sábado, 16 de fevereiro de 2019

Guiné 61/74 - P19498: Os nossos seres, saberes e lazeres (308): Viagem à Holanda acima das águas (12) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 2 de Novembro de 2018:

Queridos amigos,
Como em muitos outros aspetos da vida, na Arte os gostos não se discutem. Mas há o reconhecimento das figuras geniais, daí esta visita ao museu de Haia ter que atrair obrigatoriamente o que ele oferece da obra de Piet Mondrian, é um acervo sem paralelo.
Há uns tempos fora visitar no Museu Coleção Berardo uma exposição intitulada "Linha, Forma e Cor". Ali aparece Mondrian e outros contemporâneos como Albers e Malevich. Na brochura distribuída alude-se claramente a que Mondrian foi reduzindo progressivamente o seu vocabulário formal até restar um sistema de cores primárias, neutras e linhas horizontais e verticais, era assim que ele procurava um equilíbrio dinâmico.
Um museu cheio de obras de arte, após a veneração dos trabalhos de Mondrian e dos seus colegas do movimento De Stijl, o viandante vai à procura de mais surpresas e vai mostrá-las a quem o segue por esta Holanda acima das águas.

Um abraço do
Mário


Viagem à Holanda acima das águas (12)

Beja Santos

O viandante tem razões fundadas para vir a este museu de Haia venerar, deslumbrar-se, tonificar-se com as obras incomparáveis de Piet Mondrian, reconhecido, no mínimo, como um dos artistas fundamentais do século XX. O Gemeente Museum de Haia tem o maior depósito mundial das suas obras, é impensável querer estudar o movimento De Stijl e a obra de Mondrian sem aqui pôr os pés. Foi um grupo espantoso, revolucionou linhas, formas e cores, muitos deles traziam a aprendizagem do naturalismo, do pós-impressionismo e do simbolismo, avançaram para uma nova linguagem de abstração, modificaram conceitos de tal forma abrangentes na arquitetura, no mobiliário, no design de interiores, que implicaram novos movimentos, que chegaram ao presente. Quando vemos as obras de Daciano Costa, Souto Moura ou Siza Vieira, é obrigatório retornar a este grupo De Stijl que impôs uma formulação de trabalho artístico total – arquitetura, arte, design, mobiliário – formavam um todo.

Cadeira vermelha e azul, de Gerrit Rietveld, 1918.




São imagens de trabalho artístico total, uma nova dinâmica cheia de vitalidade e esperança, representações otimistas e idealistas acerca da vida, a I Guerra Mundial já fazia parte do passado. O arquiteto H. P. Berlage apoiava este novo ideário, não será por acaso ele o responsável por toda esta construção admirável que é o Gemeentemuseum. Berlage era para os artistas do De Stijl um ponto de referência, daí o todo o sentido que faz edifício e trabalhos artísticos do movimento terem ficado neste diálogo. Olham-se estas obras e sente-se a inovação impulsionada por gente como Piet Mondrian e Van Doesburg.




Piet Mondrian (1872-1944) foi a figura determinante do movimento. O seu percurso até chegar à abstração recorda-nos imediatamente os génios de Braque e Picasso: partiu dos movimentos da época do fim do século, foi professor, em Paris sentiu-se atraído pelo cubismo e ainda não tinha 40 anos quando se operou a transformação radical, ele irá teorizar um novo grafismo feito de horizontais e verticais, planos e cores. Tornou-se fundador de arte abstrata com as suas composições onde primam o cinzento, o azul, o amarelo, o preto e o vermelho.

Material de trabalho de Piet Mondrian.




Na Alemanha, os dirigentes nazis declararam Mondrian como ligado à “arte degenerada”, apercebendo-se de que tinha o seu trabalho em risco, parte para Londres e depois para Nova Iorque, onde irá falecer. Percorre-se a sua exposição permanente e podemos seguir o seu itinerário na Academia Nacional de Arte, os seus trabalhos inspirados por temas campestres, florestas e moinhos, a sua evolução em Paris, no período efervescente que precede a guerra e onde Mondrian se sente atraído pelo cubismo, o seu regresso à Holanda onde se irá ligar ao grupo do De Stijl, o regresso a Paris onde ele vai repudiar em definitivo a pintura figurativa, adotando as linhas geométricas e uma paleta de cores, hoje mundialmente famosa. Quem quiser saber mais sobre Mondrian e De Stijl tem o site www.mondriaan.nl/en, aqui estão os temas essenciais, inclusivamente a importância que tiveram as suas linhas, formas e cores que entusiasmaram costureiros famosos como Hermès e Yves Saint Laurent.


É um grande museu, as surpresas não ficam por aqui, vamos ver um núcleo permanente de grandes artistas e dar uma olhada pelas exposições, então a ocorrer. Até breve.

(Continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 9 de fevereiro de 2019 > Guiné 61/74 - P19484: Os nossos seres, saberes e lazeres (307): Viagem à Holanda acima das águas (11) (Mário Beja Santos)

Guiné 61/74 - P19497: Parabéns a você (1574): António Eduardo Carvalho, ex-Cap Mil Inf, CMDT da CCAÇ 3 e da CCAÇ 19 (Guiné, 1974) e José Maria Pinela, ex-1.º Cabo TRMS do BCAV 3846 (Guiné, 1971/73)


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Nota do editor

Último poste da série de 10 de fevereiro de 2019 > Guiné 61/74 - P19485: Parabéns a você (1573): José Brás, ex-Fur Mil TRMS da CCAÇ 1622 (Guiné, 1966/68)

sexta-feira, 15 de fevereiro de 2019

Guiné 61/74 - P19496: Notas de leitura (1150): Os Cronistas Desconhecidos do Canal do Geba: O BNU da Guiné (73) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 22 de Maio de 2018:

Queridos amigos,
Duas razões para mim de muito peso seguem com este apontamento que submeto à vossa leitura. Não conheço nenhum texto de índole política, social e económica tão influente como estas notas elaboradas em 1957 pelo administrador Castro Fernandes, figura gradíssima do regime de Salazar. No fundo, é uma solene advertência de que tudo tem de mudar, estão a acontecer coisas na emancipação de África, mesmo ali à volta da Guiné, atenda-se à franqueza do diagnóstico e atue-se, antes que seja tarde.
A outra razão é de caráter muito pessoal, e pode abranger todos os camaradas da Guiné que porventura tenham conhecido Mato de Cão. Veja-se a imagem da estação no rio Geba, com ela convivi de agosto de 1968 a novembro de 1969, com uma frequência inusitada, uma regularidade quase diária. Montava-se a segurança num ponto alto, e em certas ocasiões subia a passagem, para que os barcos, civis ou militares, me identificassem, era ali que pedia boleia para Bambadinca, para mim e para os meus. Que impressão tão forte me provoca esta imagem!

Um abraço do
Mário


Os Cronistas Desconhecidos do Canal do Geba: O BNU da Guiné (73)

Beja Santos

Os apontamentos elaborados pelo Administrador António Júlio de Castro Fernandes, a propósito da sua visita à Guiné Portuguesa entre 9 de março e 8 de abril de 1957 são uma peça de indiscutível importância não só pelo leque dos assuntos versados, a crueza de opiniões e a formulação de conceitos coloniais, a análise económica e o punhado de sugestões que apresenta para revigoramento da Sociedade Comercial Ultramarina. Iniciou a apreciação dos recursos económicos dando prioridade, como era óbvio, à mancarra. Segue-se agora uma apreciação do coconote.

A palmeira de azeite produz óleo de palma, coconote e vinho de palma. E é minucioso ao dizer que “o óleo de palma é extraído da polpa que envolve a amêndoa, o coconote é a amêndoa, o vinho é extraído da ferida feita junto ao cacho”. Diz mais: “A palmeira abunda na zona do Litoral. Maciços mais extensos: Arquipélago dos Bijagós, Cacheu e S. Domingos. Cobre uma área aproximada de 90 mil hectares”. Fala sobre a tonelagem exportada de óleo de coconote e de óleo de palma. E fala concretamente do que viu: “Tive ocasião de em diversas tabancas e moranças assistir à preparação do óleo de palma. Entre Teixeira Pinto e Cacheu, vi uma das instalações administrativas para o descasque do coconote e esmagamento da polpa. O indígena utiliza o descascador mas recusa o esmagamento ou trituração da polpa”.

A única fábrica de óleo de palma que existe é a de Bubaque, diz adiante e lança números sobre a mesa, não descurando comentários próprios:
“O coconote ocupa o segundo lugar na exportação da Província. O descasque é feito, geralmente, pelo indígena – é mal feito e à custa de um esforço perfeitamente estúpido. Além da fábrica de Bubaque, existem algumas britadeiras (umas administrativas, por utilizar quase todas; outras particulares). O desinteresse por parte do indígena na utilização destas britadeiras tem sempre a mesma causa – paga-se por preço inferior ao razoável o coconote bruto adquirido ao indígena (os detentores das britadeiras querem lucros elevados para a rapidíssima amortização do capital investido nas maquinetas).”
A única produtora de óleo de coconote já estava fechada, mas entrara em negociações com o BNU. E tece um comentário final:  
“O comércio do coconote faz-se como o da mancarra. Os mesmos processos, a mesma técnica. O coconote compra-se através de todo o ano, o indígena tem as suas reservas para ocorrer às necessidades mais prementes. As pontas são de maio a Outubro. Neste negócio do coconote, a grande vantagem está ao lado dos que possuem descasques de arroz.”

Entrando na apreciação do alimento preferido pela população guineense, esclarece:  
“Reputa-se em 70% da superfície total os terrenos susceptíveis de serem aproveitados para o cultivo do arroz.
É impossível determinar com rigor a produção, sobretudo em virtude do contrabando para o Senegal, Guiné Francesa e Gâmbia. Calculando-a pelo rendimento por hectare, admite-se uma produção de 90 mil toneladas”.
E enumera a produção pelas diferentes regiões da Guiné. Havia fábricas de descasque, eram três: a Casa Gouveia, a Sociedade Comercial Ultramarina e Mário Lima. E informa que “Os donos do descasque são também comerciantes que, por intermédio das suas redes de lojas ou por contratos com os comerciantes – intermediários, adquirem a maioria da produção não exportável por contrabando. Todo o arroz descascado fica, assim, em seu poder, sendo vendido em Bissau, nas suas próprias lojas”. E dá conta de um outro pormenor, além do arroz descascado há o arroz de pilão, este não pode ser misturado com o arroz descascado mecanicamente.

Vê-se que Castro Fernandes está seriamente documentado e possui informação atualizada:
“Segundo o Governador, a cultura do arroz é uma cultura colectiva que não pode ser levada a efeito em pequenas propriedades individuais. O arranjo das terras, a construção dos diques, exige o trabalho de toda uma organização. É o trabalho das tribos que é exercido, principalmente pelos Balantas. Diversas causas têm desorganizado o trabalho tribal, tornando impossível, quando tal se dá, o cultivo do arroz. É o caso dos Papéis da Ilha de Bissau. Solicitado para toda a espécie de trabalhos, foi-se desorganizando, desarticulando a tribo e não são as mulheres e as crianças que podem proceder aos amanhos e cultivo dos terrenos. O problema consiste em recuperar terrenos, pondo-os em condições de se fazer a respectiva cultura e, ao mesmo tempo, em não desorganizar a tribo, só recrutando homens para o coconote e outros trabalhos, na fase da cultura que as mulheres podem fazer. É esta a orientação que o Governo da Província está a imprimir aos milhares e milhares de hectares que se estão recuperando. Ao Estado compete fomentar a cultura, criando os meios necessários para tal: recuperação de terrenos, organização e defesa do trabalho tribal, obras de rega e de defesa, auxílio ao indígena (tractores, plantas, etc.). O indígena – acrescentou o Governador – tem a compreensão exacta do problema. Os velhos queixam-se de que lhe vêm buscar os rapazes, desorganizando por completo a única forma de exploração possível do arroz.
O caso do Sr. Álvaro Boaventura Camacho funciona estupendamente porque, justamente ele é verdadeiramente o régulo, fazendo os indígenas nas suas propriedades um trabalho tribal.
As propriedades do Sr. Álvaro Camacho – em casa de quem estive hospedado – estão situadas na região de Tombali, circunscrição de Catió. É chão de Nalus, mas – graças à fixação operada através de 30 anos pelo Sr. Camacho – predominam os Balantas. A produção do arroz nesta circunscrição estima-se em 20 mil toneladas. Em Cufar (a 15 quilómetros de Catió) tem a residência e em Cantone os armazéns de arroz, fazendo-se daqui o respectivo embarque. Os indígenas cultivam o arroz nas propriedades do Sr. Camacho que lhes compra o produto, vendendo-lhes os que necessitam”.

O Administrador Castro Fernandes irá ainda debruçar-se sobre os produtos têxteis, a cana sacarina, o gergelim e purgueira, o rícino, o cajueiro, as plantas alimentares, a exploração florestal, a borracha, a pecuária, a cera e o mel, a pesca e as indústrias. Há observações relevantes: até agora, a cultura algodoeira tinha sido um fracasso, bem como a sumaúma; acreditava-se que a cana sacarina tinha viabilidade económica, o Governador não parecia particularmente entusiasmado, seria de atender ao gravíssimo problema do fabrico e consumo de aguardente (“O Balanta, que só trabalha 4 meses por ano, anda bêbado os outros 8 meses. As mulheres já dão aguardente às crianças”), o Governador dissera a Castro Fernandes estar a procurar por formas indiretas diminuir sucessivamente a produção de aguardente; o gergelim e a purgueira tinham largas possibilidades de expansão na Guiné; o cajueiro constituía pela proteção do solo um conectivo à desmedida agricultura de sesmeiro; a Guiné, reconhecia-se, tem condições francamente boas para uma eficiente exploração florestal, mas era indispensável um esforço de repovoamento ordenado com espécies úteis; as possibilidades da pesca eram ainda desconhecidas e dizia-se no relatório que a tentativa de J. da Silva Peralta era, por enquanto, extremamente tímida e limitada; quanto às indústrias, à parte das instalações da Sociedade Comercial Ultramarina e da Casa Gouveia e da instalação da Sofuil em Bubaque, pouco havia a assinalar. Em síntese, uma indústria extremamente rudimentar.

No capítulo dedicado às perspetivas, o conjunto de observações merece todo o destaque:
“Conseguirá a Guiné Portuguesa passar do estado de colónia-feitoria?
Existe uma certa evolução, ao menos nas ideias, no sentido de passar da simples exploração do existente para a criação de verdadeira riqueza.
Há hoje um interesse, todos os dias crescente, pela Guiné havendo sinais de que não só as grandes firmas (refiro-me à CUF) se preparam para investir capitais em explorações tecnicamente bem estudadas, como se anunciam certas tentativas interessantes. Receio, porém, que algumas delas fracassem (tenho sérias dúvidas, por exemplo, quanto à fábrica de borracha) e que tal fracasso desencoraje os outros.
Mas não nos fiquem dúvidas de que o que está, como está, se não poderá manter por muito mais tempo.

Os Serviços Agrícolas locais têm uma missão extraordinariamente importante, mesmo decisiva, a cumprir. Mas organizar-se como estão – servem menos do que para nada.
Além de não haver bom pessoal (tecnicamente), o quadro é mais do que exíguo e pessimamente dotado. Ainda por cima a terra é pouco desejada, os que vão para a Guiné têm um único objectivo – sair da Guiné, serem transferidos para outra Província (conquanto que não seja para Cabo Verde). De modo que não há, nem pode haver, continuidade. Um estudo, uma experiência iniciada hoje, é interrompido, fica pelo caminho, perdendo-se o que porventura se tinha obtido.
Os nossos vizinhos do Senegal conseguiram já, quer na mancarra, quer no arroz, resultados apreciáveis, tanto na selecção, como no aumento do rendimento, como na obtenção de variedades apropriadas às diferentes características de solos e climas.

Mas não basta organizar capazmente os Serviços Agrícolas – embora seja essencial e urgente fazê-lo – é necessária, para que se obtenham os resultados que importa obter, uma perfeita cooperação do produtor e do comerciante. Educação do indígena (que tem de começar por o não roubar), disciplina do comércio (que hoje facilita as fraudes e desleixe do indígena – comprando tudo quanto apresenta, por mais inferior que seja o produto). A justificada má fama da mancarra e do coconote guineenses no mercado mundial é apenas o resultado da nossa incapacidade em comerciar com decência – incapacidade que advém, ao fim e ao cabo, do regime de monopólio em que vivem as empresas compradoras da Metrópole. Como os lucros dão para tudo – para comprar pelo mesmo preço a mancarra e as impurezas que contém – os importadores da Metrópole não fazem questão. Como assim é, os pequenos comerciantes não discutem com o indígena, aceitam o que este lhe trouxer. Por outro lado, rouba-o quanto pode o que, por si, justifica as fraudes que o indígena – em legítima defesa – pratica. É uma cadeia, uma pouca-vergonha, é uma verdadeira praga, uma autêntica calamidade…

Que as coisas melhoram, sente-se. Que têm de melhorar é axiomático – a menos que queiramos estar, dentro em breve, a braços com as maiores dificuldades.
A Guiné já não é hoje inteiramente uma quinta da CUF. Para tanto, em muito contribuiu o crescimento da Sociedade Comercial Ultramarina, obra do nosso Banco a que é de inteira justiça ligar o nome do Sr. Visconde de Merceana. Oxalá o enfraquecimento, ou mesmo a queda, desta empresa não venha fazer-nos andar para trás. O BNU nada ganharia com isso – muito pelo contrário – e a Guiné também não.
A consciência dos problemas – que é por agora o resultado verdadeiramente positivo da evolução económica da Guiné – obrigará a CUF se quiser manter a sua posição, a investir dinheiro da Guiné e a pôr ao serviço do progresso da Província a sua técnica e os seus quadros. De contrário, terá – a curto prazo – desgosto e desgosto sério. O mesmo se põe para os outros grandes, cada um dentro da sua escala.

A Guiné, repete-se, continua ainda no estado de colónia-feitoria. Mas tudo indica que as coisas se vão modificar.
Não pode o Estado arcar sozinho com o peso de transformar a Guiné – mas para que se saia da pura ‘economia de resgate’ tem de, por processos indirectos, obrigar os que querem a carne a terem o seu contrapeso de osso.”

(Continua)

Imagem de uma Festa da Luta Felupe (Eran-ai), tirada em Sucujaque, em 8 e 9 de Abril de 2012, enquanto em Bissau decorria o golpe de Estado. 
Fotografia cedida por Lúcia Bayan, investigadora do povo Felupe, a quem agradecemos a gentileza.


Imagens tiradas de As comunicações e os aproveitamentos hidráulicos da Guiné, Angola e Moçambique, Agência-Geral do Ultramar, 1961.
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Nota do editor

Poste anterior de 8 de fevereiro de 2019 > Guiné 61/74 - P19481: Notas de leitura (1148): Os Cronistas Desconhecidos do Canal do Geba: O BNU da Guiné (72) (Mário Beja Santos)

Último poste da série de 11 de fevereiro de 2019 > Guiné 61/74 - P19490: Notas de leitura (1149): O litígio entre Portugal e a ONU (1960-1974), por António Duarte Silva; Revista Análise Social, n.º 130, 1995 (Mário Beja Santos)

quinta-feira, 14 de fevereiro de 2019

Guiné 61/74 - P19495: Consultório militar do José Martins (39): Ficha do Batalhão de Caçadores 619 (Catió, 1964/66)

 

 
1. E mensagem de 5 de Fevereiro de 2019 o nosso camarada e "consultor militar" José Martins [ex-Fur Mil TRMS, CCAÇ 5, Gatos Pretos, Canjadude, 1968/70) enviou-nos a ficha do BCAÇ 619 com as suas Companhias Operacionais, entre elas a CCAÇ 617 do outro nosso camarada João Sacoto, ex-Alf Mil.








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Nota do editor

Último poste da série de 24 de novembro de 2018 > Guiné 61/74 - P19229: Consultório militar do José Martins (38): Pedido de Informações sobre a CCAÇ 2466 / BCAÇ 2861, Bula e Encheia, 1969/70, a que pertenceu o meu avô (Cristiana Duarte)

quarta-feira, 13 de fevereiro de 2019

Guiné 61/74 - P19494: Historiografia da presença portuguesa em África (150): Relatório do Delegado de Saúde da vila de Bissau, o médico de 2.ª classe Damasceno Isaac da Costa, referente a 1884 (2) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 20 de Junho de 2018:

Queridos amigos,
A historiografia sobre a Guiné vai estar em dívida com este médico, Damasceno Isaac da Costa. Não conheço para este tempo, estamos a falar de 1884, de um documento tão detalhado sobre a presença portuguesa, o que era a vila de Bissau, o estado decadente da fortaleza, o quase abandono do Ilhéu do Rei, a situação do presídio de Geba.
Iremos ver mais adiante que ele não esconderá absolutamente nada sobre a salubridade e higiene pública. No final do seu relatório ele lista um conjunto de plantas medicinais, outra curiosidade a que não nos podemos furtar.
Mas que belo documento para sabermos de viva voz o que era a rusticidade, para não dizer o quase apagamento, da nossa presença no exato momento em que a Guiné se autonomizara de Cabo Verde.

Um abraço do
Mário


Relatório do Delegado de Saúde da vila de Bissau, o médico de 2.ª classe Damasceno Isaac da Costa, referente a 1884 (2)

Beja Santos

Este relatório consta dos Reservados da Sociedade de Geografia de Lisboa e foi oferecido pelo seu filho Pedro Isaac da Costa ao antigo administrador de Bissau, António Pereira Cardoso, autor de um conjunto apreciável de documentos, muitos deles de leitura indispensável para conhecer a vida administrativa da Guiné, sobretudo entre as décadas de 1930 e 1950.

Este relatório, como se verifica pelo seu fecho, foi copiado pelo filho do autor. E diz-se que é de estranhar que tendo sido escrito em 1884 se refere a factos de 1888.

Trata-se de um documento irrecusável, nenhum trabalho historiográfico sobre este período em que a Guiné ganhou autonomia como Província tem cronista de igual estatura. É meticuloso e muito observador. Veja-se como descreve a vila e fortaleza de Bissau. Diz que a vila tem 460 metros de comprimento e 240 de largura. No passado, a vila constituía um reino administrado por um régulo que exercia a alta dignidade de balobeiro-mor, tinha superioridade sobre os restantes régulos e fruía das imunidades e sinecuras que pertenciam ao régulo de Bandim.

A vila está cercada de todos os lados por pântanos, cujas exalações deletérias influenciam ativamente a salubridade pública. Os miasmas vindos dos pântanos na sua propagação não encontram outros elementos que o muro de pedra e cal de quatro metros de altura que circunda a povoação.

Dentro da vila existem alguns poços e uma fonte denominada Pidjiquiti, mas as águas tanto desta como dos poços apresentam-se constantemente estagnadas, por culposo desleixo das autoridades locais. Existem as seguintes repartições do Estado: Administração do Concelho, Câmara Municipal, Alfândega, Delegação da Junta de Saúde e Hospital, Tribunal Judicial, Subdelegacia de Julgado, escolas de instrução primária. Todas estas repartições funcionam em casas particulares, tomadas de arrendamento por conta do Estado.

A fortaleza de Bissau fica a 150 metros da praça. É composta de um reduto quadrado construído de pedra e cal, tendo em cada ângulo um baluarte abrigado por um secular poilão. Os baluartes estão guarnecidos de peças na sua maioria oxidadas e encravadas por falta de reparações. A muralha tem 60 palmos de altura e 100 passos de comprimento em cada lado. Em torno da muralha existe um fosso que na quadra das chuvas recebe imundícies de toda a espécie; o fosso é um extenso foco de insalubridade.

Dentro da fortaleza existe uma caserna para os soldados, um quarto para oficiais, um dito para a arrecadação de géneros, três ditos para as cadeias, uma igreja e um paiol. A caserna e os dois quartos que ficam contíguos são baixos e não possuem capacidade nem ventilação nem luz necessária para a livre circulação destes dois fatores. Um dos quartos em que funciona a cadeia civil e militar está situado na entrada da fortaleza e tem as seguintes dimensões e condições higiénicas: 4 metros de comprimento sobre 2 de largura; o vigamento corrupto e húmido ameaça o seu desabamento; a ventilação e a luz são insuficientes. Os outros dois quartos que servem de cadeia militar estão em idênticas condições, um deles não possui sequer uma janela. A igreja tem sofrido ultrajes de toda a qualidade, experimentou ultimamente algumas reparações devido ao incansável zelo do atual pároco missionário, Luiz Baptista de Rosário e Souza. A casa em que funciona o paiol é bastante espaçosa mas não possui uma única janela, é excessivamente húmida e ameaça ruína. Esta casa é imprópria para o fim a que é destinada.

Extramuros, funciona um tribunal judicial presidido por um grumete analfabeto que tem o nome de Juiz do Povo.

A justiça perante este tribunal faz-se da seguinte forma: o réu é conduzido à rua grande (local do tribunal) e aí após um pequeno interrogatório e ouvidas as partes e o povo, é o mesmo condenado a uma multa nunca inferior a 50 mil réis, que ordinariamente é paga em bebidas alcoólicas ou mercadorias.

Concluída esta descrição, o médico dá-nos pormenores sobre o Ilhéu do Rei e o presídio de Geba. Começando pelo ilhéu, diz que defronte dos dois poilões seculares que existem no porto e que servem de fundeadouro aos navios de alto bordo que demandam o porto de Bissau, surge o Ilhéu do Rei ou dos Feiticeiros que tem uma milha de comprimento e meia de largura; e pela sua posição geográfica e condições higiénicas conviria muito que para ali fosse transferida a povoação de Bissau. O Ilhéu do Rei foi comprado aos Papéis por Honório Pereira Barreto, possuía outrora um pequeno fortim, um estaleiro para as embarcações de todas as lotações, uma povoação com 600 habitantes e várias casas comerciais. Agora, na decadência é uma povoação que está reduzida a 25 habitantes.

Bem curiosa é a descrição que faz do presídio de Geba. Começa por dizer que descoberto há mais de 400 anos pelos ousados navegadores portugueses, o presídio de Geba está situado a 60 léguas acima de Bissau. É ocupado por negociantes cristãos, Mandingas e Fulas-Forros e Pretos. Possui a povoação dois baluartes, um dos quais se acha em ruínas e cercado de espesso arvoredo e por isso e pela sua posição nenhum meio de defesa oferece; o outro, construído em 1875, não tem peça nenhuma. O governador Agostinho Coelho enviou em 1881 a Geba instrumentos e materiais e ordenou a construção dos sobreditos baluartes, mas até hoje não se deu começo à referida obra.

No ponto denominado Baixa-mar, jaz enterrada uma urna contendo uma ata assinada pelo Governador Agostinho Coelho e por vários funcionários e negociantes, lavrada por ocasião em que o vapor Guiné sulcando pela primeira vez as águas do tortuoso mas pitoresco rio Geba, aportaram a este último presídio.

Possui Geba a igreja de Nossa Senhora da Graça, construída em 1881 a expensas dos habitantes mas não possui paramentos nem alfaias religiosas.

É tradição oral que nas proximidades do presídio existem minas de ouro e que na época em que foi abolida a escravatura foram enterradas dentro da praça e no bairro denominado Santa Cruz, quarenta arrobas de ouro, que eram de um negociante português que andava perseguido pela justiça por se entregar ao tráfico da escravatura, internara-se nos sertões da Guiné para se pôr a coberto da espada da Justiça.

(Continua)

Alçado da ala lateral do Quartel Militar de Bolama
Fotografia de Francisco Nogueira, retirada do livro “Bijagós Património Arquitetónico”, Edições Tinta-da-China, 2016, com a devida vénia.



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Nota do editor

Último poste da série de 6 de fevereiro de 2019 > Guiné 61/74 - P19475: Historiografia da presença portuguesa em África (148): Relatório do Delegado de Saúde da vila de Bissau, o médico de 2.ª classe Damasceno Isaac da Costa, referente a 1884 (1) (Mário Beja Santos)

Guiné 61/74 - P19493: Fotos à procura de... uma legenda (112) : Messe improvisada numa ponte em 26 de janeiro de 1968... Foto do Arquivo Mário Soares... Serão fuzileiros ? Que ponte seria esta ? (Jorge Araújo)





Citação: (1968), "Exercito português. Guiné. Messe improvisada numa ponte.", CasaComum.org, Disponível HTTP: http://hdl.handle.net/11002/fms_dc_114447 (2019-2-12) (foto reproduzida com a devida vénia,,,)

Fonte: Casa Comum, Fundação Mário Soares.
Pasta: 06916.004.036
Título: Exército português. Guiné. Messe improvisada numa ponte. 
Assunto: Exército Português em operações de guerra na Guiné. “Messe” improvisada sob uma ponte. Data: Sexta, 26 de Janeiro de 1968. 
Fundo: MAS – Arquivos Mário Soares – Fotografias Exposição Permanente. 
Tipo Documental: Fotografias.





Jorge Alves Araújo, ex-fur mil op esp / Ranger, CART 3494 
(Xime-Mansambo, 1972/1974); coeditor do blogue



1. INTRODUÇÃO

Já aqui vos dei conta, em outras ocasiões, da existência de fotos de militares do Exército Português nos Arquivos de Amílcar Cabral, localizados na Casa Comum, Fundação Mário Soares.

A imagem que hoje vos apresento, com data de 26 de Janeiro de 1968, 6.ª feira, portanto de há cinquenta e um anos atrás, merece uma legenda, digo eu, pois seria interessante identificar o local onde foi tirada, e quem sabe, trazer à memória dos que nela constam, algumas histórias vividas no CTIG.

Desta vez, a proveniência é do Arquivo Mário Soares [1924-2017]  e não do Arquivo Amílcar Cabral.

Segundo creio, estamos perante elementos dos “fuzileiros” acreditando serem pretas as suas boinas.

Será?

Aguardo sugestões.

Com um forte abraço de amizade e votos de boa saúde.

Jorge Araújo.

12Fev2018

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Nota do editor:

Último poste da série > 29 de novembro de 2018 > Guiné 61/74 - P19244: Fotos à procura de...uma legenda (111): Ainda o sorriso da bajuda do Gabú... (Fernando de Sousa Ribeiro, ex-alf mil, CCAÇ 3535, Angola, 1972/74)

terça-feira, 12 de fevereiro de 2019

Guiné 61/74 - P19492: XIV Encontro Nacional da Tabanca Grande, Palace Hotel de Monte Real, 25 de Maio de 2019 (1): Primeiras informações e abertura das inscrições (A Comissão Organizadora)



XIV ENCONTRO NACIONAL DA TABANCA GRANDE

MONTE REAL

25 DE MAIO DE 2019


Camaradas e Amigos da Tertúlia, o XIV Encontro Nacional da Tabanca Grande vai ser levado a efeito no próximo dia 25 de Maio, em Monte Real, no Palace Hotel das Termas.

Considerem desde já abertas as inscrições que deverão ser encaminhadas para o editor Carlos Vinhal (carlos.vinhal@gmail.com) com a indicação do nome das pessoas a inscrever, proveniência e, caso necessitem de alojamento, especifiquem quais noites e quantos quartos, single ou duplos vão precisar.

Quem se apresentar pela primeira vez irá receber um crachá anexo à mensagem de confirmação da inscrição para imprimir em casa e exibir durante o Convívio.
Os repetentes, caso tenham extraviado o(s) seu(s) crachá(s) devem pedi-lo(s) aquando da inscrição, para lhes ser enviada(s) segunda(s) via(s).

Aceitam-se inscrições até às 24h00 do dia 15 de Maio. 


1. EMENTA DO ALMOÇO E LANCHE

Entradas: 
Saladinha de Polvo
Salada de Bacalhau 
Salada de Atum
Salada de feijão-frade com orelha grelhada 
Guisado de dobrada
Meia desfeita de bacalhau 
Salgadinhos variados
Presunto fatiado 
Meia concha de mexilhão com vinagreta 
Tortilha de camarão
Pezinhos de coentrada 
Choquinhos fritos à Algarvia
Joaquinzinhos de escabeche 
Sonhos de bacalhau 
Coxas de frango fritas à nossa moda 

Almoço:
Creme de Legumes 
Perca à Lagareiro 
Petit gateau de chocolate com gelado de tangerina 

Bebidas: 
Moscatel, Porto Seco, Martini – só nas entradas 
No almoço: Vinho branco e tinto Fontanário de Pegões; Vinho verde tinto Aguião e verde branco Loureiro - Ponte de Lima 
Cerveja 
Água mineral 
Sumo de laranja 

Lanche:
Carnes frias com molho tártaro
Azeitonas com laranja e orégãos 
Enchidos da região grelhados
Queijos variados 
Charcutaria variada 
Franguinho assado 
Batata Chips 
Salada de tomate 
Salada de alface 
Salada de cenoura 
Salada de Pepino 
Mesa de sobremesas 

Preços:

Almoço e Lanche: 35.00€/pessoa 
Criança até aos 12 anos – 18.00€ 

Alojamento com pequeno-almoço incluído: 
Single: 50,00€
Duplo: 60,00€


2. Programa do dia elaborado pelo nosso camarigo Joaquim Mexia Alves:

10h30 - Concentração dentro do parque das termas 
11h30 - Missa  de Sufrágio pelos camaradas caídos em campanha e pelos camaradas e amigos que ao longo do tempo nos foram deixando.
12h00 - Fotografia  de família
12h30 - Entradas  servidas na varanda, se o tempo permitir
13h30 - Boas vindas na sala de almoço
14h00 - Almoço 

Depois de uma tarde que se quer de vibrante convívio, o Lanche será servido entre as 17h30 e as 18h00

Toda e qualquer dúvida deve ser enviada ao e-mail acima indicado

A COMISSÃO ORGANIZADORA
Carlos Vinhal
Joaquim Mexia Alves
Luís Graça
Miguel Pessoa
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Guiné 61/74 - P19491: A Galeria dos Meus Heróis (22): O "Duque de Palmela" ou o pão que o diabo amassou - II (e última) Parte (Luís Graça)


Guiné > Região do Óio > Porto Gole > Fvereiro de 1967 >  A despedida: em segundo plano, o  gen Arnaldo Schulz ao lado do piloto do helicópetrio;  no banco de trás, duas caixas de cerveja, Sagres e Cristal; em primeiro plano, à esquerda, um cabo especialista da FAP e, à direita, o fur mil Viegas, do Pel Caç Nat 54,  com camuflado paraquedista trocado com um camarada numa operação no Morés em outubro de 1966.


Foto (e legenda) : © José António Viegas (2015). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]




Luís Graça, ex-fur mil, CCAÇ 12, Contuboel, junho de 1969

A galeria dos meus heróis > O “Duque de Palmela” ou o pão que o diabo amassou- II (e última parte)

por Luís Graça 



(Continuação)


12. O “Duque de Palmela” não se deu mal com a “nova vida”, a de padeiro (*)... Deixou de fazer colunas, operações e serviço de guarda, etc.,  mas tinha que trabalhar de noite para ter pão fresco todas as manhãs… 

E a verdade é que a malta se habituou ao pão fresco todas as manhãs. E isso também ajudou a levantar o moral da tropa. O casqueiro era um parte importante da ração a que cada homem tinha direito. Cabia nos 24 escudos e 50 centavos que eram atribuídos a cada militar, do soldado básico ao general, para efeitos de alimentação. Quem era arranchado, recebia em géneros, quem era desarranchado recebia em espécie, sendo no caso dos africanos, muçulmanos ou animistas, que não comiam a comida dos brancos, um importante complemento do salário: dava para comprar um saco de arroz de 100 kg.

− Comia-se mal e porcamente. Faltavam as batatas. E os frescos só os havia quando, uma vez por outra, vinha uma avioneta de Bissau. Massa com cavala era o prato do dia. O vinho era pouco e 'batizado'. Que não faltasse, ao menos, o pão nosso de cada dia…

O Zé Soldado era pãozeiro, como qualquer bom português de origem rural. O padeiro, por sua vez, em conjunto com o vagomestre, responsável pelos géneros,  tinha que saber gerir muito bem o “stock” de farinha (e fermento…), sobretudo no tempo das chuvas em que as picadas no sul da Guiné se tornavam autênticos rios. O  abastecimento era então irregular e incerto.


Na realidade, ficavam isolados muitos aquartelamentos, destacamentos e tabancas. As colunas tornavam-se um pesadelo, às vezes chegava-se a andar um quilómetro por hora (!) e praticamente não se fazia mais nada do que tentar assegurar, a todo o custo, no final do tempo seco e no início do tempo das chuvas, a autossuficiência da tropa em matéria de abastecimentos (munições, comes & bebes, outros géneros de primeira necessidade, etc.). 

A farinha e a cerveja era dois géneros alimentares de “primeiríssima necessidade”… Ainda bem que a atividade operacional ficava mais reduzida, sobretudo de julho a setembro, meses de maior pluviosidiade, tanto para as NT como para o PAIGC.

O nosso homem tinha, nesse aspeto, um bom entendimento com o vagomestre e com o capitão. E nunca houve, até ao primeiro ano, falta de farinha para fazer o pão.

− No novo 'posto', eu tinha durante o dia tempo e vagar para ir passear à tabanca, fazer a 'psico',  e, ao lusco-fusco, ir caçar galinhas do mato e lebres, na orla da bolanha. Arranjei uma espingarda de caça e ganhei um vício que não tinha…


− A caça ?!...

− Sim, a caça... Dava para fazer o gosto ao dedo e sempre se arranjava carne para o petisco. Matei a malvada a muita gente, incluindo alferes e furriéis… Uma vez por outra convidava o capitão, mas ele nunca aceitava… Acho que não se queria misturar com os subordinados, o que eu hoje entendo... Por outro lado, ele não gostava nada que eu saísse fora do arame farpado, mas lá ia fechando os olhos… E eu também não era mau cozinheiro, diga-se em abono da verdade… Uma vez por outro fazia-lhe uns miminhos, como um cabritinho assado.



13. A coroa de glória do “Duque de Palmela” foi quando a companhia, a dois grupos de combate, ficou com as calças na mão, mum medonho ataque a um dos seus destacamentos, lá para os lados de Aldeia Formosa, já na segunda parte da comissão, em inícios de 1967, em  plena época das chuvas.

− Os gajos atacaram-nos,  às tantas da noite, e usaram metralhadoras pesadas 12.7, com balas incendiárias. Acordei sobressaltado. Em pouco tempo, a tabanca, fula, com as palhotas muito juntas umas às outras, foi pasto das chamas. Nunca tinha visto um incêndio como aquele, a não ser quando se deitava fogo ao capim, no tempo seco. Valeram-nos as valas onde o pessoal se entrincheirou e resistiu até de madrugada. Eu, mais o capitão que teve o azar de lá estar nessa semana, agarrámo-nos com unhas e dentes ao morteiro 81. A companhia tinha apenas uma secção de morteiros. E dessa vez estava colocada, em reforço, noutro destacamento, não muito longe do nosso. Mas tínhamos, aqui, um morteiro 81. Foi o que nos valeu.  Apoio de artilharia não havia.

O nosso padeiro conta que ia ficando com as mãos queimadas se não fora as luvas que apareceram no espaldão, "por milagre".

− Granadas não faltavam, graças a Deus. E foi a nossa sorte. Os gajos retiraram com mortos e feridos, a avaliar pelos rastos de sangue que deixaram nos abrigos individuais junto ao arame farpado. Por minha conta, devo ter mandado alguns para o inferno. Em contrapartida, tivemos dois mortos e vários feridos graves. Só por milagre, é que a população se safou. Só houve alguns feridos ligeiros.  Mas a tabanca ficou praticamente calcinada. E com ela perdemos também os nossos haveres e os improvisados abrigos onde tínhamos os géneros alimentícios, bem como as outras palhotas que tinham sido cedidas à tropa. Ficámos só com a roupa que trazíamos no pêlo.


A descrição não poderia ser mais pormenorizada:

− A tabanca estava sobrelotada. Era pressuposto ficarmos ali temporariamente em reforço do sistema de autodefesa.  Havia suspeitas, fundadas, de colaboração com o inimigo, por parte de alguns elementos da população, e que por isso estavam de debaixo de olho do comandante do pelotão de milícias e do régulo.

− Mas os fulas eram leais à nossa tropa…

− Nem todos, junto à fronteira, eram mais permeáveis à propaganda e às ameaças do PAIGC – respondeu-me o M. Santos.

− Quer então dizer que, dessa vez, vocês ficaram de tanga…

− Ficámos de calcões e chanatas. Só com a G3 na mão, e as cartucheiras à cintura… Alguns ficaram só em cuecas!... A minha mala ardeu. Houve malta que perdeu tudo, tinham trazido os parcos pertences com eles, convencidos que iam passar ali umas ricas e merecidas férias… O tanas!... O mais grave é que ficámos sem comes e bebes, incluindo as rações de combate. Lá se aproveitou uma ou outra maldita lata de cavalas ou de conservas de pêssego da África do Sul… Claro que a população também pilhou o que não ardeu... Nestas situações, os seres humanos são todos iguais, sejam brancos ou pretos: há sempre uns tantos que tiram partido da desgraça dos outros...


De Bissau vieram, de helicóptero, trazer alguns reabastecimentos mais urgentes: caixas de munições, por exemplo. A coluna de Nova Lamego [, ou de Aldeia Formosa ?] só chegou ao fim do segundo dia. E traziam alguns sacos de farinha. Mas como fazer pão se até o pequeno forno do destacamento, em adobe, também tinha sido destruído?

− Com bidões cortados ao meio, na vertical, improvisei um forno e fiz o milagre dos pães, para meia centena de homens esfomeados… Tive um louvor do Schulz, e outro do comandante do batalhão, sob proposta do meu capitão. Mandei ampliar e emoldurar o louvor do general Schulz. Está no escritório. Ou estava, agora já passei a pasta ao meu filho mais velho. Reformei-me da Panificadora.


13. A padaria a que o “Duque de Palmela" se refere, foi a que ele criou, depois do seu regresso da Guiné em finais de 1967, e que ajudou a crescer, nos últimos 50 anos, "com mais algumas dezenas de colaboradores".


Com a construção e a inauguração da Ponte Salazar, unindo finalmente as duas margens do Tejo, entre Lisboa e Almada, o distrito de Setúbal conheceu um enorme surto de desenvolvimento, em termos urbanísticos, industriais, económicos e demográficos. 
Com algum dinheiro que poupou em África e um pequeno empréstimo bancário e mais uma ajuda de um dos irmãos que fora 'a salto' para França, fugindo à tropa, e que agora estava lá bem, perto de Paris, o “Duque de Palmela" comprou a quota de um seu antigo patrão, que se reformara, e que fazia parte de uma cooperativa de panificação num dos concelhos vizinhos. Essa Panificadora deu muitas voltas, depois do 25 de Abril, passou a sociedade anónima, até que o M. Santos se tornou o acionista principal, com o filho e com o irmão que estava em França.

Hoje é uma empresa de referência, no seu ramo, faturando cerca de 6 milhões de euros, e tendo uma razoável rede de clientes, incluindo superfícies comerciais, em todo o distrito de Setúbal. O “Duque de Palmela”, outrora o “pé descalço”, o 1º cabo que queria "ser mercenário e ir para o Vietname", tem hoje motivo de orgulho no legado que deixa aos filhos e netos.

− É sobretudo um exemplo de vida, tenho pena que o meu velhote já não esteja cá, há muito, para ainda poder ver a obra do filho.


Enxuga uma lágrima furtiva… Pediu-me uns minutos para ir a casa, uma bela vivenda ali ao lado das instalações fabris da Panificadora, para ir buscar uma foto que tinha com o general Schulz e mostrar-me o louvor, emoldurado.

− Não conheci o Spínola, o meu comandante foi o Schulz. Só tenho a dizer bem dele. Visitou-nos por duas vezes. Esta é a foto dele comigo, eu a enfornar o pão. E chegou a levar do meu pão para o palácio do Governador, em Bissau. Em troca deixou-me uma caixa de cerveja “para os padeiros”...

Infelizmente, o “Duque de Palmela” tinha enviuvado há dois ou três anos e lamentava não poder partilhar, com a “duquesa” (como ele, carinhosamente, tratava a sua alentejana de Santiago do Cacém), a alegria que fora a “transferência de poderes” para o filho, seu sucessor, e agora o maior acionista da Panificadora e seu administrador.

− Afinal, é a ela que eu devo tudo ou quase tudo. A ela e ao meu capitão. Foi, na Guiné, um pai para mim. Fiquei-lhe grato para o resto da vida. Vim a descobrir, entretanto,  que trabalhava nas Alfândegas de Lisboa, há uns dez anos atrás, quando ele se reformou. Nessa altura, fiz-lhe uma grande homenagem. Fizemos aqui o convívio anual da companhia. Foi memorável. Faltaram muitos mas mesmo assim consegui juntar uns sessenta camaradas. Com as mulheres, filhos e netos, éramos quase um centena de convivas. Fiz questão de ser eu a oferecer o almoço. Arranjei uma empresa de “catering” e o borreguinho assado foi feito cá nos fornos da Panificadora. Por coincidência, comemorávamos também nesse ano os 40 anos do regresso da Guiné.


E acrescenta, com alguma euforia:

− Foi um dia de alegria, um dos maiores da minha vida. Esse convívio ficou na memória da malta toda. E quem não veio, ficou com pena… Infelizmente, o capitão morreria uns tempos depois, ainda a minha mulher era viva.


Falando do seu sucesso empresarial, disse-me em tom de confidência:

− Tive sorte nos negócios, não vou dizer que não. Mas fui sempre um homem decidido e determinado. Tinha pouco a perder e tudo a ganhar. Se fosse alferes ou furriel, com estudos, teria arranjado um reles emprego,  num banco ou num escritório, aqui ou em Setúbal. Hoje sou patrão, ajudei a criar cinquenta postos de trabalho, são outras tantas famílias que dependem do bom andamento da empresa. Não tenho luxos, tirando a caça, continuo a ser um gajo simples… O que é quer que lhe diga mais, camarada ?!... Ponha aí que sei dar valor ao dinheiro e ao trabalho, e sou amigo do meu amigo.


Curiosamente, eu conhecera este homem, não na Guiné, mas por ocasião de um estudo europeu sobre condições de trabalho, saúde e absentismo, nos anos 90. A Panificadora tinha então ganho um prémio de segurança, e poderia ser um potencial estudo de caso de “boas práticas”… Conheci o pai e o filho através do médico do trabalho que tinha uma avença com a empresa e que fora meu aluno. Conversa puxa conversa, acabei por saber que ele tinha estado na Guiné, antes de mim, mas não longe dos sítios por onde passei e penei…

Já nessa altura eu gostava de dizer que o mundo é pequeno e que um dia voltaria a tropeçar na guerra da Guiné. Também eu, como muita gente, precisava de exorcizar os fantasmas do passado.

− Chegou a hora do repouso do guerreiro, camarada! – disse-lhe eu, da última vez que estive com ele, já depois de enviuvar.

− Esse é um dos problemas da malta da nossa geração… Muitos nunca fizeram férias, passaram a vida a trabalhar e a poupar, não gozaram a vida… Falo por mim… Como saber que estamos a chegar ao fim da picada ? Ainda gostava de lá ir, à Guiné, mas não sei se tenho força nas canetas…

− Mas já agora diga-me porquê e para quê voltar à Guiné?!... Se a pergunta, claro, não o ofender… – pedi-lhe eu. (Continuávamos a tratar-nos por camaradas, mas não por tu, ao fim destes anos todos, cerca de vinte e tal…).

Pesou a pergunta antes de responder:

− Porquê ?... O criminoso gosta sempre de voltar ao local do crime – respondeu-me com  um misto de bonomia e malícia. 


− E para quê, já agora ? – voltei a insistir.

− Olhe, sempre ouvi falar do Saltinho e dos rápidos do Corubal, até se dizia que era a parte mais bonita da Guiné… Andei por lá perto, mas nunca lá fui, nunca vi sequer o rio Corubal. Era um dos sítios da Guiné que gostava de visitar… E, depois, se conseguir fazer alguma coisa por aquela gente, tanto melhor.


Demos um grande abraço de despedida… e eu prometi a mim mesmo  escrever a história de vida deste homem… Porque não pô-lo também na Galeria dos Meus Heróis ?!  


Sei que voltou o ano passado à Guiné-Bissau e ainda encontrou gente do seu tempo, nas tabancas que ele conhecia… Mandou construir , do seu bolso, uma escola na antiga tabanca onde estivera destacado, e que ardera em 1967. Julgo que fez as pazes com o passado, tal como eu.

Faltou-me na altura, por lapso ou talvez por pudor, perguntar-lhe a origem da alcunha “Duque de Palmela”… Não tive lata ou faltou-me o tempo, se bem que ele nunca tivesse rejeitado, bem pelo contrário, a alcunha que lhe puseram na tropa e na guerra. Estendia a mão, muitas vezes, aos amigos dos seus amigos, quando se apresentava,  dizendo com graça: 'O Duque de Palmela, para o servir!'... Inclusive tratava a esposa por “duquesa… de Santiago do Cacém”. Tinha sentido de humor.


Um antigo camarada, furriel, da sua companhia, explicou-me, ao telefone, a origem da alcunha:

− Em Santa Margarida, no IAO, já toda a gente o tratava por “Palmela”… Acho que não havia mais ninguém daquelas bandas… Ao que parece, no barco, quando fomos para a Guiné, é que apareceu o “Duque”… Ele gostava de jogar às cartas, para passar o tempo, como boa parte dos militares embarcados. Mas não tinha sorte ao jogo… ‘Só me saem duques’, queixava-se sempre que perdia… Afinal, foi um camarada com azar ao jogo e sorte aos amores e aos negócios, pelo que eu sei e pelo que me contas… Quando chegou a Bissau, já toda a malta o tratava por “Duque de Palmela”… E acho que é também uma justa homenagem, visto o filme ao contrário, da frente para trás…


− É uma figura ilustre da nossa história, o 1º Duque de Palmela, político, militar e diplomata, um patriota do tempo do liberalismo − acrescentei eu. − Não nasceu em Palmela, mas para o caso pouco importa. No tempo da nossa monarquia constitucional davam-se títulos nobiliárquicos honoríficos por razões nem sempre nobres...  aos amigos e correligionários. Homenageavam-se homens e terras.  Dizia o povo, com sarcasmo: "Foge, cão, que te fazem barão!... Mas para onde se me fazem visconde?!"... 


Aqui para o leitor, que ninguém nos ouve: não me admirava nada que no próximo 10 de Junho a gente ainda vá a tempo de ver, na televisão, o nosso ex- camarada M. Santos a receber a comenda de mérito industrial... Não seria nada de mais justo, ver o nosso padeiro chegar a comendador depois de ter comido o pão que o diabo amassou.  

Afinal, mudam-se os tempos, mudam-se  as honrarias e as mercês...

© Luís Graça (2019). Todos os direitos reservados.

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segunda-feira, 11 de fevereiro de 2019

Guiné 61/74 - P19490: Notas de leitura (1149): O litígio entre Portugal e a ONU (1960-1974), por António Duarte Silva; Revista Análise Social, n.º 130, 1995 (Mário Beja Santos)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 25 de Outubro de 2016:

Queridos amigos,
O artigo tem 20 anos, mas ganhou poucas rugas, o que destaca é história diplomática consolidada: o sopro anticolonial que muda de feição e volume em 1960, a diplomacia de Salazar ficará doravante em minoria, mas inicialmente vai resistindo; depois a guerra alastra e surge um interlocutor muitíssimo incómodo, Amílcar Cabral; a partir de Marcello Caetano, a Guiné apresenta-se como um espinho à política de Lisboa, em toda a cena internacional. O pano vai baixar quando a Guiné-Bissau declara a sua independência unilateral, mesmo os mais otimistas sabiam que o destino estava selado.
António Duarte Silva ao longo de cerca de 50 páginas analisa as diferentes fases do conflito, deixa bem claro que aos poucos o Império Colonial Português perdera praticamente todo o apoio.

Um abraço do
Mário


O litígio entre Portugal e a ONU (1960-1974), por António Duarte Silva

Beja Santos

Quando nos debruçamos sobre as realidades da guerra colonial, nem sempre cuidamos dos acontecimentos que ocorrem em simultâneo na frente diplomática. Mesmo antes de eclodir a guerra em Angola, o governo português passou a ser confrontado por incómodas perguntas de cunho anticolonial, chegavam do Palácio de Vidro e foram um barómetro ao longo de 15 anos de litígio de como a posição diplomática portuguesa foi enfraquecendo até ao isolamento quase total. O longo estudo publicado por António Duarte Silva na revista Análise Social, n.º 130, 1995 contextualiza as diferentes fases por que passou tão decisivo litígio. Como diz o autor que distingue seis períodos de litígio, o estudo demonstra como a ONU tentou, primeiro, entre 1961 e 1963 impor-se a Portugal e como este resistiu; de 1964 a 1967 assistiu-se a uma fase de escalada e impasse. Depois da substituição de Salazar, a ONU ensaiou uma via mais moderada, cujo fracasso a levou a tomar medidas sucessivamente mais radicais; após o 25 de Abril, apesar de Portugal ter reconhecido o direito à descolonização e as suas obrigações perante a Carta, a ONU desempenhou um papel secundário e marginal na descolonização portuguesa.

Estamos na paz fria (1956-1960), em 14 de Novembro de 1955 Portugal adere à ONU num cenário de peripécias da Guerra Fria, nesse mesmo dia foram admitidos a Albânia, Bulgária, Cambodja, Ceilão, Finlândia, Hungria, Itália, Jordânia, Laos, Líbia, Nepal, Roménia e Espanha. Em Fevereiro do ano seguinte, o Secretário-Geral enviou ao governo português uma carta perguntando “se administra territórios que entrem na categoria indicada no artigo 73.º da Carta?”. Seis meses depois, o governo português respondia: “Portugal não administra territórios que entrem na categoria indicada no artigo 73.º da Carta”. Começava abertamente o desafio à corrente política mundial, os ventos sopravam anticolonialismo. Salazar não admitia interferências alheias. Perante esta resposta negativa, um conjunto de países subscreveu uma proposta onde se propunha a criação de um comité especial incumbido de estudar esta matéria, além de mais, a Assembleia continuava a considerar as questões relativas ao artigo 73.º como questões importantes, sujeitas à regra da maioria de dois terços, o que descansou Salazar. Mas tudo se vai alterar radicalmente em 1960 com a independência de 18 novos Estados. Na ONU a relação de forças inverte-se, consolida-se uma maioria favorável à descolonização e mesmo os EUA e Reino Unido modificam a sua política, deixando de votar com Portugal.

A política diplomática portuguesa não mais teve descanso, à luz do artigo 73.º, os relatórios sucedem-se aos relatórios sobre autodeterminação, territórios não autónomos, colónias. E no final de 1960, a Assembleia-Geral aprova uma resolução que deixa claro que os territórios sob administração de Portugal eram não autónomos.

De 1961 a 1963 vão chover resoluções na órbita dos acontecimentos de Angola e exige-se a Portugal o reconhecimento imediato do direito dos povos dos seus territórios não autónomos à autodeterminação e independência, com a retirada das forças militares. Começa a luta armada na Guiné e o tom das resoluções endurece: rejeita-se categoricamente o conceito português de províncias ultramarinas; considera-se que a situação nesses territórios perturbava seriamente a paz e a segurança em África; solicitava-se que nenhum Estado facilitasse a repressão ou a ação militar portuguesa naqueles territórios. Salazar responde com o seu discurso de 12 de Agosto de 1963, fecha todas as portas a nível internacional e dramatiza: “nós havemos de chorar os mortos se os vivos os não merecerem”. O isolamento é iniludível, Salazar volta-se para a África do Sul, propõe cooperação. Vão fracassar todas as conversações mediadas pela ONU, mesmo os planos propostos pela administração norte-americana. E no fim do ano 1963 cresce o endurecimento da ONU. Os termos do conflito entre a ONU e Portugal assentavam em três críticas principais: respeito da Carta, observância dos direitos humanos e ameaça à paz e à segurança internacionais. Portugal joga com a sua posição na NATO, mas o cerco diplomático tem vários nomes: o grupo afro-asiático, o bloco comunista, o grupo latino-americano, os europeus que não foram potências coloniais, os EUA, o Reino Unido, a França, a Espanha e a África do Sul. O Brasil de Jânio Quadros e de João Goulart aproximou-se dos Estados afro-asiáticos, os Estados europeus não coloniais apelam a uma descolonização bem-sucedida, a posição dos EUA conhecerá um momento de grande crispação na presidência de Kennedy, doravante terá os seus matizes e até cumplicidades, a RFA e a França não esconderão serem importantes parceiros comerciais portugueses com estreitas relações diplomáticas e militares. Amílcar Cabral, por via da Comissão de Descolonização, traz mais dor de cabeça a Lisboa: denuncia a ajuda militar da NATO, convida a comissão a visitar as regiões libertadas da Guiné-Bissau. A Comissão deixa de falar nos “territórios administrados por Portugal”, passando a referir-se aos “territórios sob dominação portuguesa”. As condenações sucedem-se, a dureza dos termos cresce.

Vai seguir-se um período de moderação na substituição de Salazar por Marcello Caetano, a despeito do governo português não dar qualquer sinal sobre um eventual reconhecimento do direito à autodeterminação, os termos suavizam-se, nas resoluções pede-se a Portugal, repetidamente, que não utilize meios de guerra química contra as populações. Em 22 de Novembro de 1970 o governo português põe-se a jeito, graças ao ataque a Conacri, rapidamente se percebeu que a condenação portuguesa pelo Conselho de Segurança trazia uma nova destabilização: a presença de navios soviéticos nas águas da República da Guiné, a URSS legitimava a sua presença na África Ocidental. Aumentavam os efetivos e as despesas militares, tirando o controlo da guerrilha no Norte de Angola, tudo alastrava na Guiné e em Moçambique.

E assim se chegava ao agravamento do litígio e isolamento português. Em Fevereiro de 1972, durante uma sessão do Conselho de Segurança em Adis-Abeba, Amílcar Cabral implicava maiores responsabilidades para o próprio Conselho, dizendo: “Aquele que não compreendeu a nossa natureza de soldado anónimo das Nações Unidas não compreendeu os princípios desta mesma Organização nem os objectivos da libertação nacional”. E colocou a questão do reconhecimento de representatividade do PAIGC, evocando, pela primeira vez perante a ONU, o problema da admissão da Guiné libertada na ONU. Uma delegação do Comité de Descolonização deslocara-se ao interior da Guiné e produzira um relatório favorável, a resolução daí adveniente foi o de apelar a que Portugal encetasse negociações para dar uma solução ao conflito armado. Em 1973, tudo se altera com a declaração unilateral da independência da Guiné-Bissau e à volta do 25 de Abril de 1974 a ONU preparava-se para receber a nova República.

Depois de um sinuoso processo em que Spínola se confrontou com o MFA e os partidos que sempre reclamavam a autodeterminação e a independência, aprovou-se a lei constitucional 7/77, de 27 de Julho, estava aberto o caminho para o reconhecimento da Guiné-Bissau e para negociações com os movimentos de libertação. Nesta fase da vida diplomática portuguesa procurou-se atrelar o processo da descolonização à ONU, era esta a estratégia de Veiga Simão e Spínola, exceção seria a Guiné-Bissau. Em 17 de Setembro, a Guiné-Bissau foi o 138.º Estado-Membro a ser admitido. Terminava o litígio com a ONU iniciado em 1960. Mário Soares pronunciou o seu primeiro discurso em 23 de Setembro, subordinado ao tema O Novo Portugal e as Nações Unidas. Cerca de um mês depois, Costa Gomes era o primeiro presidente da república portuguesa a intervir na ONU, pôde dirigir-se “a todos os povos do mundo”.

Assembleia Geral da ONU
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Nota do editor

Último poste da série de 8 de fevereiro de 2019 > Guiné 61/74 - P19481: Notas de leitura (1148): Os Cronistas Desconhecidos do Canal do Geba: O BNU da Guiné (72) (Mário Beja Santos)

Guiné 61/74 - P19489: A Galeria dos Meus Heróis (21): O "Duque de Palmela" ou o pão que o diabo amassou - Parte I (Luís Graça)

Luís Graça, ex-fur mil, CCAÇ 12,
 Contuboel, junho de 1969
A galeria dos meus heróis > O “Duque de Palmela” ou o pão que o diabo amassou - Parte I



por Luís Graça




1. “Duque de Palmela” foi alcunha que lhe puseram na tropa. Muitos militares tinham como alcunhas os nomes das terras donde provinham. Assim era mais rápido distinguir os Silva, os Santos, os Ferreiras, etc. , em cada pelotão ou companhia. E sempre era mais fácil que fixar o número mecanográfico, que na realidade ninguém sabia decor…

O Santos, antigo 1º cabo, emociona-se quando fala da Guiné. Dos camaradas que lá ficaram, uma boa meia dúzia. Dos que regressaram e que ele nunca mais voltou a ver. Da fome que passaram. Dos “embrulhanços”, das emboscadas no mato, das minas nas colunas logísticas, dos ataques e flagelações aos aquartelamentos,  destacamentos e tabancas… Do pão que amassou e cozeu em fornos, às vezes improvisados… E, claro, das “beijudas”… E ainda da sorte que, afinal, só teve na guerra, ao trocar a G3 pela amassadeira e a 
pá de padeiro...

Ainda se emociona, enfim, quando fala da sua infância e adolescência, marcadas pela pobreza e pela orfandade.

− Camarada, comi o pão que o diabo amassou!


2. Nasceu nas faldas da serra da Arrábida, perto da Quinta do Anjo, no concelho de Palmela. O pai, J. Santos, era de origem beirã, nascido em Gouveia. Fixou-se por ali, com a família, no início dos anos 30. Era pastor, quando, no período da II Guerra Mundial, fui chamado a cumprir o serviço militar obrigatório. Mobilizado pelo RI 11, em Setúbal, esteve como expedicionário, na ilha do Sal, em Cabo Verde. Rapou fome e sede, apanhou o escorbuto e nunca mais ficou bom dos pulmões. Regressou em 1943, casou em 1944, e teve o seu primeiro filho em 1945. O nosso herói.



3. Filho e neto de pastores, o J. Santos pastor continuou a ser, em regime de parceria pecuária. Tinha um rebanho de ovelhas que não era seu, era do patrão, um fabricante de queijo de Azeitão, um dos fundadores da cooperativa local em 1945.

No final do ano tinha direito a algumas crias que podia vender, mais tarde, como borregos, machos, em especial na altura da Páscoa, em que havia maior procura. O seu salário-base era uma miséria. Nunca conseguiu chegar a ter um rebanho seu.

Analfabeto, descobriu, por si mesmo, a importância que era saber ler, escrever e contar. Em Cabo Verde, tinha que pedir ao seu 1º cabo, um rapaz de Sesimbra, para lhe ler as cartas que recebia da namorada e dar-lhe a resposta na volta do correio.

Quando voltou à terra e casou, jurou a si mesmo que os seus filhos, se fossem machos, teriam que ir à escola, custasse o que custasse. Só teve rapazes e todos fizeram a 4ª classe, ou andavam na escola quando ele morreu, cedo, aos 38 anos, com a “doença dos pulmões" que trouxera da ilha do Sal.


Deixou viúva e 4 filhos menores. Estamos em 1958, o ano do ciclone político chamado general Humberto Delgado. Salazar continuaria sentado na cadeira do poder, mas o país nunca mais voltaria a ser o mesmo: no final dos anos 50 tinha começado a grande debandada rural…


4. O “Duque de Palmela”, o M. Santos, era o mais velho dos quatro irmãos. Tinha 13 anos. A mãe, viúva, ficou desamparada. Pouco ou nada tinha de seu. Vivia num casebre, com cobertura de colmo, numa propriedade do patrão e, por esmola, lá continuou a viver com um pequeno pedaço de horta que lhe dava uma mancheia de batatas e couves…

Naquele tempo não havia Segurança Social. A não ser para uma minoria de trabalhadores da indústria e serviços, cobertos pelas caixas de previdência, criadas no âmbito do sistema corporativo do Estado Novo. Os portugueses estavam divididos em três categorias sociais, conforme o rendimento: pensionistas, porcionistas e… indigentes. Só estes, uma espécie de párias, tinham direito a internamento hospitalar gratuito nos hospitais públicos, que de resto se contavam pelos dedos… Hospital queria dizer, até então, local onde se acolhem doentes pobres. Só os pobres iam para os hospitais para serem tratados e, em muitos casos, morrer. Os ricos tratavam-se e morriam... em casa.


5. O “Duque de Palmela” pegou numa sacola de serapilheira e aos treze anos, “homem já feito”, não teve outro remédio senão o de estender a mão à caridade, metendo-se ao caminho para arranjar o sustento da família.

− Não tenho vergonha de o contar aos meus netos que hoje vestem roupas de marca, e têm, cada um, o seu carro: uma rapariga que ainda anda na universidade e um rapaz, que já ajuda o pai, na administração da Panificadora, depois de tirar o curso de gestão hoteleira.

Bateu casais e aldeias nas faldas da serra, desde Azeitão e Quinta do Anjo até à vila de Palmela, "estendendo a mão à caridade". Ao fim do dia sempre havia algum pão, queijo, chouriço, toucinho, etc., para fazer o caldo, e meia dúzia de tostões, para além da fruta e legumes que ia surripiando, aqui e acolá, à beira dos caminhos.

− Os meus netos, uma vez, espantados, perguntaram-me se eu tinha passado fome… E eu respondi-lhes: ‘Não, meus queridos, eu, a vossa avó e os vossos tios não morremos de fome, graças a Deus… mas passámos muitas necessidades’… O que é diferente.

E, em jeito de conclusão, acrescentou:

− A roupa que tínhamos no corpo, aos mais novos, que ainda andavam na escola, valeu-nos a distribuição do pão, queijo e leite da Cáritas, para além do vestuário e do calçado em 2ª mão. Mas eu, aos 13 anos, fiquei conhecido como o “pé descalço”, porque as únicas botas que tinha, no tempo do meu pai, deixaram-me de servir…

− Camarada Santos, quantas histórias iguais à sua não poderiam contar muitos de nós que passámos pela Guiné ? Éramos um país de pobreza envergonhada! – interrompi eu.

− Diz bem, camarada, pobreza envergonhada!... Nos primeiros dias e semanas, custa muito um gajo estender a mão à caridade dos outros.. E eu já não era uma criança inocente… Corava de vergonha e baixava os olhos quando eram raparigas ou jovens mulheres que me vinham abrir a porta…


6. Depois a mãe pô-lo a trabalhar, por volta dos 14 anos. Teve vários ofícios. Andou a trabalhar à jorna no campo, na debulha do trigo, e foi aprendiz de moleiro. Só não quis ser pastor como o pai. Na altura cultivava-se muito cereal por aquelas bandas, e não faltavam moinhos de vento.

Até que por volta dos 16 anos arranjou trabalho como ajudante de forneiro numa panificadora, num dos  concelhos vizinhos. Comprou uma “pasteleira” em segunda mão, ia e vinha todos os dias de bicicleta, com sol ou com chuva… Cerca de 20 e tal quilómetros, ida e volta.

Ainda se cozia o pão a lenha, nessa época, só mais tarde vieram os fornos a eletricidade e depois a gás. A ver os colegas a amassar, a estender a massa, a cortar e a enfornar, depressa aprendeu o ofício de padeiro. De resto, a sua mãe também fazia pão em casa, com sobras da farinha do moleiro ou da Cáritas. Foi com ela que aprendeu mais alguns pequenos segredos da arte de padeiro.


7. Aos vinte anos foi chamado para a tropa, já a guerra tinha rebentado em Angola, e depois na Guiné e em Moçambique. Pela primeira vez, saiu da região: a viagem que tinha feito mais longe fora até Setúbal. Lisboa ficava na outra margem do rio Tejo, e ele nunca tinha andado de barco. Mais longe era ainda o Porto, aonde se chegava de comboio.

Deram-lhe a especialidade de atirador de infantaria, foi mobilizado para a Guiné, formou companhia no Campo Militar de Santa Margarida. E numa madrugada fria de inícios do ano de 1966 chegou de comboio ao Cais da Rocha Conde de Óbidos para embarcar, com a sua companhia, independente.


8. Na instrução da especialidade, o M. Santos foi o primeiro classificado em quase tudo. Ninguém o batia na carreira de tiro, com a G3, nem os oficiais do quadro permanente que vinham da Academia Militar, e que tinham muito mais treino. Nas provas físicas, era o campeão. Fazia um crosse de 30 quilómetros, quase a brincar, deixando a “concorrência” a grande distância. Baixo, entroncado, com um boa caixa de ar, era o típico militar português, de origem rural, capaz de sobreviver a muitas provações e até desaires. Vaticinava o segundo comandante da companhia, que tinha feito o “curso de operações especiais” de Lamego, ao mesmo tempo que evocava o exemplo do "Palmela" (mais tarde, já na Guiné, "Duque de Palmela"):

− Na hora do combate, debaixo de fogo inimigo, o “Palmela” será o primeiro a reagir, de pé, sem medo, o peito feito às balas… Nos ataques ao quartel, será o primeiro a saltar para as valas e a varrer o inimigo na orla da mata, ou junto ao arame farpado…

− E assim foi – confirmou o “Duque de Palmela” −, na primeira emboscada que tivemos, logo numa das primeiras colunas logísticas, uma vez que fomos buscar mantimentos a Buba, eu fui o único que fiz fogo de pé… Valeu-me o capitão, a meu lado, que me obrigou a amochar os cornos… E no primeiro ataque a um dos nossos destacamentos, fui eu e o capitão que manobrámos o morteiro 81, o capitão punha as granadas e eu aguentava o tubo com o ombro… No meio daquela confusão toda, não tínhamos o tripé, só o prato…

Se fosse furriel ou alferes, o “Duque de Palmela” tinha-se oferecido para os comandos.

− Chumbaram-me nos psicotécnicos, não sei porquê. Com números e letras é que nunca fui bom na tropa. Tirei a 4ª classe à rasquinha, não tenho vergonha de o dizer.

− E para os paraquedistas ? – atrevi-me eu a sugerir.

− Para os paraquedistas, nem pensar. Nunca me deu bem com as alturas! – explicou ele.


9. Ainda em Santa Margarida foi abordado por um oficial, português, com brilhante currículo em África, um dos heróis de Angola em 1961. O Santos disse-me o nome, mas por razões óbvias não o vou aqui citar. Andava ele, mais um cabo miliciano, e um primeiro sargento, a recrutar futuros voluntários para a Rodésia, a África do Sul e sobretudo o  Vietname.

− 'No caso de regressares com vida e saúde, como esperamos, finda a tua comissão na Guiné, tens aqui o meu contacto. Podemos fazer um pré-contrato. Se quiseres, assinas já, sem compromisso’… Esperamos por ti! − disseram-me eles.


Para o “Duque de Palmela” era a sua “independência económica, o prémio da lotaria que nunca lhe calhara, porque também nunca tivera dinheiro para jogar”!, exclamou ele, com um brilhozinho nos olhos.

Sobretudo, no Vietname, um 1º cabo de infantaria era capaz de ganhar tanto ou mais do que um capitão na Guiné, garantia-lhe um dos engajadores.

Começou a fazer contas por alto, e a ficar baralhado com os números. A cabeça nunca mais teve sossego. O risco era “um gajo lerpar e ficar por lá”. Mas isso também podia acontecer na Guiné, logo aos primeiros tiros. Era só preciso “confiar na estrelinha da sorte” e “rezar, todas noites, ao anjo da guarda", conforme a mãe lhe recomendara.

Confessou-me que nessa altura nunca ou raramente pensava na morte.

− Quando um gajo tem 20 ou 21 anos, não pensa sequer na morte. Tem a vida toda à frente dele. E nem sequer é capaz de imaginar o sofrimento daqueles que o amam… e que estão longe!

Por outro lado, quando embarcou em Lisboa, com destino à Guiné, os seus sentimentos eram muitos diferentes de boa parte dos seus camaradas:

− Para alguns dos meus camaradas, era como ir para a forca! Houve quem chorasse baba e ranho. Havia-os já casados e com filhos… Mas, para mim, não!... Não vou dizer que fiz uma festa a bordo, mas não conseguia esconder que estava algo excitada com a ideia de ir para a a guerra, a milhares de quilómetros de casa.

− Excitado ?!... Mas com saudades, não ?!...

− Claro, tive saudades da minha mãe e irmãos, ficaram cá dois para ajudá-la. O outro, a seguir a mim, já tinha cavado para França, e mandava-nos algum dinheiro.

E depois fez-me uma confidência:

− Nunca contei isto a ninguém, muito menos à família. Eu parecia um puto a quem deram um brinquedo, neste caso a G3. Mal comparado, era como o cão de caça, excitado pela algazarra dos homens e animais, antes dos caçadores e das matilhas largarem para a caça…

−É caçador, o camarada ?

− Tenho poucos vícios, mas este é um deles…

− Em suma, convenceram o camarada de que era um bom soldado e um grande português!

− E era, sem peneiras! Oxalá todos fossem como eu, ontem e ainda hoje! A vida foi-me madrasta até aos vinte e tal anos, mas depois compensou-me. Posso bem dizê-lo: passei um terço da minha vida, até aos vinte e tal anos, a viver mal, a comer o pão que o diabo amassou… E os outros dois terços a viver menos mal, graças a Deus. Claro, a trabalhar 12 horas e mais por dia na Panificadora…


A sua ideia fixa era ganhar dinheiro, "manga de patacão",  para depois montar o seu negócio quando voltasse:

− Estava a apontar lá para os 30 anos… Nessa altura, arrumava a farda, a espingarda automática, as cartucheiras e as botas… Regressava à terra, casava-me, constituía família, tornava-me um gajo decente, comprava um carro… Abria um café com fabrico próprio de pastelaria, em Palmela ou nas terras próximas…


10. Está grato a duas pessoas que lhe tiraram da cabeça “essa maldita ideia de ir para o Vietname”. Estava a ser uma obsessão. Nos primeiros tempos de Guiné, não se coibiu de partilhar o “segredo” com alguns dos seus camaradas mais próximos. Não sabe bem porquê, nem exatamente quando, começou a convencer-se de que poderia ficar “rico” se enveredasse pela vida de “mercenário” ou “legionário”. Impacientava-se, ainda tinha quase dois anos pela frente até acabar o raio da comissão na Guiné. 


Chegou a mesmo a arquitetar um plano para “desertar”, fugindo pela Guiné-Conacri. Afinal, a fronteira era ali tão perto. Bastava, numa noite de luar, ir à tabanca, e não voltar ao quartel, despedir-se da sua “beijuda” e, por volta das 3 da madrugada, rezar ao seu anjo da guardar e… zarpar!

Começou a estudar os trilhos que levavam à fronteira e que eram conhecidos dos gilas, os comerciantes ambulantes. O problema é que não tinha nenhum mapa do país vizinho. E depois havia a língua, as comunicações, os transportes, os papéis, o risco de ser apanhado pelo PAIGC ou pelas autoridades da Guiné-Conacri… E, claro, "encostado a um poilão" para lhe limparem o sebo!


Por outro lado, interrogava-se ele, como é que voltaria a contactar o grupo dos engajadores, que de resto eram portugueses e militares do exército português?!... Que história é que ele lhes iria contar ? … A par disso,  ele sabia que a estadia na Guiné, em zona de guerra, era fundamental para fazer currículo e se poder alistar amanhã num exército estrangeiro… E, por certo, eles não iriam querer um “desertor" no seu lote...

O seu sonho começou a cair por terra, como um castelo de cartas, à medida que se avolumavam as dificuldades para pôr em prática os seus planos de fuga… Começou a ter problemas de “consciência” e a “dormir mal”: desertar era virar as costas aos seus camaradas de armas, alguns dos quais eram já seus amigos do peito. E, se fosse apanhado, pelo lado português, tinha a vida estragada, apanhava uma porrada, uns bons anos de prisão… Até o poderiam fuzilar, alguém lhe tinha dito que, numa situação de guerra, podiam levar um desertor a um tribunal de guerra, condená-lo à morte e fuzilá-lo, sem apelo nem agravo…

Enfim, a coisa estava a tornar-se feia…



Na altura tinha várias madrinhas de guerra, mas havia uma com quem simpatizava mais. Era alentejana, “ali de Santiago do Cacém”.

− Olhe, acabaria por ser a minha senhora… Casámo-nos passado um ano e tal, do meu regresso da Guiné. Foi ela quem me tirou da cabeça essa “ideia maluca” de ir para o Vietname... Também me falavam da ‘Legião Estrangeira’ mas os sacanas dos franceses pagavam pior que os americanos..


11.E a outra pessoa a quem ele ficou “grato para o resto da vida”, foi o capitão, o seu comandante de companhia.

Era miliciano, tinha pelo menos dez anos a mais do que a maioria dos graduados da companhia, os alferes e os furriéis. Nunca confessou a ninguém o que pensava daquela guerra, mas estava lá porque fora “obrigado como a grande maioria do pessoal”… 


Aceitou a missão de comandar aqueles 160 homens e jurou, perante eles, todos formados na parada do Campo Militar de Santa Margarida, na véspera de partirem para o embarque, fazer tudo para os trazer de volta, "sãos e salvos", de regresso a casa e às suas famílias…

Sabia-se pouco sobre ele e a sua vida, se era casado, se tinha filhos, o que fazia na vida civil… Não era pessoa de muitas falas… Mas a verdade é que nunca se deixou intimidar quer pelo inimigo quer pelos superiores hierárquicos. Soube sempre defender, tanto quanto possível, os interesses e os bem-estar dos seus homens, pese embora a companhia ter feito uma boa parte da comissão às ordens do batalhão de Buba.

− E lá, fomos carne para canhão!... O primeiro ano foi duro… E tivemos os primeiros mortos… Depois ficámos em quadrícula, espalhados por alguns destacamentos e a ajudar a reforçar a autodefesa de algumas tabancas fulas da região do Forreá.

O capitão acabou por saber do “segredo de Polichinelo” do “Duque de Palmela”… Às tantas só faltava publicar na “ordem de serviço” um requerimento dele a pedir a autorização para se alistar nas tropas do Tio Sam…

Como o capitão o achava “temerário”, para não dizer "prematuramente apanhado do clima”, na melhor ocasião retirou-o do 1º pelotão, com o acordo expresso do respetivo alferes com quem, de resto, o nosso 1º cabo Santos, o “Duque de Palmela”, não fazia “farinha”…

− ‘Antes que o gajo faça alguma maluqueira e nos estrague a vida a todos’ – terá dito, na altura, o capitão.

Sabendo da sua profissão na vida civil, pôs o “Duque de Palmela” na padaria. Para qualquer outro no seu lugar, seria um prémio, uma promoção. Mas, para o nosso homem, foi uma tremenda desconsideração, quase uma despromoção… Padeiro era básico, tal como o cozinheiro… Nessa noite apanhou uma “cadela de todo o tamanho”…

− … Mas no dia aprazado já lá estou eu, no meu posto, a substituir o padeiro da companhia que, vim a saber mais tarde, tinha sido transferido para Bissau… 


De facto, o rapaz, que o Santos foi substituir,  fora pai, e logo de dois gémeos. Alguém meteu uma cunha à Cilinha, a patroa do Movimento Nacional Feminino. E o rapaz lá foi para o “bem bom” do quartel de Santa Luzia, em Bissau. Apesar de continuar com a exercer a sua especialidade, que era a de fazer pão para a tropa...  

(Continua)



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Nota do editor: