sábado, 16 de janeiro de 2021

Guiné 61/74 - P21774: História da 3ª Companhia de Comandos (1966/68) (João Borges, 1943-2005) - Parte IX: atividade operacional: maio de 1967: destaque para a Op Xerês



Guiné > Região de Cacheu > Carta da Província da Guiné (1961) > Escala 1/500 mil > Posição relativa de Ponta Matar e Ponta S. Vicente, na margem esquerda do Rio Cacheu, a norte de Bula, 


Infografia: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (2021)



Brasão da 3ª Companhia de Comandos (1966/68)





1. Começámos a publicar, em 17/11/2020, uma versão da História da 3ª Companhia de Comandos (Lamego e Guiné, 1966/68), a primeira, de origem metropolitana, a operar no CTIG. (Hão de seguir-se lhe, até 1974, mais as seguintes: 5ª, 16ª, 26ª, 27ª, 35ª, 38ª e 4041ª CCmds.)

O documento mimeografado, de 42 pp., que nos chegou às mãos, é da autoria de João Borges, ex-fur mil comando, já falecido (em 2005). Trata-se de um exemplar oferecido ao seu amigo José Lino Oliveira, com a seguinte dedicatória: 

"Quanto mais falamos na guerra, mais desejamos a paz. Do amigo João Borges". 


Uma cópia foi entregue ao nosso blogue para publicação. (*)

[O José Lino [Padrão de] Oliveira foi fur mil amanuense, CCS/BCAÇ 4612/74, Mansoa, Cumeré e Brá, 12-7-1974 / 15-10-1974, a mesma unidade a que pertenceu o nosso coeditor Eduardo Magalhães Ribeiro; é membro da nossa Tabanca Grande desde 31/12/2012; tem dezena e meia de referências no nosso blogue; vive em Paramos, Espinho]



História da 3ª Companhia de Comandos 
(1966/68) (*)


3ª CCmds
(Guiné, 1966/68) / João Borges
Parte IX (pp. 22-24)







(Continua)
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Nota do editor:

Guiné 61/74 - P21773: Os nossos seres, saberes e lazeres (433): Andar a um certo vapor na Linha do Oeste (2): Conservas de peixe, um naufrágio com grande riqueza, uma fortaleza-prisão: Peniche (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 7 de Setembro de 2020:

Queridos amigos,
Desta feita, dei por bem registar dois períodos de férias aos ziguezagues, umas vezes estou na Serra da Estrela, outras em Óbidos ou Peniche, posso passar para o Vale Glaciar da Serra da Estrela e descer a Pedrógão Pequeno ou percorrer as Caldas da Rainha e entrar no Museu José Malhoa, não ofende ninguém, o que está em causa é o escrutínio de imagens apropriadas. Andava eu às voltas com memórias de Peniche e já tinha uma correnteza de outras imagens associadas a fábricas de burel, uma matéria-prima de que nos devemos orgulhar e que Manteigas capricha, preferi Peniche, só por razões sentimentais, memórias com 60 anos de padrinhos que foram tão influentes na minha vida, e até a recordação daquela conferência dentro da Fortaleza de Peniche em que veio à baila um dos mais importantes naufrágios de navio espanhol, se não se tivesse recuperado a carga teria sido um cataclismo económico para o nosso vizinho da Península, felizmente que quase tudo se recuperou, mas ainda ficou o suficiente para deslumbramento de quem anda na arqueologia subaquática.

Um abraço do
Mário


Andar a um certo vapor na Linha do Oeste (2):
Conservas de peixe, um naufrágio com grande riqueza, uma fortaleza-prisão: Peniche


Naquela semana de férias em Óbidos, lancei a proposta de passarmos um dia em Peniche, terra de memórias da juventude e mais recentes, não há muito tempo ali tinha arribado para voltar às Berlengas. O meu padrinho de batismo chamava-se Filipe da Nazaré Fernandes, era o filho mais velho de Agostinho Fernandes, um rico conserveiro, proprietário da Portugália Editora e seguramente o maior colecionador de Arte da primeira metade do século XX. Estando a passar férias em casa dos meus padrinhos na Foz do Arelho, não era incomum ele sugerir idas a Peniche, por assuntos da fábrica. No caminho, abastecia-se de vinho rosé, tanto quanto me recordo num fornecedor das Gaeiras. Enquanto ele tratava de assuntos da fábrica eu passeava pelo Bairro dos Pescadores e metia conversa com quem, na soleira da porta, fazia de bordadeira, os bordados de Peniche são requintadíssimos, felizmente hoje são credores de museu penicheiro. Outra recordação que guardo, muito mais recente, foi quando um amigo penicheiro me levou a uma conferência do arqueólogo Jean-Yves Blot na Fortaleza de Peniche sobre os achados arqueológicos então recentes do naufrágio do navio San Pedro de Alcantara, que saiu de Callao, Perú, em 1784, um navio de 64 canhões, que naufragou na Península da Papoa, Peniche em 2 de fevereiro de 1786, trazia um carregamento fundamental para a economia espanhola: 156 toneladas de metais preciosos com um valor de 7,6 milhões de pesos. Durante meses procedeu-se à recuperação desse tesouro, ficaram vestígios que Jean-Yves Blot e outros recuperaram graças à arqueologia subaquática. Perderam-se muitas vidas, 128, conseguiu sobreviver Fernando Tupac-Amaru, filho mais novo do chefe rebelde índio executado em Cuzco, em 1781. Uma belíssima comunicação, mostrando achados, pinturas, estudo de ossadas no cemitério onde foram sepultadas as vítimas.

Fábrica do Algarve Exportador em Peniche

Pintura alusiva ao naufrágio do navio San Pedro de Alcantara, perto de Peniche

Monumento evocativo às vítimas do naufrágio

Vista aérea da fortaleza que foi prisão do Estado Novo

Uma das singularidades destas habitações penicheiras assentes no alcantilado é a cor, o magnífico contraste entre as águas em cachão a ribombar sobre a rocha, a vegetação rala e o casario colorido


Fizemos as honras da casa, um bom passeio pedestre pela Peniche antiga, sem descurar a área portuária. Chegou a hora de amesendar, a neta reclamou arroz com marisco, a restante comitiva atirou-se a carapaus, sardinhas e chocos. Satisfeita a gula, marcha-se para esse maciço de pedra que o Conde da Atouguia implorou a D. João III, para intimidar a pirataria e o corso até então impune. Foi satisfeita a vontade, vê-se rapidamente que andou ali projeto importado, a localização é magnífica, respira-se poderio e segurança, é preciso entrar e ver que aquela fortaleza que servia de intimidação ao corso foi uma terrível prisão que funcionou até ao 25 de Abril. As panorâmicas são deslumbrantes, quando nos viramos para a massa líquida. Olhando lá de cima, vê-se então a prisão que começou a funcionar na Ditadura Militar, deu-se depois honra a oposicionistas de vários matizes, consagrando-lhe uma prisão que hoje é visitável. Ali viveram vários dirigentes comunistas, seus militantes, outros opositores ao regime. Houve fugas audaciosas, como aquela em que se escapuliu Álvaro Cunhal e mais outros. Passeia-se à volta deste maciço e então recorda-se a viagem de barco para as Berlengas que permite entender a extensão de toda esta nave de pedra, passear à volta de Peniche pode deslumbrar com todos estes pélagos, fragas alcantiladas, o permanente rumorejar das águas sobre os rochedos. Havia obras de conservação, certos espaços estavam interditos, deu para visitar o parlatório, ali os presos recebiam os familiares.
A neta de nove anos impacienta-se, quer ver praia, no mínimo molhar os pés no Baleal. E partimos, há o cheiro da maresia, muda-se de direção, a imponente fortaleza de Peniche fica para trás, há que voltar, e tentar descobrir por onde andam os achados arqueológicos de San Pedro de Alcantara, uns ficaram no Museu Nacional de Arqueologia mas eu quero mostrar à neta as piastras negras de Peniche, são as moedas de prata escapadas ao naufrágio que sofreram uma corrosão em presença da água do mar que dá a este betão um aspeto enegrecido. Está prometido, neta, voltamos, desde que depois vamos até ao banho de mar...

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Nota do editor

Último poste da série de 9 de janeiro de 2021 > Guiné 61/74 - P21750: Os nossos seres, saberes e lazeres (432): Andar a um certo vapor na Linha do Oeste (1): Hoje em Óbidos (Mário Beja Santos)

Guiné 61/74 - P21772: (D)o outro lado do combate (64): o caso da jangada do Ché-Che em maio de 1965... (Jorge Araújo)


Foto 1: - Região do Boé > Rio Corubal > A jangada do Ché-Che. Foto publicada no cmjornal de 23 de Junho de 2013, em entrevista dada por António Manuel Baptista, furriel vagomestre da CCAV 702 / BCAV 705 (1964/1966), com a devida vénia. [Link: https://www.cmjornal.pt/mais-cm/domingo/detalhe/morreu-a-17-dias-de-voltar-a-casa].

 


Foto 2: - Região do Boé > Rio Corubal > 30 de Junho de 2018 > A jangada do Ché-Che, puxada à corda. Foto retirada do vídeo de Patrício Ribeiro (Ímpar Lda, Bissau), publicado no P18862, disponível em You Tube / Luís Graça, com a devida vénia.



Imagem de satélite da região do Boé (Centro – Sul), com infografia do triângulo Madina do Boé/Béli/Ché-Che, sinalizando-se o local da jangada que ligava as duas margens do rio Corubal.





O nosso coeditor Jorge [Alves] Araújo, ex-Fur Mil Op Esp/Ranger, CART 3494 
(Xime e Mansambo, 1972/1974), professor do ensino superior,  ainda no ativo; 
tem cerca de 280 referências no nosso blogue.

 


GUINÉ: (D)O OUTRO LADO DO COMBATE

AMÍLCAR CABRAL E O BOÉ:

A IMPORTÂNCIA ESTRATÉGICA DA REGIÃO

- O CASO DA JANGADA DO CHÉ-CHE DESTRUÍDA [?] EM 11MAI1965 -     

► ADENDA AO P21712 (30.12.20)

1.   - INTRODUÇÃO


Com a elaboração da presente adenda ao P21712 publicado no penúltimo dia do ano findo (*), pretende-se dar conta, no fórum, do que foi possível esclarecer quanto às dúvidas suscitadas na "análise de conteúdo" sobre a carta "mensagem" de Amílcar Cabral (1924-1973), datada de 01 de Julho de 1965, 5.ª feira, dirigida aos seus camaradas operacionais, combatentes do exército popular, instalados na região do Boé, onde faz constar o valor e importância estratégica que ele atribuía a esta região no desenvolvimento da luta armada.


Nessa "mensagem", o Secretário-Geral valoriza, sobremaneira, o desempenho tido pelos elementos comandados pelo cmdt Umaro Djaló (1940-2014) pelo facto de, entre outras acções, terem destruído (?) a «jangada do Ché-Che», em 11 de Maio de 1965, 3.ª feira, de modo a impedir, às NT, a travessia entre as margens do rio Corubal.


Ainda que não tivéssemos tido a "sorte" ou o "saber" de encontrar testemunhos escritos na literatura oficial, que pudessem validar mais uma (esta) ocorrência concreta, e histórica, da "guerra" no CTIG, sempre acreditámos que seria possível obter informações complementares produzidas por alguém que nela tivesse estado envolvido (informante privilegiado) ou que dela tivesse tido conhecimento.


E o objectivo de partida foi conseguido! Graças à pronta resposta ao nosso apelo, colocada pelo camarada Manuel Luís Lomba, da CCAV 703, na caixa de comentários ao poste supra, a quem agradecemos, permitiu-nos entender melhor o quadro factual, do objecto de estudo, por efeito da triangulação de conteúdos.


Como justificação metodológica, recuperámos alguns acontecimentos já narrados anteriormente, de modo a contextualizar o tema, quer do ponto de vista cronológico, quer no que concerne ao valor semântico de algumas expressões utilizadas.


2.   - MENSAGEM DE AMÍLCAR CABRAL

- Dirigida aos combatentes das FARP do Boé em 01Jul1965


Todos sabem que a região do Boé é muito importante para a nossa luta na nova fase em que nos encontramos, (…) se conseguirmos tirar dali todas as forças inimigas, criamos uma situação difícil para as tropas portuguesas que estão em Bafatá e no Gabu.


O Partido tem feito grandes esforços para libertar totalmente o Boé, onde tem operado uma subsecção e dois bigrupos bem armados. Sabemos que as nossas forças têm tido dificuldades por falta de consciência política da população e por falta de alimentação em alguns momentos numa região onde há pouca comida. Vocês têm feito algumas acções boas e conseguiram destruir [?] a «jangada do Ché-Che» [em 11 de Maio de 1965, 3.ª feira, conforme comunicado manuscrito por Umaro Djaló, cmdt da subsecção "Rui Djassi"] e atacar Madina do Boé com sucesso. (…) Durante as chuvas, não faltará água. Por outro lado, o nosso Partido vai continuar a pôr à disposição dos combatentes do Boé todo o alimento necessário para um período de 2 meses. Não faltará armas nem faltará munições.


Sabemos que o inimigo já refez outra jangada, mas sabemos todos que ele tem pouca gente no Boé [CCAV 702]. Cremos que basta uma subsecção forte e decidida para criar ao inimigo uma situação difícil e correr com ele do Boé durante esta época das chuvas. Além disso, reduzindo o número de combatentes no Boé fica mais fácil dar comida para esses combatentes, em virtude das dificuldades de transporte durante as chuvas. (…)


O Boé tem condições muito favoráveis para a nossa luta. Desde que haja alimentação, não haverá razão nenhuma para não libertarmos (…) completamente o Boé até ao fim do mês de Julho [1965]. (…)


2.1        - Que devemos fazer para correr com os portugueses do Boé?

- Nós (PAIGC] deveremos:

(…)


■ 3. - Destruir a ponte da estrada do Boé que fica logo depois de Contabane. Minar essa estrada.


■ 5. - Destruir a jangada do Ché-Che, mesmo que para isso seja possível combater. Devemos atacar e destruir a jangada no momento em que esteja a trabalhar, quando chegar à margem do lado de Madina [do Boé].


■ 6. - Colocar armas pesadas no porto do Ché-Che para não deixar passar o inimigo.

(…)


Fonte: Citação: (1965), "Mensagem aos camaradas militantes e responsáveis, combatentes do exército popular em Boé", Fundação Mário Soares / DAC - Documentos Amílcar Cabral, Disponível HTTP: http://hdl.handle.net/11002/fms_dc_40509


3.   -   DESTRUIÇÃO [?] DA «JANGADA DO CHÉ-CHE» EM 11MAI65

- Comunicado assinado pelo cmdt Umaro Djaló em 12Mai65


Comunicamos à direcção do nosso Partido que destruímos a «jangada do Ché-Che" no dia 11 do mês corrente [Maio'65], às 4 horas da manhã. Foi totalmente [?] destruída, e o homem que guardava a jangada conseguiu fugir no momento em que os camaradas progrediam em direcção do objectivo, e não conseguiram prendê-lo. Também os camiões [?] que se encontravam na travessia foram igualmente destruídos. (…)


Fonte: Citação: (1965), "Comunicado [Frente Leste]", Fundação Mário Soares / DAC - Documentos Amílcar Cabral, Disponível HTTP: http://hdl.handle.net/11002/fms_dc_40708


4.   - REACÇÕES AO COMUNICADO DO CMDT UMARO DJALÓ


Três dias após a elaboração do comunicado assinado por Umaro Djaló, cmdt da subsecção "Rui Djassi" [nome atribuído em homenagem ao cmdt Rui Djassi "Faincam", que morreu nas matas de Gampará, em 24Abr64, durante a «Operação Alvor» (P19532)] e consequente envio aos dirigentes do PAIGC, instalados em Conacri, Aristides Pereira (1923-2011) enviou-lhe a seguinte missiva:


15 de Maio de 1965


Caro camarada Umaro [Djaló]:

Acabamos de receber a vossa comunicação relatando a liquidação [?] da jangada do CHECHE – um dos grandes objectivos da vossa missão nesta altura. Comunicamos imediatamente o facto ao camarada Secretário-Geral que se acha em viagem, pois bem sabemos a grande importância que ele dá a esse facto. Estamos muto satisfeitos com a vossa realização, e enviamos calorosas felicitações pela vossa determinação em cumprir as palavras de ordem do Partido, ao serviço da nossa luta. Estamos certos de que este primeiro êxito vos encorajará cada vez mais no cumprimento da missão sagrada do nosso povo, para correr com os colonialistas das nossas terras. Por outro lado, a nossa confiança actual se reforça com esta acção vossa, e a nossa convicção é cada vez maior de que levareis a bom termo a missão que vos cabe nesta fase da nossa luta. Mais uma vez parabéns a todos, sem nos deixarmos no entanto entusiasmar demais por este sucesso: muita vigilância. 





O Nino deve-se ter encontrado contigo e com certeza discutiram bastante no sentido da boa marcha da nossa luta nesse sector. Discutimos com ele a questão das munições que pedes, e ele deve satisfazer o teu pedido com o material que levou.


Vão os envelopes pedidos.


Saudações para todos os camaradas, e votos de saúde e cada vez mais coragem no nosso trabalho.


Para ti, abraço amigo do camarada de sempre,

Aristides Pereira.

 


Fonte: Citação:
(1965), Sem Título, Fundação Mário Soares / DAC - Documentos Amílcar Cabral, Disponível HTTP: http://hdl.handle.net/11002/fms_dc_39106

 

Ainda sobre o este assunto, e com a mesma data, Amílcar Cabral escreve a Nino Vieira (1939-2009), cmdt da Frente Sul e Leste, o seguinte:


▬ Conacri, 15 de Maio de 1965


Meu caro Nino,

Cheguei hoje a Conacri, depois de ter visto o Osvaldo [Vieira] e outros camaradas, no Senegal. Se vires o Umaro [Djaló] e os três camaradas da subsecção ["Rui Djassi"], apresenta-lhe as minhas felicitações pelo sucesso da missão à jangada do Ché-Che. Estou convencido que os nossos combatentes, o nosso povo, terá vitórias decisivas para a mudança da nossa luta, nessa área. Temos necessidade de preparar, no pouco tempo, camaradas nossos na utilização da nova arma que recebemos. Preferíamos que fossem camaradas que tenham certa experiência de armas anti-aéreas e por isso pensamos que o camarada Inácio [da Gama (?)] poderia regressar para essa preparação. Diz alguma coisa. É urgente. Envio-te o relógio pelo Inácio.


Saudações a todos os camaradas

Um abraço amigo do camarada.

Amílcar Cabral.

 


Fonte: Citação:
(1965), Sem Título, Fundação Mário Soares / DAC - Documentos Amílcar Cabral, Disponível HTTP: http://hdl.handle.net/11002/fms_dc_35318

 

5.   - CONTRIBUTOS DE MANUEL LUÍS LOMBA SOBRE A OCORRÊNCIA


Na qualidade de Fur Mil Cav da CCAV 703 / BCAV 705 (Bissau, Cufar e Buruntuma, 1964/66) o camarada Manuel Luís Lomba escreveu o seguinte:


(…) Ainda não havia tropa em Canjadude e ao segundo dia mandaram-me proteger a jangada do Ché-Che, reforçado com um canhão s/r (sem recuo) 10,7, montado num velho jipe Willis. Pela análise da situação, mandei estacionar as viaturas viradas a Nova Lamego, o jipe e o canhão apontados à jangada e passei a noite em branco sobre a caixa de carga do camião Mercedes, à cuca e à escuta: se o IN aparecesse na nossa banda (o que parecia pouco provável), os campeões da eliminação da jangada seríamos nós, a retirada no "gosse gosse" – a batalha era cometida aos navegantes carnívoros [os "alfaiates"] do Corubal, se ele o ousasse cambar a nado.


Isto terá ocorrido em 21 de Maio'65, cálculo meu (ou seja, dez dias após o ataque), a jangada encontrava-se em perfeito estado, depois de ter sido rapidamente recuperada por malta vinda de Bissau (provavelmente da Engenharia, da Marinha ou do Serviço de Material?). A sua avaria ficou a dever-se a um ataque à bazucada lançado do lado de Madina do Boé, no tempo em que a jangada tinha apenas um guarda-nocturno.


6.   - CONSIDERAÇÕES FINAIS


Para finalizar o presente texto (adenda), podemos concluir:


■ 1. - Confirma-se o ataque à «jangada do Ché-Che» em Maio de 1965, sob as ordens do cmdt Umaro Djaló, à data em nomadização na região do Boé.


■ 2. - O conceito utilizado por Umaro Djaló: "destruição", que significa: "desfazer"; "exterminar"; "aniquilar"; "extinguir"; "fazer desaparecer"; etc., não se verificou, pelo que não se aplica, ainda que no léxico da guerra seja comum.


■ 3. - O que se verificou foi que o ataque (à bazucada) provocou "avaria", causando "dano"; "prejuízo" ou "estrago" na «jangada» que rapidamente foi recuperada.


■ 4. - Amílcar Cabral, na sua "mensagem" de 01 de Julho de 1965, refere que já tinha sido refeita [recuperada] outra jangada.


■ 5. - A travessia do rio Corubal, no Ché-Che, continuou a verificar-se por parte das NT, com recurso a uma «jangada», como prova a foto 1, onde elementos da CCAV 702 acompanham vários volumes e diferentes produtos.


■ 6. - O recurso à «jangada do Ché-Che» por parte da CCAV 702 aconteceu a partir de Maio de 1965, após ter sido deslocada por fracções, entre 22 e 30 desse mês, para Madina do Boé, com um Gr Comb em Béli a partir de 25Mai65, onde substituiu Grs Combate da 3.ª CCAÇ. Em 23Mai65, assumiu a responsabilidade do subsector de Madina do Boé, então criado na zona de acção do BCAÇ 512 e depois do seu batalhão (BCAV 705). Em 04Mai66, foi rendida no seu subsector pela CCAÇ 1416, seguindo, então, pata Fá Mandinga. (CECA; p 258).


► Fontes consultadas:


Ø  (1) Instituição: Fundação Mário Soares Pasta: 07069.107.012. Título: Mensagem aos camaradas militantes e responsáveis combatentes do exército popular em Boé. Assunto: Mensagem de Amílcar Cabral, Secretário-Geral do PAIGC, aos militantes e responsáveis combatentes do Exército Popular no Boé, reafirmando a importância estratégica dessa região para a libertação de toda a área circundante (Xitole, Bambadinca, Bafatá e Gabu). Directivas e instruções militares aos combatentes para a conquista e libertação do Boé. Data: Quinta, 1 de Julho de 1965. Observações: Doc incluído no dossier intitulado Exército Popular / Zona Sul 1964-1965. Fundo: DAC - Documentos Amílcar Cabral. Tipo Documental: Documentos.


 

Ø  (2) Instituição: Fundação Mário Soares Pasta: 07069.107.027. Título: Comunicado [Frente Leste]. Assunto: Comunicado assinado pelo Comandante Rui Djassi (erro) [Umaro Djaló] sobre a acção de destruição da jangada de Cheche e a preparação de um novo ataque a Béli. Data: Quarta, 12 de Maio de 1965. Observações: Doc incluído no dossier intitulado Exército Popular / Zona Sul 1964-1965. Fundo: DAC - Documentos Amílcar Cabral. Tipo Documental: Documentos.


 

Ø  (3) Instituição: Fundação Mário Soares Pasta: 07069.107.021. Assunto: Resposta ao comunicado sobre a liquidação da jangada do Cheche. Remetente: Aristides Pereira. Destinatário: Umaro Djaló. Data: Sábado, 15 de Maio de 1965. Observações: Doc incluído no dossier intitulado Exército Popular / Zona Sul 1964-1965. Fundo: DAC - Documentos Amílcar Cabral. Tipo Documental: Correspondência.


 

Ø  (4) Instituição: Fundação Mário Soares Pasta: 04618.082.036. Assunto: Felicitações pelo sucesso da missão à jangada do Cheche. Envio do relatório pelo Inácio. Remetente: Não identificado [Amílcar Cabral]. Destinatário: Nino Vieira. Data: Sábado, 15 de Maio de 1965. Observações: Doc incluído no dossier intitulado Correspondência dactilografada (de Amílcar Cabral, Aristides Pereira e Luís Cabral. Fundo: DAC - Documentos Amílcar Cabral. Tipo Documental: Correspondência.


 

Ø  Outras: as referidas em cada caso.

 

Termino, agradecendo a atenção dispensada.

Com um forte abraço de amizade e votos de muita saúde para 2021.

Jorge Araújo.

02JAN2021

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Nota do editor:

(*) Último poste da série > 30 de dezembro de  2020 > Guiné 61/74 - P21712: (D)o outro lado do combate (63): Amílcar Cabral e o Boé: a importância estratégica da região (Jorge Araújo)

Guiné 61/74 - P21771: Tabanca da Diáspora Lusófona (14): uma singular história de vida como emigrante: João Crisóstomo, ex-mordomo de Jackie Kennedy Onassis (excerto de reportagem de Henrique Mano, Luso-Americano, dezembro de 2020)







Nova Iorque > V Avenida > Edifício 1040 > Foi aqui, num apartamento deste edifício,  que viveu e morreu Jacqueline Kennedy Onassis (1929-1994), de quem o nosso camarada João Crisóstomo foi mordomo interno, de 1975 a 1979. [ "Jackie Kennedy Onassis fazia questão de enviar cartões personalizados, a maior parte escritos à mão em papel timbrado e com a sua assinatura, com agradecimentos ou votos de boas festas a João Crisóstomo (que tratava por Francisco - um dos seus nomes próprios, para diferenciar do filho, que se chamava John.)]

Créditos fotográficos: Henrique Mano (2020) (reproduzidos aqui com a devida vénia...)


EX-MORDOMO PORTUGUÊS DE JACKIE KENNEDY ONASSIS RECORDA OS NATAIS VIVIDOS AO SERVIÇO DA EX-PRIMEIRA-DAMA

“Foi um trabalho gratificante e até excepcional”, considera João Crisóstomo, natural de Torres Vedras

Por HENRIQUE MANO
Jornal LUSO-AMERICANO
Nova Iorque
www.lusoamericano.com


“Que tenha o Natal mais feliz com a sua maravilhosa família, querido Francisco. Obrigado por tudo o que fez para tornar o nosso Natal tão feliz. Carinhosamente, Jacqueline Kennedy Onassis”.

Era com mensagens destas que a ex-primeira-dama dos Estados Unidos, uma das mulheres mais famosas (e fotografadas) do mundo, casada também com um dos maiores magnatas do planeta, agradecia o trabalho efectuado pelo seu mordomo português em Nova Iorque, João Crisóstomo (que tratava pelo segundo nome próprio para diferenciar do filho John). 

O imigrante de Torres Vedras guarda com natural afecto dezenas destes cartões, que Jackie Kennedy escrevia à mão, dando sempre um toque personalizado aos mesmos.

“A minha profissão de mordomo da senhora Onassis, se, por um lado, era um trabalho gratificante e até excepcional, porque era de regime interno, de horário a tempo inteiro, tinha a desvantagem de não me possibilitar muito tempo livre para os meus filhos”, conta Crisóstomo, em entrevista ao jornal Luso-Americano.

 “Eu sentia-o e sabia que eles sentiam a minha falta também. E por isso, ao fim três anos e picos, resolvi procurar outro trabalho com menos exigências em questão de tempo. A senhora Onassis compreendeu a minha situação e, no momento em que lhe falei, perguntou-me se ela podia continuar a contar comigo para a ajudar em ocasiões especiais e se eu podia encontrar alguém, preferivelmente português, para me substituir”.

"ELA ERA UMA UMA PRIMEIRA-DAMA NA VERDADEIRA ACEPÇÃO DA PALAVRA"  (
João Crisóstomo, ex-mordomo de Jackie Kennedy Onassis)

Crisóstomo segue a sua vida e deixa no seu lugar Efigénio Pinheiro, imigrante de Alenquer (depois da morte de Jackie Kennedy, Pinheiro passaria a trabalhar para John Kennedy Jr., até à morte deste).

“Da mesma maneira que eu costumava pedir a ajuda de outros mordomos para me assistirem quando a situação o exigia, eu comecei a prestar a minha ajuda sempre que o Efigénio o pedia e me era possível fazê-lo”, prossegue.

Onassis chegou a confiar a Crisóstomo as chaves de acesso ao seu apartamento, no 1040 da Quinta Avenida, “poupando-me assim o ter de ir para casa a altas horas da noite. Dias, semanas, meses por vezes, eu fiquei encarregado do apartamento quando a senhora Onassis se ausentava, especialmente durante o verão, possibilitando-lhe assim levar com ela os membros do pessoal de serviço permanente da sua casa”.

A sua presença era requerida em recepções, festas de aniversário, dias festivos “ou mesmo ocasiões simples de carácter pessoal, em que ela queria mostrar o especial cuidado ou importância que esse momento representava. 

"De todos estes momentos”, diz, “os relacionados com o Natal ficaram-me especialmente gravados. Embora por vezes houvessem alguns convidados, especialmente primos e até algum amigo mais íntimo dos filhos, os Natais eram quase sempre apenas para ela, Caroline, John e o seu companheiro, Maurice Tempelsman. A sala-de-estar e a de jantar transformavam-se nesta altura em algo de extraordinário pela sua beleza, em que o bom gosto e a simplicidade primavam. E, numa demonstração de consideração e até de carinho por aqueles que faziam parte do pessoal de serviço de sua casa, fazia questão que os presentes para estes fizessem parte do conjunto na base da sua árvore de Natal e fossem distribuídos pessoalmente no mesmo momento que todos os outros”.

"A MINHA PROFISSÃO DE MORDOMO DA SENHORA ONASSIS FOI UM TRABALHO GRATIFICANTE E ATÉ EXCEPCIONAL" (João Crisóstomo, ex-mordomo de Jackie Kennedy Onassis)

Acrescenta o ex-mordomo: 

“Como se isto não fosse já algo de invulgar, eu receberia sempre pelo correio, passados alguns dias, um cartão ou mesmo uma carta, sempre escritos à mão , agradecendo-me o ter sido parte do seu Natal. O mesmo sucedia em outras ocasiões, especialmente no dia dos seus anos, que eu nunca esquecia. Era facto que lhe não passava despercebido e sempre manifestava de forma simples mas bem evidente o seu muito apreço. E isso para mim era mesmo muito gratificante”.

João Crisóstomo esteve como interno em casa de Onassis de 1975 a 79. 

“Ela era uma primeira-dama na verdadeira acepção do termo”, afirma. “Uma mulher extraordinária, inteligente e diplomática, que tratava toda a gente da mesma maneira”.


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Nota do editor:

Último poste da série > 15 de janeiro de 2021 > Guiné 61/74 - P21770: Tabanca da Diáspora Lusófona (13): O meu muito obrigado, com muitas saudades e esperança de melhores dias para todos (João Crisóstomo, Nova Iorque)

sexta-feira, 15 de janeiro de 2021

Guiné 61/74 - P21770: Tabanca da Diáspora Lusófona (13): O meu muito obrigado, com muitas saudades e esperança de melhores dias para todos (João Crisóstomo, Nova Iorque)






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Fotos (e legenda)n: © João Crisóstomo (2021) Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]





João e Vilma (2014)
1. Mensagem do nosso amigo luso-americano João Crisóstomo, e nosso camarada da diáspora (EUA, Nova Iorque), ex-alf mil, CCAÇ 1439 (Enxalé, Porto Gole e Missirá, 1965/67), casado com a eslovena Vilma, e destacado ativista social, que liderou campanhas bem sucedidas como a defesa das gravuras rupestres de Foz Coa, a reabilitação da memória de Aristides Sousa Mendes ou o apoio à autodeterminação de Timor Leste.

Data - sábado, 9/01, 21:48
Assunto - O meu "muito obrigado"!



Caro Luís Graça,

Não preciso de te dizer que apesar de contínua luta, estes últimos tempos não têm sido fáceis para mim. 

 No meio desta pandemia e do ambiente caótico em que todos vivemos, além da perca das minhas queridas manas,  houve outras perdas que também me abalaram. 

Uma destas foi o Francisco Ferreira da Silva, da Ponte do Rol, Torres Vedras.  Não sei se o conhecias e te lembras dele; eu falei-te dele e do António Vieira Abreu, ( P. 20258) (*) Ele foi mesmo a uma reunião da CCaç 1439, mas creio que não estiveste nesse encontro. 

Cheguei a convidá-lo para se sentar na nossa Tabanca, mas ele não respondeu e eu achei melhor não insistir. Ele foi meu colega em Montariol e Leiria e mais tarde esteve na Guiné e Angola. 

Depois foi piloto da TAP. Eu apenas o conhecia pelo nome de Antunes, seu nome no Seminário; mas depois de ter saido ninguém o conhecia como tal; reencontrei-o depois de muitos anos e recomeçamos a nossa amizade. Já há tempos que não sabia dele e agora em resposta a um E mail que lhe enviei recentemente a esposa Carmen respondeu, que o Francisco Antunes Ferreira da Silva faleceu em 29 de Agosto passado dum ataque cardíaco fulminante. Puxa vida, que "quando chove logo troveja”… Que reste na Paz do Senhor.


Gostaria de agradecer e dizer o meu sentido muito obrigado a todos os que de alguma maneira estiveram comigo neste difícil momento. Aqueles que por telefone e E mail me contactaram não deixarei de reciprocar da mesma maneira. 

No caso dos nossos amigos "camaradas da Guiné”: Não quero estar a fazer algo que não esteja dentro das normas que regem este blogue, mas como não achaste impertinente dar a conhecer neste teu/nosso blogue a passagem das minhas manas Maria Augusta e Emília, ambas falecidas em Leiria no mesmo dia 30 de Dezembro passado, creio que não acharás abuso da minha parte usar este meio para manifestar a minha gratidão e apreço pelas mensagens de apoio e solidariedade recebidas. A todos o meu grande abraço de amizade e gratidão.

Disse-te há tempos que muito me tem ajudado e valido o meu “intercâmbio" com os pássaros, esquilos e outros “irmãos nossos” no dizer do Francisco de Assis. E sugeriste que te enviasse uma foto do telhado do alpendre sobre o qual, na falta de espaço mais apropriado eu lhes providenciei um pequeno “‘bosque”, agora melhorado com meia dúzia de árvores de Natal que eu e a Vilma andamos de porta em porta a recolher , antes de serem levadas pelo carros da limpeza das ruas. 

 Aqui estão. Em boa hora o fiz pois quase sem podermos sair de casa, devido às condições impostas pelo covid 19, estes nossos pequenos irmãos regalam-nos todos os dias , sobretudo nas horas de rancho com um show , para nós mais gratificante do que muitos shows que temos visto em Carnegie Hall e Lincoln Center em Nova Iorque.

Com saudades e esperança de melhores dias para todos nós, (**)

João Crisóstomo, Nova Iorque




2. Nova mensagem, com data  de 10 de janeiro de 2021, 15h23

Caro Luís Graça,

A Vilma, ao ver o E mail que te enviei,  ficou desapontada com as fotos … e sugeriu que te enviasse pelo menos esta foto que ela tirou com o I phone dela e que realmente mostra muito melhor o teto do alpendre com o "bosque frankestein” que eu fiz para a bicharada, e mostra ainda parte do nosso patiosito atrás da nossa casa. 

 Francamente eu não creio que os nossos colegas camaradas estejam muito interessados nisto. Só enviei a foto porque tu me sugeriste que o fizesse. E para nós pessoalmente isto é realmente algo de muito valor e estima pessoal pelo que representara nós pois muito nos ajuda a esquecer, a pensar menos e aguentar estes tempos difíceis que estamos a passar. Mas isso isso não quer dizer que tenha o mesmo valor para outros. Mas ela insistiu que te enviasse esta foto para substituir a que te enviei e não quero que ela pense que não ligo às suas sugestões. Aqui está portanto, para tua consideração, para o caso de achares que vale a pena mudar a foto.

Um grande abraço, João e Vilma

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Guiné 61/74 - P21769: Esboços para um romance - II (Mário Beja Santos): Rua do Eclipse (35): A funda que arremessa para o fundo da memória

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 31 de Dezembro de 2020:

Queridos amigos,
Compete a Paulo informar regularmente a Annette do teor dos acontecimentos que ela vai organizar, praticamente não falaram da Guiné nas férias em Lier, Groningen e Bruxelas. Agora procede a uma resenha que se estende até outubro. Ainda teve a ideia de falar dos acontecimentos de novembro, são demasiado dolorosos, correspondem à despedida do Cuor, os soldados estão fartos de viver no mato, desde 1966 que andam por Porto Gole, Enxalé e Missirá e Finete. Sonham com uma sinecura, bem enganados ficarão quando virem o que Bambadinca lhes vai oferecer em viagens permanentes e estadias nos lugares mais inóspitos e de elevado risco. E há as promessas das férias da Páscoa, as afeições entranham-se, aquele casal cinquentão goza do privilégio de uma comunicação permanente que a era digital lhes trouxe.

Um abraço do
Mário


Esboços para um romance – II (Mário Beja Santos):
Rua do Eclipse (35): A funda que arremessa para o fundo da memória

Mário Beja Santos

Adorable Annette, mon trésor, regressei felicíssimo das nossas férias, foste muito gentil a preparar o jantar para o Gilles Jacquemain, deixarei para outra carta os assuntos inquietantes que têm a ver com o futuro da política dos consumidores, estão numa encruzilhada, temo com conhecimento de causa que é uma política em desaceleração. Como combinado, faço agora uma resenha dos acontecimentos mais salientes de tudo o que nos ocorreu no Cuor entre junho e novembro. Esqueci-me de te entregar esta imagem da exposição do Ilia Repin que vimos em Groningen, impressionante perspetiva, aqueles homens a puxar desalmadamente um barco em dia sem brisa.

Tirei dos meus apontamentos um conjunto de situações. A primeira, felizmente sem consequências de maior, foi uma noite em que o furriel Casanova ficou retido em Finete, o furriel Pires seguiu para Mato de Cão, fiquei em Missirá com a lida da casa, uma data de homens severamente doentes, quando anoiteceu e me vi praticamente sozinho, fiz a mobilização total dos civis e pus a população nos abrigos. Se houvesse que reagir a uma flagelação teria sido um grande sarilho. Nesse mês de junho toda a região de Bambadinca vive a continuidade das hostilidades do que foi o ataque de 28 de maio, os grupos do PAIGC, e nós ouvimos a tormenta desse fogo em Missirá, atacam tabancas em autodefesa, flagelam quem anda a desmatar entre o Xime e Amedalai, atacam Mansambo. Sinto que o comandante e os majores em Bambadinca estão por um fio e na realidade em breve serão afastados. O essencial das obras chegou ao fim mesmo com escassez de meios, lanço-me em patrulhamentos, há derramamento de sangue, a vida não está fácil para quem se vem abastecer na outra margem do Geba. Os acontecimentos precipitam-se, em 14 de junho, exatamente quando estamos a regressar de uma coluna de reabastecimento, começa um ataque noturno com imenso potencial, não durará mais de 30 minutos, deixarão mortos, munições e armas destruídas. Reagirão semanas depois, devem-no ter feito para levantar o ânimo das suas hostes, são pequenas flagelações, umas morteiradas e uns tiros à distância. Os abastecimentos são cada vez mais difíceis, atravessamos o Geba e entramos na bolanha com chuva torrencial, as duas viaturas estão avariadas, é tudo transportado à cabeça, os feridos de padiola. Virei muitos anos depois a descobrir que foi o período em que escrevi desalmadamente.

Alguém me mostrará, anos depois, um aerograma onde escrevi: “Habituei-me a gostar do mundo que me rodeia, dos cajueiros em flor, do porte gigantesco dos bissilões, das árvores de pau-de-sangue e pau-preto. Habituei-me a achar natural as couves, as beringelas, o tomate, os mangais e as papaias, entraram na minha ordem natural, neste imensíssimo mundo vegetal. Habituei-me ao capim alto de onde podem sair emboscadas, habituei-me, depois de uma longa noite em Mato de Cão à espera que passassem as embarcações, a vir a correr até Canturé, sequioso, aqui há imensas toranjas, é fruta ácida que nos aplaca a sede. Em Mato de Cão, no planalto, contemplo o Geba que corre a imensidão, o imenso tarrafo, direciono o meu olhar para terra firme, para aqueles lânguidos palmeirais e ao fundo as matas herméticas. Então, agradeço a Deus esta possibilidade de amar o que me foi oferecido, a devoção dos meus soldados, o estarmos vivos”.

Vou a Bissau logo no primeiro de julho, sou testemunha do julgamento daquele cabo das milícias de Missirá que tinha a seu cargo a custódia de um prisioneiro e que o deixou fugir enquanto dormia. Irei contar tudo tintim por tintim, fui muito bem recebido por amigos de Bissau, comprei livros e o comandante Teixeira da Mota convidou-me para jantar num vaso de guerra, foi jantar surpreendente, como te contarei. Precisamente a 15 de julho, agentes de Madina voltam a atacar Missirá e sofrerão novo revés. Dias depois, em Mato de Cão, registo um acontecimento inédito, lá longe, em Ponta Varela, atingiram a embarcação civil, danificaram a casa das máquinas, o barco vem rebocado, falo com o contramestre que tem o horror estampado nos olhos. Chegou novo comandante, fez questão de chamar-me, bem como os dois novos majores. Por vezes Missirá é terra de tirocínio, por aqui já andou um pelotão fotocine, veio temeroso e temeroso partiu. Igualmente jovens de uma companhia de caçadores por aqui andaram em patrulhamentos, afligiu-me serem umas quase crianças, mas tudo correu bem. Vou conhecer outra experiência inédita, prestes a atravessar o Geba, assisto a um tornado sobre Bambadinca, nunca vira tal coisa, a mudança das cores do céu, uma repentina ventania fazia vergar as copas das árvores. O canoeiro que nos atravessa para Bambadinca avisa que vem aí um tornado, mal pomos pé em terra firme ouve-se um ronco, depois sem querer um redemoinho, sente-se a violência do vento que começa a fazer saltar as chapas dos telhados, corre-se perigo de vida, foge-se para dentro dos armazéns, as águas saltavam o cais, todos os arbustos se vergavam. E o que tão espetacularmente começou inopinadamente findou e a vida prosseguiu com vindas em Bambadinca, aqui se deixaram os feridos. O pior está para vir e nos próximos dias eu vou contar-te tudo, sabe-se lá com que estremeções para a memória. Em Finete, onde permaneço uns dias, numa emboscada noturna, ouve-se gritaria, foi detetado um grupo, um vulto avança para mim, disparo, um cabo africano perde o autodomínio e chama-me branco assassino, impunha-se a disciplina militar, ficou detido em Bambadinca. Recomeça a penúria de efetivos, estou cada vez mais saturado de tanta sangria. Aproxima-se outubro, é manifesto que estou a perder a sensibilidade por tudo quanto é precaução. A fatura virá depois, no dia 16, em Canturé rebentará uma mina anticarro, vai morrer o condutor, eu sairei da viatura como o homem canhão do circo, temos muitos acidentados, regresso a Finete com as crianças, Bambadinca dar-me-á uma solidariedade exemplar.

Contarei tudo, não te posso esconder que estou a levar uma vida atribulada, mistura-se o trabalho profissional com as minhas aulas, há os relatórios para Bruxelas, e eu aqui morto de saudades de ti, mal chegado daquelas curtas, mas inolvidáveis férias. Até à Páscoa não terei parança. Vamos pensar, meu amor, que numa dessas duas semanas da Páscoa estaremos juntos, como juntos vivemos todos os dias a pensar no próximo encontro. Bien à toi, Paulo.

Barqueiros do Volga, Ilia Efimovich Repin

Banco Nacional Ultramarino em Bolama

Missirá, 40 anos depois da guerra

Rampa de Bambadinca, hoje totalmente alterada

Uma estrada da Guiné
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Nota do editor

Último poste da série de 8 de janeiro de 2021 > Guiné 61/74 - P21748: Esboços para um romance - II (Mário Beja Santos): Rua do Eclipse (34): A funda que arremessa para o fundo da memória