sexta-feira, 8 de fevereiro de 2019

Guiné 61/74 - P19481: Notas de leitura (1148): Os Cronistas Desconhecidos do Canal do Geba: O BNU da Guiné (72) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 18 de Maio de 2018:

Queridos amigos,
A franqueza, por vezes brutal, o completo desassombro, o rigor dos números e das propostas, deixam-nos estupefactos. Estes apontamentos que Castro Fernandes, figura lídima do Estado Novo, envia à governação do BNU em 1957, não poderá deixar insensíveis os estudiosos da História da Guiné.
Castro Fernandes não mascara as situações de conflito, os enredos e as intrigas, o que pensa sobre o funcionalismo e os comerciantes, o que há de bom e de mau na exploração dos recursos económicos. Salta à vista que está muitíssimo bem documentado e veremos que quando refletir sobre os problemas que interessam diretamente ao BNU, tem soluções na manga. Não se conhece, ao tempo, documento mais importante sobre o que era a Guiné e os remédios para a desenvolver, numa perspetiva colonial.

Um abraço do
Mário


Os Cronistas Desconhecidos do Canal do Geba: O BNU da Guiné (72)

Beja Santos

Os apontamentos elaborados pelo Administrador António Júlio de Castro Fernandes depois da sua viagem à Guiné, que ocorreu entre março e abril de 1957, trazem uma outra iluminação sobre conceitos coloniais, instituições, pessoas, potencialidades económicas e até o sistema financeiro. É, não vale a pena iludir, um relevantíssimo documento que abre também caminho a sabermos mais sobre as propriedades do BNU na Guiné e o que era esperado por este Banco quanto à Sociedade Comercial Ultramarina.

Falou largamente sobre o contencioso do Perfeito Apostólico com o novo Governador, Álvaro da Silva Tavares, não descurando a observação de que, fruto da intensa islamização, não era o mais acertado recorrer às escolas das missões, mas sim às escolas laicas para incrementar a alfabetização.
E esboça um retrato do atual Governador:
“Foi Delegado do Procurador da República na Guiné durante quatro anos, Juiz no Bié e em Luanda, Procurador da República junto da Relação de Goa, Secretário-geral do Estado da Índia. É um homem novo, de 42 anos, bastante culto, com uma boa leitura, e manifestamente inteligente. Conhece a Guiné e os seus problemas. É muito trabalhador. Pareceu-me, apenas, hesitante ao passar do pensamento à acção – tem talvez o defeito de examinar as soluções por todos os lados de forma que encontra sempre razões para ter receio de as adoptar…
Não é fácil a sua tarefa: actua num meio extremamente complicado, não tem colaboradores, tem de se mover numa orgânica que, a meu ver, não corresponde hoje às necessidades das Províncias Ultramarinas”.

Tenho para mim que alguns dos parágrafos mais elucidativos sobre a vida colonial guineense saíram do punho de Castro Fernandes quando ele fala do meio social. Recorda que a população civilizada da Guiné é constituída por 1500 metropolitanos, 1700 cabo-verdianos, 4000 guineenses e uns 500 libaneses, núcleo de cidadãos concentrados nas cidades e vilas.
São todos ou comerciantes ou funcionários:
“Os comerciantes são, acima de tudo, traficantes – o indígena é, dizem, a principal riqueza da Guiné. O comércio tem por missão explorar esta riqueza. De resto, o indígena já o sabe e tanto que o Balanta diz para o branco ‘furta me ma piquinino’.
Os funcionários são, de uma forma geral, do pior que há. Só vão para a Guiné ou os castigados ou os que não têm classificação para serem colocados noutra Província ou como ponto de passagem para outro lado. Como nível cultural, não vão além do Reader’s Digest, como nível social está pouco acima, se está, do possidonismo da pequena burguesia das nossas vilórias. Claro que há excepções e que talvez eu exagere um pouco a caricatura – assim, fiquei espantado ao saber que os discos de música clássica se esgotavam logo que eram postos à venda; encontrei algumas pessoas com certo interesse e até com boas maneiras, mesmo no Interior.

A intriga é, além do consumo do whiskey por parte dos homens e da canasta por parte das senhoras, o entretenimento favorito dos cidadãos e cidadãs de Bissau. Serve de pretexto desde os negócios sentimentais até ao corte dos vestidos.
A vida – apesar de os ordenados dos funcionários serem pequenos – é contudo agradável no aspecto da comunidade. Um Chefe de Posto, que é evidentemente pessoa modesta, geralmente de extracção social modestíssima, vive confortavelmente: tem uma boa casa, a geleira repleta de boas coisas (com conservas de frutas, sumos, fiambres, etc.), sipaios para todos os serviços de casa, etc. Os Chefes de Circunscrição são principezinhos. Tanto uns como outros são presenteados largamente – quer pelos indígenas, quer pelos comerciantes – e conseguem fazer economias que geralmente estoiram durante as licenças graciosas passadas em Lisboa.

Em Bissau vive-se bem. Como as exigências não vão muito além da boa mesa, têm-na farta. E todos têm automóvel. E bons aparelhos de telefonia com gira-discos moderníssimos. E fatos de bons tecidos. E vestidos janotas. E perfumes e águas-de-colónia. E casas agradáveis… embora de péssimo gosto.
De resto, sem este mínimo de conforto, a vida seria impossível – dada a hostilidade do clima.
Este quadro, apenas esboçado, dá ideia das dificuldades de encontrar pessoas capazes de levarem a cabo uma obra de grande envergadura.
Os vícios inerentes a um meio como este não podem facilitar uma acção que pretenda sanear a vida económica e política da Província, criando maior riqueza ou preservando a que existe.
Salvo o devido respeito – que é muito – pelos que conhecem profundamente os problemas ultramarinos, afigura-se-me que o principal drama da Guiné (como de Cabo Verde), no aspecto da categoria dos funcionários técnicos, reside principalmente na existência dos dois quadros, o metropolitano e o ultramarino.

Examinemos, por exemplo, os serviços da agricultura. Do Instituto Superior de Agronomia sai todos os anos uma fornada de agrónomos. Todos procuram ingressar nos quadros do Ministério da Economia, onde são colocados como agrónomos de terceira classe com ordenado modesto de entrada, mas onde lhes é possível exercer outras actividades ligadas à profissão. Vão para o Ministério do Ultramar, normalmente, os que ou não tiveram possibilidade de ficar por lá ou os que têm necessidade, logo de entrada, de um ordenado maior. Destes, os que podem vão para Angola ou Moçambique, os outros, pobres deles, vão parar com os ossos à Guiné ou a Cabo Verde. E, então, sucede que o Director dos Serviços Agrícolas, por exemplo, da Guiné ou não tem categoria para o lugar, porque é fraco profissionalmente, ou porque não teve a prática necessária para desempenhar eficazmente tal cargo.
A meu ver, a Guiné, como Cabo Verde, como provavelmente São Tomé (limito-me às Províncias do meu pelouro) só terão resolvido o seu problema de pessoal técnico quando os funcionários, todos do mesmo quadro, forem destacados em comissão durante um certo período (refiro-me, já se vê, ao pessoal dirigente). No estado actual das coisas, não me admira que o Engenheiro-Agrónomo Director dos Serviços Agrícolas da Guiné vá pedir ao Agrónomo-Chefe de Ziguinchor que lhe dite um relatório sobre a mancarra…
Quanto aos quadros – a sua exiguidade é perfeitamente lancinante. Basta dizer que à Repartição dos Serviços de Agricultura e Veterinária está consignada, no orçamento deste ano, a verba de 2 mil contos”.

E desloca a sua análise para outro estrato social, os comerciantes:
“Os comerciantes, à parte os quatro grandes – de que me ocuparei na devida altura – ou são libaneses ou gente sem nível e sem preparação.
Não existe um comércio diferenciado, constituído por indivíduos com iniciativa, recursos, capacidade.
Na Guiné desagua o aventureiro ou o desiludido. Sujeitos que para ali foram tentar a vida e que se limitam, com maior ou menor êxito, a explorar o indígena, comprando-lhe os produtos que vendem aos grandes, e vendendo-lhes o que podem. Mais pormenorizadamente me ocuparei adiante da forma como o comércio é exercido. Neste capítulo, limito-me a denunciar o baixo nível social desta classe”. E conclui: 
“De modo que, o meio social da Guiné Portuguesa é constituído pelo funcionalismo – de uma forma geral mau, embora se devam apontar algumas excepções (e honrosíssimas), sobretudo no pessoal das missões encarregadas da execução do Plano de Fomento, no quadro clínico da Missão do Sono, na Missão Geoidrográfica, etc. – e pelo comércio cujo nível já se denunciou. O restante são empregados onde predominam os cabo-verdianos”.

Seguir-se-á um apanhado detalhado sobre recursos económicos. Logo o amendoim ou a mancarra. Constitui o principal produto de exportação da Guiné, a produção é da ordem das 35 mil toneladas e a exportação de sementes de amendoim para a Metrópole em 1952, foi também de 35 mil toneladas. A produção tem vindo a aumentar de ano para ano, tendo passado para o dobro desde 1926/30 a 1946/50. A Guiné Portuguesa é o quarto exportador do continente africano e o principal abastecedor da Metrópole. A cultura da mancarra é feita inteiramente pelos indígenas em regime de rotação. A área de maior produção coincide com a circunscrição de Farim e parte norte de Bafatá a Gabu. O aumento da produção não deve fazer-se à custa do actual equilíbrio do meio natural, isto é, o aumento da produção pelo incremento da destruição vegetal e pelo encurtamento dos pousios conduzirá à senegalização dos solos. Este aumento, que pode crescer consideravelmente, tem de ser feito pela progressiva melhoria das sementes, pela sua distribuição ao indígena, pela armazenagem do produto, pela adaptação de técnicas culturais mais perfeitas.

O amendoim é quase todo embarcado para o exterior por descascar. A casca representa em peso 25% da semente. Só a Casa Gouveia possui um descasque no Ilhéu do Rei. A Sociedade Comercial Ultramarina é a única que possui uma instalação para produzir óleo de amendoim. Esta situação da exportação da mancarra em casca é hoje única em toda a África. A exportação da ginguba (mancarra descascada) teria como vantagens óbvias uma considerável economia no transporte, uma melhor selecção do produto, mão-de-obra que ficava na Província. Tem sido preconizado que o indígena fosse obrigado a apresentar ao comércio o produto sem casca, ou que o descasque se efectuasse em pequenas máquinas instaladas nos centros de compra mais afastados dos pontos de exportação.
O problema da selecção de sementes e da construção de celeiros para o seu armazenamento começa agora a ser encarado.
O comércio da mancarra obedece aos princípios em que assenta todo o comércio da Guiné: exploração do indígena, corrupção de funcionários, concorrência desenfreada.

Existem na Guiné quatro grandes casas exportadoras – Casa Gouveia, Sociedade Comercial Ultramarina, Barbosas, Nosoco – logo seguidas por Aly Suleiman, que é um pequeno exportador e, ao mesmo tempo, vendedor à Casa Gouveia, além de mais umas seis firmas. As grandes firmas operam, essencialmente, por duas formas: através das suas operações ou lojas estabelecidas no interior, pela compra do produto aos intermediários, pequenos comerciantes independentes espalhados pela Província. A compra ao indígena faz-se por dois processos: ou vão directamente às tabancas ou o indígena vem às lojas vender o produto (na generalidade, os pequenos e médios comerciantes queixam-se da faculdade que a todos é concedida de comprarem a mancarra nas tabancas; argumentam que se o indígena fosse obrigado a vender a mancarra nas lojas, compraria panos, contas, etc. e que, assim, recebem o dinheiro e, pago o imposto, gastam o resto em aguardente; além de que tal prática facilita a concorrência”.

O relator refere os preços de compra ao indígena em várias localidades da Guiné e observa igualmente que o negócio consiste sobretudo em cada um assegurar-se da maior quantidade possível de produto.

E esta análise de recursos económicos irá continuar com o coconote, arroz, produtos têxteis, e muito mais.

(Continua)

Imagem de uma Festa da Luta Felupe (Eran-ai), tirada em Sucujaque, em 8 e 9 de Abril de 2012, enquanto em Bissau decorria o golpe de Estado. 
Fotografia cedida por Lúcia Bayan, investigadora do povo Felupe, a quem agradecemos a gentileza.

Aeroporto de Bissalanca, anos 1950

Imagem de uma guineense, retirada de um postal à venda no eBay.
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Notas do editor

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2 comentários:

antonio graça de abreu disse...

Um concentrado de gentes de pouca qualidade. O Mário Beja Santos sabe.Calcorreámos todos as mesmas bolanhas.

Abraço,

António Graça de Abreu

Alberto Branquinho disse...

Mário

Interessante análise da sociedade e economia guineense quase, quase no início da guerrilha.
E muita graça tem o dito (dito balanta - seria?) "furta me ma piquinino". É o máximo!

Menos graça tem o lodo e o cheiro a marisco podre que ficava agarrado às calças, às botas (e à alma!) até que se regressasse a quartéis (e não nos quartéis) de quem TEVE que andar a calcorrear bolanhas e tarrafos.

Abraço
Alberto Branquinho