terça-feira, 12 de janeiro de 2021

Guiné 61/74 - P21760: Álbum fotográfico de António Marreiros, ex-alf mil, CCaç 3544, "Os Roncos", Buruntuma, 1972, e CCaç 3, Bigene e Guidage, 1973/74 - Parte II: A festa do fanado


Foto nº 1


Foto nº 2


Foto nº 3


Foto nº 4

Guiné > Região de Cacheu > Bigene > CCAÇ 3 (1973/74) > A festa do fanado

 1. Mensagem do nosso camarada António Marreiros [ a viver há quase meio século no Canadá (Victoria, BC, British Columbia), ex- alferes miliciano em rendição individual na Companhia CCaç 3544, "Os Roncos", Buruntuma, 1972, e, meses depois, transferido para Bigene, CCaç 3, até Agosto 1974]: 



António Marreiros, 1973, no rio Cacheu


Data - domingo, 3/01&2021, 20:59


Assunto - Ritual de iniciação


Talvez o Cherno Baldé possa esclarecer.

Não estão tão nítidas, as fotos que mando em anexo,  mas é uma janela no passado...

Lembro-me bem disto, fui convidado pelos jovens e meti-me no grupo... Havia um indivíduo mascarado todo coberto de castanho ( vê se mal nesta foto) que levava os jovens para o mato (Foto nº 1)...

São quatro fotos que eu penso estão relacionadas com “ o fanado”...

Abraços, 

António Marreiros

___________

Notas do editor:


Vd. também postes de:

3 de janeiro de  2021 > Guiné 61/74 - P21731: Fotos à procura de...uma legenda (129): Pistas de leitura para um casamento Balanta-Mané, em 1973, em Bigene, região do Cacheu (Texto: Cherno Baldé; fotos: António Marreiros)

3 de janeiro de 2021 > Guiné 61/74 - P21729: Memória dos lugares (416): Um casamento em Bigene (António Marreiros, ex-alf mil, CCAÇ 3544, Buruntuma, 1972, e CCAÇ 3, Bigene, 1973/74)

5 comentários:

Anónimo disse...

Burumtuma?!
Pf: Buruntuma.

Tabanca Grande Luís Graça disse...

Corrigido, obrigado, senhor leitor "anónimo"... Pois claro, Buruntuma! LG

Cherno Baldé disse...

Caro amigo Antonio,

Devem ser fotos tiradas em Bigene a julgar pelo ambiente, populaçao e a manifestaçao cultural em presença.

As fotos 1-3-4 sao do mesmo dia e da mesma festa de animaçao de um fanado mandinga de rapazes que ja devem estar no mato ha cerca de uma semana. Os guardioes do fanado "Lambés" voltam a aldeia com um ou dois Kankurans ou Cancurans (o tal ser mascarado com um tecido vegetal) que nao é suposto ser conhecido e cuja origem e destino sao desconhecidos tal como a origem do bem e do mal que ele vem exorcizar e extirpar a fim de proteger os jovens fanados (iniciados) que, supostamente, no preciso momento se encontram num estado de vulnerabilidade face as forças ocultas.

A festa é da comunidade, incluindo homens e mulheres, mas a animaçao é sobretudo dos mais novos entre jovens e raparigas, familiares dos iniciados ou fanados, que cantam e dançam dando conhecimento a todos que a vida e a saude das crianças que se encontram na barraca do fanado estao bem protegidas pelo espirito do kankuran.

De casa em casa vao recolhendo alguns donativos em produtos alimentares que servirao para o sustento da barraca durante alguns dias e assim por diante. A duraçao media de um fanado (periodo iniciatico) é variavel entre 1 a 3 meses. Ha casos extremos, verificados entre certos grupos (Balantas e Nalus) que podem durar até 6 meses.

A festa do fanado é um ritual de iniciaçao que ja existia antes da chegada das grandes religioes dos livros ou abraamicas e continuam a ser feitas ja com alguma influencia destas com a eliminaçao dos aspectos mais feticistas das religioes tradicionais africanas.

A foto 2 nao deve estar relacionada com as outras, pois que se trata de jovens "Blufos" balantas em migraçao. Nesta fase das suas vidas sao capazes de tudo, porque consideram-se livres das restriçoes da sociedade e é também a fase da moldagem do seu espirito e capacidades de guerra e de resiliencia que os prepara para a vida futura onde a astucia, a camuflagem e a coragem serao os elementos mais apreciados e valorizados.

Durante a minha infancia e tao idiota que era, participei em trés fanados diferentes no mesmo ano (1969). Primeiro levaram-me para o fanado dos fulas-tipico dos Fulas-forros a que pertencia que durou mais ou menos um més. Duas semanas apos a minha saida, eis que os jovens Fulas-pretos, por sua vez, deviam ser submetidos ao mesmo ritual, mas como diziam que o nosso era tao leve que mais parecia fanado de mulheres, la fui outra vez para ver com os meus proprios olhos em que é que era, de facto, diferente. Desta vez nao fui submetido ao corte fisico como da primeira vez e, no fim, depois de dois meses, constatei que nao era muito diferente daquilo que ja conhecia do meu primeiro fanado.

Passado um més apos a saida deste ultimo, era a vez de os mandingas celebrarem o seu fanado e, eis senao que o menino Cherno, sempre insatisfeito e curioso, queria ver com os proprios olhos como era o tao propalado fanado mandinga. Apos trés meses de vai-vem entre a barraca no mato e a aldeia para transporte de comida e agua para os fanados-novos, incluindo os preparativos e as festas semanais dos kankurans na aldeia, finalmente fechamos a barraca voltamos a aldeia num ambiente de grande frenesim festivo.

Mas, a constataçao final era que tudo nao passava de pura propaganda para a valorizaçao de grupo e a unica diferença a considerar, de facto, era a animaçao dos kankurans e o incomparavel talento e capacidade de alardear e fazer propaganda e folcore socio-cultural, tipico dos (artistas) mandingas.

Factos e evidencias que justificam o nascimento e sobrevivencia do proverbio guineense que diz:

"Duno di boca mas duno de mala". Em traduçao livre: Mais vale ter boca uma boca refinada do que uma mala cheia de dinheiro ou seja, a aparencia (a propaganda) quando bem utilizada, vale mais do que a riqueza (conhecimento, trabalho) o saber fazer. Este conceito, também, é universal, acho eu e hoje mais que nunca.

Com um abraço amigo,

Cherno Baldé



Antonio Marreiros disse...

Obrigado Cherno Baldé,
Mais uma valiosa contribuição neste blog...ou pelo menos para mim, sempre interesado nos costumes das gentes do mundo.
Estas fotos sobreviram tempo e mudanças desde a Guiné até ao Canada e ainda são causa de comentários.Gostei de ler a tua experiêcia pessoal do fanado.
Um abraço,
Antonio Marreiros

Anónimo disse...

Caro Antonio Marreiros,

O Kankuran (espirito do mato) ve-se na foto 3, ao meio e quase encoberto pelas mulheres. Trata-se da personagem principal da festa, pois tudo gira a sua volta. Nao é habitual que esteja tao proximo das mulheres que, normalmente, sao o seu alvo principal porque como é sabido, nas sociedades patriarcais africanas a mulher é a principal suspeita de todos os maléficios que acontecem. No entanto, sendo mais inteligentes e astutas, acabam sempre por dar a volta as manobras masculinas destinadas a sua dominaçao e controlo. Por exemplo, elas sao capazes de adivinhar a figura do Kankuran pelo simples andar ou pela voz estridente com que assusta as pessoas. E tem uma preferencia especial por aqueles que dançam bem.

Para os estudiosos de sociologia ou Antropologia, seria interessante estabelecer paralelos entre as teorias "phalopicas" de S. Freud e outros que estudaram sociedades ditas "arcaicas" e o fenomeno do uso dos paus (phallus??) que as mulheres mandingas fazem durante as festas de fanado na regiao da Africa Ocidental (ver fotos). De resto, as danças sao muito sugestivas e incorporam sempre elementos sexuais, cada vez menos devido as interferencias externas, principalmente as religioes monoteistas, na cultura destes povos.

Abraços,

Cherno Baldé