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segunda-feira, 29 de abril de 2024

Guiné 61/74 - P25458: No 25 de abril eu estava em... (34): Fajonquito... "A guerra acabou?!"... E, agora, o que será de nós, "cães rafeiros do quartel", que não cumprimos os nossos sonhos de meninos, que eram ser "comandos"? (Cherno Baldé, Bissau)


Guiné > Zona Leste > Região de Bafatá > Contuboel > Tabanca dos arredores > CCAÇ 2479 (1968/69) (futrura CART 11)  > Centro de Instrução Militar > Um instruendo, de etnia fula, cuja identificação se desconhece... (mas pode ter sido um futuro soldado da CCAÇ 12).

A placa rodoviária assinala alguns das povoações, importantes, mais próximas, a norte: Ginani (17 km), Talicó (22 km), Canhamina (27 km), Fajonquito (30 km), Saré Bacar (39 km), Farim (96 km)... Foto do nosso muito querido amigo e camarada, Renato Monteiro (Porto, 1946 - Lisboa, 2021), que foi instrutor no CIM de Contuboel, ex-fur mil CCAÇ 2479 / CART 11 (Contuboel, Nova Lamego, Piche, 1969/70) e CART 2520 (1970). Notável fotógrafo, com álbuns publicados e diversas exposições, e ainda co-autor, com Luís Farinha, recorde-se, da pioneiríssima Fotobiografia da Guerra Colonial (Lisboa: D. Quixote, 1998).

Foto (e legenda) : © Renato Monteiro  (2007). Todo os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



Cherno Baldé, quadro superior
com formação em economia e gestão,
vive e trabalha em Bissau;
colaborador permanente do nosso blogue:
integra a Tabanca Grande
desde 19/6/2009
1. Texto do Cherno Baldé, com data de Bissau, 26 de abril 2024. 

No 25 de Abril de 1974 (*), eu estava em Fajonquito, e vivia entre a nossa casa e o quartel dos metropolitanos onde passava a maior parte do tempo como faxina na caserna de soldados condutores e mecânicos-auto (**).

Nos primeiros dias após o 25 de Abril de 1974, de repente, o ambiente no aquartelamento mudou, os militares pareciam estar divididos entre a alegria contida e a preocupaçãoo do que viria a seguir. 

O silêncio e os murmúrios tomaram conta do quartel e perante a incredulidade geral dizia-se sem nenhuma certeza que “a guerra acabou”. 

Entretanto a vida no quartel decorria normalmente e os patrulhamentos no mato também.

No seio da população nativa e as crianças a única coisa de que se ouvia falar era “a guerra acabou”. Ninguém sabia explicar como e porquê, pois as informações que circulavam,  baseavam-se sobretudo no diz-que-diz habitual dos tempos da guerra, onde as pouquíssimas informações que se filtravam do quartel,  rapidamente se transformavam em boatos e inconfidências da última hora. 

O que se passava no mato, entretanto, nós não sabiamos, pois nunca tinhamos tido quaisquer ligações.

−  A guerra acabou !?!?... Mas, como assim?!?!....

Na minha cabeça de criança que desde 1963/4 convivia com a guerra (**), simplesmente apareceu um vazio na minha mente, e não sabia o que pensar, não podia conceber que não houvesse guerra com os seus mortos e estropiados, com as luzes nocturnas das aldeias incendiadas.

Parecia uma brincadeira. E agora ?!?!... O que será de nós ?...
Vamos acordar e não pensar na guerra ?!... E os nossos amigos brancos vão partir de novo, sem se despedir, deixando o quartel virado de avesso, qual acampamento de tropas de Gêngis Cão ?!...

No quartel, mais do que antes, os nossos amigos soldados também olhavam para nós com alguma desconfiança, como se esperassem descortinar alguma coisa no nosso comportamento, como se estivessemos a esconder alguma informação vinda de não se sabia donde. 

Na incerteza do momento, as novas e milagrosas palavras em voga, “a guerra acabou,  parece que tinham trazido mais desconforto do que alegria. Os soldados estavam divididos, uma parte era de opinião que, por precaução, as crianças deviam ficar fora do arame farpado, mas a maioria deles não concordava e esses eram os nossos amigos de verdade, também nós estávamos desorientados.

− Chico, vamos à lenha ! 
− chamava o meu bom e turbulento amigo Dias, sentado na velha Mercedes.

Incredulidade, uma alegria contida e medo foram os sentimentos que nos dominaram nos dias que se seguiram aos acontecimentos do golpe militar em Portugal que chegou até nós em forma de uma mensagem codificada e curta, portadora de sentimentos contraditórios: “a guerra acabou ”.

A guerra tinha acabado com os nossos sonhos de crianças de guerra ainda por realizar.

Acabou sem avisar, acabou sem que pudessemos alimentar a nossa fome de servir nos comandos africanos e experimentar a sorte dos audazes, acabou sem podermos hastear a bandeira das nossas ilusões da república pluricontinental e plurirracial do Minho ao Timor, acabou sem podermos roncar, na tabanca, em passos ligeiros, com a farda e os galões de “Furriel” dos nossos sonhos de meninice, acabou sem que pudessemos mostrar a nossa bravura em combate, ambição suprema, genuinamente irrefletida e para a qual, no espírito, no corpo e na alma nos preparávamos há mais de 11 anos. 

Acabou como tinha começado, de forma caótica e de consequências imprevísiveis. Os elementos das nossas milicias estavam desamparadas e não era por menos.

Hoje, decorridos 50 anos, a minha vida é um questionamento constante. Às vezes penso que tive sorte por não ter sido soldado, sobretudo quando leio no Blogue da Tabanca Grande narrativas sobre as vivências dos antigos combatentes dos dois lados, às vezes fico com a sensação de não ter cumprido uma parte importante,  se não crucial, de tal maneira que estava convencido da sua inevitabilidade e que me completaria como homem, a vida de um soldado, depois da estoicidade sem precedentes demonstrada aos 10 anos de idade, na cerimónia tradicional (o fanado) de iniciação à vida adulta.

Com o 25A74, para nós, a guerra das armas tinha cessado, dando lugar a guerra do ilusionismo politico-ideológico, das mentiras pseudo-patrióticas e das mil e umas promessas que
nunca serão cumpridas por essa geração utópica de combatentes que nos fizeram acreditar no país de mel e maná do céu, o milagre da nova Suíça que nasceria nas bolanhas e na terra vermelha da Guiné-Bissau.

António Spínola, retrato
oficial.
Museu da Presidência
da República

(adapt. com a devida vénia)

Todavia, na minha visão pessoal, o verdadeiro 25 de Abril, tinha acontecido em princípios de 1970, quando o general Spinola chegou ao aquartelamento de Fajonquito, sem pré-aviso, e na nossa frente deu um tabefe na cara branca e surpreendida do Capitão da companhia, arrancando-lhe os galões que ostentava, alegadamente, por abuso de poder sobre a população indígena com cumplicidade do chefe tradicional local.

Hoje, sabemos que em 1974, apesar de toda a propaganda veiculada na altura e tendo em atenção o percurso e a real situação vigente, os nossos países ainda não estavam preparados para uma independência total como aconteceu, e a solução federalista proposta e almejada pelo general Spínola, pese embora fora de prazo e contra os ventos da história, seria o mal menor como solução a longo prazo e uma boa forma de levar Portugal a responsabilizar-se e trabalhar em conjunto com as suas antigas colónias sobre medidas para lidar com os legados de todos os seus actos e desventuras ao longo dos séculos nesses territórios, incluindo a contribuição para uma verdadeira reconciliação e justiça entre os seus povos. 

Mas isso sou eu a falar com os meus pequenos botões.

Bissau, 26 de Abril de 2014
Cherno AB

(Revisão/fixação de tecto, negritos: LG)
__________


(**) Vd. a notável série autobiográfica do Cherno Baldé, de que já se publicaram mais de meia centena de postes (fora os "avulsos")> 


19 de junho de 2009 > Guiné 63/74 - P4553: Memórias do Chico, menino e moço (Cherno Baldé) (1): A primeira visão, aterradora, de um helicanhão

sexta-feira, 18 de agosto de 2023

Guiné 61/74 - P24563: Por onde andam os nossos fotógrafos ? (2) Abílio Duarte, ex-fur mil art, CART 2479 / CART 11, “Os Lacraus” (Contuboel, Nova Lamego, Piche e Paunca, 1969/70) - Parte I

Fotoo nº 1 : Lisboa > 20 de junho de 2019 > Uma foto para a eternidade... O último convívio, num restaurante, para uma sardinhada, de quatro Lacraus... Da esquerda para a direita: Renato Monteiro  (1946-2021), Abílio Duarte, Valdemar Queiroz e Manuel Macias, todos ex-fur mil da CART 2479 / CART 11, "Os Lacraus" (Contuboel, Nova Lamego, Piche e Paunca, 1969/70). O Abílio já não estava com o Renato há mais de 30 anos... A pandemia de Covid-19 e os problemas de saúde (do Renato e do Valdemar, ambos vítimas da DPOC - Doença Pulmonar Obstrutiva Crónica) não permitiram que esta sardinhada se repetisse em 2020 e muito menos em 2021.

Foto  nº 2 > Espinho > Silvalde > Fevereiro de 1969 >  CART 2479 / CART 11 >   IAO, Instrução de Aperfeiçoamento Operacional >  Uma "foto histórica" um "ninho" de lacraus, designação do pessoal da futura  CART 11... "Os operacionais da CART 11: o Pechincha (o 2º) está entre mim (o 3º) e o Macias (o 1º) , na primeira fila, da esquerda para a direita".

Foto nº 3> Lisboa > 1969 > Furrieis da CART 2479 > "Jantar de despedida antes do embarque para a Guiné, com o nosso 1º sargento, Ferreira, que chegou a major e já falecido". [O camarada que, no último plano, está a nível acima dos outros, parece ser o mesmo que aparece em igual posição na foto de cima... À sua direita, parece-me ser o Pechincha. E à sua esquerda estaria o Renato Monteiro].

Foto nº 4 >  CART 2479 (futura CART 11)  (1969/70) > > Jantar-convívio dos furriéis milicianos e sargentos em Espinho, dias antes do embarque , que será em 18 de fevereiro de 1969, no T/T Timor. O Valdemar Queiroz está ao centro, todo aperaltado, de gravata e casaco de xadrez...

Foto nº 5 > A bordo do T/T Timor > Fevereiro de 1969 > CART 2479  / CART 11 (1969/70) >  Da esquerda para a direita, os fur mil Pechincha, Valdemar Queiroz   e Abílio Duarte

Foto nº 6 > Guine > CART 11  (1969/71) >  No cais fluvial do Xime >  1969 "Eu [em primeiro plano, à esquerda] e o alferes Martins [em segundo plano] no Xime" [O Xime era a "grande porta de entrada" do leste]

 Fpoto nº 7 > Guiné > Zona leste > Região de Gabu > CART 11 (Nova Lamego, Piche, Paunca, 1969/1970) > Nova Lamego > "Porta de armas": continência à bandeira nacional. 

Foto nº 8

Foto nº 8A 

Guiné > Zona leste > Região de Gabu > Setor de Paunca > Guiro Iero Bocari > CART 11 (1969/70) > O refeitório de toda a malta...

"Vemos o ex-fur-mil Cunha, o ex-alf.mil Fagundo, o ex-1º.cabo enf José António e outros que não identifico a almoçar numa mesa, com o tampo feito de canas entrelaçadas, com o célebre garrafão de vinho e sentados nuns bancos de toros e as crianças à espera, no arame farpado, do 'parte' qualquer coisa que sobrar" (Legenda de Valdemar Queiroz).

Foto nº 9 > Guiné > Zona leste > Região de Baftá > Contuboel > CART 2479 / CART 11 (Contuboel, Nova Lamego, Canquelifá, Paunca, Guiro Iero Bocari, 1969/71) > 1969 > "Em cima de uma montanha de mancarra". 

Foto nº  10 >  Guiné > Zona leste > Região de Gabu > CART 11 (Nova Lamego, Piche, Paunca, 1969/1970) > Piche> 1970 >  De Piche, para Bafatá, num Cessna dos TAGP

Foto nº 11 > Porto, s/d > Muito provavelmente na casa do ex-alf mil Pina Cabral, cmdt do 4º Pelotão da CART 2479 / CART 11: o Umaru Baldé e o Leonel (ex-1º cabo cripto

Foto nº  12 > Nelas > Canas de Senhorim > 31 de maio de 2014 > 24º convívio da CART 2479 / CART 11 (Contuboel, Nova Lamego, Canquelifá, Paunca, Guiro Iero Bocari, 1969/71) > A referir nesta foto o 4º. Pelotão, com o ex-alf  mil Pina Cabral (falecido em 2022)  sentado, mais o Valdemar; à esquerda o ex-1º cabo at  Altino, mais o Manuel Macias, o Abílio Duarte Pinto, o Aurélio e a ainda o ex-fur  mil trms Silva.

Fotos (e legendas): © Abílio Duarte (2023). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Luís Graça & Camaradas da Guiné]


Brasão da CART 11, "os Lacraus"


1. Apresentamos hoje a primeira parte de uma seleção das fotos (*) do Abílio Duarte, ex-fur mil art MA,  CART 2479 (mais tarde CART 11 e finalmente, já depois do regresso à Metrópole do Duarte, CCAÇ 11), "Os Lacraus" (Contuboel, Nova Lamego, Piche e Paunca, 1969/70).  

Faz parte da Tabanca Grande desde 27/8/2010. Tem cerca de 7 dezenas de referèncias no blogue. Esteve no CTIG de fevereiro de 1969 e a dezembro de 1970.

Na CART 2479/CART 11 havia pelo menos dois furriéis com máquinas fotográficas: ele e o Cândido Cunha. O Abílio Duarte, bancário reformado, residente na Amadora, continua a fazer alguma fotografia, nomeadamenmte por ocasião dos convívios anuais dos "Lacraus".

Temos dúvidas sobre a autoria de uma ou outra foto (por exemplo, nº 2, 3 e 4). Se não forem do Abílio Duarte, poderão ser do Valdemar Queiroz ou do Càndido Cunha (que ainda não integra, formalmente, a nossa Tabanca Grande)... 

Há "fotos comuns", nas companhias, sendo difícil (ou mesmo impossível hoje) descobrir quem foi o fotógrafo. Os créditos fotográficos, no nosso blogue, são em princípio atribuídos aos donos dos álbuns fotográficos (**) que sáo partilhados connosco...

A numeração das fotos selecionadas (pelo editor LG) segue apenas um critério de conveniència. E ajudam o leitor que queira fazer um comentário (corrigindo ou melhorando a legenda). Peço também ao Valdemar Queiroz que dè uma "olhadela" às imagens e às legendas.

(Continua)

____________

Notas do editor:

(*) Último poste3 da série > 15 de agosto de  2023 > Guiné 61/74 - P24555: Por onde andam os nossos fotógrafos ? (1); Luís Graça

(**) Fotos selecionadas dos seguintes postes:


11 de julho de 2022 > Guiné 61/74 - P23422: Frase do dia (1): Faz hoje 55 anos que entrei para a tropa, em Santarém. Tinha 22 anos feitos, regressei com quase 26... (Valdemar Queiroz, ex-fur mil at art, CART 2479 / CART 11, Contuboel, Nova Lamego, Canquelifá, Paunca, Guiro Iero Bocari, 1969/70)

10 de julho de 2021 > Guiné 61/74 - P22360: In Memoriam (397): Renato Monteiro (Porto, 1946 - Lisboa, 2021), ex-fur mil, CART 2439 / CART 11 (Contuboel e Piche, 1969), e CART 2520 (Xime e Enxalé, 1969/70)... "Morreu o meu querido amigo, no passado dia 7... Escrevo a notícia a chorar" (Valdemar Queiroz)

1 de maio de 2021 : Guiné 61/74 - P22160: Fotos à procura de... uma legenda (150): a continência à(s) bandeira(s) (Valdemar Queiroz)

1 de julho de 2019 : Guiné 61/74 - P19935: (De)Caras (131): Um ninho de "lacraus", em Espinho, Silvalde, fevereiro de 1969, na véspera de partida para o CTIG (Valdemar Queiroz / Abílio Duarte, CART 2479 / CART 11, 1969/70)

30 de agosto de  2017  > Guiné 61/74 - P17714: (De) Caras (93): O (e)terno "puto" Umaru, o Umaru Baldé (1953-2004), da CART 2479 / CART 11 (Contuboel, 1969) e da CCAÇ 2590 / CCAÇ 12 (Bambadinca e Xime, 1969/71)... O seu maior desejo era ser... Português! (Abílio Duarte)

12 de abril de 2016 > Guiné 63/74 - P15968: Fotos do álbum da minha mãe, "Honra e Glória" (Abílio Duarte, ex-fur mil, CART 2479 / CART 11, Nova Lamego e Paunca, 1969/70) - Parte IV: saudades de Contuboel

28 de março de 2016> Guiné 63/74 - P15910: Fotos do álbum da minha mãe, "Honra e Glória" (Abílio Duarte, ex-fur mil, CART 2479 / CART 11, Nova Lamego e Paunca, 1969/70) - Parte III

quarta-feira, 16 de março de 2022

Guiné 61/74 - P23084: Passatempos de verão (28): Nova Lamego, CART 2479/CART 11 (1969/70), escola de cabos: duas fotos, sete diferenças (Valdemar Queiroz)


Foto nº 1 > Guiné > Zona leste > Região de Gabu > Nova Lamego > CART 2479 / CART 11 (1969/70) > Escola de cabos

Foto (e legenda): © Valdemar Queiroz (2014). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné.] (*)


Foto nº 2 > "Escolarização nas imediações de um aquartelamento, Guiné-Bissau: um graduado do Exército português ensina Matemática, numa escola improvisada a africanos radicadis naquela colónia"

In: Renato Monteiro e Luís Farinha > "Guerra Colonial: Fotobiografia". Lisboa, Publicações Dom Quixote e Círculo de Leitores, 1990, pág 166.



1. O Valdemar Queiroz mandou-nos, na passada quinta feira, dia 10, estas duas fotos que são parecidas, tiradas no mesmo local, mas são de fotógrafos diferentes... Ou de álbuns diferentes... Ele foi capaz de identificar sete diferenças entre uma e outra...

Ele é um excelente observador, está sozinho em casa, gerindo com estoicismo e inteligência emocional uma doença crónica, tramada, como é a DCOP - Doença Crónica Obstrutiva Pulmonar. A família mais próxima, a do seu filho, está na Holanda. Só vem à rua em caso de extrema necessidade, para abastecer a despensa, por exemplo, ou ir às urgências hospitalares. Muito menos pode abrir as janelas em dias como estes em que o céu de Portugal está estranhamente alaranjado por causa da tempestade de areia que vem do deserto do Saara.

Vamos colaborar com ele neste "passatempo"... Vamos ajudá-lo também a amenizar a sua dura jornada diária. Ele já nos confessou que o nosso blogue é, para ele, uma companhia diária imprescindível. E está grato a quem, de vez em quando, se lembra dele e lhe telefona.

Ainda não é verão (há de chegar, no seu devido tempo, haja saúde e paz!), mas vamos publicá-lo na nossa série "Passatempos de verão" (**).

Criada em 22/7/2012, a série chamava-se originalmente "Passatempos de verão: Hoje quem faz de editor é o nosso leitor"... Continua a ativa e a fazer apelo à (cri)atividade do leitor. Curiosamente, foi lançada na véspera do "nosso querido mês de agosto", que já não sabemos o que é desde 2019. 

Na altura queríamos chegar, no final do mês de agosto, aos 4 (quatro) milhões de visualizações... e no final do ano  de 2012 aos 600 (seiscentos) grã-tabanqueiros (membros registados na Tabanca Grande). 

Neste momento (março de 2022)  já chegámos aos 13,4 milhões de visualizações e aos 858 membros da Tabanca Grande.

PASSATEMPO

"Bom Observador: Quais as sete diferenças entre as duas imagens?" (Foto nº 1 e foto nº 2)


Soluções num próximo poste.


Saúde da Boa,
Valdemar Queiroz

PS - Luís: quando publicares no blogue este meu Passatempo, se quiseres podes fazer referência à fotografia que aparece no livro "Guerra Colonial: Fotobiografia", mas essa foto [a nº 2] é do Cândido Cunha que a emprestou ao Renato Monteiro para o efeito.


___________

Notas do editor:

domingo, 19 de dezembro de 2021

Guiné 61/74 - P22821: Fotos à procura de... uma legenda (158): Tão meninos que nós éramos!... (Valdemar Queiroz, ex-fur mil, CART 2479 / CART 11, Contuboel, Nova Lamego, Canquelifá, Paunca, Guiro Iero Bocari, 1969/70)




Espinho > Silvade > Fevereiro de 1969 > Jantar de despedida antes da partida, a 18, para o TO da Guiné... Um grupo de sargentos e furriéis milicianos da CART 2479, futura CART 11

À  esquerda, sentaados: Canatário (armas pesadas), e Cunha;  em pé Silva (transm.), Abílio Duarte e Pinto, atrás Macias e Pechincha (operações  especiais); ao alto Sousa, ao centro 1º. Sarg  Ferreira Jr., Renato Monteiro, Ferreira (vagomestre), Edmond (enfermeiro), Pais (mecânico) e eu, sentado, à direita,  Valdemar Queiroz (armado em finório).

Foto (e legenda): © Valdemar Queiroz 2021). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. Mensagem de Valdemar Queiroz [ex-fur mil, CART 2479 /CART 11, Contuboel, Nova Lamego, Canquelifá, Paunca, Guiro Iero Bocari, 1969/70); e não se esqueçam de lhe mandar um alfabravo, por msn, neste Natal: telem 965 290 110; ele precisa e vai gostar; até ao dia 22, porque depois já tinha a companhia do Menino Jesus e do Pai Natal, que vêm da Holanda, ou Países Baixos, como se diz agora 
]

Data -  14 dez 2021 15:23

Assunto - Foto à procura de uma legenda

Luís,

Esta fotografia foi tirada em Espinho num jantar de despedida (???)  na semana anterior (05-02-1969) ao embarque, não para a colónia de férias, para a guerra na colónia da Guiné, também chamada de jure Guiné Portuguesa e por cá Província da Guiné. Chamem o que quiserem: fomos para a guerra na Guiné
.
Vemos na foto, excepção feita ao 1º. Sargento, uma  rapaziada de Furriéis milicianos de 20/21 anos de idade. 

Para completar a classe de Sargentos da CART 2479 (futura CART 11) falta o 2º. Sarg. Almeida (o velho Lacrau), o Fur mil Vera Cruz e o Fur mil Aurélio Duarte que já tinha partido à frente para tratar dos "hotéis e aluguer de carros de passeio".

Na legenda da fotografia vão todos identificados, e destes, infelizmente, já faleceram o 1º. Sarg Ferreira Jr, o meu amigo Renato Monteiro (*) e o outro meu amigo Aurélio Duarte  (**) que não está na fotografia.(***)

Temos na fotografia à ess sentados Canatário (armas pesadas) e Cunha, em pé Silva (transm.), Abílio Duarte e Pinto, atrás Macias e Pechincha (op. especiais), ao alto Sousa, ao centro 1º. Sarg. Ferreira Jor., Renato Monteiro, Ferreira (vagomestre), Edmond (enfermeiro), Pais (mecânico) e sentado Valdemar Queiroz (armado em finório) (****).

Abraço e saúde
Valdemar Queiroz

___________

Notas do editor:


(**) Vd. poste de 20 de agosto de 2017 > Guiné 61/74 - P17684: In Memoriam (302): Morreu o Aurélio Duarte, mais um dos nossos, da nossa seita, da nossa guerra... Nunca mais ouvirei o teu grito de guerra coimbrão, Eferreá!... Eferreá!... Mas para ti vai tudo, amigo e camarada!... Ficas à sombra do nosso poilão, no lugar nº 750!... (Valdemar Queiroz, ex-fur mil, CART 2479 /CART 11, Contuboel, Nova Lamego, Canquelifá, Paunca, Guiro Iero Bocari, 1969/70)

(***) Vd. poste de 1 de julho de 2019 > Guiné 61/74 - P19935: (De)Caras (131): Um ninho de "lacraus", em Espinho, Silvalde, fevereiro de 1969, na véspera de partida para o CTIG (Valdemar Queiroz / Abílio Duarte, CART 2479 / CART 11, 1969/70)

domingo, 26 de setembro de 2021

Guiné 61/74 - P22572: Notas de leitura (1384): "Tempo das coisas", tempo de viver, tempo de morrer... A pungente despedida de Renato Monteiro (1946-2021): 31 poemas escritos de rajada na noite de 3 para 4 de julho de 2021 (Luís Graça)

 

"Livro de quem adivinha o tempo das coisas e que quer deixar, ainda, aos amigos algumas palavras. Pediu-me para o editar. Com um clique encontram as palavras e sei que lhe ouvem também a voz." (Margarida Miranda Monteiro, in Página do Facebook de Renato Monteiro, 23 de julho de 2021)

 


Dedicado ao neto, de 15 anos, Carlos Monteiro, filho do Daniel Monteiro, que de vez em quando perguntava ao avô porque é que ele não escrevia... Escreveu 31 poemas, escassos dias  antes de morrer e pediu à sua mulher, Margarida (Guida, toda a vida) para mandar um exemplar a uma lista restrita de amigos...



Índice dos 31 poemas


"O comboio". o últmo poema (pág. 33): é mesmo um poema de despedida... sob a metáfora do comboio que chega e não chega, "muita terra, pouca ou nenhuma".


"Só", pág. 12. Sem nunca vir mencionada a palavra "morte", ao longo destes 31 poemas,
ela está todavia presente do princípio ao fim. É um homem, de um tremenda lucidez, que sabe vai morrer nos próximos dias, quando o coração parar de bater de vez... E sabe que o fim não tem retorno. E, pior que tudo, que é o ato mais solitário da vida.


"Veneno", pág. 4. O soro, o inútil soro, agora veneno, num corpo que não será múmia... Não há aqui autocomiseração, mas auto-ironia. Ácida.


"Sede", pág. 24.  A metáfora da água que já não dessedenta...


"Coração", pág. 18. O coração já exterior ao corpo, sal-ti-tan-do 
como um inútil boneco de corda.


"Bate bate bate", pág. 29...E que bate, já por nada nem ninguém.


"Arroz de cabidela", pág. 20. Uma metáfora cruel.


"Letras", pág. 23. A incomunicação total ou final. 


"Guida, pág- 14. O último poema de amor. Guida, sempre,  até sempre! Faz os tempos da guerra  que lhe mandava cartas de amor/humor com recortes de letras de jornal...



"Liberdade", pág. 17.  Ah! a liberdade de já não esperar coisa nenhuma!... A liberdade encerrada para balanço final, o do deve e haver da vida.


"Paragem", pág.  26.  O tempo em que tudo pára, mas a paixão da fotografia,
essa, fica expressa em muitos álbuns,  E a paixão da escrita, mesmo que não nos salve. Nada nos pode salvar quando chegarmos ao fim da picada.


"Tempo", pág. 3. O tempo sem mais tempo, o nada, 
um relógio sem ponteiros.



1. O Renato Monteiro (1946-2021) (*) será sempre,  para 0s nossos leitores, o misterioso "homem da piroga" cujo nome  eu procurei durante várias décadas (, desde que, em Contuboel, em 18 de julho de 1969, eu parti para Bambadinca com os meus camaradas da CCAÇ 2590, futura CCAÇ 12, e ele com os seus, os da CART 2479, futura CART 11,  com destino a Nova Lamego).

O Monteiro (,aliás Renato), aqui na foto, com o Henriques (, aliás, Luís Graça), no rio Geba, em Contuboel, em junho/julho 1969... Não sei quem era o terceiro elemento da "tripulação", talvez o Cândido Cunha. Éramos três "desalinhados " do sistema, despejados sem saber como no Centro de Instrução Militar de Contuboel, em pleno "chão fula"...

Ao fundo, a ponte de madeira onde o Monteiro poderia ter morrido, sem também ninguém saber como, numa tarde de julho de 1969. Deu um mergulho, temerário,  e ficou preso na represa, feita pela estacaria de madeira da ponte. Desensarilhou-se no último fôlego de vida. Uma  cena dramática que eu nunca mais esquecerei na vida. Nascido à beira beira-mar, eu não sabia nadar,  nem nunca mergulhei num rio ou braço de mar da Guiné (, por trauma da infância, provocada pela estúpida praxe do dia de São Bartolomeu, o 24 de agosto, em que os adultos batizavama os putos na água revolta e salgada do Atlântico).

 Perdi-lhe o rasto em 18  de julho de 1969,  mas não o rosto, durante 36 anos... Afinal,ele vivia a escassas centenas de metros da Escola Nacional de Saúde Pública, na Av Padre Cruz, onde eu tive um gabinete de trabalho desde 1985.

Reencontrámo-nos, uma ou outra vez, telefonávamos com alguma regularidade (três ou quatro vezes por ano...), trouxe-o para o blogue (não sem alguma resistência da sua parte...) mas perdi a oportunidade soberana de o levar à Lourinhã, para beber um copo, a ele e à sua Guida, com o Mar do Cerro à nossa frente. 

A doença (uma temível DPOC) e a morte, no "annus horribilis" de 2021, em 9 de julho, trocou-nos as voltas... Tendo-me recusado a dizer-lhe "adeus, descansa em paz" (a fórmula ritual do noticiário necrológico), disse-lhe apenas "Até um dia qualquer, meu bom amigo e camarada, num reencontro imediato do 3º grau, na nossa ou noutra galáxia"...

Foi homem e artista de múltiplos olhares e "fotografares" (, feliz títuo de um dos seus blogues): as gentes e as paisagens do Bairro da Graça (onde mora a minha netinha) ao Cabo Carvoeiro, da Trafaria a Cascais, da Quinta Grande a Vila Franca de Xira, do Algarve ao Alentejo, dos ciganos aos cabo-verdianos, dos pescadores do Tejo aos putos da rua, do pessoal das "barracas" aos operários da Lisnave, aos velhos, aos cidadãos anónimos, aos estrangeiros, afinal, "nós outros" (outro feliz título de outro dos teus blogues)...

Deu rosto a muita gente sem rosto, sem voz, sem história, e mais mundo haveria para fotografar se não fora tão curta e ingrata a vida, em plena pandemia... Chorei a sua perda e voltei a emocionar-me quando a Margarida Monteiro, a Guida, me telefonou a pedir a minha morada: o Renato deixou, por imprimir, uma espécie de testamemto poético, febrilmente escrito na noite de 3 para 4 de julho. (**)

Em 22 de agosto, escrevi à Guida por mensagem do telemóvel: 

"Querida amiga,  recebi o livrinho e já o li e reli. Pungente. Um grande documento humano e uma pequena grande obra-prima da poesia em português.Vou ver se consigo por estes dias publicar uma nota de leitura no blogue. Obrigado por tudo. Abraço para os teus homens. Chicoração para ti. Dorme bem. Luís."

E a 2 de setembro, mandei-lhe nova mensagem: 

(...) "Tenho pena de não ter convivido com o Renato e na prática não te ter conhecido na vida dele. Ainda me chegou a manifestar o seu desejo de eu lhe escrever um texto para um álbum fotográfico. A vida, afinal,  é tão curta para as nossas agendas e sonhos. Nunca fui a uma exposição dele!!!...  Ofereceu-me um dos seus álbuns. Manda o livro ao Valdemar Queiroz. "(...) 

Li e reli o livrinho, "O tempo das coisas". Em cada um dos poemas, fiz uma anotação a lápis, com a avalição numa escala de  um (*) a cinco (*****).   A seleção que fiz a acima é dos poemas de que mais gostei, numa primeira leitura. E inseri-os por uma ordem que é mais lógica do que que cronológica. (»»»)

(***) Último poste da série > 23 de setembro de 2021 > Guiné 61/74 - P22565: Notas de leitura (1383): "Um caminho de quatro passos", de António Carvalho (2021, 219 pp.): apontamentos etnográficos para o retrato da nossa geração, de antigos combatentes - Parte I (Luís Graça)

segunda-feira, 12 de julho de 2021

Guiné 61/74 - P22365: Estórias de Contuboel... ou "o mito do eterno retorno" (Renato Monteiro, 1946-2021)


Guiné > Zona leste > Região de Bafatá > Contuboel > CIM de Contuboel > 1969 > CART 2479 / CART 11 (1969/70) > > O Valdemar Queiroz, com os recrutas Cherno Baldé , Sori (Jau oui Baldé) e Umaru Baldé (que, feita a recruta,  irão depois para a CCAÇ 2590, futura CCAÇ 12, a partir de 18 de junho de 1970). Estes mancebos aparentavam ter 16 ou menos anos de idade (!). Eram do recrutamento local e, originalmente, não falavam português. (*)

Foto (e legenda): © Valdemar Queiroz (2014). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. É um texto de antologia, dos melhores que já aqui publicámos em 17 anos de existência do nosso blogue. O Renato Monteiro, em cinco pequenas "estórias de Contuboel", sintetiza magistralmente   esse sentimento absurdo, maior do que cada de nós, e que todos nós, "tugas", quadros e especialistas das companhias  da "nova força africana" do general Spínola experimentámos inicialmente, e que "tanto nos levava à rejeição daquele mundo como, no instante seguinte, ao desejo de nele nos confundirmos", parafraseando o autor.  

Quadros, milicianos, de um exército (mal) preparado para a guerra convencional (mas não de todo para a guerra de contra-guerrilha), sem um mínimo de informação e formação sobre aquele território e as suas gentes, fomos obrigado a dar recruta, instrução de especialidade e de aperfeiçoamento operacional a jovens camponeses, fulas, muçulmanos, do recrutamento local (, mas também de outras etnias, animistas), arrancados das suas tabancas, e que não falavam uma única palavra de português nem sabiam onde ficava Portugal... Deliciosas as "observações etnográficas" do autor e não menos saborosa a sua fina ironia... 

Porque o texto vale como um todo, voltamos aqui a reproduzi-lo, quinze anos depois,  mas agora agregando os cinco apontamentos, todos eles relacionados com a instrução de recruta dada pelos nossos camaradas da CART 2479, no Centro de Instrução Militar de Contuboel, com início  em 7 de março de 1969. 

O título "estórias de Contuboel" é da nossa iniciativa, é mais prosaico do que a filosófico e mitológica ideia do "eterno retorno", titulo original do autor.  É uma homenagem ao "homem da piroga". o Renato Monteiro (1946-2021),  que eu tive a felicidade de conhecer em Contuboel, no curto espaço de mês e meio em que estivemos juntos (junho/julho de 1969)... Perdi depois o seu rasto mas nunca o seu rosto...


ESTÓRIAS DE CONTUBOEL 

por Renato Monteiro (2006)


(I) RECEPÇÃO DOS INSTRUENDOS

São uma porrada deles. Para cima de centena e meia, perfilados na parada. Número excessivo mas justificável uma vez que, finda a instrução, serão repartidos por uma outra companhia, ainda na Lisboa (a CCAÇ 2590, futura CCAÇ 12) (***), constituída tal como nós, apenas por quadros (graduados es especialistas) nmetropolitanos.

Vindos de Galomaro e de Gabu, que ainda não localizei no mapa; do Xime, de Bafatá e de Bambadinca por onde passamos sem que me ocorresse bater uma única chapa, e ainda das tabancas que povoam a região de Contuboel.

Mais fulas do que mandingas, perfilhando todos a crença em Alá, mas também o princípio que consagra para todo o sempre um Portugal daquém e além-mar,  uno e indivisível, coisa para mim demasiado estranha ao dar conta dos raros falantes da nossa língua e dos muitos que a entendem menos do que a Segunda, a minha lavadeira.

Acaso não houvesse entre eles um Carlos, fula, de Bafatá, único cristão e com nome português, excepcionalmente dotado na comunicação com as línguas nativas, incluindo o crioulo - o esperanto da Guiné - para transmitir-lhes as nossas ordens, recomendações e outras tretas, bem poderíamos enterrar as palavras no bolso até às calendas, ir pregar para o deserto ou aos peixinhos do António Vieira.

Sequer a ordem de marchar (acaso fossem capazes de tal acrobática proeza) a partir da parada até uma área arborizada próxima do aquartelamento, utilizada para futura aplicação dos exercícios militares, é compreendida pela generalidade dos nossos instruendos.

Coubesse o mar num concha cavada na areia que, por certo, seria igualmente possível olhar para estes homens e reconhecê-los como nossos compatrícios.

E coubesse em mim próprio este sentimento absurdo, maior do que eu, que tanto me leva à rejeição deste mundo como, no instante seguinte, ao desejo de nele me confundir.

Como se coexistissem em mim, duas entidades antagónicas numa só. Sem a santíssima trindade em que não acredito. E nunca, espero bem, vir a pirar dos cornos.


(II) SEGUNDO PELOTÃO

Divididos por quatro pelotões (de instrução), faço parte do segundo,  bem como o alferes Ilhéu, açoriano, ex-seminarista, os furriéis Paz de Alma, do Norte, o Bera, de Cabo Verde, por quem nutro uma antipatia correspondida e o nosso cabo, ainda sem alcunha, e a quem um dia destes hei-de perguntar donde é. 

Feita a contabilidade, o que temos? 53 Guineenses, 2 insulares, 3 europeus continentais. Ou cromaticamente falando: 53 negros, 4 caras pálidas e um que nem é uma coisa nem outra, e sim as duas. Mas adiante...

Sem o poliglota do Carlos, entretanto integrado noutro pelotão, lançamos mão ao Jaló que, apesar de menos apto para intérprete do que o primeiro, sempre vai desenrascando, em fula e em crioulo, a nossa pretendida comunicação com o grupo. Para levantarem os joelhos, c’um raio, se possível até ao queixo, darem meia volta volver, distinguir o que se toma por esquerda e por direita, manter o peito erguido e cheio de ar, por nada mexer quando em sentido, porra, sequer tossir; enfim, toda a panóplia de movimentos exigíveis numa formatura estacionada ou em marcha. 

Porque com má execução, há merda: 10, 20 ou mais flexões de bruços, mantendo a regular distância da barriga ao chão, quando não mesmo rastejar até aquela mangueira ou cajueiro ainda mais afastado. Punições tão sabidas de cor, por força da aprendizagem para a guerra levada a cabo nos quartéis, como os nomes dos rios aprendidos durante a instrução primária.

Por mim, e apesar de exigente quanto à execução dos exercícios, dispenso a aplicação de castigos sem crime, achando mil vezes preferível, nesta fase inicial de instrução, antes fomentar a troca com que todos crescem: umas lições básicas de português pelos depoimentos prestados, com o apoio do Jaló, sobre a experiência vivida na guerra por um bom número de recrutas que, havendo sido milícias, já se envolveram em confrontos. Com o fogo a doer fora da carreira de tiro, mas no cenário real da mata. Ou tão só os que foram alvo de flagelações dirigidas aos aldeamentos donde são originários.

E quem sabe se, deste modo, não evitaríamos mais facilmente confundir o Ali com o Guilage, estes com quaisquer outros já que, à excepção do Malagueta, excessivamente franzino, e do Turé, de desmedida altura e de voz apagada, todos se apresentam indistintos aos nossos olhos. Como se fossem cópias fisionómicas do mesmo padrão, cheirando desagradavelmente, à maior parte dos camaradas,  a catinga. Ou não fosse natural um cão tressuar a canino; um gato transpirar a felino; os cravos marcarem o ar com o seu perfume... Sem nunca perguntarmos a que cheiramos nós. Mais tarde ou mais cedo, hei-de sabê-lo...

(III) O PARAÍSO, OS RONCOS E OS ANJINHOS

É à sombra frondosa das mangueiras, durante as breves pausas das longas oito horas diárias de instrução,  que Jaló, crente em Alá, me fala do paraíso perfumado, com frutos perenemente maduros, sem maçãs proibidas, abundante comida para satisfazer o apetites dos mais insaciáveis, das alegrias sem medida e das submissas mulheres de deslumbrante beleza, escolhidas a dedo, todas virgens para eterno consolo dos homens, sejam novos ou velhos.

Desse jardim implantado no céu, supremo prémio destinado aos que cuidam cumprir zelosamente não apenas com as obrigações de rezar, jejuar pela ocasião do Ramadão, fazer uma peregrinação a Meca ao longo da vida, mas também aos que recusam as tentações condenáveis pelo Islão, de que Maomé é o profeta, como o consumo de carne de porco e as bebidas alcoólicas.

Interdições que não abrangem o tabaco aspirado por cachimbos que cabem numa mão fechada ou as nozes de cola, tão azedas quanto duríssimas, que revitalizam os músculos e o resto, quando necessário, debelando a fome e dando coragem tanto para combater as agruras da vida como para enfrentar os bandidos da mata.

Nem tão pouco obrigam à fidelidade exclusiva da mulher esposada que, Jaló, tem duas e diz andar a pensar dia e noite numa terceira que vive em Gabu.

Assim não perca os roncos de couro, pagos a bom preço: o que traz atado à cintura e outro no peito, suspenso pelo pescoço, que o protegem tanto da picada dos lacraus como do veneno injectado pelas cobras; dos ferrões cravados pelas abelhas e de todo o bicho selvagem que constitua uma ameaça; da acção nefasta provocada não apenas por encontros indesejáveis com pessoas que rogam pragas, mas também contra seres diabólicos, vazios de forma e capazes de, com um único sopro, transmitirem uma enfermidade incurável morrendo-se, tarde ou cedo, dela. Ou sobrevivendo-se apenas quando se trata de uma mudez, coisa rara, ou de uma cegueira como aconteceu ao filho mais novo do antigo Chefe da Tabanca de Contuboel quando, em criança, andou perdido durante sete dias na mata, nunca mais voltando a ver as cores com que se cobre o mundo.

Com a protecção dos roncos e ainda com a inseparável e benfazeja presença do anjinho do Bem que, encavalitado num ombro do Jaló, cuida ele, há-de levar a melhor em disputa com o seu comparsa, colado ao outro ombro, ímpio por natureza e sempre pronto a pregar as mais nefastas partidas ao seu portador. Vá para onde for, mesmo em sonhos, a dormir.


(IV) IDADES SEM LEMBRANÇA

Coisa pela qual não passam: a comemoração do dia do aniversário. Pois não parece haver um entre os africanos do meu pelotão que saiba a sua idade. E lê-se-lhes nos olhos a inutilidade desse conhecimento que, apesar de tudo, acaba por ser superado através de um palpite dado por nós. Mera suposição inspirada no vinco e na dimensão das rugas, na maior ou menor vivacidade do olhar, não sei bem, num feeling que sustenta a nossa avaliação.

E é assim que Cherno Camará passou a partir de hoje a contar 23 anos, idade que acabou por merecer divertida discórdia quando comparada ao tempo de vida atribuído ao Amaduri Camará, 21 anos, por alguns considerado mais velho do que o primeiro.

Mas fora de qualquer polémica foram as 18 Primaveras calculadas para Demba Baldé, o Malagueta, seguramente o recruta mais jovem da nossa troupe, filho de Ira Baldé, prestigiado chefe de uma das tabancas da região de Gabu Sare.

Quanto a mim, talvez não fosse menos sensato deixar-se estes homens, na sua maioria ainda mais novos do que nós, tão alheados da sua idade quanto as árvores que se desenvolvem sem contarem os anéis do tronco que marcam o tempo da sua existência.

Opinião igualmente partilhada por Ussumane Colubali, para o qual o que importa é nunca perder de vista de quem se é filho, irmão, neto, bisneto e pai; bem como o lugar onde se nasceu e o número de cabeças de gado e de mulheres que se possui, sendo seguro que a memória da data de nascimento não leva a viver mais, sequer a acertar-se com o dia da sua morte. Ao contrário da generalidade dos africanos, muito reservados, Ussumane não se coíbe de expressar os seus juízos mesmo sem ser chamado a fazê-lo.

Assim, diz não existir à face da terra nenhumas Forças Armadas capazes de tão grandes façanhas como as nossas, razão que o levou a oferecer-se para o exército, aproveitando ainda uma vantagem: a possibilidade de, assim, ganhar uns patacões, muito difíceis de obter por outro meio.

Proveito que o Demba Baldé de bom grado dispensaria. Que foi o pai, contra sua vontade, que o mandou servir a tropa. Quando melhor estaria junto da sua Comança Baldé, ainda mais nova do que ele, a fazer filhos, a comer bianda e a tratar do gado.

(V) BAJUDAS OU A IMITAÇÃO DO PARAÍSO CELESTIAL

Acordo com os latidos da Daisy, já recuperada da mazela na perna, incitando-me a sair da cama. Como a querer lembrar a combinação que fiz com o Canininhas e o Português Suave em pirarmo-nos hoje para o rio Geba que o Fórmula Um, o condutor, afirma ficar a quinze minutos de Unimog.

Acordo como um animal de sangue frio em período de hibernação e, caso não fosse a barba por fazer desde há três por se ter gripado a bomba de água e a desagradável sensação pegajosa no corpo, bem teria mandado o compromisso para as urtigas. Mas avancemos. Tomado o pequeno almoço à pressa, toca de trepar para a viatura, com os dois camaradas vociferando contra o meu atraso, "és sempre o mesmo", mais o Joshua. apanhado a atravessar cabisbaixo a parada e a Daisy, como prémio do seu empenho em combater a minha letargia.

Por uma estrada todo o terreno, cheia de covas abertas pelas correntes das chuvas e de sulcos dos rodados das viaturas, em menos tempo que o calculado pelo Fórmula Um, chegamos ao Geba: bem estreito quando comparado à sua dimensão em Bissau ou no ponto em que se cruza com o Corubal.

Mas bem mais largo quanto às vistas que dele se podem colher: aquele pequeno grupo de bajudas, ó Cesário, sem rendas ou ramalhetes rubros de papoilas, apenas cintadas por uma tanga fina, tudo o mais só nudez ali exposta à luz do sol, com natural indiferença aos nossos olhos e sem nada ficarem a dever em graciosidade às virgens do paraíso celestial descrito por Jaló.

Salpicadas de espuma, com a água a escorrer em fios ou em contas pelos ombros, o seios, o colo, quantas aguarelas não dariam? Tantas quantas ninfas ou sereias de outros tempos imaginadas em pedra ou tela.

Pena, para não dizer pequena e simulada raiva, é a Segunda, a quem ironicamente comecei a tratar por Benvinda, nem uma única vez tenha posto os olhos em mim, limitando-se apenas a cumprimentar-me aquando da entrega da roupa à porta da camarata, limpa, sem vincos e ainda quente do ferro, ao fim da tarde.

À hora em que, num breve instante, o dia escurece, as boieiras alinhadas como esquadrões de caça recolhem ao refúgio da mata e o poente se tinge de cores vivas e quentes. Como nunca me foi dado ver.


Guiné-Bissau > Região de Bafatá > Saltinho > Rio Corubal > Rápidos do Saltinho > 3 de Março de 2008 > Lavadeiras do Saltinho.

Foto (e legenda): © Luís Graça (2008). Todos os direitos reservados. [Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]

______________

Notas do editor:

(*) Vd. poste de 25 de fevereiro de 2014 > Guiné 63/74 - P12773: Memórias de um Lacrau (Valdemar Queiroz, ex-fur mil, CART 2479 / CART 11, Contuboel, Nova Lamego, Canquelifá, Paunca, Guiro Iero Bocari, 1969/70) (Parte III): Preparando a "nova força africana" de Spínola...

(**) Vd. postes de:



4 de Agosto de 2006 > Guiné 63/74 - P1026: Estórias de Contuboel (iv): Idades sem lembrança (Renato Monteiro, CART 2479 / CART 11, 1969)

4 de Agosto de 2006 > Guiné 63/74 - P1027: Estórias de Contuboel (V): Bajudas ou a imitação do paraíso celestial (Renato Monteiro, CART 2479 / CART 11, 1969)

(***)  Vd.postes de:


25 de Maio de 2010 > Guiné 63/74 - P6466: A minha CCAÇ 12 (2): De Santa Margarida a Contuboel, 5 mil quilómetros mais a sul (Luís Graça)

(...) Contuboel, far from the Vietnam

Nestas condições, a instrução de especialidade, como se deve imaginar, não foi nada famosa. Estávamos a milhares de quilómetros do nosso ponto de partida, o Campo Militar de Santa Margarida, onde, ainda me recordo, também brincámos às guerras, e fizemos os nosso roncos (no essencial, assalto aos acampamentos do IN a fingir, e pilhagem de tudo o que era bebível e comestível).

Em plena época das chuvas, ainda em fase de adaptação ao terrível clima da Guiné, hostil a qualquer tuga, em farda nº 3, espingarda automática G3 ao ombro e cartuchos de salva nos bolsos (à cautela, não fosse o diabo tecê-las, os graduados, metropolitanos, levavam alguns carregadores com bala real...)... Estão a imginar esta guerra-de-faz-se-conta ?

Era ainda a dolce vita da Guiné (como eu escreveria no meu diário), aqui e ali perturbada pelas histórias que a velhice nos contava, a nós periquitos, de Madina do Boé e de Guileje, "lá longe no sul" (sic) (...)

A 18 de Julho de 1969 , a futura CCAÇ 12 (que, por enquanto, ainda era a CCAÇ 2590) é dada como operacional. Atendendo à origem étnico-geográfica das suas praças, por sugestão do Com-Chefe, ficamos radicados em chão fula, às ordens do Batalhão de Caçadores 2852 (1968/70), com sede em Bambadinca...

A 21 de Julho, menos de dois meses depois da nossa chegada à Guiné, quando ainda nem sequer tinham sido distribuídos os camuflados à nossa tropa africana, temos a nossa primeira "saída para o mato" (sic) , seguida do nosso "baptismo de fogo"...

De facto, em Madina Xaquili, temos o nosso primeiro ferido grave, evacuado para Bissau; e a 28, mais dois feridos graves, numa ataque nocturno àquela aldeia fula que será definitivamente abandonada pela sua população e, mais tarde (em Outubro), pelas NT.

Para três dos nossos soldados africanos, a guerra havia acabado, mal começara: ficarão definitivamente inoperacionais e/ou incapacitados, não sem que um deles tenha de passar, primeiro, por outro inferno, o do Hospital Militar da Estrela, em Lisboa...

Pergunto-me, com amargura, 40 anos depois: o que será feito de vocês, valentes soldados ? Tu, Sori Jau (3º Gr Combate, evacuado para o HM 241); tu, Braima Bá (inoperacional) e tu, Udi Baldé (evacuado para Lisboa e retornado a casa com 35% de incapacidade física), ambos do 2º Gr Comb ? (...)