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quinta-feira, 8 de fevereiro de 2024

Guiné 61/74 - P25147: Recordando o Amadu Bailo Djaló (Bafatá, 1940 - Lisboa, 2015), um luso-guineense com duas pátrias amadas, um valoroso combatente, um homem sábio, um bom muçulmano - XLIV (e última): Um "pária" na sua terra, humilhado e ofendido pelos novos senhores da guerra: "O povo não tem cor, nem medida, nem peso, é tudo falso" (pp. 280/286)


Guiné-Bissau > Região de Bafatá > Bafatá >  A terra de Amílcar Cabral. Foto tirada ainda antes da independência. O edifício da antiga Casa Gouveia, mais tarde  Tribunal Regional de Bafatá; o centro do parque infantil onde estava a estátua do antigo governador Oliveira Muzanty, o 1º ten da marinha (1906-1909), e onde passou a estar depois o busto de Amílcar Cabral; à esquerda do edifício, o célebre e fotogénico pombal, que muito provavelmente pertencia aos armazéns da Casa Gouveia; à direita (não visível na foto, ficava o antigo mercado e a piscina (edifícios coloniais que entraram rapidamente em ruína, tal como a cidadezinha de Bafatá, a "princesa do Geba")... Não sabemos, ainda, com rigor de quem é o autor desta foto nem a data... Mas tudo parece que ainda é da época colonial, a tal ainda se comia arroz em vez de milho para burro (como diz o Amadu)... A viatura automóvel que se vê à frente do edifício da Casa Gouveia não nos parece ser um camião russo GAZ mas uma carrinha de caixa aberta, Mercedes,  da CG (Casa Gouveia). No livro do Amadu Djaló, a foto é atribuída ao Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné e é a última imagem (a petro e branco) do livro (pág. 283).


1.  Últimas páginas (pp. 280/286) das memórias do Amadu Djaló (Bafatá, 1940-Lisboa, 2015), reproduzidas a partir do manuscrito, digitalizado, do seu livro "Guineense, Comando, Português: I Volume: Comandos Africanos, 1964 - 1974" (Lisboa, Associação de Comandos, 2010, 229 pp, il.,  edição esgotada) (*).

O nosso  camarada e amigo Virgínio Briote, o editor literário ou "copydesk" desta obra ,  facultou-nos uma cópia digital. (O Virgínio, com a sua santa paciência e a sua grande generosidade, gastou mais de um ano a ajudar o Amadua a pòr as suas memórias direitinhas em formato word, a pedido da Associação dos Comandos...). 

O Amadu Djaló, membro da Tabanca Grande, desde 2010, tem cerca de 120 referências no nosso blogue. Tinha um 2º volume em preparação, que a doença e a morte não  lhe permitaram ultimar. As folhas manuscritaas foram entregues ao  Virgínio Briote com a autorização  para as transcrever (e eventualmente publicar no nosso blogue). Desconhecemos o seu conteúdo, mas já incitivámos o nosso coeditor jubilado a fazer um derradeiro esforço para  transcrever, em word, o manuscrito do II volume (que ficou incompleto). E ele prometei-nos que ia começar a fazê-lo, "para a semana"...


Capa do livro do Amadu Bailo Djaló,
"Guineense, Comando, Português: I Volume:
Comandos Africanos, 1964 - 1974",
Lisboa, Associação de Comandos,
2010, 229 pp, + fotos, edição esgotada.



O autor, em Bafatá, sua terra natal,
por volta de meados de 1966.
(Foto reproduzida no livro, na pág. 149)

Síntese das partes anteriores:

(i) o autor, nascido em Bafatá, de pais oriundos da Guiné-Conacri, começou a recruta, como voluntário, em 4 de janeiro de 1962, no Centro de Instrução Militar (CIM) de Bolama;

(ii) esteve depois no CICA/BAC, em Bissau, onde tirou a especialidade de soldado condutor autorrodas;

(iii) passou por Bedanda, 4ª CCaç (futura CCAÇ 6), e depois Farim, 1ª CCAÇ (futura CCAÇ 3), como sold cond auto;

(iv) regressou entretanto à CCS/QG, e alistou-se no Gr Cmds "Os Fantasmas", comandado pelo alf mil 'cmd' Maurício Saraiva, de outubro de 1964 a maio de 1965;

(v) em junho de 1965, fez a escola de cabos em Bissau, foi promovido a 1º cabo condutor, em 2 de janeiro de 1966;

(vi) voltou aos Comandos do CTIG, integrando-se desta vez no Gr Cmds "Os Centuriões", do alf mil 'cmd' Luís Rainha e do 1º cabo 'cmd' Júlio Costa Abreu (que vive atualmente em Amesterdão);

(vii) depois da última saída do Grupo, Op Virgínia, 24/25 de abril de 1966, na fronteira do Senegal, Amadu foi transferido, a seu pedido, por razões familitares, para Bafatá, sua terra natal, para o BCAV 757;

(viii) ficou em Bafatá até final de 1969, altura em que foi selecionado para integrar a 1ª CCmds Africanos, que será comandada pelo seu amigo João Bacar Djaló (Cacine, Catió, 1929 - Tite, 1971)

(ix) depois da formação da companhia (que terminou em meados de 1970), o Amadu Djaló, com 30 anos, integra uma das unidades de elite do CTIG; a 1ª CCmds Africanos, em julho, vai para a região de Gabu, Bajocunda e Pirada, fazendo incursões no Senegal e em setembro anda por Paunca: aqui ouve as previsões agoirentas de um adivinho;

(x) em finais de outubro de 1970, começam os preparativos da invasão anfíbia de Conacri (Op Mar Verde, 22 de novembro de 1970), na qual ele participaçou, com toda 1ª CCmds, sob o comando do cap graduado comando João Bacar Jaló (pp. 168-183);

(xi) a narrativa é retomada depois do regresso de Conacri, por pouco tempo, a Fá Mandinga, em dezembro de 1970; a companhia é destacada para Cacine [3 pelotões para reforço temporário das guarnições de Gandembel e Guileje, entre dez 1970 e jan 1971]; Amadu Djaló estava de licença de casamento (15 dias), para logo a seguir ser ferido em Jababá Biafada, sector de Tite, em fevereiro de 1971;

(xii) supersticioso, ouve a "profecia" de um velho adivinho que tem "um recado de Deus (...) para dar ao capitão João Bacar Jaló"; este sonha com a sua própria morte, que vai ocorrer no sector de Tite, perto da tabanca de Jufá, em 16 de abril de 1971 (versão contada ao autor pelo soldado 'comando' Abdulai Djaló Cula, texto em itálico no livro, pp.192-195) ,

(xiii) é entretanto transferido para a 2ª CCmds Africanos, agora em formação; 1ª fase de instrução, em Fá Mandinga , sector L1, de 24 de abril a fins de julho de 1971.

(xiv) o final da instrução realizou.se no subsector do Xitole, regulado do Corunal, cim uma incursão ao mítico Galo Corubal.

(xv) com a 2ª CCmds, comandada por Zacarias Saiegh, participa, em outubro e novembro de 1971, participa em duas acções, uma na zona de Bissum Naga e outra na área de Farim;

(xvi) em novembro de 1971, participa na ocupação da península de Gampará (Op  Satélite Dourado, de 11 a 15, e Pérola Amarela, de 24 a 28);

(xvii) 21-24 dezembro de 1971: Op Safira Solitária: "ronco" e "desastre" no coração do Morés, com as 1ª e 2ª CCmds Africanos  (8 morts e 15 feridos graves);

(xviii) Morés, sempre o Morés... 7 de fevereiro de 1972, Op Juventude III;

(xix) o jogo do rato e do gato: de Caboiana a Madina do Boé, por volta de abril de 1972;

(xx)  tem um estranho sonho em Gandembel, onde está emboscado très dias: mais do que um sonho, um pesadelo: é "apanhado por balantas do PAIGC";

(xxi) saída para o subsetor de Mansoa, onde o alf cmd graduado Bubacar Jaló, da 2ª CCmds Africanos, é mortalmente ferido em 16/2/1973 (Op Esmeralda Negra);

(xxii) assalto ao Irã de Caboiana, com a 1ª CCmds Africanos, e o cap cav 'cmd' Carlos Matos Gomes como supervisor;

(xxiii) vamos vê-lo a dar instrução a futuros 'comandos' no CIM de Mansabá, na região do Oio, no primeiros meses do ano de 1973, e a fazer algumas "saídas" extras (e bem pagas) com o grupo do Marcelino, ao serviço do COE (Comando de Operações Especiais), que era então comandado pelo major Bruno de Almeida; mas não nos diz uma única sobre essas secretas missões; ao fim de 12 anos de tropa, é 2º sargento e confessa que está cansado;

(xxiv) antes de ir para CCAÇ 21, como sede em Bambadinca, como alferes 'graduado" (e sob o comando do tenente graduado Abdulai Jamanca, ainda irá participar na dramática Op Ametista Real, contra a base do PAIGC, Cumbamori, no Senegal, em 19 de maio de 1973;  esta parte do seu  livro de memórias  (pp. 248-260) já aqui foi transcrita no poste P23625;

(xxv) no leste, começa por atuar no subsetor do Xime, em meados de 1973;

(xxvi) em setembro de 1973, quando estava em Piche, já na CCAÇ 21, recebe a terrível notícia da morte do seu querido irmão mais novo, Braima Djaló, da 3ª CCmds;

(xxvii)  embora amargurado com a morte do seu irmão mais novo, e cansado, ao fim de 12 anos de tropa e de  guerra, o Amadu Djaló mantem-se na CCAÇ 21, como alferes graduado; vemo-lo agora no início de 1974 em Canquelifá, em reforço da CCAÇ 3545 / BCAÇ 3883 (1972/74);

(xxviii) a CCAÇ 21 está no leste, na região de Gabu, ao serviço do CAOP2, e mais exatamente em Canjufa, quando sabe da notícia do golpe de estado do 25 de Abril em Lisboa; só no dia 27, de manhã, regressa a Bambadinca, onde estava sediada;

(xxix)  ainda antes da extinção da CCAÇ 21 e do  Batalhão de Comandos da Guiné, o Amadu Djaló encontra-se com alguns responsáveis do PAIGC, logpo am maio/junho de 1974: o cabo-verdiano Antero Alfama, em Bambadinca e Xima, e depois na fronteira com o Senergal, com o João da Silva e com o Pedro Nazi...

(xxx) em meia dúzia de páginas pungentes, mas ao mesmo de uma grande serenidade e dignidade, relata o calvário da sua vida de 'pária' (por ter servido no exército dos 'tygas') após a extinção da CCAÇ 21, em agosto de 1974, até ao golpe de estado do 'Nino' Vieira, em 14 de novembro de 1980; publicaremos ainda, posteriormente,  os anexos do livro (pp. 287-299), organizados com a ajuda do Virgínio Briote.


 Recordando o Amadu Bailo Djaló (Bafatá, 1940 - Lisboa, 2015), um luso-guineense com duas pátrias amadas, um valoroso combatente, um homem sábio, um bom muçulmano - Parte XLIV:


Um "pária" na sua terra, humilhado e ofendido pelos novos senhores da guerra: " O povo não tem cor, nem medida, nem peso, é tudo falso" (pp. 280/286)


Agora, 25 de Abril, nova era. Logo nos dias a seguir, ainda em Abril, havia um homem, que sempre que me via vinha falar comigo. Um outro homem tinha-lhe dito para me avisar que tinha ouvido dizer que eu ia ser morto pelo PAIGC. E que,  se eu quisesse fugir para o Senegal, ele tinha francos para me dar. E insistiu que várias pessoas lhe tinham dito que eu ia ser morto. Todos os Comandos vão ser mortos, mesmo os antigos, dizia esse tal homem.

Um dia ouvi chamar pelo meu nome.

 −  Amadu, passa ali na minha casa.

Fui a casa dele. Quando entrei, a primeira coisa que o homem fez foi fechar a porta da rua. Era perigoso falar connosco.

 −  Olha, eu sou fulano, não tenho nada com política da Guiné, mas tu, Amadu,  és meu amigo há muito tempo. Se precisares de sair da Guiné, conta comigo.

Respondi-lhe que ia pensar, que se fugisse quem ia ficar a tomar conta da família, a minha mãe estava muito velha, as minhas mulheres podiam ir para qualquer lado, ir para casa dos seus pais ou voltar a casar, agora os meus filhos, o que ia ser deles? 

E disse que preferia ficar aqui, na Guiné, até ao dia em que me prendessem e me matassem. Nessa altura a minha família ficava a saber. Se eu fugisse, ninguém sabia o que me tinha acontecido.

Eu não queria morrer, como veio a acontecer a companheiros meus, sem a minha família saber onde estava, se tinha fugido ou sido morto.

− Eu não vou fugir, mas muito obrigado, foi a minha resposta.

Antes, as pessoas procuravam-nos para nos conhecerem melhor, para serem nossos amigos.

Depois de 25 de Abril e até 20 de Agosto de 1974, quando entregámos as armas, o comportamento das pessoas mudou, passou a ser diferente. Ninguém queria ser nosso amigo, nem acompanhar os comandos. Agora, a maioria eram nossos inimigos, e outros, a quem antes tínhamos feito favores, começaram a prender as pessoas, Comandos ou não.

Antes de 11 de Março de 1975, foram mortos o tenente Bacar Djassi, o tenente Jamanca, o alferes João Uloma e o 1º sargento Lalo Baio[1], todos Comandos.

Foi uma era muito difícil para todos os que estiveram com os brancos. Poucos falavam connosco, éramos marginalizados completamente pela gente que, antes, estava à nossa protecção e que, depois, passaram a ser os nossos maiores inimigos.

Foi também uma grande experiência, que ajudou quem sobreviveu a viver tranquilo para o resto da vida.

O povo era falso, não podíamos ter confiança em ninguém. O povo não tem cor, nem medida, nem peso, é tudo falso.

Durante esses onze anos, de 1974 a 1985, eu não podia falar do que passei, em nenhum lado da terra onde nasci e cresci. Passei a ser insultado nas reuniões e obrigado a bater palmas aos insultos que me faziam.

Diziam na minha cara que, no dia 22 de Novembro de 1970, na ida a Conacri, os portugueses saltaram os seus cães com dois pés, isto é, nós. 

Chamavam-me "cão" e eu tinha que aplaudir. Suportei tudo, bati-lhes palmas até, aceitei tudo o que me disseram. Nada era mal, tudo parecia ser bom.

Desses tempos, em Bafatá, pouco depois de março de 1975, fui assistir ao funeral de um vizinho. Quando cheguei ao local, estava lá muita gente. Cumprimentei as pessoas, algumas responderam, outras não. Notei que um presente fez um gesto com a cabeça para um militar do PAIGC, que não me conhecia.

O militar deu a volta
 − para outro lado e mandou um miúdo chamar-me. Chegou junto de mim e disse:

 − Tio, um militar mandou chamar-te.

Segui o menino até ao militar do PAIGC. Dois militares, que estavam numa varanda com armas nas mãos, deram-me voz de prisão. Um à esquerda e outro à direita, conduziram-me em direcção ao quartel, onde era antes o esquadrão de Cavalaria. Chegado ao último cruzamento, vi um jipe a aproximar-se de nós. Subimos para o passeio e vi o Suleimane Djaló, 2º comandante do batalhão. Era da minha etnia, embora a gente não se conhecesse.

Quando me aproximei, acompanhado dos dois soldados da sua unidade, perguntou:

− O que é que se passou?

−  Fui eu que o prendi, meu comandante!  
 − respondeu o militar.

 −  Por quê? 
 − perguntou o Suleimane.

 
− Ele é alferes dos Comandos!

 − Então, podemos prender qualquer militar, sem ordem de ninguém? De onde é que vieste? Quem te deu ordem para vir cá prender gente?

 − Desculpe, meu comandante, ninguém me mandou!

Suleimane Djaló, o comandante, olhou para mim:

 −  Onde ele te encontrou, Amadu?

 −  No choro[2]!

O comandante mandou-me embarcar no jipe. O sol estava muito bravo. O chefe que me prendeu também pediu boleia, mas o comandante disse que fosse a pé. Levou-me até à minha casa e,  depois, regressou.

O que me prendeu era beafada, chamava-se Ansumane Injai. Na altura em que me prendeu, estava bem fardado, de oficial, com calça e camisa de terylene e sapatos bem engraxados, fio de ouro e mascote, tudo grosso.

Passados uns anos, um dia, eu estava com o cunhado do meu irmão mais velho, meu conhecido desde muito novo. Andávamos juntos muitas vezes, o pai dele foi meu professor do Alcorão e o meu irmão mais velho tinha casado com a sua irmã mais velha.

Eu e o meu parceiro tínhamos um Peugeot 404, uma station com sete lugares. Ele também tinha sido tropa, foi condutor da 1ª CCmds. O nosso carro estava na oficina a mudar peças e, nós estávamos à porta do mercado de Bafatá.

A certa altura, chegou uma pessoa à minha frente e cumprimentou-me, apertando-me a mão. Era uma pessoa magra, estava suja e cheia de nódoas. Ele olhava para mim mas eu não o conhecia. Perguntou-me se eu não o reconhecia.

 
 − Eu,  não!

 −   Fui eu quem te prendeu! No choro do homem do Bairro de Caibra.

 
− Ah, foste tu?

 
− Sim, fui. Olha, desde que te prendi, nunca mais passei bem. Estive preso um ano e dois meses, libertaram-me, passados alguns dias voltaram para me prender mais dois anos. Saí há 5 dias da prisão.

Antes de eu sair da prisão, faleceu um meu primo em Bambadinca. Não tenho dinheiro para o transporte, foi um amigo que me deu boleia de Bissau até Bafatá. Agora, eu peço-te, por favor, que me arranjes 20 escudos para pagar o transporte para Bambadinca, para ir cumprimentar os familiares do meu falecido primo.

Não lhe disse nada. Meti a mão ao bolso, tirei uma nota de 50 escudos e dei-lhe. Ele agradeceu e foi embora. O meu companheiro disse-me que eu era um burro.

Eu não tenho ódio, Deus pagou-lhe o que merecia. Ele prendeu-me durante uma hora, esteve preso mais de três anos. O que é que eu vou querer mais dele ? Nada!

Aqueles anos foram de fome, não havia arroz. No governo de Luís Cabral, desembarcou um barco com rações de milho para os burros para dar à população. Fizemos tudo por tudo para comermos aquele milho, mas não conseguimos, era ração para burros. Mas,  vendo bem, o Luís Cabral não devia ser o único culpado. O ministro do Comércio era filho da Guiné e o 1º ministro também.

Depois de 14 de Novembro [de 1980],
acabaram-se as perseguições. Até esse dia fui perseguido dia e noite. Estava cadastrado no aeroporto, como todos os africanos que tinham sido militares portugueses. Todos os cadastros foram levantados. Dentro do meu coração, não deixo de louvar o 'Nino' Vieira[3], Presidente da Guiné-Bissau.

Nunca esquecerei os primeiros anos do governo de Luís Cabral, desde 1 de janeiro de 1975 até janeiro de 1976. A partir de 11 de março, a emissão do rádio acabava à noite com a frase “a pena de morte continua”, o recolher era obrigatório, a partir das 20h00 tínhamos que fechar as portas e apagar as luzes. Acendíamos as lanternas, algumas fabricadas por nós próprios. Era assim até ao nascer do novo dia.

Lembro-me de ouvir falar de um acontecimento passado em Farim[4]. Noventa e tal pessoas, Comandos e outros militares e milícias, que viviam na região de Casamansa, foram presos no Senegal pela polícia e por militantes do PAIGC. Trouxeram-nos em viaturas até à fronteira e depois, em viaturas do PAIGC, para Farim.

Depois, meteram-nos nas covas, que durante a guerra serviram de depósitos das granadas de artilharia. Ficaram lá presos. Não havia nenhum buraco, nem nenhum furo, por onde entrasse ar. Fechados lá dentro bateram à porta, gritaram, ninguém ouviu nada. 

No outro dia, de manhã, quando abriram a porta, encontraram-nos mortos, só um ainda respirava. Deram-lhe água para beber e quando acabou de beber também descansou e foi para junto dos companheiros. Não ficou nenhum sobrevivente daquela prisão subterrânea.

Quando 'Nino' fez o 14 de novembro, não admitiu no seu governo o autor deste massacre, mas mandou dar-lhe uma carrinha para governar a sua vida, que ficou como a sua reforma.

Com o golpe de 14 de novembro, a Guiné mudou muito. Começou livre e a fome acabou. Passou a haver arroz, não milho para burros, chegaram mais mercadorias para a Guiné, o aeroporto ficou aberto para todos os guineenses, que estavam na Europa. Os guineenses podem agradecer tudo isto a 'Nino' Viera, um filho da Guiné.

Deixámos o passado para trás. Por quê o ódio? E a vingança? Qual é o destino da vingança? É a guerra! Qual o destino final da guerra? Estropiados, sangue, lágrimas, pobreza, suor, trabalho.

Vai demorar muitos anos para acabar com a pobreza.

FIM do I Volume (Publicar-se-ão a seguir os Anexos)
______________________

Notas do autor ou do editor VB:

[1] Lalo Baio, mandinga, sobrinho do chefe da tabanca de Morucunda, em Farim, tinha pertencido ao PAIGC, nos primeiros anos da luta. Por qualquer motivo, tomou a decisão de se apresentar às autoridades portuguesas, trazendo com ele dez elementos e as respectivas armas.

[2] O morto. antes de ser enterrado, é embrulhado num pano e envolto numa esteira. As mulheres põem luto, vestindo-se de branco, sem qualquer enfeite ou adorno, a não ser um lenço branco. 

Ao fim de quarenta dias faz-se a cerimónia do choro, que consiste na reunião da família e amigos, orações na mesquita local, abate de uma ou mais cabeças de gado, sendo depois repartido por todos, depois de cozinhado. Não têm cemitérios. A sepultura é no local mais conveniente, ficando o corpo com a cabeça para oriente.

[3] Nota do editor: João Bernardo Vieira, 'Nino' Vieira, 'Nino' ou 'Kabi Nafantchammma' como também era chamado, nasceu em Bissau, em 27 de Abril de 1939.
[ Tem 165 referências no nosso blogue.] 

Em Janeiro de 1961 partiu para a República Popular da China, integrado num grupo de dez camaradas escolhidos por Amílcar Cabral, a fim de receber treino militar. Com 25 anos apenas, 'Nino' já era o Comandante Militar da zona sul, que abrangia a região de Catió até à fronteira com a Guiné-Conakry. Foi quase sempre no Sul que actuou durante a luta, transformando esta zona, que abrangia o Cantanhez e o Quitafine, num dos mais duros, senão o mais duro, de todos os teatros de operações em que as forças portuguesas estiveram empenhadas e do qual ainda restam nomes míticos como Guilege, Gadamael, Gandembel, Cacine, Catió, Cufar, Cadique, Bedanda e tantos outros. 

Embora se tenha dedicado principalmente à actividade operacional, como comandante de unidades de guerrilheiros, 'Nino' Vieira ocupou os mais altos cargos na estrutura do PAIGC, sendo membro eleito do bureau político do seu Comité Central desde 1964, vice-presidente do Conselho de Guerra presidido por Amílcar Cabral em 1965, acumulando com o comando da Frente Sul, e ainda comandante militar de todo o território a partir de 1970.

Foi eleito deputado em 1973 e, posteriormente, Presidente da Assembleia Nacional Popular, que proclamou no Boé a República da Guiné-Bissau, em 24 de Setembro de 1973.

Após a independência foi Comissário do Estado para as Forças Armadas. 

Em 1980, 'Nino' chefiou o golpe que levou à destituição do Presidente da República, Luís Cabral, e assumiu os cargos de secretário-geral do PAIGC e a Presidência da República. 

As consequências deste golpe levaram ao fim do projecto de Amílcar Cabral, a união dos povos guineense e cabo-verdiano. Em 1984 foi aprovada uma nova Constituição e só em 1991 terminou a proibição dos partidos políticos.

Com o novo regime, as primeiras eleições tiveram lugar em 1994. 'Nino' Vieira, concorrendo contra Kumba Yalá, foi eleito Presidente da República à 2ª volta, tomando posse em 29 de Setembro de 1994. Quatro anos depois, ainda conseguiu suster um golpe que visava a sua destituição. Mas não por muito tempo.

A propósito de um nunca esclarecido fornecimento de armas para a guerrilha de Casamansa, em Junho de 1998 travou-se uma violenta guerra civil entre partidários de Ansumane Mané e forças fiéis a 'Nino'. Mané destituiu-o em 7 de Maio de 1999 e 'Nino' Vieira foi obrigado a refugiar-se na Embaixada Portuguesa em Bissau, de onde só saiu em Junho para Portugal.

Fazendo jus à sua antiga imagem de combatente, 'Nino' regressou a Bissau em 2005 para anunciar a candidatura às presidenciais de Junho de 2005, que venceu à 2ª volta contra Malan Bacai Sanhá. Mas a sorte, que tantas vezes o protegeu, estava prestes a abandoná-lo.

Há Guineenses que dizem que, depois do regresso de Portugal, 'Nino' nunca conseguiu recuperar os poderes políticos e militares, que antes detivera. Que o poder militar se mantinha nas mãos dos que o tinham exilado e que, apesar das várias tentativas para fazer e compor alianças, o poder político se mantinha longe dele. Outros afirmam que 'Nino' foi tão bom combatente como mau político.
De herói da luta de libertação nacional a vilão e tirano, é como o retratam alguns camaradas, depois de o verem à frente dos destinos da Guiné-Bissau durante 22 dos 36 anos de Independência.

Companheiros cabo-verdianos na luta pela libertação, não esquecem que foi 'Nino' que, em 14 de Novembro de 1980, matou o sonho de Amílcar Cabral de unir os dois países. E não se coíbem também de referir que, com o golpe militar que derrubou Luís Cabral, 'Nino' abriu caminho a uma violência que durou até aos nossos dias. 

Outros contrapõem que a violência e os ajustes de contas começaram ainda antes do 1º Congresso do PAIGC, em Cassacá, Cacine, e fizeram sempre parte da vida do partido. Certo é que, nos últimos trinta anos, 'Nino' esteve sempre no centro das muitas crises que afectaram a vida da jovem República. E na sequência de mais um grave conflito político-militar, 'Nino' Vieira morreu, em 2 de Março de 2009, às mãos de alguns militares das Forças Armadas de que foi um dos principais criadores.

Ironias do destino dos antigos camaradas de luta e adversários depois: os corpos de “Nino” Vieira e o do general Tagmé Na Waié, também vítima, um dia antes, de uma explosão violenta no seu gabinete e ambos companheiros na luta pela independência, repousaram juntos, bem perto um do outro, na morgue do Hospital Simão Mendes, em Bissau, antes de serem sepultados no cemitério de Bissau, em extremos opostos.

[4] Nota do editor: em depoimento a Nelson Herbert, editor-sénior do serviço em português para a África, da Radio Voice of Amrrica (Voz da América), Luís Cabral refere-se assim ao acontecimento: 

(...) “Houve um acidente gravíssimo, acidente que todos nós lamentamos imenso. Foi numa altura em que numa prisão subterrânea deixada em Farim pelas autoridades coloniais, puseram-se lá indivíduos que nos foram entregues na fronteira do Senegal, indivíduos em número bastante elevado e houve à noite uma asfixia, falta de ar, e morreram pessoas nessa prisão. Quando tivemos conhecimento desse desastre, desse acidente, ficámos altamente perturbados e isso nem os homens que estavam directamente ligados a esses prisioneiros nem nenhum dos outros elementos da direcção do País deixaram de sofrer, sofrer mesmo, com esse acidente que vitimou várias pessoas. Isso foi uma coisa que lamentei muito e que gostava imenso que nunca tivesse sucedido.” (...) 

(Seleção, fixação / revisão de texto, negritos, links, fotos, notas adicionais entre parènteses retos, título, subtítulo, síntese das partes anteriores: LG)
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Nota do editor:

Último poste da série  > 1 de fevereiro de 2024 > Guiné 61/74 - P25126: Recordando o Amadu Bailo Djaló (Bafatá, 1940 - Lisboa, 2015), um luso-guineense com duas pátrias amadas, um valoroso combatente, um homem sábio, um bom muçulmano - Parte XLII: No rasto do PAIGC, a última saída da CCAÇ 21: apanhada de surpresa, em Canjufa, pela notícia do golpe de estado do 25 de Abril (pp. 272/276)