mas o pêndulo às vezes tem caprichos do diabo, como se verá mais adiante (3)
__________

Notas de L.G.:

(*) Vd. último poste desta série > 7 de Abril de 2008 > Guiné 63/74 - P2729: Estórias de Guileje (10): os trânsfugas de Guileje, humilhados e ofendidos (Victor Tavares, CCP 121/BCP 12, 1972/74)

(**) Originalmente publicado como Parte VIII das memórias do primeiro-sargento da Companhia de Artilharia nº 1613 (Guileje, 1967/68), o então 2º Sargento José Afonso da Silva Neto (e na altura, capitão reformado, entretanto falecido em 29 de Maio de 2007).

Vd. poste de 14 de Fevereiro de 2006 > Guiné 63/74 - DXXXIV: Memórias de Guileje (1967/68) (Zé Neto) (8): Gazela com chouriço à moda do Celestino

(***) Vd. poste de 29 de Maio de 2008 > Guiné 63/74 - P2898: Efemérides (8): O Cap Zé Neto deixou-nos há um ano (Carlos Vinhal)

(****) Vd. poste de 16 de Fevereiro de 2006 > Guiné 63/74 - DXLIV: Memórias de Guileje (1967/68) (Zé Neto) (9): a Operação Bola de Fogo

(*****) Vd. poste de 8 de Fevereiro de 2006 > Guiné 63/74 - DVII: Memórias de Guileje (1967/68) (Zé Neto)(6): dos Lordes e das bestas

sexta-feira, 30 de maio de 2008

Guiné 63/74 - P2904: Memória dos lugares (8): Missirá, Cuor, cemitério mandinga: sepultura do guerreiro Quebá Soncó (Sales Moreira / Beja Santos)

Guiné-Bissau >Região de Bafatá > Bambadinca > Regulado do Cuor > Missirá > 2006 > Cemitério mandinga de Missirá, sepultura de Quebá Soncó.


Foto: © Beja Santos (2008). Direitos reservados.


1. Mensagem do Beja Santos;


A fotografia é do tenente-coronel Henrique Jales Moreira, que foi 2º comandante do BART 3873 (penúltima unidade militar em Bambadinca, até ao início de 1974).

É assim que se referencia um túmulo, na Guiné. Bacari Soncó, um dos filhos de Quebá Soncó, primogénito do régulo Malã, indica a sepultura de seu pai, um grande e destemido combatente que ficou gravemente ferido numa incursão a Madina do Cuor, antes de eu chegar a Missirá.

Quebá Soncó apresentava-se como "guerreiro africano da Guiné Portuguesa".


________

Nota de L.G.:

(1) Vd. poste de 24 de Maio de 2008 > Guiné 63/74 - P2880: Memória dos Lugares (6): Missirá, Cuor, região de Bafatá, 2006 (Jales Moreira / Beja Santos)

Guiné 63/74 - P2903: Não venho falar de mim... nem do meu umbigo (Alberto Branquinho) (1): Palavras e expressões do crioulo


1. Mensagem do Alberto Branquinho, que foi alferes miliciano na CART 1689 (1967/69), tendo passado por Fá, Catió, Cabedu, Gandembel e Canquelifá (1).

Com este gesto e esta colaboração, que há que saudar, o nosso camarada Alberto Branquinho, jurista de formação, irmão de um outro Branquinho, o António (que foi Fur Mil, no Pel Caç Nat 63, ao tempo do Jorge Cabral, 1969/71) (2),fica automaticamente ligado à nossa Tabanca Grande. 

Camarada: não querendo falares de ti (nem do teu umbigo), ficas com a liberdade de nos mandar umas fotos tuas para o nosso álbum...E esperaremos conhecer-te pessoalmente num próximo encontro. Até lá, obrigado, pelas tuas eruditas e interessantes reflexões sobre algumas palavras e expressões do crioulo guineense que nós utilizávamos/utilizamos, nem sempre com a devida propriedade e rigor... Espero que alguns dos nossos camaradas e amigos (o Mário Dias, o Pepito, o Leopoldo Amado...), que conhecem e falam bem o crioulo da Guiné-Bissau (mas também os que o arranham, como o Zé Teixeira...), também possam dar o seu contributo... (LG).

Caro Luis Graça:

Proponho-me escrever (sob o título que vai no anexo a este mail) àcerca de assuntos e acontecimentos relacionados com a minha experiência na Guiné, mas nunca sendo eu o centro ou o tema.

Para o primeiro tinha coligido um conjunto de palavras do crioulo guineense. Depois vi que constavam já do léxico que está no blogue, à esquerda. De qualquer modo, é esse o tema que vai junto.

Um abraço
Alberto Branquinho


1. Nova série: Não quero falar de mim... nem do meu umbigo (1) > Palavras e expressões do crioulo da Guiné

por Alberto Branquinho


Decidi respigar da minha memória palavras e expressões do crioulo da Guiné, procurando encontrar a origem ou explicação para elas. Se quanto a algumas a sua origem é óbvia, por ser fácil detectar a palavra de onde provêm, quanto a outras é um mistério, o que as torna interessantes.

O crioulo cabo-verdeano, embora semelhante, é substancialmente diferente e, além disso, difere, também, entre os grupos de ilhas.

Ao confrontar essa lista de palavras e expressões com as do léxico da coluna da esquerda no blogue, verifiquei que, afinal, estavam lá todas. Tenho, no entanto, comentários quanto a algumas delas.

Haverá obra(s) de linguística sobre o crioulo guineense ? Se alguém souber ou desejar, comente e acrescente p.f., porque a mim cá sibe ( como disse Diana Andringa, em jeito de despedida, nas vésperas do último 25 de Abril, depois da projecção de As duas faces da guerra no Malaposta, ao Senhor Roubado).
_________

ASSIM:


a) Abo – você, tu

Tal como quando o próprio se refere a si mesmo diz A mim (eu), também, quando se dirige ao seu interloctor deveria escrever-se A bô, isto é, não só separando o “a” de “bô” como acentuando, com acento circunflexo, o “bô”, visto que o som do “o” é fechado.

E, já agora, uma questão: a palavra não será a adaptação crioula do francês “vous” ?


b) Bianda – comida, arroz...

Qual será a origem desta palavra ?

Temos, do francês, “viande” – carne, mas ao balaio de arroz cozido não era habitual juntar carne, mas sim peixe, peixe seco. As refeições eram tomadas no grupo familiar, sentados nas esteiras, em círculo, fazendo uma mistura em bolinhas, tendo como base o arroz, comidas à mão.

Tenho para mim que, observando a maneira de comer e de apresentar os alimentos, observação acompanhada de um sentimento pejorativo (ia dizer racista ). Os primeiros portugueses terão desighado “tudo aquilo” por vianda – comida para porcos. Ao verem que o “branco” assim a nomeava, terão concluido que “comida” seria designada por “vianda”.


c) Cibe– palmeira...

Sempre ouvi chamar-lhe "cibo” e não “cibe”.

Atenda-se a que o tronco das palmeiras era partido em pedaços e assim utilizados. Em Trás-os-Montes existe a palavra cibo, que vem da palavra latina “cibus,i “, que significa pedaço. Exemplos: “Um cibo de pão”, “um cibo de presunto”.

Será esta a origem ?


d) - não

Exemplos; “ Galinha cá tem”, “ A mim cá sibe”.

Avento uma hipótese – aqui entre nós, em Portugal, quando alguém quer afastar alguém que o importuna com perguntas e mais perguntas, enfadado responde; “ Eu sei cá !“

Quero aproveitar, ao falar da palavra crioula “cá”, falar de outra palavra – “na”- que os periquitos entendiam como ”não”. Pode traduzir-se por “mesmo”. Ex., “A mim na bai”, que, em contraposição “A mim bai”, enfatiza a decisão de “ir”, mesmo contra todas as dificuldades.

Assim, tomou a decisão de ir: “A mim bai.”

Tomou a decisão de ir, mesmo apesar das dificuldades: “A mim na bai”.


e) Djubi – olha !

É minha opinião que a palavra “djubi”, como vocativo, poderá ser traduzida por "Olha!", mas só quando dirigida a um rapaz, pois sempre entendi que é a palavra do crioulo correspondente a "jovem".

f) Goss-goss - depressa

Tenho pensado muitas vezes sobre a origem desta expressão. Será a assimilação pelo crioulo do som que se faz, entre dentes, ao atiçar os cães, incentivando-os a correr – guesse, guesse, guesse... ?

Um exemplo engraçado que ouvi da utilização da expressão: “ Alfero, a mim bai na goss-goss, corpo todo stá mojado, bala num entra “.


g) Macaréu – vaga impetuosa...

Não é, propriamente, uma palavra crioula. Em Portugal não há macaréu com aquela força. Na Guiné tem aquela impetuosidade devido, também, à ausência de relevo e é a
causa da salinidade dos rios até ao interior do País.

Havia, nos princípios do século XX, um fenómeno inverso no Rio Douro, quando não tinha barragens (movimentos brutais de água de montante para juzante em épocas de chuva e degelo) – a rebofa. Seria um movimento de águas fundamental para provocar o final de um outro macar...éu que nunca mais acaba.

No Brasil chamam-lhe pororoca.

h) Manga de ronco – sucesso militar

Traduzir Misti – querer ou manga di ronco por sucesso militar é muito redutivo. Ronco é todo o acontecimento, atitude, postura, efeito, que, pela sua grandeza e excepcionalidade, se torna grandemente apreciado e aplaudido. Exemplos: as mulheres vestem os seus trajes mais coloridos e garridos, uma festa de estrondo, a chegada ou a passagem de um conjunto de peças de artilharia, a marcha de uma grande quantidade de tropas acompanhadas de fanfarra, etc..

A propósito – Qual será a razão da expressão "manga de" , transmitindo a ideia de grande quantidade de qualquer coisa ou seja muito/a ? Exemplos: ”manga di patacão”, “manga di pessoal”, “manga di porada”. Será que a ideia de muito, traduzida em “manga de”, vem da associação ao número de colheitas que os mangueiros (- mangas) têm em cada por ano ? Assim, “manga de” seria tal como... a quantidade de mangas que nós temos.

i) Misti - querer...

“Misti” ou “misst” ? Parece-me, pelo som que recordo, que a segunda grafia será mais correcta.

Gostaria saber qual a proveniência desta simpática palavra.


j) Partir – dar

A sabedoria é grande. Habitualmente quem dá não dá tudo, dá parte e, muitas vezes, o acto de dar é precedido do acto de partir, arrancar áquilo que temos o pedaço que vamos dar.


l) Sancu – macaco

Peço desculpa por corrigir. Da minha experiência, a grafia da palavra deve ser “sanjiu”, em que o “j” é pronunciado como em “bajuda” (em crioulo). E não tenho dúvidas, neste caso, porque a associei imediatamente a “singe”, macaco em francês.

m) Suma – como, igual

“Suma” – semelhante.

Ser a corruptela/contracção de semelhante é difícl de imaginar e muito menos de aceitar. Suma em Português nada tem a ver com a ideia que a palavra transmite em crioulo guineense.

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Termino como já atrás escrevi – comentem e acrescentem p.f., porque esta é uma matéria muito interessante.

Alberto Branquinho

ex-Alf Mil Op Esp
(sem fita e, como então, sem pena da dita).

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Notas dos editores:

(1) Vd. postes de:

28 de Março de 2008 > Guiné 63/74 - P2692: Construtores de Gandembel / Balana (3): Nunca falei em protagonismo pessoal, mas sim da CART 1689 (Alberto Branquinho)

26 de Março de 2008 > Guiné 63/74 - P2688: Construtores de Gandembel/Balana (1): Op Bola de Bogo, em que participou a CART 1689, a engenharia e outros (Alberto Branquinho)

19 de Fevereiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1535: Subsídios para a história da CART 1689, a que pertencia o Belmiro dos Santos João (Vitor Condeço)



(2) Vd. poste de 6 de Agosto de 2007 > Guiné 63/74 - P2033: In Memoriam (2): O saudoso Amaral da horta e dos presuntos de Missirá (Jorge Cabral / António Branquinho)

Guiné 63/74 - P2902: Operação Macaréu à Vista - Parte II (Beja Santos) (33): A correspondência epistolar na véspera do meu casamento

Angola > Luanda > Abril de 1970 > "O meu primo José Augusto Gândara de Oliveira, um dos homens mais generosos que conheci, advogado brilhante em Luanda, angolano como a minha Mãe, enviou-me um outro tipo de aerograma, uma edição que não tinha nada a ver com o Movimento Nacional Feminino. Pedi ao José Augusto para receber o Comandante Teixeira da Mota, então colocado no Comando Naval. Recebi muita e imprevista ternura epistolar, quando me casei".


Portugal > Açores > São Miguel > 1967 > "Muitas saudades dos soldados açoreanos! Foi este o pelotão que me caíu na rifa, entre Outubro e Dezembro de 1967, nos Arrifes, ilha de S.Miguel. Eram predominantemente micaelenses, mas havia gente de mais 4 ilhas. Ajudaram-me a preparar a festa de Natal, com satisfação andei, na companhia da minha amiga Cremilde Tapia, a levar lembranças a suas casas, tudo coisas que angariei através dos familiares e amigos, em Lisboa".


Portugal > Açores > S. Miguel "Os meus amigos de Arrifes, 1967-1968. Estes meninos, mal me apanhavam de oficial de dia no BII18, S.Miguel (mais propriamente nos Arrifes), apareciam a contar com as sobras do rancho. Há 40 anos atrás, havia muita provação nos Açores, os soldados gostavam da vida de quartel pois comia-se carne ou peixe todos os dias. O menino da esquerda chamava-se Gabriel, no dia de Natal teve roupa nova. Como eu gostava de os rever!"


Fotos (e legendas): © Beja Santos (2008). Direitos reservados.

Texto do Beja Santos (ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70) (1), enviado em 29de Fevereiro de 2008:


Luís, As ilustrações já seguiram. Imagina tu que num dos livros que consultei na Sociedade de Geografia de Lisboa encontrei uma fotografia do régulo Abdul Indjai, dilecto amigo de Teixeira Pinto, régulo do Oio, e que mais tarde caiu em desgraça. É uma figura enigmática, tem este chamariz de procurar desvendar o segredo da sua queda: traição? cabala organizada pelos invejosos? excesso da administração que teve medo da sua popularidade? É palpitante andar à procura da verdade. Estamos a cerca de vinte episódios de concluir este livro, vê tu. Eu ainda não acredito que isto está a acontecer, um abraço do Mário.


Operação Macaréu à Vsta -Parte II Episódio XXXIII > CARTAS DE UM MILITAR DE ALÉM-MAR EM ÁFRICA PARA AQUÉM EM PORTUGAL (4) E OUTRAS PARAGENS EM ÁFRICA
por Beja Santos (*)


(1) Para Comandante Avelino Teixeira da Mota

Senhor Comandante e meu querido amigo,

Parto amanhã para Bissau, onde casarei no próximo dia 16. Pode imaginar a felicidade que estou a viver. Participei em várias operações, de Fevereiro a Abril, nos últimos dias de Março regressei à zona mais ocidental do Cuor, tanto quanto sei é a primeira vez que tropas não especiais entram em Belel desde que há guerra, e a destroem. Foi um sacrifício tremendo, não sei se alguma vez me vou perdoar ter-me esquecido, durante os preparativos da operação, de ter levado carregadores com jerricans de água. O mal está feito, regressámos com dois feridos ligeiros e muita gente febril e com insolações.

Imagine que uma professora em Bambadinca me tem facilitado documentação interessantíssima e que bem gostaria de um dia poder divulgar, para um melhor conhecimento sobre as gentes da Guiné. Encontrei um relato de um seu camarada da Armada, Frederico Pinheiro Chagas, publicado nos Anais do Club Militar Naval, em 1909, sobre Infali Soncó. Penso que Sambel Nhanta é hoje Sansão (está abandonada, como sabe, fui lá visitar o túmulo de Infali Soncó) e Gã Sapateiro é Caranquecunda. A propósito, o Pinheiro Chagas fala em Ponta Joaquim da Costa, do outro lado do Xime, já a caminho de Bambadinca, não será Mato de Cão?

Gostei igualmente de ler um artigo do Rogado Quintino sobre os povos da Guiné, veio num Boletim Cultural aqui da Guiné, de 1967. Repertoriei cobras, espécies aladas, aves e mamíferos, tenho tido a preocupação de pedir a toda a gente a confirmação destes nomes, asseguro-lhe que é a primeira vez que oiço falar no papa-figos dourado e na cabra cinzenta. Um dos meus caçadores, Cibo Indjai, falava-me no sim-sim, uma espécie de porco selvagem que ele trazia para Missirá, o Rogado Quintino também fala nele.

A propósito de madeiras, venho pedir a sua ajuda sobre o seguinte: encontrei referências a ébano, bissilão, pau-sangue, pau-carvão, pau-conta, maceta, poilão, pau-bicho e zimbrão ou goma arábica. Ora ninguém conhece o que é o zimbrão. Não pode adiantar mais pormenores? Lembra-se de me ter escrito um aerograma a propósito da fundação de Bucol, no regulado de Joladu, e de me ter falado que estava a escrever um artigo sobre os sônôs?

Finalmente encontrei um texto, trata-se do artigo “Usos e costumes jurídicos dos mandingas”, por Artur Augusto da Silva, foi publicado no Boletim Cultural, também em 1967. Leio em determinada altura: “Soninqués, beafadas e mandingas tinham uma cultura específica, caso dos sônôs, hastes de ferro com cerca de 1,2 metros de altura com vários braços laterais terminando em esculturas de bronze, geralmente pequenas cabeças humanas”. Se o seu trabalho sobre os sônôs já estiver publicado, envie-me, por favor.

Já que estou em maré de pedidos, ainda a propósito de madeiras, gostava de saber se há literatura sobre o uso das madeiras na Guiné, por exemplo no madeiramento das casas, a madeira que é usada nas esculturas ou na construção das canoas, peças caseiras, etc. No trabalho do António Carreira sobre os mandingas da Guiné Portuguesa, ele fala nos artífices mandingas e fala concretamente nos ferreiros, sapateiros, alfaiates, ourives, tintureiros e tecelões. Conheci um ourives em Bafatá onde comprei lindas peças como prenda de casamento para a Cristina. Esta tradição de ourivesaria é uma constante da cultura mandinga?

Estou consciente do abuso dos meus pedidos. Deixo para o fim uma notícia que provavelmente ainda não lhe foi dada pelas suas fontes de informação daqui. Consta que o comandante-chefe mandou suspender temporariamente toda a actividade operacional, estão em curso negociações para se chegar a um processo de paz. A mim a notícia surpreende-me pois estive num patrulhamento ofensivo no Poidom de onde voltei no passado dia 10. É provável que em Bissau haja informações mais consistentes, depois escrevo-lhe. Receba a gratidão deste seu jovem amigo que tem sido contemplado por inúmeras manifestações da sua generosidade.

(2) Para Ângela Carlota Gonçalves Beja

Querida Mãezinha,

Tem sido um tempo muito duro, foi um mês com intensa actividade operacional, muitas deslocações e as noites que passo na tal ponte de Udunduma são um perfeito inferno. Amanhã parto para Bissau, a Cristina chega a 15, iremos fazer compras juntos, caso das alianças, tenho que tratar do fotógrafo e de alguma roupa, juntei dinheiro para pagar a boda, na noite de 16 haverá um jantar para o qual já convidei os nossos padrinhos e amigos. Penso que me vou emocionar muito, participarão na cerimónia todos aqueles que me têm ajudado em Bissau, alguns dos meus soldados e até camaradas de Bambadinca.

A missão católica é muito reduzida, creio que os católicos na Guiné não passam de 2 a 3 por cento, são missões de franciscanos e de padres italianos muito ligados à educação e ao apoio aos leprosos. Vou pedir acompanhamento com música de Bach, mas é um assunto que ainda quero conversar com a Cristina. Ficaremos cerca de dez dias em Bissau e depois eu tenho de ser hospitalizado, faz parte do acordo com o comandante de Bambadinca. Não gosto mesmo nada deste acordo, ter que ser internado na neuropsiquiatria, ainda resmunguei, o comandante perguntou-me seu eu tinha alternativa, é evidente que eu não tinha nenhuma.

Depois volto para o comando do meu pelotão, prevê-se que de fins de Maio até Julho ou Agosto, quando terminará a minha comissão, eu ficarei a colaborar diariamente nos patrulhamentos de uma estrada que está a ser alcatroada entre o Xime e Bambadinca, é uma solução que irá permitir que as tropas e o armamento, bem como as mercadorias e as matérias primas não afluam todos ao o porto de Bambadinca, que começa a estar muito saturado. A Cristina regressa a Lisboa em Maio, irá procurar casa e mobilá-la. Entretanto, concluirá os seus estudos, eu estou ansioso de recomeçar os meus mas sei muito bem que antes de mais irei decidir o meu rumo profissional.

Obrigado por ter ido aos funerais do Carlos Sampaio e ter consolado a sua mãe. Sei que foi de bengala e muito mal das suas pernas. Rezo para que tenha alivio das suas dores. O nosso primo José Augusto enviou-me felicitações pelo casamento, virá breve a Lisboa e vai visitá-la, ele é profundamente seu amigo.

Agora que a minha vida vai mudar, agora que se abrem novos sonhos e promessas com o meu casamento, não me canso de agradecer a Deus todo o bem que me fez, os princípios que me inculcou, preparou-me para tarefas difíceis e estou absolutamente certo que não a desapontei. Em breve, telefono-lhe de Bissau e dentro de meses vou ter a enorme alegria de a beijar e abraçar. Tive muita sorte na vida, a começar pela mãe que Deus me deu. Despeço-me com muita saudade e não se esqueça que eu tenho o coração em festa.

Carta, datada de lisboa, 4 de Abril de 1970 > "O Eduardo é o Amigo mais antigo, começámos a relacionarmo-nos aí pelos 11 anos, já lá vão mais de 50. Nunca me escrevera, eis que me envia as felicitações, com que entusiasmo e afecto. Carta inesquecível, que tão bem me fez naquele tempo"... A carta começava assim: "Caro Mário: Quero em primerio começar por felicitar-te pelo teu casamento com a Cristina: não há dúvida que o Amor é qualquer coisa que vem dar significado à Vida, por mais 'racionalistas' que às vezes as pessoas pretendam ser"...


Fotos (e legendas): © Beja Santos (2008). Direitos reservados.

(3) Para Cristina Allen

Meu adorado Amor,

É claro que só lerás esta carta quando regressares a Lisboa. Não podes imaginar o contentamento das mensagens que recebo. É o Eduardo Canto e Castro a falar de uma amizade que começou quando tínhamos onze anos e que nos deseja as maiores felicidades. É o José Augusto Gândara de Oliveira, o meu querido primo em Luanda que nos felicita e comunica que aguarda a visita do Teixeira da Mota, agora colocado no Comando Naval de Angola. São mensagens risonhas, portadoras de optimismo.

Quero que saibas que vou muito confiante para Bissau, que iremos fazer compras e preparar a nossa cerimónia. Quero igualmente que saibas que não encontrei alternativa a partir para Bissau com guias para a consulta externa de neuropsiquiatria e oftalmologia, ao princípio barafustei, achei indecoroso ir tratar de problemas inexistentes, agora estou resignado, sempre são mais uns dias em que te vejo, tu vais visitar-me ao hospital, espero que não seja acabrunhante.

Termino esta cartinha dizendo-te aquilo que sinto: até amanhã, meu querido amor. Cuida de ti é bom que estejas feliz como eu me sinto neste momento, é bom que saibas que te amo tanto e que te quero oferecer uma doce companhia.

Cap do romance de A. Moravia, O Desprezo. Editora Ulisseia, s/data, tradução de M.Teresa de Barros Brito, prefácio de Pedro de Moura e Sá, sem indicação de autor da capa. Foi o primeiro livro que li de Moravia, trouxe-me a novidade do ambiente italiano do após-guerra,recusa do neo-realismo,uma crueza e uma recusa da narrativa fácil, Moravia era cultíssimo e não tinha vergonha. O Desprezo centra-se numa ruptura dilacerante,é uma evocação serena e dolorosa que espelha a solidão do homem contemporâneo.O romance impressionou-me,marcou-me até hoje,seja a qualidade litérária seja a temática do casal nuclear,,nada lera de semelhante até então.
Fotos (e legendas): ©
Beja Santos (2008). Direitos reservados.

(4) Para Ruy Cinatti

Ruy, dear Father,

Recebi o disco com a música do Aaron Copland, adorei sobretudo Rodeo, mas gostei também muito de El Salón México, a sinfonia do Utah é muito bem dirigida pelo Maurice Abravanel. Muito obrigado pela surpresa, como igualmente lhe agradeço “O desprezo” do Alberto Moravia.

Como é diferente ler um escritor sobre o qual já ouvi referências depreciativas chamando-lhe amoral ou materialista. Moravia é cultíssimo, já sabia que estudara encenação e fizera cinema, ele trabalha muito bem estes caracteres, tal como a cultura clássica a propósito da Odisseia de Homero. O que me maravilhou foi a escrita, uma evocação serena e melancólica de um marido desprezado e que nunca entendeu o afastamento da mulher. Moravia é magistral na construção de um enredo possível numa sociedade desenvolvida em que o casal já não presta constas nem à sociedade e dispõe de vínculo precário, sempre ameaçado. Temos Ricardo, Emília e Battista, um falso triângulo amoroso, num dado momento veio a revelação do desamor, perfila-se uma relação vazia que só é salva porque Ricardo é dominado pela profissão e Emília estabelece consigo uma dissolução doce. Desculpe estar a escrever o que para si é obvio, estou rendido à escrita de Moravia, ao seu talento, ao enunciado e desenvolvimento de caracteres. É um falso livro de memórias, um grande romance.

Não se admire se lhe telefonar de Bissau, caso a 16 e penso que lá estarei três semanas. Nem coragem tenho para lhe contar que para casar aceitei baixar à neuropsiquiatria, ainda me arrepio cada vez que penso no assunto. Vivi um período intenso no plano operacional, o resto é penar naquele posto avançado que dá pelo nome de ponte de Udunduma. A novidade é que fizemos reparações na ponte e que passámos a picar até à povoação mais próxima, que se chama Amedalai, há rumores que o PAIGC decidiu minar a estrada. As noites são um inferno, nem ler posso, não pode haver iluminação para não sermos avistados, caso o inimigo pretenda flagelar-nos.

Não sei o que será o nosso futuro nos próximos meses, estarei cá pelo menos até fins de Julho ou princípios de Agosto. Muito obrigado por ter levado os meus soldados ao Cais do Sodré, o Alcino escreveu-me e contou-me o jantar que lhes ofereceu. Suspiro por conversar consigo em breve, em Bissau vou escolher uma escultura para lhe levar. Até breve, pois, receba todo o reconhecimento pelo bem que me tem estado a fazer .

(5) Para José Luís Botelho de Melo

Meu estimado amigo,

É para mim um desconforto voltar a Bissau e saber que não o vou ver. Habituei-me à sua companhia, a ouvi-lo falar dos feridos que trata, foi graças a si que pude conversar sobre a minha experiência em São Miguel. Adorei aquela natureza, tenho muito orgulho nas amizades que fiz, escrevo regularmente a um dos meus soldados que está agora em Moçambique. Venho, cheio de entusiasmo, informá-lo que caso no dia 16 e conto visitar a nossa ilha muito em breve. Acima de tudo, escrevo-lhe porque estou muito feliz e desejo que o regresso à sua vida familiar e profissional esteja a decorrer sem sobressaltos. Ou talvez o mais importante seja dizer-lhe que gosto muito da sua amizade e não esqueço o bem que me fez. Até São Miguel e aqui vai toda a minha estima.


Capa de O Túmulo de Prata, de Frank Grube. Colecção Vampiro nº98,capa de Cândido da Costa Pinto, tradução de A. Maldonado Rodrigues.

Estão permanentemente em cena Johnny Fletcher e Sam Cragg, uma dupla espantosa da Grande Depressão dos EUA: pelintras mas ardilosos, um inteligente, outro latagão,vendendo livros para adquirir musculatura, safando-se umas vezes com expedientes, outras vezes envolvendos em investigações policiais,sempre com uma acusação de envolvimento no homicídio. Desta feita,há minas abandonadas,há um estranho filão de prata,aparece um morto no carro da dupla,começa a investigação, Johnny encontra a solução num velho alfarrábio. Ainda hoje se lê com pleno agrado.

Foto (e legenda): © Beja Santos (2008). Direitos reservados.


(6)Para Paulo Simões da Costa

Paulo, meu querido amigo,

Obrigado pelo bilhete postal que me mandaste de Durban, durante as tuas férias. Em Moçambique estás tu e um soldado mariense, de quem sou profundamente amigo. Aconteceu-me uma tragédia que foi a morte do Carlos Sampaio. São perdas atrás de perdas, depois há este mistério das amizades que chegam, que ficam a fermentar. Mandei-te livros, poucos porque o porte dos correios é muito caro e tenho as despesas do casamento. Ainda não te disse, caso dentro de dias.

Por muito que te surpreenda (afianço-te que eu próprio me surpreendo), continua a ter vontade para ler coisas muito sérias, só que a vadiagem em que vivo impede-me a atmosfera propícia. Aproveito as viagens dentro dos regulados aqui próximo, havendo um bocadinho disponível, distancio-me e leio. Os policiais têm sido uma boa companhia. Por exemplo, acabei agora a leitura de “O túmulo de prata”, de Frank Gruber. É uma dupla espantosa de vendedores de livros sobre musculatura, são dois aldrabões de feira, um é o detective cerebral e imaginativo, o outro uma carga de músculos, um amigo seguidor e inocente que pede sempre ao primeiro para nunca se envolver nessas histórias de descobrir assassinos. Já li vários destes livros e dão-me sempre imenso prazer. Desta vez á uma mina de prata abandonada mas com vários compradores interessados, aparece um cadáver no carro da dupla, o detective cerebral vai desvendar as razões do homicídio e o nome do assassino graças a um alfarrábio que guarda um segredo.

Se te conto isto é porque há muitas maneiras de resistirmos, ler policiais é uma, também encontro na música um poderoso refúgio, escrevo sempre que posso, não me esqueço que em breve vou recomeçar tudo quanto interrompi e de que tanto gosto. Mas agora, agora mesmo, só me interessa ver a mulher amada e como meu amigo posso imaginar que tu partilhas esta alegria de partir rumo à felicidade. Não te esqueças que qualquer dia estamos em Lisboa e vamos estudar juntos. Um grande, um grande abraço e obrigado pelas tuas cartas.

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Nota de L.G.:

(*) Vd. poste de 19 de Maio de 2008 >
Guiné 63/74 - P2861: Operação Macaréu à Vista - Parte II (Beja Santos) (32): Operação Pavão Real

Este episódio devia ter sido publicado na semana passada, o que não aconteceu, por razões de sobrecarga editorial. Pede-se desculpa ao autor, aos amigos e camaradas da nossa tertúlia, aos fãs da série Operação Macaréu à Vista e aos demais leitores do blogue.