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quarta-feira, 25 de dezembro de 2024

Guiné 61/74 - P26309: Os nossos regressos (42): Vim com o meu batalhão em 4/8/1969 no T/T Uíge (Virgílio Teixeira, ex-alf mil, SAM, CCS/BCAÇ 1933, Nova Lamego e São Domingos, 1967/69)


O T/T Império, da Companhia Colonial de Navegação, que a caminho de Moçambique com 1400 militares sofreu um grave acidente, um rombo, na casa das máquinas tendo ficado à deriva durante 3 dias. Ainda hoje não se sabe se foi um ato de sabotagem... Era então comandado pelo Óscar Fraústo de Oliveira Guimarães,  o oficial da marinha mercante que trouxe o T/T Uíge, de Bissau até Lisboa, em 4 de agosto de 1969 (nele tendo viajado o nosso camarada Virgílio Teixeira e o seu batalhão, o BCAÇ 1933).

(Fonte: Navios à Vista > 26 de junho de 2011 >  Paquete Português "Império" - 1948/74.)














T/T Uíge, viagem de regresso de Bissau a Lisboa > Festa de despedida a bordo, em 8 de agosto de 1969.


Fotos (e legenda): © Virgílio Teixeira (2024). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem complementar_ Blogue Luís Graça & Camaradas da Guine]



1. Mensagem, enviada em 21 do corrente, às 15:46, 
do Virgílio Teixeira (ex-alf mil, SAM, CCS/BCAÇ 1933, Nova Lamego e São Domingos, 1967/69):

Olá,  Luis

Bom regresso às terras nortenhas.

(...) Junto envio a lista dos militares que viajaram comigo no T/T Uíge, no regresso a casa, bem como o programa da festa de despedida, a bordo, em 8 de agosto de 1969.

Entre os passageiros da 1ª classe estava o capitão Robles, figura afamada na Guiné, no meu tem
po (...) [ adjunto do comandante da 15.ª Companhia de Comandos, 1968/69],

Nunca o conheci pessoalmente. (...) Também não me lembro dele a bordo. Sei que depois foi para Tavira. (..:.)

O tempo está frio mas não consta a chuva.

Abraço, Virgilio

 

2. Comentário do editor LG:

Obrigado, Virgílio. Confirma-se, sem qualquer margem para dúvida,  que o teu regresso foi a 4 de agosto de 1969 e não a 10 (*). 

O Fernando Robles (bem como o Trotil) foi um dos instrutores militares conhecidos dos instruendos que passaram pelo CISMI de Tavira. Eu estive no último turno de 1968, já não apanhei o cap Robles, hoje cor inf, com 84 anos. (E o Trotil não sei quem era; do Robles contavam-se histórias do início da guerra de Angola; o que eu não sabia é que ele tinha começado a sua carreira militar como alferes miliciano.)

Viajou também contigo o médico do teu batalhão, Carlos Parreira Pinto Cortez, mais tarde psiquiatra, bem como a esposa, um casal com quem conviveste em Nova Lamego. Mas será que era capitão nessa altura ? Pareve haver um erro na lista dos passageiros de 1ª  classe: há 3 capitães milicianos médicos: além do teu, o João Martins Barata Crespo (mais tarde, médico de família, no centro de saúde de  Rio de Moura, e que já terá falecido) e  o Horácio David Garcia (mais tarde, ginecologista,com consultório privado em Lisboa).

Viajou ainda contigo um capitão, que eu iria conhecer, passados uns meses, em Fá Mandinga, como instrutor da Companhia de Comandos Africanos,  o cap art cmd Octávio Emanuel Barbosa Henriques, e grander amigo do nosso saudoso "Alfero Cabral". (Infelizmente, ambos já morreram; o Barbosa Henriques, que era de origem cabo-verdiana, tem nove referências no nosso blogue.)

Virgílio, lá foram todos a caminho de Lisboa (passando por Cabo Verde, ilha de Santiago e ilha do Sal) em ambiente festivo, ao som da famosa  Kamarinskaya, do  composityor russo Mikhail Ivanovich Glinka  (1804 – 1857)...

Não sei se havia mais gente conhecida. O comandante  de bandeira,  o capitão-de-mar e guerra Antóniio Malheiro  Júlio do Vale,já morreu há muito com o posto de  almirante reformado (1911-1997).

Uma curiosidade: o comandante do navio que te trouxe, Óscar Fraústo de Oliveira Guimarães, comandaria,  cinco meses depois, o T/T  Império, da Companhia Colonial Navegação, quando em 9 de janeiro de 1970, aconteceu um acidente grave :

 (...) Sofreu "um rombo na casa das máquinas, que originou enorme entrada de água, que acabou por inundar e paralisar as máquinas, e como tal a vida quotidiana a bordo ficou insuportável, quando aquele paquete se encontrava a quatro dias de viagem e a 400 mn de Cabo Verde, mais propriamente a 150 mn a sul de Dakar."

Transportava 1400 militares. Ainda hoje se discute se foi sabotagem ou acidente. Andou à deriva mais de 3 dias:

 (...) 
Chegado um rebocador de nacionalidade Grega, da Tsavliris, foi por este rebocado para o porto do Mindelo, no arquipélago de Cabo Verde, onde arribou passados cerca de seis dias, com o pessoal a bordo em desespero, particularmente a tropa, que dias depois seguiu para Moçambique no paquete Niassa. 

O paquete acidentado regressou a Lisboa rebocado pelo salvadego Holandês Jacob  Van Heemskerck, da NV. Bureau Wijsmuller, de Ijmuiden, e daí dias mais tarde seguiu para os estaleiros de Glasgow para reparações finais; pelos seus próprios meios" (...) (Fonte: Navios à Vista > 26 de junho de 2011 >  Paquete Português "Império" - 1948/74.)

Obrigado, Virgílio, pelos documentos que nos mandaste. São interessantes para a série "Os Nossos Regressos" (**)

domingo, 15 de dezembro de 2024

Guiné 61/74 - P26269: Blogpoesia (802): "O sonhador é um fazedor de carências", por Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547 / BCAÇ 1887 (Canquelifá e Bigene, 1966/68)

O sonhador
é um fazedor de carências


Tu és uma profunda sonhadora
a minha carência
de um belo sonho de uma noite de luar
à beira de um imenso mar azul
o colo cintilante de estrelas
e os lábios húmidos de poemas.

Os olhos são os mesmos
a boca não mudou de lugar
e os beijos ainda lá estão
a atear a última chama do verão.

Diz-me onde tens a alma
gostava tanto de saber
gostava tanto de beber
um cálice de Vodka
ou de Porto
à saúde da tua alma
Ou de fel…não importa.

Vagueio horas a fio
preso aos dias e às noites
se calhar a vida inteira
à procura de um verso que perdi
não sei onde nem quando…
não sei se na vida errando
não sei se dentro de ti.


adão cruz
_____________

Nota do editor

Útimo post da série de 2 de outubro de 2024 > Guiné 61/74 - P26002: Blogpoesia (801): "Preso à cidade", por Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547 / BCAÇ 1887 (Canquelifá e Bigene, 1966/68)

domingo, 1 de dezembro de 2024

Guiné 61/74 - P26221: (In)citações (258): Era ele... Todo inteiro (Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547 / BCAÇ 1887, Canquelifá e Bigene, 1966/68)


ERA ELE… TODO INTEIRO

adão cruz

Hoje, ao meio-dia, estava eu sentado na mesa do costume, virado para a porta do restaurante. Vi-o entrar pela mão de um jovem, muito provavelmente seu filho, ou algum dos raros seres humanos que ainda guardam dentro do peito um coração em vez de uma pedra. Rosto chupado, coberto de pelos, desde o cabelo enrodilhado à barba grisalha e emaranhada, olhos lá no fundo de umas órbitas arroxeadas, fitava o infinito de uma qualquer galáxia para lá das paredes do restaurante. Vestia um casaco escuro muito coçado, de trespasse, caído do lado direito por força do uso e abuso.

Era mesmo ele, não tive dúvidas, o sem-abrigo que eu encontro todos os dias na Avenida dos Aliados, enfiado numa caixa de cartão, soerguendo a cabeça à passagem de alguém que lhe pareça suficientemente humano para se desapegar de uma moeda.

Sentaram-se na mesa frente à minha. O jovem, provavelmente seu filho, leu pausadamente o menu três ou quatro vezes, tentando libertá-lo da alienação da sua paisagem cósmica. Bacalhau assado na brasa… bacalhau à Braga… vitela na caçarola… bifinhos de frango…, mas o olhar fixo, sabe-se lá onde, não se desfazia. Pensei que estava pousado na televisão que ficava atrás de mim, mas olhando de esguelha, vi que estava preso no lado oposto, na parede nua.

Ao fim de uns minutos e de carinhosa paciência, o presumível filho conseguiu um assentimento no bacalhau na brasa. Pressentia-se que o apetite era pouco, ou melhor, já não era capaz de sentir o que é ter apetite. Habituado à fome, ter um nutrido prato na sua frente era um incongruente desábito. Lembrou-me os tempos da guerra, em que nós nos ríamos do perigo, tão habituados que estávamos a ele.

Quando esperava deste anónimo sem-abrigo uma sofreguidão faminta, nem consciência tive de um organismo que se habituara a desdenhar da fome e do apetite devorador dos que tudo comem e não deixam nada. Esboçou um sorriso desdentado nascido lá do fundo do desânimo, conseguiu lamber umas lascas do bacalhau, tragar dois goles de vinho e rir, não dando por isso, dos apetites do mundo, assim testemunhando, sem disso ter consciência, o ridículo de “O Mito do Normal”, de Gabor Maté.

_____________

Nota do editor

Último post da série de 28 de novembro de 2024 > Guiné 61/74 - P26205: (In)citações (269): Hoje, Dia de Acção de Graças, o Thanksgiving Day, nos EUA: que haja paz entre os homens (José Câmara)

quinta-feira, 28 de novembro de 2024

Guiné 61/74 - P26209: Ser solidário (275): Quatro anos como médico cooperante (1980-1984), em Fulacunda e em Bissau (Henk Eggens, neerlandês, consultor internacional em saúde pública, reformado, a viver em Santa Comba Dão)



Foto nº 1 > Guiné-Bissau > Região de Quínara > Fulacunda > 1980 > "Eu,  Henk Eggens, médico  neerlandês, cooperante"... Esteve dois anos em Fulacunda (1980-82) e depois em Bissau (1982-84)


Foto nº 2 > Antiga Guiné Portuguesa > Região de Quínara > Fulacunda > s/d > "
Casa no quartel onde depois fiquei, em 1980".  

Fonte: https://rumoafulacunda.wordpress.com/fulacunda/ (com a devida vénia).



Foto nº 4 > Guiné-Bissau > Região de Quínara > Fulacunda > 
"Farmácia da Tabanca" .  



 Foto nº 5 > 
Guiné-Bissau > Região de Quínara > Fulacunda > 1980 > *Ilustração: parto",.   Fonte: Livro Formação das matronas, 1978, MINSAS, Guiné-Bissau.




Foto nº 6 > Guiné-Bissau > Região de Quínara > Fulacunda > 1980 > "Ilustração: rede mosquiteira para crianças*,  Fonte: Livro Formação das matronas, 1978, MINSAS, Guiné-Bissau. 



Foto nº 7 > Guiné-Bissau > Região de Quínara > Fulacunda > 1980 > "Ilustração: 
   Cinco doenças a tratar pelos Agente de Saúde de Base",  Fonte:  Fonte: Livro Formação das matronas e dos agentes de saúde de base (A.S.B.) nas tabancas, 1980, CESAS, Guiné-Bissau.



Foto nº 8 > Guiné-Bissau > Região de Quínara > Fulacunda > 1980 > "Ilustração:  latrina".  Fonte: Livro Formação das matronas e dos agentes de saúde de base (A.S.B.) nas tabancas, 1980, CESAS, Guiné-Bissau.



Foto nº 9 > Antiga Guiné Portuguesa > Região de Quínara > Fulacunda > s/d >  "
Fulacunda no tempo colonial com campo de vólei". Fonte desconhecida




 Foto nº 10> Guiné-Bissau > Região de Quínara > Fulacunda > 1980 >   "Casa do médico, Land Rover do projeto,  mota da noiva e carro 404 privado".



Foto nº 1 > Guiné-Bissau > Região de Quínara > Buba > 1980 > "Bomba da água,  do projeto de Buba". 


1.  Já troquei alguns mails, com o meu colega holandês (ou neerlandês), Henk Eggens, especialista em medicina tropical e saúde pública, que vive, aposentado, em Portugal, em Santa Comba Dão, e é o administrador e editor de Portugal Portal (em neerlandês ou holandês) (*).

No passado dia 9 de setembro último, ele escreveu-me o seguinte, em resposta a um email que lhe tinha mandado:

 (...) Bom dia, Luís!
Foi bom ver o teu e-mail. Temos algumas coisas em comum, isto foi claro para mim.

Primeiramente o nosso primeiro ano nesta terra: 1947!

Segundo, a paixão para conhecer outras terras: Conheceste o mundo académico do TNO na Holanda (que conheço só por nome), além do teu passado na Guiné, e provavelmente outros países.
Trabalhei 20 anos no Royal Tropical Institute (**), Amesterdão,  como consultor de saúde pública (lepra, tuberculose, cuidados primários de saúde). O que me levou a todos continentes no Sul. A minha vida nunca foi monótona... A nossa vida atual na aldeia,  perto de Santa Comba Dão,  é mais tranquila (...).
Terceiro, a paixão de comunicar algo de substancial para um público (nos blogues, no ensino). Tua carreira académica, o blogue 'Tabanca Grande' que admiro.
Durante a minha vida profissional desenvolvi cursos de saúde tropical, também 'online', e dei muitas aulas. Com muita satisfação. Gosto de ser editor de Portugal Portal e partilhar com o público neerlandófono (como se diz isso, mesmo?) sobre Portugal, a sua história, cultura, pequenas histórias da vida.(...)
 Mantenhas!
(Na altura na Guiné, aprendi bem a conversar em crioulo, não havia outra hipótese de comunicar com o povo lá. Agora perdi já muito a fluidez)

Henk
2. Nova mensagem do nosso leitor Henk Eggens, médico, especialista em medicina tropical, reformado, a viver em Portugal.
Data - sexta, 1/11/2024, 13:03


Boa tarde, Luís.

Espero que estejas  bem, já de volta da vindima no Norte no mês passado.

Vi a mensagem recente do bloguista Patrício Ribeiro no blogue (...) e decidi escrever-te.

(i) Recebeste o meu e-mail de 12 de setembro 2024 com a apresentação dum amigo meu, intitulado 'Amílcar Cabral e os cuidados de saúde durante a luta de libertação' ? Achas apto para publicar no teu blogue?

(ii) Acabei de escrever algumas das minhas aventuras na Guiné-Bissau nos anos 1980-1984. Me pediste para contar as minhas experiências durante minha estadia como médico na região de Quínara. Segue o texto e as fotografias em anexo.

Se achas oportuno,  podes publicar no teu blogue.

Um abraço desde Santa Comba Dão,

Henk



3. Comentário do editor LG:

Obrigado, Henk. Já vi que tens página no Facebook.   Fazes parte do grupo público Santa Comba Dão - Luagres, Factos e a Nossa Gente.  E do teu CV, no Linkedin, respiguei o seguinte:

"Consultor internacional em saúde públiva, aposentou-se após quarenta e cinco anos de experiência na prestação de cuidados de saúde em países com poucos recursos em três continentes. Amplas relações de trabalho entre governos e ONG internacionais.. Missões de longo prazo em Angola, Guiné Bissau, Tanzânia e Indonésia. Missões de curto prazo  em mais de 15 países. 

"Idiomas: Inglês, Português: excelente. Francês: bom. Espanhol, Kiswahili, Indonésio: básico. Holandês: língua materna.  Competências curriculares: : monitoização e avaliação, controle da tuberculose, controle da hanseníase (doença de Hansen ou lepra), desenvolvimento curricular, e-learning".  Fonte: Linkedin > Henk Eggens.

Espero que esta seja a primeira de muitas colaborações tuas no nosso blogue (***), onde cabem todos os amigos da Guiné-Bissau com tudo o  que os une e até com aquilo que nos pode separar. O teu portuguê é muito bom. Dei apenas um retoque numa palavra ou outra (e nomeadamente no tempo dos verbos)...

E a teu pedido, acrescento mais duas linhas sobre o período em que estiveste na Guiné: (...) 

"Trabalhei apenas dois anos em Fulacunda (1980-1982). Depois, fui coordenador do Projeto de Saúde de Base no Ministério da Saúde em Bissau (1982-1984)."



Esta é a história dum médico holandês que foi trabalhar na província rural de Quínara, Guiné-Bissau, de 1980-1984, quando o país se tornou independente havia poucos anos.

Por Henk Eggens 
 

Em abril de 1980, desembarquei no aeroporto de Bissalanca. Estava bem preparado. Já durante pos meus estudos de medicina, eu tinha decidido que queria trabalhar em África. 

Após cinco anos de estudos teóricos, tirei um ano sabático. Viajei pela África Ocidental através do Saara e pelo Congo até a África Oriental. Durante sete meses, conheci muitas Áfricas. No final dos meus estudos de medicina, fiz um curso de três meses sobre doenças tropicais, o que me preparou melhor para reconhecer e tratar essas doenças.

O meu primeiro emprego foi em Angola. Em 1976, quatro meses após a declaração de independência (****), viajei para Cabinda e trabalhei lá durante  dois anos na ala pediátrica do hospital provincial. Lá, aprendi muito: a falar português, e palavrões cubanos dos meus colegas médicos. Aprendi na prática a tratar a patologia tropical. Perdi também a ilusão da viabilidade e desejabilidade duma sociedade comunista.

Em 1980, tive a oportunidade de trabalhar na Guiné-Bissau. Consegui um emprego no Ministério da Saúde da Guiné-Bissau e fui colocado na região de Quínara, no sul da Guiné-Bissau. A província tinha cerca de 40.000 habitantes. Ninguém sabia exatamente quantos. Já fazia parte da área libertadada durante a guerra colonial, com exceção dos quarteis do exército português e as tabancas. 


Excerto da carta de Fulacunda  (1955) (Escala 1/50 mil)
  Fonte: Cortesia  do Blogue Luís Graça
& Camaradas da Guiné
Fui morar em Fulacunda, uma vila de mil habitantes onde existiu um quartel militar (Vd. fotos nº 1  e 3).

 O que encontrei quando cheguei em Fulacunda? 

Não havia hospital. Um posto de saúde em Fulacunda consistia em uma cabana, parte do antigo quartel
 e havia uma cadeira ginecológica enferrujada. E uma caixa de medicamentos enviada pelo ministério. 

Outros lugares na região de Quínara tinham cabanas semelhantes com um mínimo básico de recursos.

Havia mais pessoal de saúde. Em Tite, morava Augusto, um enfermeiro treinado na época colonial que sabia de tudo e me explicou muitas coisas, me tornando mais sábio sobre como as coisas aconteciam na região. 

Em Fulacunda e Empada, trabalhavam dois ‘meio-médicos’ guineenses. Digo ‘meio-médicos’ porque eram jovens que foram treinados na União Soviética como feldshers, um tipo de treinamento prático para atuação médica (*****). 

Além disso, havia alguns socorristas presentes nas tabancas. Em Nhala, que também era um antigo quartel do exército colonial português, havia um centro de treinamento onde os socorristas, muitas vezes analfabetos e que haviam trabalhados na guerra de libertação, recebiam treinamento formal como auxiliares de enfermagem. 

No início, eu viajava muito por todas as vilas e postos de saúde para ver o que estava acontecendo. Era muito pouco. Sempre faltavam medicamentos.

As pessoas moravam longe dos postos de saúde e a medicina tradicional era a principal fonte de cuidados de saúde. Logo comecei a organizar cuidados materno-infantis. Sob a mangueira (ou o poilão), reuníamos regularmente as grávidas e as crianças e administrávamos as vacinas necessárias, contra tuberculose, sarampo, difteria, tétano, poliomielite e coqueluche.  
Providenciávamos medicamentos (foto nº 4) e conselhos ás grávidas. Com um cartão onde os pesos das crianças eram anotados e que eu mesmo havia mimeografado, acompanhávamos o crescimento e desenvolvimento das crianças pequenas. 

Eram passeios populares. Mães e crianças vinham de longe para receber as vacinas e ouvir nossas palestras.

Parte do meu trabalho era treinar os voluntários (Agentes de Saúde de Base) nas tabancas para reconhecer e tratar cinco doenças (fotos nºs 5, 6 e 7).

Também treinámos as parteiras tradicionais (matronas). Elas recebiam um pequeno kit, uma caixinha com uma faca esterilizada e fios esterilizados  para cortar e amarrar o cordão umbilical depois do parto. Além disso, eram instruídas sobre a importância de um comportamento antisséptico durante o parto (foto nº 5).

A ideia era que os voluntários na tabanca recebessem uma caixa de medicamentos com os quais pudessem tratar cinco doenças (foto nº 7). Essas eram:

  • paludismo (corpo quente), 
  • conjuntivite (dor di udjo), 
  • dor de cabeça,
  • diarreia (panga barriga), 
  • tosse e feridas. 

Posteriormente à formação,  a tabanca recebia uma caixa de medicamentos. Depois, a própria tabanca, por meio de contribuições voluntárias (abota), arrecadava dinheiro para comprar novos medicamentos no Depósito Central de Medicamentos em Bissau. 

Havia muita hesitação na tabanca para juntar dinheiro, pois nem todos confiavam que seria bem utilizado. Foi necessária muita persuasão para convencer as pessoas a contribuir, e, eventualmente, isso funcionou em algumas tabancas.

Além de poder tratar estas doenças,  os Agentes foram ensinados sobre medidas preventivas da higiene nas tabancas  (fotos nº 7 e 8).

Este Projeto de Saúde de Base ocorreu em vários lugares da Guiné-Bissau, sob a inspiradora liderança do vice-ministro da saúde, Dr. Manuel Boal. Havia projetos no Oio, na ilha de Canhabaque, em Tombali e no extremo leste, em Lugadjol, no setor de Madina do Boé, e em Quínara, onde eu trabalhava. 

O projeto teve bastante sucesso nos primeiros anos, graças à liderança entusiástica dos coordenadores guineenses e dos cooperantes estrangeiros. Depois de algum tempo, a confiança dos aldeões foi conquistada e eles contribuíram voluntariamente com dinheiro, e isso era muito pouco dinheiro, para comprar medicamentos para serem usados na tabanca. No entanto, ficou claro que este projeto nunca seria completamente autossuficiente, pois sempre havia preços que eram altos demais para o que os aldeões podiam pagar.

As minhas atividades curativas (ou mais propriamente clínicas) eram bastante limitadas porque eu não tinha muitos recursos. Poucos medicamentos e nenhum instrumento para realizar qualquer procedimento terapêutico mesmo simples. 

Um dos eventos mais impressionantes foi quando, numa manhã, uma jovem mulher chegou a Fulacunda dizendo que havia sido mordida por uma cobra enquanto pegava água no rio. Ela não sabia exatamente que tipo de cobra era, mas foi mordida na perna. 

O que podíamos fazer? Tínhamos soro antiofídico, mas não sabíamos há quanto tempo estava fora da geladeira, então não sabíamos se ainda era eficaz, mas usámo-lo mesmo assim. Injetámos na esperança de que ajudasse. 

Observávamos a jovem mulher e, após algumas horas, os seus dedos de pé começaram a paralisar. As suas pernas começaram a enfraquecer e paralisar, e em seis horas, ela acabou por faleceu porque os seus músculos respiratórios também paralisaram. 

Tentámos de tudo: respiração artificial, administração de oxigênio que tínhamos por acaso. Mas nada ajudou. Nunca esquecerei os olhos assustados e suplicantes da jovem mulher que morreu de uma picada de cobra.

Outro evento que me marcou foi ajudar no chamado fanado

O fanado é um ritual realizado pelo grupo étnico Beafada, onde eu morava. Uma vez a cada poucos anos, jovens homens e meninos de 7 a 12 anos eram isolados na floresta por meses, onde aprendiam os segredos da tribo e como sobreviver e cumprir seu papel nas comunidades da tabanca. 

Durante o período colonial, esses fanados eram realizados em segredo, e agora, com a independência, os líderes decidiram que os serviços de saúde poderiam contribuir. No final dos meses de isolamento, os jovens eram circuncidados. Meu assistente e fiel colaborador Sanquinho, o auxiliar médico, foi convidado a ir à floresta para desinfetar os pénis recém-circuncidados. Eu não podia ir porque era branco, um estrangeiro. 

Ele foi. No dia seguinte, ele voltou dizendo que não conseguiu. Ele levou iodo como desinfetante, que é à base de álcool, mas o primeiro menino que foi desinfetado começou a gritar tão alto que desistiram dessa ajuda. O que fazer?

Felizmente, tínhamos outro desinfetante, a violeta genciana, que era à base de água. Sugeri usá-lo, mas com a condição de que eu mesmo fosse à floresta para observar e aplicar. Após alguma discussão, isso foi permitido e viajámos para a floresta. Em um determinado momento, chegámos a uma árvore caída, que era o limite absoluto até onde podíamos ir. Dali para a frente, a área era proibida para nós e, atrás da árvore caída, havia uma fila de meninos. Meninos com rostos assustados, com as mãos cobrindo suas partes íntimas, esperando para desinfetar os seus pénis recém-circuncidados.

Um por um, eles levantavam os panos sujos que cobriam suas partes íntimas e podíamos aplicar o desinfetante. Como era à base de água, não era irritante e foi bem tolerado pelos meninos. Ganhei uma experiência valiosa e os meninos, espero, foram desinfetados após uma circuncisão que não foi feita completamente de acordo com as normas antissépticas.

A minha vida em Fulacunda não era tão fácil. A sra. Maria cuidava de mim, preparava as comidas e limpava a casa. Tinha algumas galinhas para ter um ovo no mata-bicho. Importei legumes desidratadas de Holanda e, de vez em quando, conseguíamos uns tomatinhos. Os pescadores traziam-me de vez em quando uma barracuda, peixe grande e deliciosa.

Na frente da minha casa havia um campo de jogos (antigamente para jogar vólei?) (foto nº 9).  Às vezes eu instalava o meu gravador lá à noite e os moradores e nós dançávamos ao som de uma música animada.

Antes de viajar para Guiné-Bissau, comprei na Bélgica uma caixa de cartuchos (calibre 12). Provou ser muito útil. Não sabia caçar, mas o meu amigo Manuel sabia. Levou de noite um ou dois cartuchos para o mato e voltou de manhã com um antílope. Dividimos a carcaça e havia carne para umas semanas. 

Raramente era  abatida uma vaca na tabanca. Costumavam-me chamar para inspecionar o estado de saúde da carne. Tinha um livro de medicina veterinária, assim podia verificar os pulmões, o fígado e se a carne oferecia as condições mínimas de salubridade. Levava  uma balde grande para  inspeção: depois de autorizar a venda da carne, era o primeiro a poder escolher a minha parte da vaca.

 A minha noiva (holandesa) vivia em Bissau. Tanto quando possível viajávamos para nos encontrarmo-nos (foto nº 10). Ela tinha uma mota Honda 125 cc off-the-road. Com um barco tradicional ou um barco dum projeto holandês costumávamos travessar o rio Geba. Nem sempre havia águas tranquilas.

Em Buba havia na altura um grande projeto de abastecimento de água (foto nº 11). No antigo quartel foi estabelecido o centro do projeto, que incluiu também uns 5 a 7 técnicos holandeses. No Catió era o centro duma empresa holandesa Stenaks, que construiu centros de saúde na região de Tombali e Quínara. 
Foi uma grande ajuda ter estes compatriotas relativamente perto. 

No tempo da chuva era praticamente impossível viajar, pois as estradas eram intransitáveis, mesmo com meu carro de trabalho, o formidável Land Rover (foto nº 10).

Foram alguns anos de muitas experiências. Foi a base para minha futura carreira na área de saúde tropical. 

Obrigado, Guiné, obrigado,  guineenses!

(Revisão / fixação de texto, edição de fotos: LG)

______________

Notas do editor:


(**) Equivalente ao nosso Instituto de Higiene e Medicina Tropical / NOVA, Lisboa

(***) Último poste da série > 25 de setembro de 2024 > Guiné 61/74 - P25981: Ser solidário (274): Bilhete-postal que vai dando notícias sobre a "viagem" da campanha de recolha de fundos para construir uma escola na aldeia de Sincha Alfa - Guiné-Bissau (10): O mel da Guiné-Bissau (Renato Brito)

(****) 11 de novembro de 1975

(*****) Na China e em Moçambique eram chamados "médicos de pé descalço"... Prestadores de cuidados de saúde, sem qualificações formais, atuando sobretudo na áreas da prevenção da doença e da promoção da saúde.

domingo, 3 de novembro de 2024

Guiné 61/74 - P26112: Memórias de um médico em campanha (Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547 / BCAÇ 1887) (9): Um buraco na parede

1. Mais um conto verdadeiro da Guiné, do nosso camarada Adão Cruz, Médico Cardiologista, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547 / BCAÇ 1887, Canquelifá e Bigene, 1966/68.


MEMÓRIAS DE UM MÉDICO EM CAMPANHA

9 - Um buraco na rede

(Mais um conto – verdadeiro – da Guiné)

Acordei a meio da noite e não fechei mais os olhos. A insónia levou-me onde bem lhe apeteceu. Gemi ao estalar do coração de uma mãe, senti o amargo do choro convulso de um pai, reabsorvi a minha dolorosa resignação… um barco e as amarras que o prendem aos olhos esbugalhados do cais, amarras que se despedaçam, pois ninguém lhes sabe desfazer os nós.

A madrugada de hoje começa a clarear. Quem olha através da rede da janela, sem vidros, julga que vai nascer uma amena manhã de primavera, mas em breve ela parecerá vomitada do ventre de uma fogueira.

Passarinhos coloridos salpicam de gorjeios o silêncio morno do amanhecer. Um grande inseto marra nervosamente de encontro à rede, numa volúpia incontida de liberdade. Eu e aquele moscardo à procura de um buraco na rede!

De um salto, corri da cama até ao chuveiro improvisado que borrifava sobre mim os mais deliciosos minutos do dia. Enquanto a água escorria em fios esganados, eu ia antevendo o prazer de uma caçada matinal às rolas. Iria pedir a carabina ao libanês senhor Heyle, o qual, àquela hora, ensonado, não se lembrava que não gostava de a emprestar. De qualquer forma, a mim nunca a recusaria, pois precisava de mim como médico.

Postar-me-ia a cem metros do arame farpado, por detrás do poço do jagudi, bem perto do canavial. Vindas das árvores que se encontram no baixio junto à bolanha, as rolas atingem, sem qualquer desconfiança, o mangueiro que está mesmo por cima da minha cabeça.

Será só apontar. Mas… nem apontar foi preciso, pois, as rolas não vieram, e as que vieram, fugiram, sem hesitações de pouso, como se, do lado de lá do canavial, alguém as tivesse avisado.

Quando se vive no isolamento, sobretudo na solidão da guerra sem sentido, o tempo jamais passa, mas as frações de tempo parecem voar como estas rolas que escarnecem de mim. Não sei se adormeci, penso que sim, movido pelo zumbido melífluo e hipnotizante de um desses enxames de abelhas selvagens que, à volta de um galho de cajueiro, ordenam a sua inquietante anarquia.

Quando acordei e olhei para cima, uma rolita inocente, vestida ainda com o castanho-torrado da primeira penugem, esticava o pescoço curioso para ver quem eu era. Estava tão perto, que eu lhe enxergava os olhitos faiscantes e quase ouvia as primeiras falas que as cordas vocais começavam a ensaiar. Instintivamente, colei-me à arma e só vi a cabecita inquieta estremecendo na ranhura do ponto de mira. Se ao menos ela fugisse! Se ao menos ela fugisse! Apertei o gatilho, e como estava tão perto, nem dei pela queda do seu minúsculo corpo.

Caiu o meio-dia sob a forma de um sol escaldante que só as árvores mais frondosas conseguiam coar. Espetei os olhos na avezita moribunda e vi que um fio de sangue lhe pintava o bico. Senti profundamente o gosto acre daquele sangue. Soube-me à guerra, a roubo, a crime, a futuro sem vida e vida sem futuro, à terra calcinada, à chacina. Torci-lhe três vezes o pescoço e atirei-a ao regato mais próximo. Puxei de um cigarro e tentei, com ele, acabar a tristeza e a amargura desta manhã.

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Nota do editor:

Vd. postes da série de:

25 de junho de 2016 > Guiné 63/74 - P16235: Memórias de um médico em campanha (Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547) (1): O Parto - ou o nascimento do Adão Doutor em Bigene

2 de agosto de 2016 > Guiné 63/74 - P16356: Memórias de um médico em campanha (Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547) (2): Cadi suma outra mulher

6 de agosto de 2016 > Guiné 63/74 - P16363: Memórias de um médico em campanha (Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547) (3): Os prisioneiros

11 de agosto de 2016 > Guiné 63/74 - P16381: Memórias de um médico em campanha (Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547) (4): Joãozinho, nunca na vida te deixarei sozinho

16 de agosto de 2016 > Guiné 63/74 - P16392: Memórias de um médico em campanha (Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547) (5): O diagnóstico

6 de setembro de 2016 > Guiné 63/74 - P16453: Memórias de um médico em campanha (Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547) (6): Pequenas Grandes Verdades

13 de setembro de 2016 > Guiné 63/74 - P16485: Memórias de um médico em campanha (Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547) (7): Guiné - Irkutsk

27 de setembro de 2016 > Guiné 63/74 - P16528: Memórias de um médico em campanha (Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547) (8): O Tanque

domingo, 27 de outubro de 2024

Guiné 61/74 - P26084: Contos do ser e não ser: Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547/BCAÇ 1887 (41): "A gema de fora"

Adão Pinho Cruz
Ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547
Autor do livro "Contos do Ser e Não Ser"


A gema de fora

Mal a luz do dia beliscou a frincha da janela, o homem acordou, acordou, como sempre, com pedaços do passado agarrados ao pijama, às mãos e aos cabelos.

Sentou-se na beira da cama e um sonolento: Oh! Que merda! Soltou-se da garganta ainda seca do bagaço da véspera. Quando os pés apalparam a falta dos chinelos, moldou os passos ao chão de modo a evitar o mais possível a madeira fria do soalho. Sobre a cómoda, continuava a tristeza à mistura com águas-de-colónia de vários tipos. Abriu um sorriso quando viu no tapete o artigo que acabara de escrever na véspera e que o sono fizera escorregar-lhe das mãos, dera-lhe o título Orgasmo, inspirando-se numa dessas tardes em que o fim do domingo abre as portas à demência. A caminho do quarto de banho, ia pensando nas palavras que nada dizem e na flatulência da comunicação que o fizera deitar-se tão tarde e acordar, assim, com a gema de fora.

Sempre nele permanecera uma grande dúvida quanto à eficácia de debates como o da véspera, será que têm algum valor como profiláticos da deterioração mental que a idade e os tempos acarretam ou são, eles próprios, catalisadores dessa mesma deterioração? Sobretudo se tais debates não passam de regateirices, confusões, dessintonia de mediocridade e estupidez, discutindo pessoas reles, factos ridículos, ou ideias banais, estafadas e apodrecidas, sobretudo se tais debates se processam entre corruptos, golpistas e terroristas que invadem as casas, maquilhados de gente de bem e cobardemente espantalhados de homens dignos. Sempre pensara que não se deve transformar em espetáculo o perigo da lavagem de muitos rostos pelo sabão da ingenuidade das pessoas, a verdade é só uma, e ele não aderia, de ânimo leve, à tese de que cada um teria a sua verdade, a verdade existe, está lá, está sempre lá, dentro das coordenadas humanas, há quem dela se aproxime e quem dela se afaste, mas o único caminho da verdade é o caminho da lucidez e não há lucidez que não assente na razão. Sem deixar de considerar que a irracionalidade é o caminho das trevas, cada um tem o direito a escolher o seu caminho da verdade, mas aí tem-se o direito de o julgar pela escolha, se se lhe conhece a formação ou a deformação, a inteligência ou a indigência, a humildade ou a petulância, o rigor ou a confusão, a seriedade ou a manigância. Grande respeitador do relativo e da cultura da diferença, o homem que não tinha nome consideravase adversário do consenso, do consenso acima de tudo, que destrói e anula o indivíduo, e da tolerância, tolerância como virtude, que implica sempre a presença de alguém que tolera e de alguém que é tolerado. O homem acordou maldisposto porque não acreditava na existência de debates fluidos, corajosos e pedagógicos e, mesmo assim, cedera-lhes parte do seu tempo de sono.

Convidar tanta gente de caras e tantas caras de gente, fazer cócegas em temas profundos, inacessíveis a mentecaptos, meter num mesmo saco capazes e incapazes, lúcidos e ineptos, fazer de assuntos sérios, estéreis, discussões, criar espetáculos de feira sem o mínimo receio de sujar a consciência e ofender a verdade, era mais do que razão para o incómodo acordar dessa manhã. A visão político-filosófica assente na maior preciosidade do homem, a razão, ao contrário do que muitos pensam, é a única visão profunda, dinâmica, mentalmente produtiva, constante recriação de vivências, ideias e utopias, inexoravelmente ausentes do pensamento irracional, retrógrado, estagnado e paralítico.

Já no café da esquina, o homem deu de caras com a mulher de longos cabelos negros, rosto comprido e olhos paradoxalmente achinesados, a quem pedira, há cinco anos atrás, para posar para si, nada tendo conseguido. Esguia, quase linear, de uma beleza que parecia desenhada, a sua figura prendia os olhos que nela tocavam. Sempre que o homem a via, recordavalhe alguém e bulia-lhe com qualquer coisa que havia dentro dele, ela própria, alguém que já vira, alguém que gostaria de encontrar?

Na mesa do lado, via-se que um outro homem, seguramente um habitante dessas inúmeras ilhas que se escondem no ventre da cidade, tentara encontrar uma camisita de riscas verdes a condizer com o verde das calças, se bem que mais escuro, aceitava-se, não era muito boa a combinação, mas percebia-se a ideia, já não era de aceitar tão facilmente aquela senhora vista de trás, relativamente escorreita, blusa na moda e saia quase mini, moldando formas enganadoramente jovens, que o virar da cara logo atraiçoava ao denunciar as engelhas dos setenta anos. Ninguém tem nada com isso e se ele mentalmente o comentava é porque considerava o sentido do ridículo quase um irmão gémeo da inteligência.

Uma outra senhora tentava limpar, com um guardanapo de papel, os pingos de baba que o marido, por força de tentar sorrir, deixava escorrer dos lábios inertes sobre a gravata cinzenta, deve ter sido acometido de acidente vascular cerebral, pelo menos assim o descrevera o genro à saída do banco: “O meu sogro teve um ataque celebral e ficou com a boca a tocar flauta e a pôr açúcar nas farturas.” Mas ele, provavelmente, nunca entrara num banco, não era desses, não, à esquina do banco, onde costuma fazer umas horas no engraxa, como está de baixa pela caixa, aproveita para andar de caixa pela baixa, pelo que não deve ser este o seu sogro, este tem ar de quem tem massa, o que vale é que o acidente vascular cerebral dos ricos é igual ao acidente vascular celebral dos pobres. Mesmo hemiplégico, nem por isso deixou de sugerir, com a mão válida, que a mulher esfregasse suavemente o guardanapo um pouco abaixo da fivela do cinto, ao que ela acedeu de maneira afável e sorridente. Em paga, ele abriu o livro de cheques e mostrou o que havia por lá, ela arregalou os olhos e inspecionou-lhe, com falsa displicência, o pavilhão auricular, tentando arrancar-lhe docemente uns pelos esbranquiçados e eremitas que teimaram isolar-se do mundo cabeludo. Ciente de que a poderosa e autêntica dinâmica da vida, quer se queira quer não, reside no sexo, não tinha dúvidas em aceitar que o homem do livro de cheques optaria, se fosse possível, dar-lhe a escolher, por poder levantar o pénis em vez da mão paralítica.

Do outro lado do homem sem nome, uma mulher cheirava a perfume que tolhia, bafejou os óculos, limpou-os a um pequeno lenço e pô-los em contraluz para ver o resultado, mas os seus olhos em vez de fitarem o vidro, fizeram esguelha para o companheiro que tinha na frente o generoso cruzar de pernas de uma dessas liberais criadoras de pulsões. Foi para isto que se levantou tão cedo, afinal, o que veio ele ali fazer? Um súbito silêncio, um silêncio esquisito instalou-se à sua volta, o silêncio daqueles momentos em que não se sabe o que fazer, em que se entrechocam o querer e o não querer, o sentir e o não sentir, ele tinha pedido um café e lia o jornal, lembrava-se de que não há nada mais saboroso do que faltar ao trabalho e ir para o café ler o jornal, ou melhor, algumas coisas boas que o jornal comporta, no meio de tanto lixo, levantar os olhos de vez em quando, presenciar as descarnadas cenas da vida, dar cem ou duzentos paus a um mendigo andrajoso ou a uma prostituta bem vestida que os pede emprestados, levantar os olhos de vez em quando e pensar na grandiosa obra daquilo a que chamam criação e, ao que parece, nunca fora criado nem inventado, apenas desenvolvido dentro da ordem natural, obra toda errada por adulterada, é certo, mas grandiosa.

O homem acreditava que o equilíbrio entre o que somos e o que acreditamos e o que os outros são e o que pensam é de tal modo difícil, que a forma mais sábia de nos mantermos verticais neste mundo é colocarmo-nos na posição de deitados, isto é, na posição de aprender. O comum das pessoas que escrevem não difere do comum das pessoas que leem, tudo estaria bem se as pessoas que leem não se sentissem os educandos dos sábios que escrevem, e as pessoas que escrevem não inchassem com as banalidades que dizem, há os que merecem ser lidos e os que não o merecem, simplesmente, só a meio da leitura a gente se dá conta e lá se vai aquele tempo por água abaixo. A nossa cabeça é invadida pela cobarde e revoltante ideia de pensar que a única hipótese que nos resta é não perder o sentido de humor e marimbar-se para os que não respeitam, nem de longe nem de perto, a capacidade que os outros têm, apesar de estarem calados, de ver que eles não sabem nada do que dizem, e que os seus comentários, sem vivências sérias a escorá-los ou solidez cultural a estruturá-los, não passam de mastigada para inglês ver, é sobremaneira penoso e ridículo um qualquer medíocre pegar na caneta ou na língua para analisar figuras cuja vida, formação e inteligência ele não tem capacidade para entender. Pensamos logo como se comportariam tais sábios, se tivessem uma dor no peito, uma dor no peito, porquê uma dor no peito? Tudo é secundário e virado do avesso quando há uma dor no peito, o rico diz que é pobre, o que é, quase sempre, verdade. O político de direita diz que é de esquerda e, algumas vezes, vice-versa, que é o que eles acham que os outros gostariam que eles fossem. O forte não desmente a sua fraqueza, o vigarista confessa o desejo de ter sido a pessoa mais séria, o articulista ou o comentador prestam-se a engolir o que disseram se nisso residir a analgesia.

Toda a hipocrisia vem ao-de-laço de uma dor no peito, a dor no peito despe até à nudez aquele que a sofre, dissolve a vaidade e coloca qualquer homem perante si mesmo, é o detergente que embranquece o espírito e lava a memória. A dor no peito é uma espécie de fronteira entre a vida e a morte, perante ela, ninguém tem vergonha de ser ou parecer ignorante. Não sabem que a dor no peito pode ser, apenas e exclusivamente, a somatização da consciência da nossa insignificância, se o soubessem e disso tivessem a certeza, talvez nem se importassem. Era isso que assustava o homem que não tinha nome, não a dor no peito, mas a fraqueza de um mundo que morria assustado, a grandeza delapidada no esgotar da razão, o vaguear dentro do ciclo vicioso de um sonho desfocado e confuso de que se não acorda, a sensação asfixiante de que o mundo se estreita e se dissolve no fim do corpo abalado por uma dor no peito.

Dobrou o jornal, enfiou o sobretudo e sentiu que aquela manhã não era bem igual às outras, mediu, de novo, todas as caras, perguntou a si mesmo o que estava ali a fazer no meio de uma sociedade de olhos vendados, cega, sem horizontes, que nega a razão como única riqueza do homem, voltou a perguntar a si mesmo o que fazia ali e o que tinha ele a ver com tudo aquilo, na imensidão apaixonante do Universo o que era, afinal, aquele café e aquele jornal, o que era o viver, o ter vivido, e o que se há de ter de viver.

Levantou-se e saiu, o ar fresco da manhã ainda lá estava para o acariciar.

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Nota do editor

Último post da série de 20 de outubro de 2024 > Guiné 61/74 - P26061: Contos do ser e não ser: Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547/BCAÇ 1887 (40): "O homem sem nome"

segunda-feira, 21 de outubro de 2024

Guiné 61/74 - P26064: Elementos para a história do Pel Caç Nat 54, "Águias Negras" (1966/74) - Parte III: Em Porto Gole, com a CART 1661 (de fev67 a mar68)...Quem se lembra do nome do ten mil médico, de origem goesa ? E do cap art Figueiredo ? E do nosso soldado "Papá das pernas altas", que ia ptra o mato em cuecas ? (José António Viegas)



Foto nº 1 > Guiné >  s/l [ Porto Gole]> s/d [1967/68] >  Eu (à esquerda) e o tenente médico da CART  1661,  mais o nosso "companheiro" [um macaco-cão]


Foto nº 2A > Guiné >  s/l [ Porto Gole]> s/d [1967/68] >  O cap art Figueiredo, sentado, e o "Papá das meias altas", de pé (1)


Foto nº 2B > Guiné >  s/l [ Porto Gole]> s/d [1967/68] >  O cap art Figueiredo, sentado, e o "Papá das meias altas", de pé (2)


Foto nº 2 > Guiné >  s/l [ Porto Gole]> s/d [1967/68] > Numa das várias operações na zona de Porto Gole, sentado descansando o capitão Figueiredo, cmdt da CART 1661 (em primeiro plano); de pé, um militar guineense [do Pel Caç Nat 54 ] conhecido como o "Papá das pernas altas", não gostava de camuflado,  era esta a indumentária com que saía para as operações.


Fotos (e legenda): © José António Viegas (2024). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]




O algarvio José António Viegas, nosso grã-tabanqueiro nº 587 (desde 11 de novembro de 2012), uma fonte privilegiada de informação sobre o seu Pel Caç Nat 54, de que é um dos "pais-fundadores"; as suas recordaçóes CTIG, de 1966 a 1968, são preciosas para se reconstituir a história desta subunidade (1966/74)... Infelizmente, deste dos outros Pel Caç Nat ... "não reza a História" .

 

1. Mensagem de José António Viegas, ex-fur mil do Pel Caç Nat 54 (Bolama, Enxalé,Missirá, Porto Gole e Ilha das Galinhas, 1966/68):

Data - segunda, 14/10/2024, 19:39

Assunto  - Recordações


Na 1ª foto eu e o médico da CART  1661 mais o nosso "companheiro" 
[um macaco-cão]
 
Tentei com vários camaradas da 1661 saber o nome do médico que acho era de origem goesa, mas não consegui que se recordem, nem sequer o enfermeiro.

Na 2ª foto, numa das várias operações na zona de Porto Gole, sentado descansando o capitão Figueiredo; de pé, um militar guineense 
[do Pel Caç Nat 54 ] conhecido como o "Papá das pernas altas", não gostava de camuflado,  era esta a indumentária com que saía para as operações.

Cumprimentos
Um abraço


2. Sabe-se que o Pel Caç Nat 54,  no início, em Bolama era constituído pelo alf mil  Carlos Alberto de Almeida e Marchã (ou Marchand); os fur mil  Álvaro Valentim Antunes (que será "morto na 1ª mina"), Arlindo Alves da Costa ("ferido na segunda mina", DFA); e José António Viegas; os 1ºs cabos Manuel Januário (DFA), Coelho (DFA) e João Simão (telegrafista); mais os soldados, do recrutamento local,que  eram das etnias Papel, Fula, Mandinga e Olof (um deles).

Em fevereiro de 1967, aquando da visita do genb Arnaldo Schukz, o Pel Caç Nat 54 estava em Porto Gole, juntamente já com parte do pessoal da CART 1611.

Esta subunidade, a CART 1661, passou por Fá Mandinga, Enxalé, Bissá e Porto Gole. Partiu em 1 de fevereiro de 1967 e regressou em 19 de Novembro de 1968. Teve três comandantes: 



Foto nº 3 > Guiné > Porto Gole > Fevereiro de 1967 > V
isita do general Arnaldo Schulz  e do brigadeiro Reimão Nogueira ao destacamento, onde se encontravam o Pel Caç Nat 54 e parte da CART 1661. Em primeiro plano, de costas, o tenente médico da CART 1661 (à direita)  e o alferes Carlos Marchã (ou Marchand),  comandante do Pel Caç Nat 54 (à esquerda).



Foto nº 3A > Guiné > Porto Gole, fevereiro de 1967 > O general Arnaldo Schulz, de máquina fotográfica ao ombro...  Em primeiro plano, visto de perfil, 
o tenente Médico da CART 1661, à direita,


Foto (e legenda): © José António Viegas (2015). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


3. Companhia de Artilharia nº 1661 > Ficha de unidade

Identificação CArt 1661
Unidade Mob: RAC - Oeiras

Cmdt: Cap Mil Art Luís Vassalo Namorado Rosa | Alf Mil Art Fernando António de Sá | Cap Art Manuel Jorge Dias de Sousa Figueiredo
Divisa: -

Partida: Embarque em 01Fev67; desembarque em 06Fev67 | Regresso: Embarque em 19Nov68
 
Síntese da Actividade Operacional

Em 6fev67, deslocou-se para Fá Mandinga, a fim de substituir a CCaç 818 e realizar, inicialmente, um curto período de adaptação operacional, sob orientaçã do BCaç 1888 e actuar depois nas regiões de Xime, Enxalé e Xitole, até 8mar67.


Após rotação, por fracções, com a CCaç 1439, assumiu em 3abr67 a responsabilidade do subsector de Enxalé, com pelotões destacados em Missirá, Porto Gole e Bissá, mantendo-se integrada no dispositivo e manobra do BCaç 1888 e a partir de 1jul67 do BCaç 1912, por alteração dos limites dos sectores daqueles batalhões.

Em 21dez67, a sede da subunidade foi transferida para Porto Gole, com destacamentos em Enxalé e Bissá, mantendo-se no mesmo sector do BCaç 1912, onde a par de várias operações e acções efectuadas nas regiões de Mato Cão, Mantém, Malafo e Colicunda, orientou a sua actividade para a construção e desenvolvimento dos reordenamentos de Enxalé e Bissá, este a partir de mar68.

Em 7nov68, foi rendida no subsector de Porto Gole pela CArt 2411, tendo recolhido seguidamente a Bissau, a fim de aguardar o embarque de regresso.

Observações - Tem História da Unidade (Caixa n.º 81 - 2.ª Div/4ª Sec, do AHM).
Fonte: Excertos de Portugal. Estado-Maior do Exército. Comissão para o Estudo das Campanhas de África, 1961-1974 [CECA] - Resenha Histórico-Militar das Campanhas de África (1961-1974). 7.º volume: Fichas das Unidades. Tomo II: Guiné. Lisboa: 2002,
pág. 450



Infogravura: © Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné  (2009)





O autor, Abel Rei (ex-1º cabo at art, CART 1661, 1967/68, em Porto Gole, aqui na foto à esquerda  escrevendo o seu diário) nos possa dar uma ajuda, identificando o tenente médico da companhia... À direita,   a capa do seu livro,"Entre o Paraíso e o Inferno: De Fá a Bissá: Memórias da Guiné, 196/1968". [Prefácio do Ten Gen Júlio Faria de Oliveira. Edição de autor. 2002. 171 pp. Execução gráfica: Tipografia Lousanense, Lousã. 2002].


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