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domingo, 16 de fevereiro de 2025

Guiné 61/74 - P26501: Manuscrito(s) (Luís Graça) (265): Que o Nhinte-Camatchol, o Grande Irã, te proteja, Guiné-Bissau!




Lisboa > Museu Nacional de Etnologia > Peça de santuário e toucado de dança, "A-Tshol". Baga Nalu, Guiné-Bissau. MNE, AO.335. (Patente na Exposição "Desconstruir o Colonialismo, Descolonizar o Imaginário. O Colonialismo Português em África: Mitos e Realidades" )(*)


Que o Nhinte-Camatchol te proteja,Guiné, Tabanca Grande

por Luís Graça


Quem disse que a Guiné-Bissau não tem futuro ?
Não fui eu, que pouco valho,
não foi o dari,
que não tem seguro de acidentes de trabalho.
Nem de saúde.

Quem disse que o futuro não passa por aqui, amiúde ?
Não, não foi o macaco fantango,
que trabalha sem rede,
e não tem protecção no desemprego.
Nem o desgraçado do macaco-cão
que vai à mesa do rico e do pobre
como se fora leitão da Bairrada.
Nem o mandinga, bom negro,
tocador de cora,
que se foi embora,
em busca de outro chão,
livre do som da Kalash.

Quem disse que Deus, Alá e os bons irãs
não montaram morança nesta terra ?
Não foi o muntu,
não foi o tucurtacar pangolim,
não foi a rapaziada do Bairro do Quelélé,
não foi o fula nem o nalu,
não foram as aves do Cantanhez,
não foram os homens grandes do Gabu.
não foi o tuga, nem foste tu nem fui eu.

Ah!, como está ainda bem longe, Cabral, o ideal
 por que lutaste e morreste, uma vez,
tantas vezes,
tu e tantos outros combatentes da liberdade da pátria.
Nada que tu não saibas,
lá no Olimpo dos deuses e dos heróis,
ou não soubesses já, cá na terra dos homens,
que a História é fértil em exemplos de efeitos perversos,
de revoluções que devoram os seus filhos...

Tudo isto, para te dizer
que eu ouvi os jovens do teu país cantar o teu hino,
no antigo acampamento, a "barraca" Osvaldo Vieira,
nas matas do Cantanhez,
com o mesmo fervor do que quaisquer outros jovens
noutras partes do mundo,
em Portugal, em Cuba, na China,
na América, no Brasil ou em Angola ...
Pelo menos os teus sabiam a letra,
a tua letra, e até a música que foi composta pelo Sr. Xiao He,
um obscuro chinês, do tempo do maoísmo.

Quem disse, afinal, que a Guiné não tem futuro ?
Se não o foi macaco fidalgo,
foram os teus inimigos,
os de fora e os de dentro,
os teus filhos bastardos
e os filhos bastardos de outras nações.
Os que dizem mal de ti,
que te querem comprar
a preço de saldo,
e que te arrastam pela lama do tarrafo.
E que dizem que és um narco-Estado,
e que vives da caridade internacional.
e que já não tens fé, nem caridade, nem esperança,
nem voz, nem lágrimas para chorar.
Que já não tens alma nem salvação nem pudor.
E que Cabral morreu e está enterrado,
na antiga fortaleza colonial da Amura.

Os teus jovens,
os teus músicos,
o Furkuntunda,
o Anastácio di Djens,
grande senhor,
os teus poetas,
os teus artistas,
os teus artesãos,
as tuas televisões comunitárias,
as tuas rádios locais,
o teu novo Lamparam,
o teu Bombolom digital,
e até os centros de saúde no mato,
são a prova da tua grande vitalidade,
engenho, imaginação, talento,
alegria, nobreza,
criatividade, espontaneidade,
afabilidade, hospitalidade,
vontade de vencer o círculo vicioso da pobreza.
Do teu povo, Guiné,
de Norte a sul,
dos Bijagós às Colinas do Boé,
de Iemberém ao Quelélé.

Eu acredito em ti, país-irmão.
Eu quero acreditar em ti, Guiné,
eu quero remar contra a maré do cinismo
inimigo tão mortal
como o mosquito do paludismo.

Eu acredito nas tuas mulheres,
empreendedoras e corajosas,
que montam fabriquetas de descasque de arroz,
ou que, em casa, fazem o seu óleo de palma
e o seu chabéu, e o seu sabão.
E ainda têm tempo para ir à pesca e ao mercado
e para cuidar dos teus meninos.

Eu acredito, no talento dos teus jovens, criativos,
como o Grupo de Teatro Os Fidalgos.
Eu acredito ainda na força telúrica
e na generosidade dos homens (e mulheres)
que lutaram, por ti,
no Como,
em Cassaca,
em Cadique,
em Madina do Boé,
no Morés,
em Gandembel,
em Guileje,
em Guidaje,
no Fiofioli,
na Ponta do Inglês,
no Choquemone,
em Sinchã Jobel.
Com as armas na mão
e com as ideias e os valores na cabeça.
Para que tu fosses livre e independente,
e fosses justa e fraterna.

Enfim, uma Tabanca Grande,
grande como a bolanha de Bambadinca,
outrora verde e prenhe de arroz,
e aonde iam apascentar os búfalos.
Uma Tabanca Grande
onde cabe o Muntu e o Nalu,
os homens grandes e as mulheres grandes
e as meninas que um dia não precisarão da faca da fanateca.
Onde cabem os teus frondosos poilões
e as vaidosas cabaceiras.
Para que os teus filhos, Guiné,
tenham a merecida paz,
todos os dias do ano,
a liberdade, a justiça,
o milho, o arroz e a mandioca,
o mafé e o chabéu
com que se mata a fome e se sonha e se dança.
Enfim, a dignidade
a que os teus filhos têm direito
no seio da Mãe África
e do resto do mundo globalizado.

Ah!, a paz, a tão frágil paz
que leva tanto tempo a consolidar,
e o tão suspirado progresso que não chega,
ou que é tão lento, desesperadamente lento,
ou só chega para uma meia dúzia de privilegiados,
a nomenclatura do poder e do dinheiro...

Mas para isso, terás que fazer a ponte com o passado.
Mas para isso não poderás ignorar
nem escamotear os marcos
(de sinal mais e de sinal menos)
do passado,
bem como as raízes das lianas
e dos poilões da tua guineidade.

Como te imploram os teus filhos,
não queiras chorar mais, Guiné!
N ka misti tchora mas!
Faz das tuas lágrimas
a força do macaréu da tua revolta e do teu ânimo
que te ajudarão a abrir a Picada do Futuro,
a construir o Novo Corredor do Povo,
a Nova Estrada da Liberdade.
Que eu só desejo que seja
tão grande, larga e fecunda
como os teus rios míticos,
do Cacheu ao Cumbijã, do Geba ao Cacine.
Ou tão límpidos e belos e selvagens como o Corubal.

E que o Nhinte-Camatchol,
o grande irã, te proteja,
Guiné, Tabanca Grande.


Simpósio Internacional de Guileje
Iemberém, 1-2 de março de 2008 | Bissau, 2-7 de março de 2008
Lisboa, 30 de março e 2008 | Revisto, 16 de fevereiro de 2025

Luís Graça








Guiné-Bissau > Região de Tombali > Iemberém> Simpósio Internacional de Guileje > 1 de Março de 2008 > Grafito com o desenho nalú do irã protetor da tabanca, o Nhinte-Camatchol, e que fez parte do logótipo do Simpósio, organizado pela AD -Acção para o Desenvolvimento, o INEP - Instituto Nacional de Estudos e Pesqusias, e UCB - Universidade Colinas do Boé. Foi impresso nas t-shirts e pintadfo numa parede das instalações da AD em Iemberém.

 O Pepito escolheu, e não foi por acaso, a escultura nalu do Nhinte-Camatchol como "mascote" do Simpósio Internacional de Guiledje (2008). Na altura escrevi este longo poema em que pedia a proteção do grande irã para os nossos amigos e irmãos da Guine-Bissau. Aqui vai, em versão revista (**).
 
O Pepito morreria quatro anos depois. O Nhinte-Camatchol  (no nosso Museu Nacional de Wtnologia chamam-lhe  o A-Tsgol...) não protegeu o Pepito, que sacrificou muito da sua saúde, segurança e "qualidade de vida" (suas e da sua família) pelo seu povo. 

Esperemos que Deus, Alá e os Grandes Irãs protejam aquela terra que continuamos a amar, e os nossos amigos que lá vivem. Eles merecem. E que o exemplo do Pepito continue a ser inspirador, para eles e para nós. Foi pelo Pepito (1949-2012) que voltei à Guiné, m 2008, vencendo traumas da guerra.

O Nhinhe Camatchol é uma escultura dos nalus do Cantanhez usada na festa do fanado. Representa uma cabeça de pássaro com rosto humano, sendo a mensagem aos participantes deste ritual de iniciação à vida adulta a seguinte: que todos eles passam a considerar-se como verdadeiros irmãos, mais verdadeiros que os próprios irmãos biológicos. O que deve ser entendido como a afirmação do interessse coletivo, comunitário, acima do interesse dos indivíduos e das famílias. Orginalmente esta máscara não poderia ser vista pelos não iniciados, sob pena de morte (Campredon, Pierre – Cantanhez, forêts sacrées de Guinée-Bissau. Bissau,Tiguena. 1997, pp. 32-33).

Fotos (e legenda): © Luís Graça (2025). Todos os direitos reservados.[Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guine]
______________

Notas do editor:

/*) Vd. poste de 15 de fevereiro de 2025 > Guiné 61/74 - P26499: Os 50 Anos do 25 de Abril (35): Lisboa, Belém, Museu de Etnologia, até 2/11/2025: Exposição "Desconstruir o Colonialismo, Descolonizar o Imaginário. O Colonialismo Português em África: Mitos e Realidades" - Parte II


(**) Último poste da série > 30 de dezembro de 2024 > Guiné 61/74 - P26326: Manuscrito(s) (Luías Graça) (264 ): Volta sempre, Irmão Sol

7 comentários:

Tabanca Grande Luís Graça disse...

Será que A-Tshol e Nhinte-Camatchol são a mesma entidade, entre os nalus ?

António J. P. Costa disse...

No meu tempo havia uma escultura destas no Museu de Bissau. Na terra dos nalus nunca encontrei nenhum, mas tenho um muito mais simples construído pelo artesão Mussé. Já enviei uma foto ao blog juntamente com as outras peças de artesanato que tenho.

Anónimo disse...

Os nalus agora são muçulmanos...

Tabanca Grande Luís Graça disse...

Não esquecer que os nalus agora são muçulmanos ...

Tabanca Grande Luís Graça disse...

O figurativismo é proibido pelo Islão...

Tabanca Grande Luís Graça disse...

Sim, Tô Zé, amanhã faço um link para esse teu poste...

Tabanca Grande Luís Graça disse...

Tó Zé, aqui tens as tuas esculturas....

31 de julho de 2012 > Guiné 63/74 - P10213: Passatempos de verão: Hoje quem faz de editor é o nosso leitor (3): A arte nalu... em vias de extinção (António J. Perereira da Costa)