Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
quarta-feira, 15 de novembro de 2023
Guiné 61/74 - P24851: S(c)em comentários (17): "Por ti, Portugal, eu juro!": Memórias e testemunhos dos comandos africanos da Guiné (1971-1974), tese de doutoramento, de Sofia da Palma Rodrigues (2022), UC/CES: Resumo
segunda-feira, 3 de julho de 2023
Guiné 61/74 - P24447: Casos: a verdade sobre... (34): A CCAÇ 2792 (Catió e Cabedú, 1970/72), comandada pelo cap inf Augusto José Monteiro Valente (1944-2012), e depois maj gen ref, que embarcou para o CTIG sem três alferes (que terão desertado) e durante a IAO ficou sem o último, por motivos disciplinares...
1. Quem ler o resumo da história da CCAÇ 2792 (Catió e Cabedú, 1970/72) não se apercebe do "drama" do seu pessoal e do seu comandante... Esta subunidade partiu para a Guiné, no T/T Carvalho Araújo, em 19 de setembro de 1970, desfalcada de três dos seus quatro oficiais subalternos: não compareceram ao embarque, por razões que desconhecemos (ou melhor: "desertaram", segundo a cópia da história da unidade que possuímos, com anotações manuscritas, que presumimos serem da autoria do seu antigo comandante, falecido aos 68 anos como maj gen ref, Augusto José Monteiro Valente).
Quando estava a fazer a IAO (Instrução de Aperfeiçoamento Operacional), no CIM de Bolama (instrução que terminou a 30 de outubro de 1970), o seu único alferes, miliciano, e para mais com a especialidade de operações especiais, foi transferido no dia 22 desse mês e ano, por motivos disciplinares.
Quando a companhia estava pronta, em 16 de novembro de 1970, para embarcar em LDM paar Bissau e depois para o sector que lhe foram destinado no sul da Guiné (Catió e Cabedú), não tinha oficiais subalternos... Uma situação anómala e talvezs inédita... Mas os problemas de pessoal não ficaram só por aqui... Leia-se este excerto da história da unidade, cap I, pág. 61:
(...) CONCLUSÃO:
1. No aspeto de pessoal, a Companhia começou a sua vida na Guiné bastante mal, dada a falta de três oficiais com que embarou na Metrópole, situação agravada posteriormente por o único subalterno presente ter sido transferido por motivo discxiplinar
En consequéncia a Instrução de Aperfeiçoamento Operacional (IAO) descorreu sem subalternos. Estes só começaram a chegar quando a subuniddaes entrou em Sector.
Felizmente o espírito de corpo e de disciplina das praças era bastante forte e os sargentos chamados ao comando dos Grupos de Combate revelaram-se competentes para o cargo-. A Compamhia,apesar das dificuldades por que passou no início, manteve-se coesa e disciplinada.
2. Ao longo da comissão a Companhia foi sendo privada de furriéis quer, pelas suas suas qualidades, foram colocados em diligênnci em subunidades africanas. Para ocupar as suas vagas foram chegando furriéis recém-vindos da Metrópole, sem contacto com tropas e que colocados de repente no comando de militares já com meses de comissão, afetariam necessariamente o ritmo da atividade da Companhia.
3. Uma companhyia, se se pretende seja eficiente, não pode ser ser constituída só por 144 praças, 17 sargentos e 5 oficiais; é necesaário, além disso, que estes homens formem uma "unidade, que se conheçam uns aos outros, que se estimem e amem mutuamente, o que náo pode ser conseguido com mudanças frequentes do pessoal que a constitui. (...) (*)2. Ficha da unidade: Companhia de Caçadores n." 2792
Identificação: CCaç 2792
Unidade Mob: RI 16 - Évora
Crndt: Cap Inf Augusto José Monteiro Valente (**)
Divisa: - "P'rá Frente"
Partida: Embarque em 19Set70; desembarque em 020ut70 | Regresso: Embarque em 08Set72
Síntese da Actividade Operacional
Após ter realizado a IAO, de 05 a 310ut70, e ainda efectuado o treino operacional, de 01 a 15Nov70, no CIM, em Bolama, seguiu, por fracções, em 18Nov70 e 04Dez70, para Catió e Cabedú.
Em 06Dez70, rendendo a CArt 2476, assumiu a responsabilidade do subsector de Catió, com dois pelotões no destacamento de Cabedú, ficando integrada no dispositivo e manobra do BArt 2865 e depois do BCaç 2930, tendo sofrido várias flagelações aos aquartelamentos e executado patrulhamentos, emboscadas e contactos com as populações.
Em 21Ago72, foi rendida no subsector de Catió pela CArt 6251/72, tendo-se deslocado por fracções, em 13Ago72 e 23Ago72, para Bissau, a fim de aguardar o embarque de regresso.
Observações - Tem História da Unidade (Caixa n.º 87 - 2ª Div/4ª Sec, do AHM).
Fonte: Excertos de Portugal. Estado-Maior do Exército. Comissão para o Estudo das Campanhas de África, 1961-1974 [CECA] - Resenha Histórico-Militar das Campanhas de África (1961-1974). 7.º volume: Fichas das Unidades. Tomo II: Guiné. Lisboa: 2002, pág. 397.3. Cópia da história da unidade que me chegou às mãos com o carimbo do Centro de Documentação 25 de Abril / Universidade de Coimbra
Companhia de Caçadores 2792- História da Unidade. Província da Guiné. Centro de Documentação 25 de Abril da Universidade de Coimbra. Espólio 186. Nº 8165. Oferta do general Augusto Valente. (Excerto, manuscrito, pág. 3/I)
Nota manuscrita, pág. 4/I: "144 praças | 17 sargentos | 05 oficiais. Â partida faltavam 3 oficiais (que desertaram)". (Segundo informação da história da unidade, a Companhia era "constituída por militares naturais de diversas províncias metropolitanas, sendo contudo as maiores percentagens constituídas por militares naturais das regiões a Norte do Rio Douro e a Sul do Rio Tejo", pág. 3/I).Não sei se as notas manuscritas, aqui reproduzidas, são do punho do maj gen ref Augusto José Monteiro Valente (1944-2012). Julgo que foi um antigo aluno meu, pessoa que muito estimo, o médico do trabalho Joaquim Pinho, da região centro, que me facultou, há uns anos atrás, cópia (não integral) desta história da CCAÇ 2792. Em 05/08/2022, 14:45, enviou-me, por email, a seguinte mensagem (de que se transcrevem alguns excertos)
Caro Doutor: Aqui estou, sempre que souber algo relevante de ex-combatentes da Guiné...
Em 31 de janeiro faleceu no Porto, de "doença prolongada" , o Furriel Miliciano Ranger e de Minas e Armadilhas, Licinio Cabral, da CCAÇ 2792 (Catió e Cabedú, 70-72)...
Dados da CÇAÇ 2792 foram oferecidos (ao Centro de Documentação 25 de Abril e são de acesso livre), em vida, pelo então general Augusto Valente, ex-MFA, com papel de relevo nos acontecimentos do 25 de Abril, na Guarda (RI 12) e Vilar Formoso (PIDE/DGS), bem como no pós- 25 de Abril, ex Comandante da GNR, licenciado em História pela Univer5sidade de Coimbra, etc. (...).
(*) Último poste da série > 16 de janeiro de 2023 > Guiné 61/74 - P23988: Casos: a verdade sobre... (33): Vitorino Costa, o primeiro comandante da guerrilha, formado em Pequim em 1961, a ser morto pelas NT em meados de 1962
terça-feira, 21 de março de 2023
Guiné 61/74 - P24157: O nosso livro de visitas (218): Luís Reis Torgal, conhecido historiador e professor catedrático jubilado da Universidade de Coimbra: "por vezes passo os olhos pelo blogue, fui alf mil trms, Cmd Agr 2952 e COMBIS, Mansoa e Bissau, 1968/69"
Por vezes passo os olhos pelo blogue, porque estive na Guiné em 1968-1969 (oficial de transmissões do Comando de Agrupamento 2952, de Mansoa, e do COMBIS), tendo regressado, a convite da embaixada de Portugal em Bissau, por duas vezes.
Grande abraço
Luís Reis Torgal
Luís Manuel Soares dos Reis Torgal (Coimbra, 14 de Janeiro de 1942) é oriundo da Beira Baixa e foi um professor universitário português, lente de História da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra. Actualmente intervém na área de História do Estado Novo. (...)
Licenciou-se em História em 1966, doutorou-se em 1978 e tornou-se catedrático em 1987. Leccionou disciplinas de História Moderna e Contemporânea e de Teoria da História na Universidade de Coimbra.
Em 2010 declarou publicamente que a decisão do governo português abolir 4 feriados (dois civis e dois religiosos) foi muito mal organizado e uma trapalhada completa e ilegítima. (...)
É coordenador de investigação do Centro de Estudos Interdisciplinares do Século XX da Universidade de Coimbra (CEIS20). Foi director da Revista de História das Ideias e da revista Estudos do Século XX. (...)
É primo do prelado D. Januário Torgal Mendes Ferreira.
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Nota do editor:
Último poste da série > 17 de dezembro de 2022 Guiné 61/74 - P23887: O nosso livro de visitas (217): Pedro Galriça, filho do ex-cap art Fernando Manuel Jacob Galriça, cmdt da CART 1647 / BART 1904 (Bissau, Quinhamel e Binar, 1967/68)
segunda-feira, 20 de março de 2023
Guiné 61/74 - P24155: Manuscrito(s) (Luís Graça) (217): Provérbios populares sobre a doença, a medicina, a saúde, a vida e a morte: o que podemos aprender com eles ? - Parte IIA: 'Deus Cura os Doentes e o Médico Recebe o Dinheiro"
3. Estereótipos em Relação aos Médicos e à Medicina
A descrença em relação aos médicos e aos seus meios de diagnóstico e de terapêutica traduz-se em ditos mais ou menos jocosos como "Deus cura os doentes e o médico recebe o dinheiro" (Quadro VI) ou, noutra variante (tendo porventura como objeto o cirurgião), "Deus é que sara e o mestre é que leva a prata".
Aos olhos do homem comum, a razão de ser e de existir dos médicos é a doença que, por seu turno, representa, para eles, um verdadeiro "celeiro" ou um "bornal" (ou ainda "gamela", uma imagem típica do mundo rural, significando, neste contexto, fonte de rendimento, de enriquecimento - muitas vezes ilícito - e de saciedade).
O vil metal intromete-se subrepticiamente na relação terapêutica, ao insinuar-se que:
- "A desgraça de uns é a fortuna de outros";
- "De São Martinho ao Natal, o médico e o boticário enchem o bornal";
- "Mostarda na horta, médico à porta";
- "Quando o doente escapa, foi Deus que o salvou; e quando morre, foi o médico que o matou";
- "Quando os doentes bradam os médicos ganham".
- "Deus te guarde do parrafo de legista, do infra de canonista, et-caetera de escrivão e de recipe de mata-são".
Hipócrates (460-377 a.C.) como Galeno (129-199 d.C.)f oram, praticamente até ao Século XVIII, o alfa e o omega da arte de curar.
Daí a referência, por ex., a Avicena (980-1037): "Avicena e Galeno trazem a minha casa o bem alheio". Recorde-se que o seu Cânone da medicina (ou inventário geral das doenças do ser humano) foi um dos tratados que marcaram o ensino e a prática médicas até muito para lá da Renascença.
A experiência da negligência médica e do erro clínico ('efeitos adversos', como se diz hoje), por seu turno, é documentada através de ditos, espirituosos uns, sarcásticos outros, que ainda hoje nos chocam pela sua crueza (Quadro VI):
- "Com o que sara o fígado, enferma o braço";
- "Erros médicos a terra os cobre" ou, noutra versão, "O médico e o calceteiro cobrem os erros com terra";
- "Guarde-nos Deus do físico esperimentador (sic) e de asno ornejador";
- "O bom médico é o do terceiro dia";
- "O melhor médico é o que se procura e se não encontra";
- "Pior é ter mau médico que estar enfermo";
- "Salamanca a uns sara e a outros manca";
- "Se tens físico teu amigo manda-o a casa do teu inimigo".
Em todo o caso, era fraca a reputação da universidade, aos olhos da gente comum (Quadro VI):
- "Mais vale experiência que ciência";
- "Mais vale um ano de tarimba do que dez de Coimbra";
- "Mais vale um burro vivo do que um doutor morto";
- "Médicos de Valência: grandes fraldas, pouca ciência".
A sátira à medicina é, aliás, um tema recorrente na literatura europeia da época (por ex., Molière e Boileau, em França) como até na própria pintura. Na cidade holandesa de Leiden, no museu de Boerhaave (o professor de quem o nosso Ribeiro Sanches foi um dilecto discípulo), o visitante tem a oportunidade de observar um espantoso painel dum pintor holandês anónimo do Séc. XVII, The four guises of the physician (Os quatro rostos do médicos).
- No momento de aflição, ele é o salvador, representado pela figura de Cristo (1) , enquanto examina um boião com as águas (urina), rodeado pelos seus assistentes e tendo aos pés uma panóplia de instrumentos cirúrgicos;
- Após a recuperação do doente, o médico transforma-se primeiro em anjo (2) para surgir depois sob a forma de um vulgar ser humano (3);
- Por fim, no último quadro, o doente acaba por morrer: enquanto a sua alma se liberta do corpo, o médico, em primeiro plano, regressa para reclamar os seus honorários, desta vez vestido de diabo (4) (Graça, 1996)
Objeto | Provérbio |
Anato-mia/ Corpo |
|
Físico/ Médico |
|
Medi- cina |
|
(...) porque desenganara
Tanta rustica gente que enganada
Piensa que en la urina está cifrada
De Esculápio la sciencia
Y en un canuto solo
Oraculos de Apolo
Y sin mas relacion de su dolencia
Por bien poco dinero
Quiere que sea el medico echicero
Culpa de medicastros urinauticos
Que hipocritas seran, mas no hippocraticos
Bracamonte (1642)
Em traços físicos e simbólicos, o médico é descrito como "velho", enquanto o cirurgião é "novo" e o boticário, "coxo". Mas mesmo que a medicina seja inútil ("Ciência é loucura se o bom siso a não cura"), o médico sempre é um letrado, o único aliás com formação universitária (...e "ao letrado não o tenhas enganado").
É claro que o prestígio do médico está mais relacionado com a idade e os longos anos de estudo ("Aos trinta anos quem não é tolo é médico") do que com o saber livresco ("Quem ler leia para saber; quem souber saiba para obrar") e com a frequência da universidade ( "Mais vale um ano de tarimba que dez de Coimbra" ) (Quadro VI).
No Séc. XIV bastava saber ler e escrever e pouco mais para se ter acesso à Universidade:
Com três anos de aproveitamento, era-se bacharel; o bacharelato (do latim bacalaureatus, "coroado de louros com bago") era, pois, o primeiro grau académico;
Com mais dois ou quatro, conforme os cursos, era-se licenciado, detentor de licentia docendi ubique, ou seja, licenciatura reconhecida em toda a cristandade;
Só ao fim de muitos anos - já na casa dos trinta, no caso da Teologia -, é que se atingia o cume da pirâmide do saber, o grau de doutor ou mestre, não sendo muito clara a distinção entre um e outro título académico (O termo original magister dá lugar a doutor).
No limiar do Séc. XVIII, a um médico, "para chegar a curar" - no dizer do Doutor Frei Manuel de Azevedo (c. 1600-1672) (cit. por Pina, 1938.21) - seriam necessários "treze anos de estudo, com três ou mais exames muy apertados", assim discriminados:
- "Quatro anos para bem saber o Latim, delle o examinam para depois entrar na Filosofia, nesta gasta ao menos tres annos, fazendo no discurso delles diversos actos de Conclusões";
- "No fim o examinarão com todo o aperto, & achando-o habil, lhe dão grau de bacharel em Filosofia" (No total, sete anos de ensino preparatório, dando acesso à Faculdade de Medcina);
- Com este [ bacharelato ] entra a aprender medicina, nella cursa quatro anos, & nelles com diversos actos de Conclusões, que defende";
- "No fim de todo este tempo o examinarão apertadissimamente todos os Medicos Doutores da Universidade";
- Uma vez aprovado, fazia o equivalente ao actual internato geral hospitalar, "onde aprenderia as enfermidades e os pulsos durante dois anos" (Ou sejam, seis anos de ensino pré e pós-graduado de medicina) (Itálicos meus).
"Como poderà hum Cyrurgião, que mal sabe ler, & escrever, com hum ano, ou pouco mais, que assistio no hospital, aprendendo só a curar feridas e chagas, como poderá curar enfermidade alguma" ?, pergunta Manuel de Azevedo (Itálicos meus).
Já na altura, o diagnóstico do doente (o "conhecimento do pulso") era um acto médico por excelência:
"Em toda a medicina não ha cousa mais dificultosa, que o conhecimento do pulso. E ha tanta ignorância popular, que aos barbeiros, & cristaleiras se dão os pulsos, para lhos tomarem & lhes dizerem se tem febre grande, ou pequena", comenta Azevedo (cit. por Pina, 1938. 22).
De qualquer modo, qual era o sentido de provérbios como "Aos trinta anos quem não é tolo é médico" ou "Médico velho, cirurgião novo, boticário coxo"?
Numa amostra de 15 médicos portugueses que viveram entre 1501 e 1859, e para os quais dispomos de informação biográfica, apurámos os seguintes dados que, no mínimo, são curiosos e podem revelar algumas tendências sobre o desenvolvimento histórico do ensino e do exercício da medicina em Portugal (Quadro VII):
Neste período os médicos viviam em média 66,3 anos (Mínimo: 50; máximo: 83), seguramente mais tempo do que a esperança média de vida da população portuguesa;
Acabavam o curso de medicina aos 24,3 anos (Mínimo: 18; máximo: 29);
No período compreendido entre 1523 e 1717, antes portanto da reforma pombalina da Universidade de Coimbra (1772), a idade média de conclusão do curso de medicina seria mais baixa , andando nos 22,7 anos (Mínimo: 18; máximo:26) (n=8);
- Depois da reforma pombalina, e no período entre 1787 e 1814, a formação dos médicos terminava por volta dos 26 anos (em média) (n=7);
- Um terço, pelo menos, dos médicos da amostra era de origem cristã-nova e teve problemas com a inquisição (entre eles, estão os nossos médicos mais notáveis do Ancien Régime como, por exemplo, Zacuto Lusitano, Jacob Castro Sarmento ou Sanches Ribeiro);
- Quatro dos 15 médicos estudaram em Espanha (nomeadamente em Salamanca).
- Pelo menos até à Renascença, os físicos eram classificados no grupo social, especificamente urbano, dos que "usa(va)m dalgumas artes aprovadas e mesteres" (D.Duarte, O Leal Conselheiro).
- Os mesteres ou artesãos também eram conhecidos como oficiais mecânicos, distintos todavia dos homens de artes aprovadas que já exerciam claramente uma actividade liberal (caso do jurista e do médico).
- "Ao médico, ao letrado e ao abade falar verdade";
- "Com dinheiro, língua e latim, vai-se do mundo até ao fim"
- "De livro fechado não sai letrado";
- "Discípulo, com cuidado, e mestre, bem pago";
- "Em casa do letrado tanto se paga de pé como sentado";
A medicina, integrada na Física, passou a ser ensinada no âmbito do quadrivium.
O papel da universidade, depois da reforma joanina de 1537, era sobretudo o de formar gente que iria depois engrossar as fileiras da burocracia régia, e gerir os negócios do reino e do império. Por outro lado, começava a tornar-se evidente a importância que já era então atribuída à instituição universitária como forma de ascensão social. Daí a maior procura do direito:
- Mais de 87 % do total das matrículas, neste período de 1573 a 1771 respeitam aos cursos jurídicos (cânones e leis);
- Contra apenas 6,8% de medicina e 5,3% de teologia (Graça, 1996).
Na época, o estatuto social do estudante de Coimbra media-se pelo número de criados e de cavalos (ou mulas) ao seu serviço. O estatuto social e económico do médico estava ainda longe de ser elevado, o que é bem patente no ditado que diz :
"O médico quando é pago por ricos é considerado criado; quando recebe dos pobres, é ladrão".
Por fim, o médico é homem: com uma nuance mais burguesa do que fradesca, é conveniente lembrar que "não provam bem as senhoras que se metem a doutoras".
De facto, a universidade (criada entre nós em 1289) era interdita às mulheres, de tal modo que será preciso esperar mais de 600 anos (!) até que apareça a primeira mulher portuguesa diplomada em medicina (Amélia Cardia dos Santos Costa, em 1891, não ainda pela Universidade mas pela Escola Médico-Cirúrgica de Lisboa, que fora criada em 1836).
A arte de curar era, pois, predominantemente masculina, pelo menos nas principais cidades do reino. Quanto aos médicos, letrados e aprovados, esses eram exclusivamente homens. O mesmo se passava com os cirurgiões (Quadro VIII, próximo poste) e os barbeiros-sangradores.
Sabe-se, entretanto, muito pouco sobre a assistência prestada às populações dos campos (e, em particular, às mulheres camponesas). Nos sítios mais recônditos, elas não tinham outra alternativa senão recorrer a bruxas, curandeiras, mezinheiras, parteiras ou aparadeiras, comadres ou simples curiosas, da aldeia ou das redondezas (Joaquim, 1983).
Há toda uma medicina tradicional, de raiz popular, de que as mulheres se tornaram as fiéis depositárias e que exerceram, com algum proveito mas não sem riscos, já que na época era bem pesada a mão da justiça do rei e da Igreja.
Nos arquivos das chancelarias régias, de D. Manuel I a D. Filipe III, há curiosos documentos sobre a prática da arte de curar por parte de mulheres. Reis (1996) identificou uma dúzia de mulheres que exerciam, para todos os efeitos, a medicina, embora sem autorização legal.
O conteúdo dessas cartas régias é muito interessante, para quem quiser conhecer a terminologia nosológica da época, e sobretudo perceber melhor a jurisprudência relativa ao exercício das "artes médicas" e ao seu controlo por parte do poder régio e da própria corporação médica.
Na maior parte dos casos (12) trata-se de concessão de licenças para praticar a cirurgia (5) ou para tratar do mal das boubas (sífilis) (2), do mal da raiva (1), da doidice (1) e de outras enfermidades (2).
Numa dessas cartas, com data de 18 de Setembro de 1611, o rei Filipe II concede licença a Ana Marques, residente em Ceira, no termo de Coimbra, para "no dito concelho de Seira e seus arredores, não sendo para a parte de Coimbra nem onde haja fisico letrado ou examinado" [ poder ] tratar de certas enfermidades com alguns remédios que ela aprendera e sabia", depois de tais remédios bem como a requerente terem sido examinados pelo físico-mor, Doutor Baltasar de Azeredo, catedrático de prima jubilado na Universidade de Coimbra". Além da restrição territorial, a requerente não podia "entermeter-se em mais coisa alguma nem ordenar de beberagens nem outras mezinhas sob pena de se proceder contra ela" (cit. por Reis, 1996).
Quadro VII - Idade de conclusão do curso de medicina, segundo uma amostra dos médicos portugueses do Séc. XVI ao Séc. XIX (n=15)
Nome do médico | Período de vida | Idade em que se formou |
Antes da Reforma Pombalina da Universidade (entre 1523 e 1717) |
Abraão Zacuto Lusitano | 1575-1642 | De origem hebraica, fez estudos de filosofia no Colégio das Artes, em Coimbra, e medicina em Espanha, onde se doutorou aos 21 anos pela Universidade de Siguenza. Morreu em Amsterdão. Era neto do grande Abraão Zacuto (1450-1525), médico e astrónomo no tempo de D. João II e D. Manuel II. |
Amato Lusitano | 1511-1568 | João Rodrigues Castelo Branco, mais conhecido por Amatus Lusitanus, licenciou-se em Salamanca por volta de 1529 (com 18 anos). De origem hebraica, refugiou-se em Antuérpia em 1533 ou 1534. Terá morrido de peste. |
Ambrósio Nunes | 1529-1611 | Filho de um físico-mor do Reino, terminou o curso em Coimbra em 1555 (portanto, com 26 anos). Foi professor em Salamanca. Lente de "vacações" (1555), é autor de Enarrationum in priores Aphorismorum Hippocratis cum paraphrasi in Comentaria Galeni tomus prior (Coimbra, 1601). |
António Ribeiro Sanches | 1699-1782 | Oriundo de família de cristãos-novos, de Penamacor, estudou filosofia e medicina em Coimbra, entre 1716 e 1719. Aos 25 anos obtinha o grau de doutor em medicina por Salamanca. Em 1726 saiu definitivamente do país. |
Francisco da Fonseca Henriques | 1665-1731 | Também conhecido pelo Dr. Mirandela, terminou o curso de medicina em Coimbra, com 19 anos (1684), depois de estudar as primeiras letras na sua terra natal (Mirandela). É autor do Aquilógio Medicinal (1726), considerado o primeiro trabalho sistemático sobre a riqueza hidrológico do Reino. |
Garcia de Orta | c.1501-1568 | Filho de cristão-novo, natural de Castelo de Vide, frequentou as universidades de Salamanca e de Alcalá de Henares, por volta de 1515-1523 (Ter-se-á, portanto, licenciado em medicina aos 22 ou 23 anos). Só em 1526 obteve autorização do físico-mor para exercer medicina. |
João Marques Correia | 1671-1745 | Estudou Humanidades e Filosofia em Évora e Medicina em Coimbra onde recebeu o grau de mestre em Artes (1692) e se formou-se em 1696 (com 25 anos).É autor do Tratado Physiologico médico-physico e anatómico da circulação do sangue. |
Jacob de Castro Sarmento | 1691-1762 | Depois de obter o grau de mestre em Artes na Universidade de Évora (1710), estudou medicina em Coimbra. Conclui o curso em 1717 (com 26 anos). Cristão-novo, fixou residência em Londres em 1721 e aí morreu. |
Depois da Reforma Pombalina da Universidade (entre 1787 e 1814) |
António de Almeida | 1767-1839 | Nascido em Coimbra, matriculou-se no curso de medicina em 1787, que conclui com 24 anos (1791). Foi médico do partido da Câmara de Penafiel. |
Francisco Inácio dos Santos Cruz | 1787-1859 | Matriculou-se em 1804 em Filosofia e no 1º ano de Matemática, da Universidade de Coimbra, como preparatório do curso de Medicina que terminou em 1814 (com 26 anos). |
Francisco Xavier de Almeida Pimenta | 1775-1839 | Terminou o curso de medicina de Coimbra em 1799 (com 24 anos).Foi deputado às cortes em 1820 e zeloso propagandista da vacina. |
Joaquim Xavier da Silva | 1778-1835 | Estudou medicina em Coimbra, onde se doutorou com 26 anos (1804). Publicou um tratado de higiene militar. |
Jorge Gaspar de Oliveira Roldão | 1783-1833 | Estudou em Coimbra. Recebeu o grau de bacharel em 1808 e formou-se no ano seguinte (com 26 anos). Médico de província. |
José Lino dos Santos Coutinho | 1784-1836 | Nascido no Brasil, concluiu o curso de Medicina de Coimbra em 1813 (com 29 anos). Foi político e professor na Escola de Medicina da Baía. |
José Pinheiro de Freitas Soares | 1769-1831 | Frequentou, em Coimbra, as Faculdades de Filosofia e de Medicina. Formou-se na primeira em 1793 (com 24 anos) e na segunda em 1797 (com 28 anos). Autor do Tratado de Polícia Médica. |
quinta-feira, 12 de janeiro de 2023
Guiné 61/74 - P23975: Agenda cultural (826): Colóquio "Amílcar Cabral e a História do Futuro"... Organização: CES/UC (Projeto CROME Memórias Cruzadas; Políticas do Silêncio). Local: Assembleia da República, Lisboa, 13 e 14 de janeiro de 2023
Sexta-feira, 13 de janeiro
9h00-9h45: Sessão de Abertura
Com Augusto Santos Silva, António Sousa Ribeiro, Fernando Rosas, Joana Dias Pereira, Bruno Sena Martins, Marga Ferré
Intervalo
Mesas de Trabalho
10h00-11h30 - A guerra colonial e as lutas de libertação: memórias e silenciamentos | Miguel Cardina, Carlos Cardoso, Patrícia Godinho Gomes, Cláudia Castelo | Moderação: Inês Nascimento Rodrigues
11h30-13h00: Amílcar Cabral: trajetos de vida e memória viva | Iva Cabral, José Neves, Leonor Pires Martins, Julião Soares Sousa, José Pedro Castanheira | Moderação: Victor Barros
Almoço
14h30-16h00h: Conferência | Pedro Pires
Intervalo
16h30-18h30: Amílcar Cabral: imagem em movimento (com projeção do filme O Regresso de Cabral) | Filipa César, Sana na N’Hada, Diana Andringa | Moderação: Sumaila Jaló
Sábado, 14 de janeiro
Mesas de Trabalho
9h30-11h00: Amílcar Cabral: textos | Ângela Coutinho, Mustafah Dhada, Roberto Vecchi | Moderação: Rita Lucas Narra
Intervalo
11h30-13h00: Amílcar Cabral: dimensões internacionais da luta | Rui Lopes, Aurora Almada Santos, Teresa Almeida Cravo, Vincenzo Russo | Moderação: Pedro Aires Oliveira
Almoço
14h30-16h00: Amílcar Cabral: política, cultura e utopia | Miguel de Barros, Rui Cidra, Sílvia Roque, Redy Wilson Lima | Moderação: João Mineiro
Intervalo
16h30-18h00: Descolonização: significados e desafios | Beatriz Gomes Dias, Bruno Sena Martins | Moderação: Marta Lança
Festa de Encerramento no B.Leza | 22h00 Concerto Prétu | 23h00 Abel Djassi DJ Set
Acesso livre, mas de inscrição obrigatória
Organização: Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra (através do projeto CROME, Memórias Cruzadas; Políticas do Silêncio, financiado pelo Conselho Europeu de Investigação, e no âmbito da iniciativa "50 anos de Abril"); Instituto de História Contemporânea (NOVA-FCSH) e laboratório associado in2past; Cultra (associada à rede Transform e no âmbito da iniciativa "Abril é Agora").