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quinta-feira, 28 de agosto de 2025

Guiné 61/74 - P27161: Seis jovens lourinhanenses mortos no CTIG (Jaime Silva / Luís Graça) (5): Carlos Alberto Ferreira Martins (1948-1971), sold pqdt, CCP 123 / BCP 12 (jun 70 / abr 71) - Parte II





Lourinhã > Largo António Granjo > Monumento aos Combatentes do Ultramar > 6 de setembro de 2014 > I Encontro dos Paraquedistas do Oeste > Estandarte da Associação de Pára-quedistas Tejo Norte, com sede em Oeiras, e cujo lema é "Icarus Ultra Mortem" (Ícaro além da morte, traduzindo à letra). Nesse encontro foi também homenageado o sold pqdt Carlos Alberto Martins Ferreira, CCP 123 / BCP 12 (Guiné, 1970/71)

 Infografia:  Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (2025)

Guiné > Carta de Cabuca (1959) > Escala 1/50 mil > Posição relativa de Canjadude, estrada Nova Lamego -Cheche, e Ganguirô, a sudoeste de Cabuca, e próximo do rio Corubal, numa zona já de pequenas colinas.

Infografia; Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (2014)


1. Graças ao génio da cartografia portuguesa (um domínio onde historicamente temos ou tivemos pergaminhos, fomos pioneiros e fomos grandes!) é possível mostrar, aos nossos leitores, onde morreram os nossos bravos, pelo menos no TO da Guiné...

Ganguirô, uma antiga tabanca, ligada a Canjadude por uma velha picada... Lá no cu de Judas, na região mais desértica e desolada da Guiné!!!... Mais um topónimo, anódino, anónimo, que não ficará na história da guerra, mas que também fez parte  do nosso calvário, e que pelo menos figura  como "marcador" no nosso blogue... Para que a gente (e a gente que há vir a seguir a nós!) não se esqueça: que hoje soldados portugueses (e guineenses)   que morreram em Ganguirô, já próximo da região do Boé, que os portugueses consideraram, erradamenmte, um região sem valor estratégico...

Foi aqui, em Ganguirô, que os camaradas da CCP 123 / BCP 12, no final de um patrulhamento ofensivo (sem contacto), e os da CCAÇ 5, os "Gatos Pretos" (que vieram a picar o itinerário e vieram buscar os páras, com viaturas,) foram surpreendidos pelo IN (que terá vindo, sorrateiramente, no seu encalce)...

Da emboscada, em Ganguirô,  resultaram 2 mortos para a CCP 123 / BCP 12, e vários feridos... Um das vítimas mortais foi o lourinhanse Carlos Alberto Martins Ferreira (*).

No livro do Jaime Bonifácio Marques da Silva, "Não esquecemos os jovens militares do concelho da Lourinhã mortos na guerra colonial" (Lourinhã: Câmara Municipal de Lourinhã, 2025, 235 pp., ISBN: 978-989-95787-9-1), e na "ficha" correspondenye ao Carlos Alberto Martins Ferreira, não há excertos do Auto de Averiguações ao Acidente pela simples razão de que não consta do processo individual do infortunado militar, morto em Ganguirô, em 15 de abril de1971. (O processo individual foi consultado no Arquivo Geral do Exército.)

 Em parte para colmatar esta lacuna, e para se saber um pouco mais sobre as circunstâncias da morte do nosso camarada paraquedisat, recorremos  a postes já publicados no nosso blogue, em 2014 (*)


2. Comentário do nosso colaborador permanente José Marcelino Martins, ex-fur mil trms, CCAÇ 5(Canjadude, 1968/70):

Extrato da História da Companhia de Caçadores nº 5, estacionada em Canjadude. Acção de apoio ao Páras.

15 de Abril de 1971. Acção tipo patrulha de combate com emboscada, à região de Liporo, constituída por 1 grupo de combate, sob o comando do Alferes Miliciano Alexandre Rodrigues Martins. Resultados: As NT foram emboscadas durante o encontro com as tropas paraquedistas tendo resultado um ferido, que veio a falecer no HM 241.

Carlos Alberto Martins Ferreira
(Toledo, Lourinhã, 1948 - Ganguirô,
 Guiné-Bissau, 1971)
3. Comentário do nosso editor LG:

Zé Martins, grande "gato preto" da CCAÇ 5 (Canjadude, 1968/70):

Essa história parece estar mal contada, como muitas outras passadas na nossa "querida Guiné"... Ou pelo menos, parece haver versões diferentes dos acontecimemtos que provocaram o ferido grave da CCAÇ 5. a que te referes (e que posteriormente veio a morrer, no HM 241, em Bissau)... bem como da emboscada que se seguiu, e que provocou 2 mortos e vários feridos entre os páras, quando se preparavam para subir para as viaturas, no regresso a Nova Lamego... 

Entre os mortos está o meu conterrâneo Carlos Martins que era do 3º pelotão da CCP 123 (e que habitualmente fazia serviço na messe de graduados da CCP 123, em Nova Lamego).

A versão que me contou o ex-1º cabo Santos, apontador da MG 42, do 4º pelotão da CCP 123, um camarada aqui do Sobral da Lourinhã, não coincide totalmente com a versão "oficial"...

O homem da CCAÇ 5 (aquartelada em Canjadude) que foi gravemente ferido (e que viria a morrer mais tarde) seria um guia e picador, africano, que terá sido confundido com um "turra"...

A emboscada à CCP 123 / BCP 12  (e às forças da CCAÇ 5 que trouxeram as viaturas, e que vinham a picar a estrada para Canjadude) ocorreu depois deste "incidente", já terminada a operação em que estiveram envolvidos os páras...

O Santos disse-me que os turras levaram as duas armas dos mortos da sua companhia... e que o resultado poderia ter sido bem pior se o grupo inimigo emboscado tivesse esperado que as forças da CCP 123 tivessem tomado os seus lugares nas viaturas...

Esta foi versão que ouvi  da boca do ex-1º cabo Santos, no estádio municipal da Lourinhã, enquanto esperávamos os saltos de paraquedas, por ocasião do I Encontro de Paraquedistas do Oeste (Lourinhã, 6 de setembro de 2014) (**)...

Mas temos sempre que sujeitarmo-nos ao "contraditório" quando ouvimos versões de acontecimentos de guerra que ocorreram há mais de 40 anos...

Vou tentar procurar o Santos para reconfirmar a sua versão que reproduzo aqui por alto...

De qualquer modo, aqui vai a minha solidariedade para com os camaradas da CCP 123/BCP 12 que sogfreram este revés na região de Canjude, bem como para os "Gatos Pretos" (CCAÇ 5). Desconhecia completamente as circunstâncias em que morreu o meu conterrâneo Carlos Martins.

domingo, 7 de setembro de 2014 às 23:44:00 WEST 


4. No vídeo com alocução do antigo comandante da CCP 123 / BCP 12, o hoje major general ref Avelar de Sousa, faz-se o elogio das qualidades humans e  militares do sold pqdt Carlos Martins, mas não há informação detalhada sobre as circunstàncias em que morreu, juntamente com outro camarada (**).

(Revisão / fixação de texto, negritos, itálicos: LG)

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Notas do editor LG:

7 de setembro de 2014 > Guiné 63/74 - P13581: Convívios (622): I Encontro de paraquedistas do Oeste... Lourinhã, 6 de setembro de 2014... Parte I: As primeiras imagens

9 de setembro de 2014 > Guiné 63/74 - P13589: Convívios (624): I Encontro de paraquedistas do Oeste... Lourinhã, 6 de setembro de 2014... Parte III: Homenagem ao sod paraquedista Carlos Alberto Ferreira Martins (1950-1971), da CCP 123/BCP12... Vídeo com a alocução do seu antigo comandante, hoje maj gen ref Avelar de Sousa

18 de setembro de 2014 > Guiné 63/74 - P13622: Convívios (630): I Encontro de paraquedistas do Oeste... Lourinhã, 6 de setembro de 2014... Parte VI: Discurso do Jaime Bonifácio Marques da Silva > 2ª Parte: homenagem ao sold paraquedista lourinhanense, natural de Toledo, Vimeiro, Carlos Alberto Ferreira Martins (1950-1971), morto em combate em Ganguirô, Canjadude, região de Gabu, Guiné, em 15/4/1971

segunda-feira, 4 de agosto de 2025

Guiné 61/74 - P27088: Notas de leitura (1826): "África No Feminino, As Mulheres Portuguesas e a A Guerra Colonial", por Margarida Calafate Ribeiro; Edições Afrontamento, 2007 (Mário Beja Santos)


Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 14 de Julho de 2024:

Queridos amigos,
Trata-se de uma investigação relevante e vincadamente singular. Como observa a autora, Margarida Calafate Ribeiro, é uma recolha de vivências da memória da guerra colonial a partir das perspetiva de mulheres portuguesas que acompanharam os maridos numa retaguarda ou num destacamento atreito à guerra. "Nasceu do meu espanto sobre o registo apenas ficcional do rosto destas mulheres, e da generosidade das mulheres que entrevistei quando um dia lhes bati à porta e lhes disse: 'Sei que esteve em África. Quer contar?'.

 Uma coletânea de testemunhos onde se exprimem as diversidades na formação destas mulheres nossas contemporâneas, o quadro ideológico envolvente de todas elas, há uma imensa saudade por aqueles amplos espaços, pelas rasgadas solidariedades, quem ali deu à luz ou levou crianças pequenas guarda recordações ao milímetro, há quem não queira voltar, sobretudo as mulheres que ali estiveram presentes nos últimos anos, com realce para a Guiné e Moçambique, houve a clara perceção que o mundo desabava e em muitos dos depoimentos há o claro desconforto em dizer que nem tudo correu bem na descolonização, mas que foi o resultado inevitável de uma teimosia sem limites que levou muita gente a ter que fugir e ao sofrimento de guerras civis. Oxalá que esta obra tenha continuação.

Um abraço do
Mário



Mulheres que foram à guerra ou que andaram ali bem perto

Mário Beja Santos

O essencial dos testemunhos de quem participou ou viveu o teatro de guerra é dado pelos militares, como comprova a literatura produzida de 1961 até hoje. Há, evidentemente, testemunhos de mulheres, referem sempre nomes como os de Lídia Jorge ou Wanda Ramos que ousaram, pela via da ficção, pôr na escrita a experiência do que viram em África. Daí o conjunto de iniciativas de dar voz a quem esteve na Ribalta, logo as enfermeiras paraquedistas, depois as mulheres dos militares.

E é neste nicho da memória do feminino que Margarida Calafate Ribeiro [na foto à direita], investigadora do Centro Estudos Sociais da Universidade de Coimbra, desenvolveu um projeto de auscultação de mulheres que acompanharam os maridos em Angola, Guiné e Moçambique; não foram poucas as que viveram em aquartelamentos sujeitos a flagelações ou transitaram por estradas onde podiam ocorrer emboscadas ou deflagrar minas.

E o todo desta obra é de uma impressionante qualidade, são depoimentos enriquecedores, iremos ser confrontados com memórias onde é difícil não acreditar na sua total sinceridade; um todo que clarifica (ou comprova) que o estudo da guerra colonial não pode deixar de dar visibilidade às mulheres destes militares, muitas delas guardam recordações felizes, outras não tanto, lendo "África no Feminino, As Mulheres Portuguesas e a Guerra Colonial", Edições Afrontamento, 2007, ganha-se consciência de que se queremos interpretar a guerra colonial num sentido individual e coletivo, é indispensável ouvir os diferentes testemunhos e não tratar a presença das mulheres na guerra como um mero acidente histórico.

Sendo completamente inviável ir pontuando e distinguindo esta vasta galeria de testemunhos recolhidos pela investigadora, há que procurar classificar em termos amplos quem testemunha e a matéria desse testemunho. Um número elevado delas tem formação académica ou cursou os liceus e pôde ministrar no ensino enquanto o marido cumpria a sua comissão. São, por conseguinte, referências de mulheres de oficiais e alguns sargentos. Pesam os testemunhos de mulheres que alegam não ter então qualquer formação política, viver em ambiente conservador e religioso; há uma lembrança comum a todas, o horror das partidas no cais, ninguém esqueceu aqueles lenços a acenar e os gritos das despedida; há depoimentos bem vincados de mulheres de médicos, a partilha daquele sofrimento por verem vidas a apagar-se; elas nunca esquecem a procura de normalidade na vida, o vínculo estabelecido entre mulheres, mas há quem guarde más memórias da leviandade de outras mulheres de militares, e como recusaram o convívio; não são poucas as referências à formação católica e depois como, também graças à universidade, entraram nas suas vidas Graham Greene, Kafka, Saint-Exupéry, Malraux, Camus, Garcia Lorca, o novo cinema; os testemunhos dividem-se, compreensivamente, quando se fala em viver em cidades em que se sentia ou não a guerra.

Alguém testemunhará assim:

“Em Bissau, não tínhamos bem consciência da guerra, embora ouvíssemos os bombardeamentos, víssemos os helicópteros e muita tropa. Mas as desgraças que eu vi no hospital militar de Bissau não aconteciam em Bissau. Havia duas coisas que me davam a consciência da presença da guerra: primeiro, o regresso do meu marido das operações, vinha cheio de febre, com o corpo todo cheio de picos, que eu com uma pinça ia tirando devagarinho, vinha completamente esgotado física e psicologicamente. Íamos à missa na capela da Marinha, pelos que tinham morrido, que podiam ser do destacamento do meu marido ou de outro qualquer, mas havia sempre missas na capela e foi aí que comecei a aperceber-me de que estávamos realmente em guerra, morriam pessoas. Os helicópteros eram outro sinal da guerra. Transportavam sempre mortos ou feridos graves. Lembro-me como esperava por eles, quando o meu marido saía em missão. Os helicópteros só chegavam quando amanhecia e a minha primeira aula da manhã começava pelas 7h00. Entre as 7h05 e as 7h10 começavam a chegar os helicópteros. Ainda hoje tenho, muito dentro de mim, aquela angústia.”

E, mais adiante:

“Em Bissau havia casas, eletricidade, frigorífico, comida, bem-estar, lojas, vida. Estávamos bem, embora vivêssemos alienados da realidade. Quando hoje penso nisso, nós não estávamos na vida real, o que era aquilo? Vivíamos numa euforia falsa, entre ataques e regressos no mato e muitas festas.”

A eficácia deste levantamento de testemunhos é podermos sentir a multiplicidade dos olhares, a mulher como sujeito histórico da guerra e veiculadora de uma ética de reconhecimento, olhares sobre o ensino, sobre o racismo, a generosidade; e há o fator temporal a pesar na narrativa, sobretudo na Guiné e em Moçambique, quem ali viveu entre 1973 e 1974 observou se tinham entrado na diluição; é nesta diversidade de depoimentos que se pode entender como as produções literárias se demarcam perfeitamente nos três teatros de guerra. O depoimento de uma mulher em Angola ajuda a iluminar a complexidade de todos estes olhares:

“Em Angola os costumes eram muito mais brandos, a vida social muito mais descontraída e isso tornava as pessoas mais livres. O adultério era uma prática corrente precisamente porque havia muitas mulheres em Luana cujos maridos estavam no mato. Viajava-se muito, havia muitas pessoas que trabalhavam com empresas sul-africanas ou da Rodésia ou de Moçambique e havia muita gente que ficava sozinha. As mulheres dos militares que estavam no mato eram muito observadas. Estávamos permanentemente sobre a mira das pessoas. As mulheres dos militares eram consideradas presas fáceis, o que, por vezes, tornava a vida um bocado complicada. Estar com alguém fora do habitual ou com alguém do sexo oposto era muitas vezes objeto de mexericos e más-línguas.”

Há um extremo cuidado na composição do relato, a investigadora pede a quem inquire que fale das suas origens, da mentalidade doméstica, onde e como estudou, depois a narrativa encaminha-se para o modo como o casal se acompanhou e se acarinhou, e qual a importância da experiência na vida depois do regresso, muitos destes casamentos acabaram em ruturas, inevitavelmente fala-se do stress pós-traumático da guerra. Há depoimentos a que as mulheres não se furtam a refletir sobre o significado da guerra, como dela falam aos filhos, alguém depõe assim:

“Porque fui eu? Não sei bem, na altura fui o que desejei fazer, sem pensar numa realidade mais remota que não a simples companhia a alguém de quem gostava, uma coisa que me pareceu ser a atitude mais natural. Acho que, para a maioria dos milicianos, o fator mais importante foi exatamente a falta de empenhamento naquela guerra, não era uma guerra para a qual corrêssemos cheios de entusiasmo, como para as Brigadas Internacionais na Guerra Civil Espanhola. Não foi uma guerra de ideologia, foi uma obrigação que nos surgiu no caminho. Ficou a experiência da solidariedade que vivia no mato e os espaços sem limites que desconhecíamos.”

Sem margem para dúvida, um indispensável alinhamento de apontamentos que contribuem para se conhecer melhor o que estas mulheres com formação académica ou escolar guardaram na memória do tempo em que acompanharam os seus maridos nas três frentes de guerra.

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Nota do editor

Último post da série de 1 de agosto de 2025 > Guiné 61/74 - P27078: Notas de leitura (1825): Para melhor entender o início da presença portuguesa na Senegâmbia (século XV) – 4 (Mário Beja Santos)

domingo, 27 de julho de 2025

Guiné 61/74 - P27057: E os nossos assobios vão para...(4 ): o programa "Linha da Frente", reportagem "Marcados pela Guerra", que passou na RTP1, no passado dia 24, às 21h00: a montanha pariu um rato (Ramiro Jesus, ex-fur mil cmd, 35ª CCmds, Teixeira Pinto, Bula e Bissau, 1971/73)


Ramiro Jesus: membro da Tabanca Grande
 desde 9/9/2012; mora em Aveiro



1. Mensagem de Ramiro Jesus  (ex-fur mil cmd, 35.ª CComandos, Teixeira Pinto, Bula e Bissau, 1971/73)

Data - s
ábado, 26/07/2025, 22:34 
Assunto - TV

Boa-noite, Luís e restantes camaradas ex-combatentes.

Deixei passar dois dias para ver se via no nosso blogue alguma reação ao programa que a RTP transmitiu na passada quinta-feira, acerca das nossas saudosas guerras. (*)

Como ninguém se manifestou, vinha eu, deste modo, perguntar ao grupo se terei sido o único que achou aquilo uma verdadeira pobreza franciscana.(**)

E aproveitar para perguntar aos responsáveis do canal que pagamos diariamente, se não encontram alguém que saiba história e seja capaz de enquadrar, com respeito por essa história, as entrevistas que tenham feito, com gente também capaz de exprimir as verdades e realidades da mesma, bem enquadradas com as tais imagens reais das lutas no mato, picadas ou bolanhas e não com os "filmes" que nos pediam para fazer (no meu caso, sempre negados) na época do Natal, normalmente desenroladas ao lado das pistas dos aviões ou pertinho do arame farpado dos quartéis. 


Parece-me que, isso sim, seria uma boa homenagem aos ainda sobreviventes que por cá andamos e um bom contributo para o ensino - aos nossos filhos e netos - da verdadeira Históra da guerra colonial/ guerra do ultramar.

Propunha ainda que, se porventura fosse viável fazer o que sugiro, por uma equipa com verdadeiros conhecimentos, os trabalhos fossem separados por episódios, por cada uma das antigas colónias/províncias, pois creio estar certo de que as realidades em cada terreno eram bem diferentes entre a Guiné, Angola ou Moçambique.

E pronto. Agora que desabafei e fiz a minha sugestão, agradeço que analises se vale a pena publicá-la. Ficas à vontade.Entretanto, agradeço a dedicação dispensada ao blogue por todos os editores e despeço-me com um forte abraço. Ramiro Jesus.

(Revisão / fixação de texto, título: LG)


2. RTP > Linha da Frente > Marcados pela Guerra :

Episódio 19 de 48 | Duração: 30 min

Sinopse: Entre 1961 e 1974 cerca de 800 mil jovens portugueses partiram para combater nas colónias africanas. Hoje, 60 anos depois, a guerra mantém-se viva na memória dos que estiveram nas três frentes de batalha: Angola, Guiné e Moçambique.

"Marcados Pela Guerra" mostra a profundidade e persistência do impacto psicológico da Guerra Colonial nos ex-combatentes.

O stress pós-traumático, frequentemente não diagnosticado e silenciado ao longo de décadas moldou vidas e deixou marcas invisíveis na saúde mental de milhares de homens.

"Marcados Pela Guerra" é uma reportagem da jornalista Sandra Claudino, com imagem de Emanuel Prezado, e edição de Nuno Castro.


Próximas emissões deste episódio:

27 Jul 2025 | 10:30

27 Jul 2025 | 11:20 | RTP3

28 Jul 2025 | 02:45 | RTP3

29 Jul 2025 | 13:30 | RTP3

30 Jul 2025 | 05:20 RTP Internacional

Fonte: RTP > Programa > TV
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Notas do editor:

segunda-feira, 21 de julho de 2025

Guiné 61/74 - P27039: Agenda Cultural (897): Programa "Linha da Frente", reportagem "Marcados pela Guerra": RTP 1, quinta-feira, dia 24, às 21h00... Um dos participantes é o nosso camarada José Saúde (ex-fur mil OE/Ranger, CCS / BART 6523, Nova Lamego, 1973/74; vive em Beja)



O nosso camarada José Saúde (ex-fur mil OE / Ranger, CCS / BART 6523, Nova Lamego, 1973/74; vive em Beja; tem 254 referências no nosso blogue) é um dos participantes  no programa “Linha da Frente": esta semana, dia 24 de julho, quinta-feira, às 21h, na RTP1. A não perder.

Imagens: O Zé Saúde, fotrograma do "trailer" do documentário, e página do Facebook do programa "Linha da Frente" (  com a devida vénia...


Sinopse

“Marcados Pela Guerra” é uma reportagem da jornalista Sandra Claudino, com imagem de Emanuel Prezado, e edição de Nuno Castro,  para ver no “Linha da Frente, esta semana, dia 24 de julho, quinta-feira, às 21h, na RTP1.

Entre 1961 e 1974 cerca de 800 mil jovens portugueses partiram para combater nas colónias africanas. 

Hoje, 60 anos depois, a guerra mantém-se viva na memória dos que estiveram nas três frentes de batalha: Angola, Guiné e Moçambique.

“Marcados Pela Guerra” mostra a profundidade e persistência do impacto psicológico da Guerra Colonial nos ex-combatentes.

O stress pós-traumático, frequentemente não diagnosticado e silenciado ao longo de décadas,  moldou vidas e deixou marcas invisíveis na saúde mental de milhares de homens.
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Nota do editor LG:

Último poste da série > 20 de julho de 2025 > Guiné 61/74 - P27037: Agenda cultural (896): 9ª edição da Recriação Histórica da Batalha do Vimeiro 1808: Lourinhã e Vimeiro, 18, 19 e 20 de julho de 2025 - II ( e última) Parte

terça-feira, 24 de junho de 2025

Guiné 61/74 - P26952: Agenda cultural (891): "Querido Pai, uma conversa entre ausentes - Cartas da guerra, 1961-1975", por Ana Vargas e Joana Pontes; Tinta da China, Julho de 2025


A correspondência entre pais mobilizados e os seus filhos menores durante a guerra colonial

Prefácio: Aniceto Afonso
Julho de 2025 | 304 PP | 17,2 X 21,4 cm
ISBN: 978‑989‑671‑951-7

Envios a partir de 03/07/2025

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A história que aqui se conta é a da relação dos militares mobilizados para a guerra colonial portuguesa com os filhos menores que deixaram na Metrópole ou que vieram a nascer na sua ausência, vivida através da correspondência. Em aerogramas escritos e desenhados, o militar vai desempenhando o seu papel de pai. Os filhos, por seu lado, consoante a idade, vão respondendo da maneira que conseguem, por vezes com a ajuda das mães, dos irmãos ou de outros familiares. Esta troca de correspondência revela as inquietações de ambos os lados e oferece‑nos uma reflexão muito particular sobre a ideia de família numa sociedade em mudança, a par dos valores e dos contextos sociais que marcaram uma época fundadora na história do país.

«As cartas entre pais e filhos, normalmente ainda crianças, levam e trazem emoções especiais e sentimentos íntimos que devemos olhar com delicadeza e compreensão. Fazer História obriga‑nos a considerar também estes casos singulares das relações com as crianças, o que nem sempre é um caminho fácil.»

Aniceto Afonso, Prefácio

A devida vénia a TINTA DA CHINA
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Nota do editor

Último post da série de 22 de junho de 2025 > Guiné 61/74 - P26947: Agenda cultural (890): Lançamento do livro do Jaime Bonifácio Marques da Silva, "Não esquecemos os jovens militares do concelho da Lourinhã mortos na guerra colonial": Lourinhã, 21 de junho de 2025: fotogaleria

quinta-feira, 5 de junho de 2025

Guiné 61/74 - P26888: (In)citações (272): "A guerra nunca acaba, fica connosco" (José Teixeira, ex-1.º Cabo Aux Enfermeiro)

1. Mensagem do nosso camarada José Teixeira (ex-1.º Cabo Aux Enfermeiro da CCAÇ 2381, Buba, QueboMampatá e Empada, 1968/70) com data de 2 de Junho de 2025:


"A guerra nunca acaba, fica connosco"
Arturo Pérez-Reverte

Era eu um jovem, feito homem, quando fui convocado para prestar o serviço militar. Passado um ano, fui forçado a partir para a Guiné (hoje, República da Guiné-Bissau) para, como diziam os mandantes da Pátria, defender o solo pátrio do ultramar, por outras palavras; defender a soberania portuguesa, e porque não; os interesses dos senhores do grande capital.

Tinha duas hipóteses: aceitar, a contragosto, e pegar em armas, ou despedir-me da família, dos amigos, da Pátria que me viu nascer, e fugir para o estrangeiro, até ao fim da vida, sob o risco, de no caso de ser preso, partir de imediato para os locais onde a guerra era mais impetuosa.
Empada - José Teixeira escrevendo

Apenas dois anos dados à Pátria, os quais rapidamente recuperávamos, graças à nossa juventude, diziam os mandantes.

Mas não foi bem assim. Andei dois anos perdido, é um facto. Vivi situações de difícil descrição. Vi morrer, sem poder valer. Salvei vidas de militares e civis vítimas da guerra que ninguém queria. Salvei vidas de crianças (bebés) com crises de paludismo, que atingiam 42ºC de temperatura corporal. Consegui fazer daqueles dois anos um tempo de vitórias e algumas derrotas, de algumas alegrias no meio de muito sofrimento. Vivi momentos em que senti a morte a meu lado, nos estilhaços cravados na terra a centímetros da minha cabeça, nas balas que passavam a assobiar e se cravavam na árvore, onde me protegia, da mina anticarro que destruiu a viatura da qual tinha saltado segundos antes…

Passados dois anos regressei à “mãe pátria” e tentei esquecer aquele amargurado tempo que nunca mais passava, mas a guerra ficou cá dentro, e nunca mais acabou.

Regressei com uma sensação de vazio dentro de mim, e encontrei vazios muitos dos espaços, onde antes de partir, centrava a minha vida. Até a família, apesar do intenso calor humano e amor, com que fui recebido, estava diferente. Tinham feito caminhos que eu não palmilhei. Sentia-me estranhamente só. Os amigos e amigas tinham partido para outras aventuras onde não eu estive. Perdi-os. Já não tinha lugar junto deles. Estava com um atraso de dois anos. Tive de conquistar de novo, a pulso, o meu lugar, onde me foi possível.

Do emprego recebi um não. Não havia lugar para mim. Tive de aceitar a parca indemnização que me ofereceram e partir para outra aventura. Na valorização académica, foi um começar de novo, com muito esforço. A mente parece que tinha adormecido e recusava-se a retomar o caminho da aprendizagem que precisava de fazer para construir o futuro.

Tantas outras barreiras que tive de ultrapassar para me encontrar!

Será que me consegui encontrar? Não!

Fui caminhando ao meu encontro. Reconstruir a vida era o desafio mais cativante e absorvente. Encontrar caminhos novos, caminhos diferentes, seguir novas pistas e sorrir para a esperança. Uma vida longa, com muitos momentos gratificantes, faz-me sentir um homem realizado, diferente do jovem que partiu para a Guiné.

Dentro de mim, tentava apagar os resíduos da guerra, mas quando pensava que tinha enterrado uns, apareciam outros. E, assim tem sido pela vida fora.

Recordo que quinze dias depois de regressar apareci debaixo da cama, sem saber como fui lá parar. Apenas uma porta tinha batido com um pouco de violência, provocada pelo vento.

Nos primeiros tempos tentava recusar-me a pensar na Guiné. Nem sequer falar ou ouvir falar de guerra. Qualquer cena de guerra na TV me angustiava. Os meus filhos dizem (muito mais tarde) que me viam chorar frente à TV a preto e branco, quando passava filmes de guerra, ou reportagens sobre conflitos armados, que infelizmente continuaram a surgir em várias partes do mundo).

Com a Revolução de Abril, surgiu como que um abafado silêncio, talvez medo, perante as correntes que denunciavam a guerra colonial e os seus efeitos, enquanto defendiam, e muito bem, a autodeterminação e independência para as colónias. Nós, os veteranos que tínhamos sido forçados a viver essa guerra, sentíamos uns olhares acusativos, como fossemos nós os culpados.

Depois, surgiu uma necessidade tremenda de falar, de contar o que me tinha acontecido, mas logo notei que não era compreendido. As pessoas não conseguiam entender. Ouviam. Ouviam… como para mim bastasse que ouvissem. Nem eu sabia o que queria com aqueles desabafos.

Passados cerca de vinte anos senti a carência das amizades que nasceram e frutificaram naqueles dois anos, os camaradas de aventura, os companheiros da minha Companhia Militar, e toca a tentar encontrá-los. Cerca de cinquenta atenderam a chamada. Três não responderam. Tinham tombado para sempre na Guiné. Outros já tinham partido no caminho que não tem retorno. Muitos, tinham emigrado. Houve, também, quem tentasse pôr uma pedra definitiva sobre os tempos de guerra, mas o encontro fez-se, e vieram as mulheres e os filhos. Depois, os netos e bisnetos. Vieram as dores, as enxaquecas, as artroses, indícios da velhice que não perdoa. Vieram as dores ao ver alguns partirem para a eternidade. Mas, continuamos a reservar um dia por ano para nos encontrarmos, falarmos de nós, da guerra que vivemos, das barreiras que tivemos de ultrapassar, dos caminhos novos que tivemos de construir, dos tempos que correm e que não entendemos. Da crueza das guerras que rebentam por todo a terra e que nós sentimos como ninguém, porque também vivemos uma guerra. Sabemos que quem as faz, não as quer fazer. Quem as manda fazer, não padece no corpo, os seus efeitos. Quem sofre os seus efeitos é o povo, as gentes humildes que querem viver em paz.

Para tentar acabar com a “guerra” que vagueia dentro de mim, parti para a Guiné, em romagem aos locais onde senti de perto os seus efeitos, onde a vivi. Procurei os lugares onde mais sofri. Os locais onde vi camaradas partirem para a eternidade sem lhes poder valer, locais onde acolhi e tratei feridos. Chorei as dores, que não tivera tempo de chorar no momento dos acontecimentos.

Procurei os amigos que por serem guineenses por lá ficaram na guerra. Tinham vindo comigo, no coração. Receberam-me em abraços. Muitos já tinham partido, alguns dos quais barbaramente assassinados, pelos conquistadores da “liberdade” da Pátria Guineense, por terem sido cobardemente abandonados por Portugal, que os considerava filhos e os motivara para a guerra na sua terra contra os seus irmãos de sangue, para os abandonar e lhes tirar a cidadania, entregando-os nas mãos dos combatentes contra quem tinham lutado, por Portugal. Trouxeram-me a família, mulheres, filhos, netos. Passei a ser “ermon di coração”. Seus filhos viram em mim o pai, seus netos, o avô.

Encontrei, em sã convivência, antigos guerrilheiros que me saudaram sem qualquer remorso, que tentavam localizar encontros de guerra, batalhas de frente a frente, sem nos vermos. Recordamos o ruido das armas, os mortos e feridos de ambas as partes. Ainda foram alguns, esses desencontros de outrora que tanto nos fizeram sofrer, a mim e a eles. Estranhamente sentimos necessidade de contarmos pormenores, localizarmos posições, historiarmos aqueles momentos, tal como fazemos quando encontramos algum camarada que partilhou connosco a terrível aventura da guerra. A necessidade de darmos o abraço da paz, apossou-se de nós em cada encontro. A frase “discurpa ermon, mas guerra é guerra” bailou nos nossos lábios, por ordem expressa do coração. Nos nossos olhos brilhava a luz da paz, do reencontro de “ermons” desavindos, e a amizade ganhou vida.
Ingoré, 2015, José Teixeira rodeado de crianças

Visitei as tabancas que me tinham acolhido, de quem retenho boas memórias. As “bajudas” raparigas de então, hoje, esposas, mães e avós. Fui reconhecido, chamado pelo nome. Sucederam-se os abraços, os ajuntamentos familiares, a festa cheia de sorrisos tão quentes como os de outrora. Recordamos tempos em que no ar pairava o medo da morte, a dúvida, a insegurança, ao lado da esperança do fim de uma guerra injusta. Hoje, respira-se paz e harmonia entre as gentes da Guiné, tão divididas naquele tempo. Há o bem-estar possível, num país continuamente adiado, mas onde a alegria caraterística dos povos africanos expressa nos ritmos e batuques, ocupou de novo o seu lugar.

A Tabanca de Matosinhos surgiu da necessidade de nos encontramos, os que passaram pela Guiné, de falarmos de nós, das nossas “guerras” numa linguagem que só nós entendemos. De convivermos numa “caserna” real, onde todas as semanas há sempre novidades da guerra. Já se passaram vinte anos, mas continua bem viva.
Uma quarta-feira na Tabanca de Matosinhos

O blogue Luís Graça e Camaradas da Guiné foi outro espaço de reencontro comigo, com camaradas que viveram dramas idênticos, e como eu continuam a sentir a guerra dentro de si e a pôr em comum dramas e aventuras, momentos bons e momentos menos bons da sua guerra.

Voltei à Guiné, mais tarde, outra e outra vez, à procura da paz interior, mas a guerra nunca acabou. Continua cá dentro.

José Teixeira
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Nota do editor

Último post da série de 21 de maio de 2025 > Guiné 61/74 - P26828: (In)citações (271): Eu vivo na Lisboa que amo (Juvenal Amado, ex-1.º Cabo CAR)

terça-feira, 17 de dezembro de 2024

Guiné 61/74: P26275: Agenda cultural (874): "Crepúsculo do Império: Portugal e as guerras de descolonização", Pedro Aires Oliveira e João Veira Borges, ed. lit. (Lisboa, Bertrand, 2024, 800 pp.): a História não é o somatório das vidas dos santos e heróis...

1.  Organizado sob os auspícios da Comissão Portuguesa de História Militar, e reunindo a colaboração de 37 autores, oriundos de diversas instituições universitárias portuguesas e estrangeiras, bem como de especialistas de reconhecido mérito em áreas como a história, a estratégia, as ciências sociais e as ciências militares, este livro vem fazer o "ponto da situação" ou o "estado da arte" em matéria de conhecimento sobre  Portugal, o fim do império e as "guerras de descolonização"... 

Para os antigos combatentes, com0 nós, passa a ser um livro de cabeceira  para o ano (novo) que aí vem. Só não é "livro de bolso", porque é um verdadeiro "tijolo",. uma calhamaço de  800 páginas e capa dura.

Caro leitor: acho que é a melhor prenda de Natal que te podes dar a ti mesmo. Vê, mais abaixo, a ficha técnica, e o índice.  Já comecei a ler alguns capítulos. Vamos partilhando notas de leitura. 

O livro foi lançado recentemente, em 21 de novembro passado, e simbolicamente na Torre do Tombo, em Lisboa. Ao fim de 50 anos, do 25 de Abril e do fim do mítico Império Português de 500 anos, é chegada a altura de deixarmos de usar a "guerra de África / guerra do ultramar / guerra colonial" como arma de arrremesso, político-ideológica,  uns contra os outros... 

Este livro ajuda-nos a obter o necessário distanciamento (e o desejável apaziguamento) em relação ao "sangue, suor e lágrimas" que os últimos soldados do império e os "insurgentes" (angolanos, guineenses, cabo-verdianos, moçambicanos, indianos, tiomorenses, etc.), todos "heróis", todos vencidos e vencedores, verteram num e no outro lado dos campos de batalha...

Como escrevem, na introdução,  os dois coordenadores literários, Pedro Aires Oliveira e João Vieira Borges,  "a historiografia 'heroicizante' das lutas independentistas terá ainda os seus praticantes. Mas é inquestionável que, desde a década de 1990,  com a derrocada dos socialismos africanos e a crise dos regimes de partido único, tem-se verificado uma outra predisposição para questionar muitos dos mitos fundadores das lutas de libertação e submeter as narrativas hagiográficas a um outro crivo, como nos dá conta um dos capítulos deste volume, da autoria de  Eric Morier-Genoud" (pág. 17).

Boas Festas, boas leituras. (LG)

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Ficha técnica:

Crepúsculo do Império
de João Vieira Borges, Pedro Aires Oliveira
ISBN: 9789722546072
Edição/reimpressão: 11-2024
Editor: Bertrand Editora
Idioma: Português
Dimensões: 156 x 242 x 48 mm
Encadernação: Capa dura
Páginas: 800
Tipo de Produto: Livro
Classificação Temática: Livros > Livros em Português > História > História de Portugal
Preço de capa: c. 25 euros


SINOPSE

As guerras travadas por Portugal entre 1961 e 1975, com vista à preservação do seu secular império ultramarino, são impossíveis de ignorar em qualquer balanço histórico ao 25 de Abril de 1974.

Quando se assinalam 50 anos sobre essa data e se revisitam as circunstâncias do tumultuoso processo de descolonização que se desenrolou em várias partes de África e da Ásia, e também na metrópole, este volume apresenta um grande estado da questão sobre os últimos anos do colonialismo português.

Reunindo a colaboração de mais de três dezenas de autores oriundos de várias instituições portuguesas e internacionais, bem como de especialistas reconhecidos na área da história, da estratégia e das ciências militares, esta é uma obra que familiarizará o público com algumas das investigações mais inovadoras acerca

Autores:

JOÃO VIEIRA BORGES

(i)  major-general; 

(ii) presidente da Comissão Portuguesa de História Militar;

(iii)  doutorado em Ciências Sociais;

(iv) antigo comandante da Academia Militar e fundador do Centro de Investigação da Academia Militar;

v) académico honorário da Academia Portuguesa da História, autor e coautor de 26 livros e de cerca de 160 artigos;

(vi) agraciado com a distinção Grande-Oficial da Ordem Militar de Avis.


PEDRO AIRES OLIVEIRA;

(i) professor associado da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas / NOVA (FCSH-UNL);

(ii) investigador integrado no Instituto de História Contemporânea da mesma faculdade;

(iii) autor de dezenas de livros e artigos sobre relações internacionais e a história contemporânea de Portugal;

(iv)  membro do conselho editorial da revista Relações Internacionais;

(v) membro do Conselho Consultivo do E-Journal of Portuguese History, entre outras diversas funções.

Fonte: Bertrand Editora

Recolha bibliográfica e filmográfica:





Sobre a recolha bibliográfica e filmográfica (disponibilizada no final da obra em ficheiros em formato pdf, "on line", no sítio da editora):  

Os coordenadores da obra, como bons académicos, desprezaram soberanamente  (espero que não arrogantemente...) a "literatutra cinzenta", a literatura memorialistica, as edições de autor,  os livros de ficção, de poesia, de fotografia, etc., já para não falar dos blogues e  outras páginas da Web, produzidos e mantidos por antigos combatentes de um lado e do outro, com informação riquíssima para a produção de conhecimento relevante do ponto de vista historiográfico: como nós lhe chamamos, são  os afluentes dos rios da pequena história que alimentam os rios da História com H Grande... 

No que respeita à bibliografia, por exemplo, há lacunas óbvias, não se percebendo bem qual foi o critério usado: por exemplo, porquê o António Lobato e não também o Amadu Bailo Djaló ou o José de Moura Calheiros ou o Mário Beja Santos ou o Armor Pires Mota,  autores de memórias como antigos combatentes ?...E os textos teóricos ou doutrinários, de Cabral a Spínola ? E porquê jornalismo de investigação, algum sensacionalista e qualidade duvidosa ?...

São para já os pequenos grandes reparos que eu faço a esta monumental obra, que passa a ser de referência,  sobre as "guerras da descolonização". 

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sábado, 30 de novembro de 2024

Guiné 61/74 - P26218: Lembrete (50): Lançamento do livro "Lavar dos Cestos - Liturgia de Vinhas e de Guerra", da autoria de José Brás, a levar a efeito amanhã, dia 1 de Dezembro, pelas 15h00, na Casa do Alentejo, Rua das Portas de S. Antão, 58 - Lisboa

L E M B R E T E




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"LAVAR DOS CESTOS – Liturgia de Vinhas e de Guerra"

JOSÉ BRÁS

SINOPSE


Protagonista e espectador de si próprio e da forte realidade no centro da mata sub-tropical do sul da Guiné, ainda, então, colónia portuguesa à força do regime de Salazar, neste caso, contra um Exército de Libertação aguerrido, bem treinado e habilmente liderado por Amílcar Cabral que tinha já como zonas libertadas extensas partes da colónia e populações, ocupando com guerrilheiros muitas e importantes localidades do pequeno território, Filipe Bento, mais tarde confundido com Arnaldo Matos e mesmo por vezes com José Brás, inicia uma viagem de vai e vem, contra a linearidade da acção e mesmo do espaço e do tempo, que o irá retirar do agressivo lugar de guerra da zona de Medjo-Guiledje-Gandembel-Gadamael Porto, navegando à sorte pelo Rio Cacine, por Catió, por outras zonas de guerra, até Bolama, até Bissau, tendo em mira a volta a Lisboa e ao Quartel de Caçadores de infantaria, onde, equivocado, julga ir deixar os restos de si dos últimos dois anos.

Mas não acaba em Caçadores de infantaria esta sua viagem de ida e volta. Na aldeia descobre que pouco mudou, apesar da aparência dos bairros novos que alargam a cidade nos despojos que a guerra oferece a quem a serve de livre vontade; apesar da fuga dos ranchos das beiras para paragens mais distantes e europeias; apesar da transformação dos meninos guerreiros de retornados da guerra em serventes de pedreiro nos arrabaldes da cidade, em motoristas, em padeiros, em polícias, em porteiros de prédios novos.

Filipe Bento anseia encontrar os meninos da sua aldeia e não os encontra. Busca perceber como é que esses companheiros nascidos já escravos das vinhas, se haviam transformado em soldados prontos a marchar de G3 para uma quente terra e uma guerra de que pouco ou nada conheciam. Em que escola, em que catequese, em que relações de poder envolvendo gente sem terra, ganhões de jorna pouca, pequenos agricultores, GNR’s, negociantes, armazenistas, caciques locais e land lords de extensas vinhas e grandes adegas, com interesses económicos já noutros negócios, patrões a quem começavam a faltar a mão de obra local e os beirões para tratar de suas terras.

E, na sua busca, Filipe Bento volta a viver Bissau, volta ao mato do sul da Guiné, às emboscadas, às patrulhas, às flagelações sobre miseráveis aquartelamentos onde vivera, volta a Guiledje e a Medjo, e ao Rio Balana, e ao Corredor da Morte, aos amigos feridos e mortos. E retorna ao Cais da Rocha e a Caçadores de Infantaria, e a Tavira; às vinhas de seus avós e à ingenuidade de mosca que eram na base do sistema, presas na teia da pirâmide de um Poder e de um regime que se mantinha no mito do Império que nunca foi, descobrindo que alguns desse meninos que reencontra, começavam a aprender sobre a guerra em África, o que não sabiam quando para lá partiram.

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Notas do editor

Vd. post de 8 de novembro de 2024 > Guiné 61/74 - P26125: Agenda cultural (865): Convite para o lançamento do livro "Lavar dos Cestos - Liturgia de Vinhas e de Guerra", da autoria de José Brás, a levar a efeito no próximo dia 1 de Dezembro, pelas 15h00, na Casa do Alentejo, Rua das Portas de S. Antão, 58 - Lisboa. Com a participação do Coronel Carlos Matos Gomes, representante da Câmara Municipal de Montemor-o-Novo e do Grupo Coral Fora D'Oras (Cante)

Último post da série de 28 de novembro de 2024 > Guiné 61/74 - P26210: Lembrete (49): Tabanqueiros/as do Centro, que não vos falte o fôlego para apagar amanhã as 100 velas do bolo!

sexta-feira, 8 de novembro de 2024

Guiné 61/74 - P26125: Agenda cultural (865): Convite para o lançamento do livro "Lavar dos Cestos - Liturgia de Vinhas e de Guerra", da autoria de José Brás, a levar a efeito no próximo dia 1 de Dezembro, pelas 15h00, na Casa do Alentejo, Rua das Portas de S. Antão, 58 - Lisboa. Com a participação do Coronel Carlos Matos Gomes, representante da Câmara Municipal de Montemor-o-Novo e do Grupo Coral Fora D'Oras (Cante)

C O N V I T E


JOSÉ BRÁS

Nasceu no concelho de Alenquer em 1943, estudou e trabalhou em Vila Franca de Xira, onde participou ativamente na animação da secção cultural da União Desportiva Vilafranquense, praticou remo de competição e pegou toiros integrado no Grupo de Forcados local.

Mobilizado para a Guiné, aí fez a guerra colonial entre 1966 e 1968. Regressado, entrou para os quadros da TAP como Comissário de Bordo. Fez teatro em grupos de amadores, foi ativista associativo e animador cultural. Eleito Presidente do Conselho Municipal de Loures, foi responsável pela organização do pelouro da cultura e desporto na Câmara Municipal entre 1974 e 1981, tendo sido posteriormente, eleito como Presidente da Junta de Freguesia de Loures até 1985.

Em 1986 foi galardoado com o Prémio Revelação da Associação Portuguesa de Escritores e do Instituto Português do Livro e da Leitura, na modalidade de ficção narrativa com o livro “Vindimas no Capim”, editado pela Europa-América.

Em 1989 foi eleito Presidente da Direção do Sindicato do Pessoal de Voo da Aviação Civil, cargo que exerceu até 1997, tendo, na sequência, exercido a coordenação da Frente Sindical da TAP constituída por 16 sindicatos, até 1995.

A viver desde 1997 em Montemor-o-Novo, fundou uma escola de pilotagem e exerceu as funções de instrutor de voo, tendo encerrado a escola em 2008.

Livre de outras atividades, dedicou-se de novo à escrita, colaborando com blogs na área da poesia e da “blogoterapia” da guerra, e, dessa colaboração, tem, sem intenção de edição, “No Bin Fala Mantenha”, textos de debate sobre as particularidades do colonialismo português e sobre a Guerra Colonial.

Com chancela Chiado Editora, apresentou em janeiro de 2011 novo trabalho de ficção narrativa com o título “Lugares de Passagem”. Na área da composição lírica, tem reunido a sua produção em edições pessoais que oferece a amigos via NET, desinteressado da edição no mercado.

“Itinerân(s)ias”, “Na Volta do Correio”, POESIA quase… quase ERÓTICA”, “Poesia da Guerra Colonial” “Litania de um Tempo de Dúvidas”, são títulos não editados para o mercado, reunindo conjuntos de textos seus.

Tem ainda poemas seus incluídos em várias Antologias.

É, desde 2017, membro do Coral Fora D’oras, grupo de CANTE alentejano de Montemor-o-Novo.



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"LAVAR DOS CESTOS – Liturgia de Vinhas e de Guerra"

SINOPSE


Protagonista e espectador de si próprio e da forte realidade no centro da mata sub-tropical do sul da Guiné, ainda, então, colónia portuguesa à força do regime de Salazar, neste caso, contra um Exército de Libertação aguerrido, bem treinado e habilmente liderado por Amílcar Cabral que tinha já como zonas libertadas extensas partes da colónia e populações, ocupando com guerrilheiros muitas e importantes localidades do pequeno território, Filipe Bento, mais tarde confundido com Arnaldo Matos e mesmo por vezes com José Brás, inicia uma viagem de vai e vem, contra a linearidade da acção e mesmo do espaço e do tempo, que o irá retirar do agressivo lugar de guerra da zona de Medjo-Guiledje-Gandembel-Gadamael Porto, navegando à sorte pelo Rio Cacine, por Catió, por outras zonas de guerra, até Bolama, até Bissau, tendo em mira a volta a Lisboa e ao Quartel de Caçadores de infantaria, onde, equivocado, julga ir deixar os restos de si dos últimos dois anos.

Mas não acaba em Caçadores de infantaria esta sua viagem de ida e volta. Na aldeia descobre que pouco mudou, apesar da aparência dos bairros novos que alargam a cidade nos despojos que a guerra oferece a quem a serve de livre vontade; apesar da fuga dos ranchos das beiras para paragens mais distantes e europeias; apesar da transformação dos meninos guerreiros de retornados da guerra em serventes de pedreiro nos arrabaldes da cidade, em motoristas, em padeiros, em polícias, em porteiros de prédios novos.

Filipe Bento anseia encontrar os meninos da sua aldeia e não os encontra. Busca perceber como é que esses companheiros nascidos já escravos das vinhas, se haviam transformado em soldados prontos a marchar de G3 para uma quente terra e uma guerra de que pouco ou nada conheciam. Em que escola, em que catequese, em que relações de poder envolvendo gente sem terra, ganhões de jorna pouca, pequenos agricultores, GNR’s, negociantes, armazenistas, caciques locais e land lords de extensas vinhas e grandes adegas, com interesses económicos já noutros negócios, patrões a quem começavam a faltar a mão de obra local e os beirões para tratar de suas terras.

E, na sua busca, Filipe Bento volta a viver Bissau, volta ao mato do sul da Guiné, às emboscadas, às patrulhas, às flagelações sobre miseráveis aquartelamentos onde vivera, volta a Guiledje e a Medjo, e ao Rio Balana, e ao Corredor da Morte, aos amigos feridos e mortos. E retorna ao Cais da Rocha e a Caçadores de Infantaria, e a Tavira; às vinhas de seus avós e à ingenuidade de mosca que eram na base do sistema, presas na teia da pirâmide de um Poder e de um regime que se mantinha no mito do Império que nunca foi, descobrindo que alguns desse meninos que reencontra, começavam a aprender sobre a guerra em África, o que não sabiam quando para lá partiram.

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Nota do editor

Último post da série de 7 de novembro de 2024 > Guiné 61/74 - P26124: Agenda cultural (864): Convite para o lançamento do livro "Um Grande Militar Português - General Bethencourt Rodrigues" da autoria de António Pires Nunes, a levar a efeito no próximo dia 5 de Dezembro, pelas 17h30, no Auditório das Instalações do Instituto Universitário Militar, em Pedrouços. A obra será apresentada pelo Major-general João Vieira Borges

quarta-feira, 6 de novembro de 2024

Guiné 61/74 - P26119: Contos com mural ao fundo (Luís Graça) (35): Nunca digas "coragem!", ao ouvido de quem está a morrer e sabe que vai morrer



Contos com mural ao fundo (35) > Nunca digas "coragem!", ao ouvido de quem está a morrer e sabe que vai morrer


por Luís Graça (*)


Estiveste no seu leito de morte. Um fatal cancro dos pulmões, porventura curável nos nossos dias, roubara-lhe a vida, há uns trinta anos atrás. Teria hoje  os seus 80 e tal,  se fosse vivo. Morreu jovem, demasiado jovem.

Era um dos teus heróis da adolescência. Tinha lentamente recuperado a alegria de viver, depois de uma grave crise que ele próprio qualificara de “existencial”.

A origem dessa crise remontaria, pelo menos, a setembro de 1967,  altura em que ele regressara da Guiné, onde havia conhecido a “guerra, pura e dura”.

Era um dos teus amigos, da época  da tua adolescência (que em vão quiseste prolongar: acabou aos 18 anos quando viste o  teu nome na lista do recenseamento militar, no edital camarário). 

Dele, o Doc, guardarás para sempre uma grande saudade, não obstante as vidas de ambas, cruzadas como tantas outras, se terem separado no final da década de 1960.

Nessa altura foste tu para a tropa e estava ele  a retomar, a custo, em Coimbra, os seus estudos de medicina que a vida militar viera interromper abrupta e dramaticamente. 

A imagem mais dolorosa que guardas dele, é a da cama de ferro, de um  anexo de um hospital, em Lisboa, num quarto, minúsculo, ao fundo de um corredor sombrio. Sem janelas. Sozinho como um cão, anichado em posição fetal, a escassas… 48 horas de exalar o seu último suspiro... Como virás a saber mais tarde, pela… telefonista de serviço. Pode ser cruel, mas era assim nesse tempo.

Reconheceu-te só pela voz. Não se moveu nem um centímetro. Estava lúcido, mas já em grande sofrimento, e sob o efeito de drogas.  Só lhe sussurraste, ao ouvido,  um tímido “Olá, Doc”. E acrescentaste, estúpida e desastradamente: 

− Coragem!

As suas únicas (e últimas) palavras, roucas, cavernosas,  inumanas, soaram-te a despedida, irremediável, brutal, sem retorno. Sentiste-as como um punhal cravado no teu peito. Guardaste-as para o resto da tua vida: 

 Ruizinho (tratava-te sempre por Ruizinho), vai-te embora, vai-te embora!

Nunca saberás se era uma súplica, uma ordem ou um grito, uma explosão abafada  de raiva, revolta e impotência!

Trinta anos depois, não te envergonhas de o dizer, essas palavras, as últimas, as únicas, que ele terá proferido, no seu leito de morte, como um urso agonisante na sua toca de hibernação, ainda hoje te martelam a cabeça. E tens pesadelos ao reviver esse momento único.

Sentiste um enorme  sufoco por ver a morte triunfar, impante, sobre a vida, e ao mesmo tempo vergonha  por teres sido incapaz de lhe tocar!... Como se ele já fosse cadáver!... 

Por pudor ou medo atávico da morte, não conseguiste sequer tocar-lhe. Mostrar empatia. Pegar-lhe na mão. Dizer-lhe a palavra  certa, humana,  de consolo, de conforto, de carinho. Não, só uma tímida,  inócua, cobarde,  desastrada palavra, completamente deslocada naquele momento e lugar:

− Coragem! 

Mais tarde, talvez para tranquilizar a tua consciência e não sentir o peso da tua fraqueza e sentimento de culpa, irias interrogar-te sobre o significado que ainda poderia ter o teu gesto de compaixão, no momento mais pungente e solitário da vida de um ser humano… Que é quando agoniza, lúcido mas a sofrer, longe do mundo, já muito longe daqueles que o amaram e que ele amou!...

Em boa verdade, ele não tinha ninguém à sua cabeceira, a não ser talvez o invisível e impávido anjo da morte... Morreria dois dias depois, “sozinho como um cão” (uma expressão que ele próprio usava, nos seus aerogramas, para falar da sua condição de combatente na guerra da Guiné, em 1965/67).  

Morreria sozinho como um cão, aos 48 anos, longe da família, de que, aliás, só restava a irmã, e os sobrinhos que mal o conheciam. Não tinha filhos. Nem ninguém que o tivesse amado como ele merecia.

Tiveste um ataque de choro, convulsivo, enquanto saiste dali, confuso, quase aos trambolhões, daquele corredor estreito e sombrio do anexo hospitalar, sufocado, em busca do ar fresco do pequeno jardim, rodeado de gigantescos ciprestes, sinistros, apontados para o céu, e que circundavam o pavilhão, conhecido como o “terminal da morte”.

Recuando há muitos anos atrás, vêm-te à cabeça as cenas do seu regresso da Guiné. Tu eras o único amigo de que ele se lembrava. Ou melhor, tu eras talvez o único amigo que ele ainda não queria esquecer (pensavas tu, lisonjeado).

Tinha regressado da guerra em 1967, no final do  verão que iria marcar, ironicamente, o fim, político, do homem, o Salazar,  que o mandara defender a Pátria, a milhares de quilómetros de casa. 

Tinha regressado da Guiné e não avisara ninguém da família. Nem sequer a namorada, a Xana. Muito menos os amigos, poucos, que vinham do tempo do liceu e do grupo de teatro amador, como era o teu caso. E tu, seguramente, eras o mais novo.

De facto, nem sequer se dignara escrever-te, a ti,  que eras o seu correspondente e de certo modo confidente. Trocavam correio  enquanto ele esteve na Guiné. E no grupo de teatro fizeste todos os papéis: secretário, produtor, moço de recados, ponto, aderecista,  datilógrafo, figurante, aprendiz de ator, colador de cartazes… De resto, eram amigos e vizinhos de bairro, se bem que tu fosses mais novo do que ele uns bons seis  anos.

Sabias que ele era um pessoa “difícil”, frequentemente “imprevisível e desconcertante”, "irascível e às vezes duro e até cruel, se não mesmo desumano e ingrato”, como escreverá um dos seus "amigos, admiradores mas  críticos", no jornal da cidade, na notícia necrológica. 

Sim, o Doc era bipolar (como a maioria dos seres humanos).  Era uma pessoa de extremos, daí o facto de nunca  ter tido muitos amigos. Mesmo assim, houve gente decente da  terra, que compareceu ao seu funeral, que seria organizado pela sua irmã, professora universitária. 

Não tinha ninguém à sua espera, no Cais da Rocha Conde de Óbidos, em Lisboa,  nessa manhã de setembro de 1967. De resto, vinha sozinho, como te explicará ele mais tarde. Tu ainda não percebias nada de tropa, mas ficaste a saber, pelos aerogramas que trocavam, que ele era de “rendição individual”: 

− Vim sozinho e regressarei sozinho, no caso  de não lerpar... 

− Lerpar? !... 

− Morrer, Ruizinho, morrer !− explicar-te-á ele, no aerograma seguinte... − Quem vai à guerra, está sujeito a lerpar!... É um jogo de sorte e azar.

E, como tal, não havia regressado no navio com os seus camaradas da última companhia onde estivera, no sul da Guiné, os quais, sendo mais novos, ainda ficaram a cumprir calendário. Ou, como ele te dizia, com sarcasmo, “a cumprir o resto da pena de desterro”.  

Tanto quanto te apercebeste, o Doc tinha receio que a família e a malta do teatro lhe quisessem fazer uma surpresa, indo esperá-lo no cais de desembarque. Seria a última coisa que ele iria aceitar, “a última cena, grotesca, da tragicomédia da tropa e da guerra”. 

Curioso, sendo um “homem do teatro”, tinha um enorme pudor em manifestar em público as suas emoções e sentimentos. Aliás, ele não era propriamente ator mas encenador (e também dramaturgo: escreveu, pelo menos, uma peça para o grupo).  Em boa verdade, tu nunca o viras representar, no palco do teatro (nem no palco da vida). 

Ficaria trancado em casa nos primeiros dias, sem querer ver ninguém. Tu e a Xana terão sido as primeiras pessoas da terra, fora do círculo familiar, que ele condescendeu em receber depois do regresso.  

Para a namorada, seria aliás o fim de um relacionamento que já antes tinha tudo para não dar certo.  Julgas até que ela foi a primeira vítima da sua rutura com o passado.  

Segundo te contou depois a irmã do Doc (a dra. Mena, que tu tratavas com deferência por ser bastante mais velha do que tu e já formada), terão tido uma discussão violenta, acabando tudo entre eles nessa tarde. Para grande desgosto da mãe, que via na Xana a menina prendada, a Cinderela, a alma gémea do seu filho. 

Os inimigos do Doc respiraram fundo, com a notícia do rompimento do impossível namoro entre "a Bela e o Monstro" (sic). (A Xana era um rapariga cobiçada pela sua beleza, talvez a rapariga mais bonita da cidade; acabaste por perder-lhe o rasto, na voragem do tempo.) 

O Doc desabafou contigo, explicando-te que estava a fazer um “cura de sono”… Na altura, em 1967, não havia psiquiatras e psicólogos como há hoje, e tu, na ingenuidade dos teus verdes anos, nem sequer puseste a hipótese de ele estar a passar  por uma “crise de depressão”.  

Na época, não se falava de "saúde mental", falava-se de loucura e de manicómios. E muito menos ainda de “stress pós-traumático de guerra”, nem tu imaginavas sequer o que fosse essa estranha entidade clínica…

− Só as mulheres é que têm depressão pós-parto – dizia o pai dele,  que nestas coisas tinha sempre um certo ar de sobranceria e fazia questão de emitir a opinião arrogante e definitiva do "catedrático da universidade da vida".

As relações pai-filho também não eram as melhores. Aliás, nunca tinham sido boas. Contrariamente à mãe, o pai só lhe terá dito, à chegada, bruto, curto, feio e seco:

 Olá, filho, sê bem vindo… Finalmente, em casa! 

Eram os dois parecidos, pai e filho, em  muita coisa, mas chocavam-se quando, por exemplo, discutiam a “guerra do ultramar” (como dizia o pai) ou a “guerra colonial” (como preferia chamar-lhe o filho). Uma questão terminológica ("mais do que semântica, conceptual!") que lhe punha os cabelos em pé, ao ponto de um dia  o Doc ter arremessado ao  chão  a toalha com a louça posta na mesa  para o jantar.

Mesmo se tivesse “cunhas” (o que não era o caso), o pai nunca  se humilharia perante ninguém para interceder pelo filho, livrando-o do ultramar ou, pelo menos, da Guiné… E depois a tropa e a guerra iriam "fazer dele um homem", como fora o seu caso, que  combatera os alemães, os "boches", em Moçambique na I Grande Guerra.

− Ruizinho, não me leves a mal, mas  não ouças o tonto do meu Velho…

Quando ele desembarcou, a única coisa que ele queria, era chegar a casa, não ver ninguém, não estar com ninguém, fechar as cortinas, enfiar-se na cama… E acrescentou algo que te chocou e perturbou profundamente: 

− Sabes que mais?… Tenho asco a tudo o que é humano! 

Não alcançaste  o que ele queria dizer com aquela estranha expressão. Mas ele insistia que precisava de dormir um “sono reparador”:

− … Dormir um dia inteiro, como um porco, uma semana, um mês… Porventura, um ano ou até o resto da vida… 

Queria poder hibernar o resto da vida. "Como um urso" (sic). Esquecer. Esquecer a tropa, a guerra, a Guiné…

Ainda ensaiaste uma tímida tentativa de diálogo mas ele correu contigo, pondo-te fora do quarto, aos berros… Aí ficaste chocado, assustado, com a sua brutalidade,  mas sobretudo ao ver e rever o seu ar acabrunhado, as olheiras fundas, os olhos vidrados, a cor da pele amarelada,  a barba, de vários dias, por fazer, o ar cadavérico…

Afinal, era um “ataque de paludismo”, tranquilizou-te a pobre mãe que, à força de muitas súplicas e lágrimas, lá o convencera a ser visto pelo médico, amigo da família, e que, sendo de saúde pública, sempre devia perceber alguma coisa de "doenças tropicais"…

Nas costas da mãe e do médico, nesse fim de semana, despejou uma garrafa de uísque.

Na altura, confessarás mais tarde, até pensaste que ele poderia estar com ideias parassuicidárias, como se diz hoje. Ficaste assustado com o estado de saúde, física e mental, do teu amigo. 

E ainda estava fresca, na memória de toda a gente da terra, a morte por enforcamento do pai de um antigo colega teu de escola. Estavas tu de piquete na redação do jornal, fazias os "faits divers", as pequenas ocorrências, os nascimentos, batizados, casamentos e óbitos,  e ainda viste, enquanto se aguardava a chegada da autoridade de saúde, o corpo a baloiçar numa barrote da caldeira onde  trabalhava, nos arredores da cidade. Era o adegueiro.

Reconstituindo o que se passara nessa manhã de neblina, em que desembarcara, no Tejo, de um velho navio, misto, de mercadorias e passageiros, da carreira colonial, agora requisitado para transporte de tropas, o Doc contou-te que durante a viagem e à chegada tinha tido “pensamentos confusos e impulsos contraditórios”. 

Percebeste, por entre as lacónicas frases que ele te ia rosnando, entre dentes, que a viagem de regresso no "barco negreiro" tinha sido um pesadelo.

Logo à saída da gare marítima, chamara um táxi e estendera ao condutor um bocado de papel  com a morada de casa. Pediu para o acordar quando chegasse ao destino. Nem sequer fez questão de perguntar em quanto ficaria o serviço de táxi, sendo para fora de Lisboa. Tinha os bolsos cheios de notas, o “patacão sujo da guerra” (sic). Em Bissau trocara um maço de “pesos” por escudos metropolitanos.

Ao fim de quase quatro horas de viagem (ainda não havia autoestradas nesse tempo), estava na cama, na casa dos seus pais, na região Centro. Na sua cama de solteiro, no seu quarto, com as estantes dos seus livros e discos de vinil, os cartazes de teatro e cinema... Estava tudo como ele tinha deixado há dois anos atrás. Arrumado,  impecável, sem um grão de pó, graças ao desvelo da sua mãezinha que o adorava.

Justamente ia fazer dois anos que não se viam, ele e os pais e a irmã. Ele não viera de férias, por “razões disciplinares”: tinha apanhado uma “porrada” (sic) e, em consequência do castigo, tinha sido transferido para outra companhia, "como mandava o RDM, o regulamento de disciplina militar" (segundo depois te explicou).

Sentiste que esse episódio o marcara muito, mas nunca te deu grandes pormenores. E tu respeitaste a sua revolta e sobretudo o seu silêncio. Era evidente que o assunto o incomodava, não gostando sequer de falar dele.  

Em aerograma que mandara aos pais, terá arranjado uma desculpa esfarrapada para justificar a impossibilidade de comparecer na festa, comemorativa  dos  30 anos de casados, marcada para o verão de 1966. (E se a mãe tanto insistira com ele para reservar as férias para o mês de julho de 1966!). 

A releitura dos seus aerogramas não te permitiu esclarecer cabalmente esta história que lhe sujou a “caderneta militar” (documento, aliás,  a que tu nunca puseste a vista em cima,  se é que ele não o destruiu em vida).

Há dois episódios que poderiam estar na origem  da tal “porrada” ou castigo… Recapitulaste cada um deles, sem  poderes entrar em grandes pormenores por falta de informação. 

primeiro  terá tido a  ver com uma exaltada discussão  com a Polícia Militar, em Bissau, quando ele tirou uns dias para ir ao estomatologista. Traduziu-se numa participação contra ele, tudo por causa de um cena de pugilato com outro militar (de que desconhecias a patente, mas o mais provável era ter sido um 1º cabo).

O teu amigo Doc, que estava numa esplanada, a do Café Bento,  perto da conhecida fortaleza da Amura, quis fazer justiça  pelas suas próprias mãos, contra  um grupo de “velhinhos”, ruidosamente festejando o fim de comissão e a véspera de embarque. Deram-lhes para se meter com os “djubis”, os miúdos que vendiam “mancarra"  (amendoim), nas ruas da Bissau velha, frequentada pela tropa… Aliás, miúdos e miúdas. 

Fizeram-lhes uma série de tropelias, o que começava a incomodar quem estava na esplanada, seguramente todos militares, uns fardados, outros à civil. O Doc interpretou isso como um ato de violência gratuita, se não mesmo racista, para mais sendo as vítimas crianças, indefesas, que tentavam ganhar a vida… Porém, de nada lhe valeu, a ele,  puxar dos galões. O grupo estava sob a euforia dos vapores do álcool e ninguém mediu as consequências dos seus atos. Às tantas generalizou-se a pancadaria, e voaram cadeiras da esplanada, até que chegou a Polícia Militar e restabeleceu a ordem. 

Abreviando a história, houve várias detenções. O Doc foi levado para o quartel da PM. Ficou lá cerca de uma manhã. Mas houve testemunhas que abonaram a seu favor. Pelo menos, um dos  alferes ou furriéis que estavam sentados na esplanada, e que, por cobardia, comodismo ou cautela,  não se quiseram meter ao barulho. 

− Afinal, um militar fardado, para mais oficial,  está ou não está 24 horas por dia de serviço?! − interrogava-se o Doc, em voz alta, a limpar o sangue do sobrolho e ainda a espumar de raiva contra o grupo de arruaceiros.

O segundo episódio prende-se-á com uma situação algo semelhante, em que vem ao de cima o lado “justiceiro” e "solidário" do Doc, mas desta vez envolvendo um oficial superior,  um major,  que terá tratado mal (com insultos e ameaças de porrada) alguns militares de um pelotão de caçadores nativos, adido à  companhia de comando e serviços do batalhão a que pertencia o Doc. 

Eis o essencial da versão do Doc, num dos  aerogramas que ele te  escreveu: 

− Os soldados, todos guineenses, estavam a abrir valas, à volta do perímetro do aquartelamento… À porta do bar... Valas que seriam depois encimadas por bidões cheios de areia, como proteção em caso de ataque...

Calaceiros, mandriões  e outros epítetos ainda mais injuriosos acompanharam as ameaças do  major, 2º  comandante  de batalhão, impaciente com a fraca produtividade dos "nharros", dos "barrotes queimados" e outros "mimos" de semelhante teor,  que o Doc interpretei como sendo grosseiros,  descabidos, inapropriados e despudoradamente racistas...

À hora do bridge, e depois dos uísques do costume, a seguir ao jantar na messe de oficiais, o Doc, que assistira à cena da tarde, à porta do bar, “impotente mas indignado”, caiu na asneira de comentar, em tom subtil mas jocoso, em voz alta, a versão do major sobre o "incidente", ao mesmo tempo que incriminava o alferes, comandante do pelotão em causa, por deixar os seus homens ao deus-dará... 

− Este, cobardolas, branco como a cal da parede,  estava enfiado na cadeira com o rabo entre as pernas...

O Doc terá citado um provérbio popular, muito usado na sua região: "Quando o mar bate na rocha, quem se lixa é o mexilhão"... 

Caiu o  Carmo e a Trindade, na messe de oficiais… O major ficou lívido de raiva, "à beira de um ataque de nervos", era de resto um homem "histérico e irascível". O comandante veio de imediato em defesa dele e da honra do convento, dando ordens ao alferes, ao Doc,  para "se recolher de imediato ao seus aposentos".

O médico do batalhão, que era conhecido do Doc, do tempo de Coimbra e da crise estudantil de 1962, terá ainda, "timidamente", interferido a seu favor, junto do tenente-coronel.  Em vão, ao que parece. 

Não sabes bem o desfecho da história. Mas verdade é que, passado pouco tempo, em maio de 1966, o Doc é transferido de unidade…

O castigo disciplinar, "desproporcionado",  teve consequências graves na sua vida militar na Guiné: perdeu, de imediato, o direito ao gozo da licença de férias, e passou, de uma região  relativamente calma, o Leste, para outra, o Sul,  onde a atividade operacional era mais intensa…  

− Tal como cheguei, sozinho como um cão, assim parti...

Nenhum dos seus camaradas, alferes milicianos, se dignou ir ao bar de sargentos beber um copo de despedida com ele.

− Nem sequer o sacana do médico. Tive apenas, à mesa, dois ou três furriéis que me estimavam... 

E, pior ainda, ele que tinha uma especialidade relativamente burocrática (era oficial de operações e informações), passou a andar no mato, de camuflado e de G3 em punho, como comandante de um grupo de combate numa companhia de caçadores…

Nunca soubeste ao certo por onde ele andou o resto da comissão… Porque nos aerogramas só vinha o SPM, o código do Serviço Postal Militar. E tinha sempre o cuidado de nunca se identificar. Assinava, na correspondência para ti,  como  “o teu amigo Doc”…

Num dos últimos aerogramas que te escreveu, já perto do final da comissão, confidenciara-te:

(...) “Tenho a mania que vou endireitar o mundo. A liberdade de expressão na tropa paga-se caro, com língua de palmo. Nestes quase quinze  meses cá em baixo, na região a que chamam de Tomba...li, já conheci os múltiplos tormentos do inferno desta guerra: a sede, a fome, a insolação, os ataques de abelhas, as formigas carnívoras, a exaustão física e emocional, os tufões e outras intempéries tropicais, a merda que te cobre o corpo, a solidão, a alienação, a desumanidade… Para não te falar do medo das minas e armadilhas, e das emboscadas, mais do que dos ataques e flagelações aos nossos quartéis, onde, apesar de tudo, tens um buraco para enfiar os cornos" (...).

A mãe não conteve o espanto e as lágrimas de alegria quando ele, o Doc,  espavorido, lhe entrou,  de rompante, pela casa dentro, à hora do chá, um hábito colonial que o casal mantinha desde Moçambique… Com duas malas na mão, uma com a roupa e os demais objetos pessoais, e outra com o resto dos seus livros, algumas garrafas de uísque, mais algumas peças de arte africana.

Tu só soubeste da sua chegada da Guiné, passados uns dias. A mãe, quando ia ao velho mercado local, a praça do peixe, frutas e legumes, viu-te de relance, na redação do jornal, parou, espreitou, entrou e disse-te:

− Ruizinho (também te tratava carinhosamente por Ruizinho, como o filho), o teu amigo Doc chegou!... Está vivo e inteiro, graças a Deus. Mas não está nada bom da cabeça, o meu pobre filho!... 

E explicou-te que estava há dias ferrado a dormir, fechado no quarto, dizendo não querer ver ninguém… 

− Passa por lá, no fim de semana, almoças connosco, vou fazer um carilada de camarão com leite de coco, que eu sei que ele gosta e tu também. Pode ser que ele, por ti, se queira levantar e falar um pouco… Só lhe fazia bem...

A dona Domitília Meneses era uma santa senhora. Era professora primária, já reformada.  Tinha sido tua professora da 4.ª classe e do exame de admissão ao liceu. Era moçambicana, de origem goesa, descendente de gente da pequena nobreza local, um dos seus antepassados teria sido vice-rei da Índia em meados do séc. XVIII, "ao tempo do senhor Dom João V".

Já o mesmo não se poderia dizer do marido, também ele professor do ensino primário, velho republicano, maçónico... Tinha mais quinze anos do que ela, e fora aposentado compulsivamente da função pública na sequência, dizia-se,  do apoio à candidatura do general Norton de Matos à Presidência da República em 1949.

Tu conhecia-o mal, era um homem amargurado, pouco sociável, para não dizer misantropo…
 
Na realidade, ele tinha sido  marginalizado,  legal e politicamente  pelo poder  central e socialmente  pela elite local. Passando a ser considerado, ostensivamente, um “oposicionista", um indivíduo "contra a situação", deixara de ser convidado para integrar os corpos sociais das diversas associações locais de que era sócio ou membro  (a filarmónica, os bombeiros, o clube recreativo, desportivo e cultural, o núcleo local da liga dos combatentes, etc.). 

Em boa verdade, fora a sua "morte social". Amargurado,  demitiu-se das suas funções de encenador das récitas e cegadas que na época carnavalesca animavam, alegremente,  o palco do teatro local bem como as ruas da cidade.

Raramente saía à rua, nem mesmo nalgumas efemérides patrióticas, como o 1º de dezembro de 1640 ou o 5 de outubro de 1910. Quando muito dava um salto a  Coimbra, para ir consultar bibliotecas e arquivos públicos. Dedicava-se aos seus livros, era um apaixonado africanista, correspondente da Sociedade de Geografia de Lisboa, interessando-se, muito em particular, pela história da colonização de Moçambique, no tempo da monarquia constitucional e da I República.

O único ponto em que estava de acordo com a política do Estado Novo era na questão da “defesa intransigente do Ultramar”. Tinha estado na sua juventude em Moçambique, primeiro como expedicionário e depois, mais tarde,  como professor. E alí viria a conhecer a mulher em meados dos anos 30. O filho nasceria, na Beira, em 1942. E tivera como ama de leite uma jovem mãe negra. 

Parecidos em muitos aspetos de personalidade, pai e filho, separados por quase cinquenta  anos de diferença, engalfinhavam-se com frequência em discussões, por vezes violentas, sobre o que se estava a passar nos territórios ultramarinos portugueses (mas também na África Austral do "apartheid").

Tinha ideias fixas, o “Velho”, sobre o futuro desses territórios (“possessões ou colónias, como queiras chamar-lhe”, dizia ele ao filho), defendendo todavia o princípio da autodeterminação progressiva, a par da criação de uma "Commonwealth" à portuguesa. Era um admirador incondicional da colonização britânica e da formação de elites locais.

Apoiava o esforço militar do País, contra o “terrorismo internacional” (sic), mas era crítico em relação à vontade e à capacidade de Salazar de enveredar por uma “solução política” para o problema, nomeadamente em relação a Angola e Moçambique, que eram,  para ele,  as verdadeiras “joias da Coroa”, depois de perdida, “miseravelmente” (sic), a Índia Portuguesa.

O teu amigo Doc era, para ti, o irmão mais velho que tu nunca tiveras. Partilhavam  ambos alguns interesses intelectuais, a começar pelo teatro, a poesia, a literatura, a arte e, claro, a política.
 
Nessa época, poucos jovens da tua idade tinham ainda “consciência política” (como então se dizia), porque só uma minoria tinha acesso a um educação de nível superior e a fontes de informação, independentes e credíveis. Vivia-se num regime de partido único, não havia opinião pública, os jornais estavam sujeitos à censura, havia a polícia política, a PIDE, e a única televisão de que o povo podia ver, a RTP, era a voz do dono, tal como a Emissora Nacional… Era o tempo dos 3 FFF: Fátima, Futebol e Fado, três coisas que "tiravam do sério" o teu amigo Doc,,,  

O que é que tu sabias do que se passava em África, no "nosso glorioso Império Colonial", para usar uma expressão irónica do Doc ? Racismo, colonialismo, trabalho forçado,  revoltas nacionalistas…? Não, nunca ouviras falar disso, muito menos da boca da tua querida professora, a  Dona Domitília,  para quem Moçambique era "o paraíso na terra"... 

Só te lembravas, na igreja, terias tu os teus 10 anos, por volta de 1958, de pedirem uma esmola ao teu santo avô para ajudar as missões católicas, o mesmo era dizer, os “pretinhos da Guiné”...

Tu vivias numa pequena cidade da região centro, onde só os mais afortunados iam estudar para Coimbra… A maioria dos jovens da tua geração sabia lá o que se passava em África… Mal sabiam do se passava à sua volta, nos arrozais  e nas fábricas, na frota pesqueira,  nas escolas, nos quartéis, nos hospitais… 

Aliás, o que é que a malta sabia e podia saber? Só o que "eles" queriam que a malta soubesse... 

− Saber ler, escrever e contar acrescentava o teu amigo Doc , o que não quer dizer... saberes pensar pela tua própria cabeça...

Além disso, as  aldeias, vilas e pequenas cidades do interior começavam a ficar envelhecidas, com a saída dos mais jovens, para o ultramar e a emigração (interna e externa). Muitos dos teus colegas de escola nunca mais os viste. Alguns como tu fixaram-se em Lisboa, onde eram maiores e melhores as oportunidades de emprego. Outros foram para França,  "a salto".

Enquanto ele, o Doc, esteve na Guiné, correspondia-se contigo, regularmente, uma ou duas vezes por mês.  Tu  guardaste religiosamente os aerogramas que ele te mandava. Tinhas intenção de os organizar por data e devolvê-los ao remetente, logo que ele chegasse, “são e salvo”, como tu esperavas  que ele chegasse.

Quando o foste visitar, não te deixou sequer falar dos aerogramas, que naturalmente lhe traziam recordações dolorosas da Guiné, e que ele queria extirpar para sempre da memória. A sua resposta, brusca e mal humorada, foi:

− Queima-os, Ruizinho, queima-os!

− É um pedido?

− Não, é uma ordem!

Não lhe fizeste a vontade. Devias tê-lo feito? Continuaram guardados ao teu cuidado. Sempre pensaste que ele poderia, com os anos, mudar de opinião. Era material para uma ou mais peças de teatro... Mas, não, nunca mais quis falar da Guiné e desses "anos de chumbo" em que esteve na tropa e na guerra... E acabaste, afinal,  por entregar os aerogramas à irmã, no dia do seu funeral.  Hoje tens pena de não os ter fotocopiado, limitaste-te a copiar alguns excertos. 

Curiosamente ele nunca te escrevia cartas, mas apenas aerogramas, que eram de borla. 

− Com o dinheiro que poupo nos selos, compro livros, revistas, peças de artesanato e... uísque" − dizia-te ele, a gozar. 

Tu tinhas receio que a correspondência, trocada entre os dois, pudesse um dia ser intercetada pela PIDE. Ele tranquilizou-te a esse respeito. Tinha confiança no SPM (acrónimo de Serviço Postal Militar) que lidava todos os dias com várias toneladas de papel (cartas, aerogramas, encomendas, jornais, revistas. etc.), a circular pelos diversos territórios ultramarinos. 

Por outro lado, e até pelo conhecimento pessoal que ele tinha da PIDE na Guiné, com quem tinha de lidar, a contragosto, na sua qualidade de oficial de informações e operações, ele conhecia relativamente bem os pontos fortes e fracos daquela polícia, a começar pela sua estrutura, a sua organização e a qualidade do seu pessoal… 

Os recursos humanos, dizia-te ele,  deixavam muito a desejar: 

− Fracas habilitações literárias, baixo nível cultural, insuficiente conhecimento de línguas estrangeiras (a começar pelo francês e o inglês), iliteracia política, tacanhez de espírito, sistema de informação artesanal… Até o português escrevem mal e porcamente!... 

Por outro lado, havia alguma rivalidade e até desconfiança em relação à tropa… (e vice-versa). 

− Os gajos eram uns cepos, eram capazes de desconfiar de uma inofensiva bíblia protestante mas passavam por cima de um livro do Franz Fanon, que era dinamite – afiançava o teu amigo. 

− Cepos?!... − duvidaste tu.

− Só não eram maus a torturar, a arrancar informações dos pobres diabos que a gente, o exército, lhes entregava, para eles fazerem o trabalho, sujo,  que lhes competia... 

E sentiu-se na necessidade de te explicar:

− Felizmente, que o meu pelotão de informações e operações não foi treinado para torturar e  eu, por mim, nunca toleraria essas práticas" −  garantiu-te o Doc (a quem um dia perguntaste que raio de especialidade era aquela que lhe haviam atribuído).

Cepos ou não, tu é que não ias na conversa do Doc: com os teus verdes anos, e com os medos  que alguns amigos mais velhos, no liceu, te haviam metido na cabeça, achavas que a PIDE era como Deus, omnipotente, omnisciente e omnipresente. Pelo sim, pelo não, não fosse o diabo tecê-las, era melhor pôr a salvo a correspondência do Doc, para mais sabendo que ele tivera “chatices” na Universidade e, depois, na Guiné.

Sabias que o teu avô, materno,  era da “situação”… Era um bom homem, um "santarrão",  ia à missa, raramente discutia política, e muito menos contigo… Não gostava do Salazar, é verdade, mas tolerava-o. Encolhia os ombros e, às vezes, desabafava com os filhos e netos, quando se jantava lá em casa:

− Meus filhos, hoje o Salazar, amanhã, quem sabe, talvez pior, o diabo em figura de gente…

O teu avô, coitado,  era dos que acreditavam que o Salazar é que tinha livrado os portugueses da II Grande Guerra, com a ajuda da Nossa Senhora de Fátima… Um seu irmão mais novo, que tu não chegaste a conhecer,  tinha sido  expedicionário nos Açores, e tinha regressado a casa, “são e salvo"...,  para morrer, afinal,  uns meses depois, de "doença do peito", de tísica, de tuberculose... Falava-te que nesse tempo tinha tido muito medo, por causa do irmão,  dos submarinos alemães que infestavam o Atlântico Norte… e que chegavam a Cabo Verde. Ele, de resto, ouvia a BBC.

Tinha, por outro lado, a sua tertúlia, os seus amigos, os seus petiscos. Mais importante: o teu avô tinha uma adega, a que chamavam a “adega do povo”, aberta a todos os amigos e vizinhos, embora já fora da cidade… Na adega também tinha o seu escritório e o seu arquivo (pastas e pastas da contabilidade).

O teu avô estava acima de todas as suspeitas. Era um homem respeitado e respeitável, guarda-livros de profissão, conhecia os “podres” das várias famílias importantes da terra… Razão por que todos o estimavam (e temiam), pondo as mãos no lume por ele. Em contrapartida, podiam contar com o seu “silêncio de ouro”.

Tu gostavas muito dele, tinha bonomia e bom humor, nunca se chateava contigo. Dizia-te na brincadeira que era ele, o guarda-livros, quem tinha uma das três chaves do céu…

− Então?... E as outras duas, avô?

− Tem-nas o padre e o médico!...

A pior desgraça que podia acontecer a um guarda-livros era ser despedido (e, nalguns casos, preso) por abuso de confiança:

− Tens a chave do céu mas não podes abrir a porta… E houve casos, meu filho (tratava-me por filho) de gente, nesta profissão, que não soube qual era o seu lugar, na ordem natural das coisas… Olha, um matou-se, o outro foi parar à prisão…


O Doc nunca te deixou publicar nenhuma notícia, a seu respeito, no jornal, um quinzenário, onde tu trabalhavas, como estagiário e, em boa verdade, como “pau para toda a obra”, desde paquete a repórter, embora ainda sem cartão e jornalista (que era emitido pelo sindicato corporativo). Tinham uma secção, “Correio dos Heróis do Ultramar”, onde se publicavam notícias dos filhos da terra a cumprir “missões de soberania além-mar".

O jornal, regionalista, tinha uma orientação editorial que não se coadunava, de todo, com as ideias (políticas, estéticas, éticas e culturais) do teu amigo que, de resto, era conhecido na cidade como filho de um oposicionista, e já teria, ele próprio, ficha na PIDE.

O Doc estava a estudar em Coimbra, na faculdade de medicina, quando foi inesperadamente chamado para a tropa. Na secretaria, explicaram-lhe secamente que, tendo chumbado a uma cadeira, deixava automaticamente de beneficiar do direito ao adiamento da incorporação militar… 

Nunca se chegou a apurar a verdade relativamente à suspeita de ter sido a PIDE a despoletar a questão,  na reitoria ou na direção da faculdade. Enfim, estivera também envolvido na crise académica de 1962, embora fosse um "segunda linha"...

O jornal onde tu trabalhavas (e que foi, de resto, o teu primeiro emprego), "o teu jornal",  estava ligado a uma família local, política, social e economicamente influente. O proprietário era o presidente do Grémio do Comércio.

A filha mais velha, por sinal tua catequista, casara com um “jovem e promissor advogado” que viera de Coimbra, no princípio dos anos 50, e que aqui se fixara.

A tua terra tinha fama de acolher bem “os de fora”. De imediato, esse advogado foi admitido no “seleto clube local” e aí não levou tempo a perceber quem poderia ser a sua futura clientela e, mais do que isso, quem eram as meninas casadoiras… Era ali que estavam as "forças vivas" da terra, aquelas que tinham nome, património, estatuto, influência, charme, poder e... algum dinheiro.

Ora um dos seus primeiros clientes foi justamente a empresa do futuro sogro, grande (para a época e para a terra) armazenista de vinhos que exportava para África, e sobretudo proprietário urbano, “dono de uma rua inteira da cidade” (como se dizia, não sem exagero). O teu futuro patrão, o advogado, teve, como uma das prendas de casamento 
a direção do jornal (a menos valiosa, materialmente falando, mas nem por isso dispicienda para o seu projeto de promoção pessoal, profissional e até polílica). 

Na realidade, era um "jornaleco", um "pasquim" (como lhe chamava o Doc), que todavia se irá tornar, mais tarde, no consulado marcelista,  num influente semanário regionalista com algum prestígio, audiência e até qualidade. 

Dentro de todos os condicionalismos da época (censura, autocensura, ausência de formação profissional e de  regras de deontologia, não dissociação da propriedade e da direção, etc.) foi para ti a a tua escola de jornalismo e de escrita, muito embora o Doc andasse sempre a gozar contigo por causa do teu “jornaleco”… Pensas que ele não gostava sobretudo da pessoa do diretor…


Tu e o teu diretor tinham uma diferença de quase trinta anos.  A ele ficaste a dever alguns favores e até confidências. Por ele soubeste que tinha vivido numa república de estudantes, em Coimbra, acabando por se envolver na política, no MUD Juvenil, o movimento juvenil democrático, constituído em 1945, no rescaldo da guerra…

− Paixões da juventude, coisas de garotos, que às vezes têm um preço alto,  mais tarde – comentou ele, de um modo algo enigmático.

Como diretor do jornal, gostava de acarinhar os “jovens literatos” da terra, onde tu te incluías, gente que tinha saído do liceu, uns, poucos, que haviam entrado na universidade, outros, como tu, que esperavam a “sorte grande” da tropa…

Ele próprio te confessara que, na "Lusa Atenas",  publicara um livro de poemas, de “qualidade sofrível” (sic), na linha estética da revista "Vértice" (ou seja, do neorrealismo, acrescentaste tu, com alguma irreverência e ousadia).

Admirava agora os jovens, da geração 60, que estavam a aparecer, e que tinham até mais talento e cultura literária do que a sua geração… Para esses havia um cantinho no jornal, uma página juvenil… onde poderiam escrever, “sempre era uma melhor alternativa do que andar por aí a dar cabo da vida e da saúde, e a comprometer o seu futuro, em antros imorais e quiçá subversivos" (sic)...


Percebeste o seu "recado" (que, no teu caso, visava as "más companhias" como o teu amigo Doc e o grupinho do teatro amador da cidade)... Mas só mais tarde é que eu vieste a contextualizar  as suas esporádicas conversas na redação do jornal, depois de descobrires que 
 o “teu patrão” se tinha tornado,  rapidamente, um entusiástico defensor do marcelismo...

Mas, voltando ao teu amigo Doc, que nessa altura já estava, de regresso, a Coimbra e em risco de ser suspenso da Universidade, pela segunda vez... A malta do liceu e do teatro sempre o tratara por Doc, a partir do momento em que ele entrou na faculdade de medicina, ou até antes, quando ele começou a manifestar a sua intenção de abraçar a carreira médica… Era uma alcunha carinhosa. E ele não se importava.

Tu, pelo teu lado, ainda estavas longe de saber o querias fazer da tua vida...  Começavas a preocupar-te , isso sim, com a guerra que alastrava em Angola em 1961 e com a mobilização dos teus vizinhos e conhecidos, mais velhos...

Em 1962 houve a crise académica... E em 1964 o Doc foi chamado para a tropa e, em menos de um ano depois, estava na Guiné.

Parte da tua formação intelectual e até literária deves-lha a ele, ao teu amigo Doc. Emprestava-te livros, trazia-me jornais e revistas quando vinha de Coimbra nas férias, incluindo alguns, estrangeiros, franceses, que não chegavam à província, como “Le Monde” ou “Le Nouvel Observateur”…

Depois da sua prolongada “cura de sono” (que passou também por uma clínica de desintoxicação alcoólica, deves acrescentar sem trair a sua memória…), acabou por voltar a Coimbra e à sua “doce boémia”… Com as economias que trouxera da Guiné, conseguiu assegurar a sua independência económica. Fez algumas cadeiras atrasadas no ano letivo de 1968/69. Mas o curso marcava passo.  

Mas foi também a época em que tu deixaste de ver o Doc, com regularidade. Soubeste depois que se tinha incompatibilizado de vez com o pai, por causa das eleições legislativas de 1969, rompendo então, definitivamente, com a sua cidade natal. Há muito que  deixara, de resto, o teatro da cidade, que passara a ter um novo diretor, aquando da sua partida para a Guiné. Enfim, fixou-se de vez em Coimbra.

E tu nessa altura acabavas de chegar à  Guiné, onde votaste em branco nas eleições para a Assembleia Nacional. Ias tendo algumas notícias dele pela sua mãe, sempre extremosa, mas também pela irmã que estava em Lisboa, onde tirara o curso de germânicas, e que não escondia os seus cuidados pela saúde do irmão, mais novo, o seu "caçula". 

Depois tu e o Doc perderam o contacto... Deixaram mesmo de ser "íntimos", se bem que a  amizade entre ambos estivesse para durar até ao fim da vida... Soubeste, por outras vias, que ele se envolvera também na crise de 1969, fora desta vez suspenso por dois anos, e tivera que ir trabalhar na Propaganda Médica (o que terá sido deveras penoso para ele).

Não tens  aerogramas dele do teu tempo de Guiné. Nunca se  corresponderam nesse tempo. E um ou dois que lhe escreveste, não tiveste coragem de os pôr no correio...

Depois do teu regresso à Guiné, e da tua própria "cura de sono", tiveste em Lisboa notícias dele e da família:  a dona Domitília Meneses não sobrevivera a um cancro da mama, uns bons anos antes da morte do filho.

Por seu turno, o marido já tinha morrido antes dela, não sem ter tido, porém, duas alegrias: a de ver o seu filho finalmente formado em medicina, aos 30 e picos anos, e logo a seguir a de ter podido dar vivas à liberdade, no 25 de Abril de 1974. (À boa maneira republicana, lançando o chapéu ao ar, enquanto alguns dos seus tradicionais inimigos políticos se trancavam em casa para ver em que é que paravam as modas.)

A entrada do Spínola para a Junta de Salvação Nacional ainda dera ao pai do Doc algum alento quanto à possibilidade de se organizarem "eleições livres", com vista à autodeterminação de Angola, Guiné e Moçambique... 

Mas os acontecimentos precipitaram-se e a descolonização que se seguiu foi um dor de alma para o "velho republicano e maçónico, admirador do Norton de Matos"; morreu em finais da década de 1970, sem nunca ter podido  realizar o sonho de voltar às terras do Índico, que ele amava de alma e coração.

Por onde andou o Doc, agora médico de pleno direito, depois do 25 de Abril e até morrer, quinze anos depois, no princípio de 1990 ?

Apaixonou-se por Trás-os-Montes, onde fez o Serviço Médico à Periferia, fez medicina do trabalho numa empresa mineira e depois numa empresa da pesca do alto, praticou clínica geral nas caixas de previdência da margem esquerda do Tejo, integrou-se na carreira de clínica geral, criada em 1983, pediu uma licença sem vencimento para se poder alistar como voluntário numa ONG francesa que tinha uma missão médica na Amazónia...

− Enfim, ando por aí  
− como te garantiu ele, da última vez que falaram ao telefone  − a ver se ainda consigo reconciliar-me com a humanidade... 

Mas nunca mais voltou  à Guiné, nem nunca manifestou desejo de o fazer. E nunca sabias ao certo por onde ele parava... Era ele que te costumava telefonar pelos teus anos. Tinha esse gesto bonito para contigo. Gostava, contudo,  de cultivar o mistério de uma certa clandestinidade.

Em tempos tinha-te manifestado o interesse em tirar o curso de medicina do trabalho, queria fazer algo de  "socialmente útil"... E tu ainda o ajudaste a preparar a candidatura. Detestava a "medicina da caixa" que se fazia nesse tempo, por todo o lado... 

Entretanto, deixara de fumar... Tarde demais. O cancro pulmonar começava a cortar-lhe as asas dos seus sonhos de aventura e liberdade, já de si frágeis e erráticos... Teve altos e baixos, euforias e depressões. Tiraram-lhe um pulmão...

Finalmente, foi pela Mena, a irmã, que tu soubeste que ele estava a morrer. No anexo do hospital, num pequeno quarto escuro, ao fim de um corredor sombrio, por ironia a escassas centenas de metros do teu gabinete de trabalho… Um pneumologista,  seu conhecido do tempo de Coimbra, havia-o admitido no seu serviço. Por caridade. Para ali morrer, sozinho como um cão. Sem uma palavra.  Sem um gesto de compaixão. Sem um adeus. 

© Luís Graça (2020). Revisto: 13 de fevereiro de 2025.

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Nota do editor:

(*) Último poste da série > 21 de outubro de 2024 > Guiné 61/74 - P26063: Contos com mural ao fundo (Luís Graça) (34): Ciúme patológico