segunda-feira, 11 de janeiro de 2021

Guiné 61/74 - P21758: Notas de leitura (1333): “De Lisboa a La Lys, O Corpo Expedicionário Português na Primeira Guerra Mundial”, por Filipe Ribeiro de Meneses, Publicações Dom Quixote, 2018 (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 17 de Maio de 2018:

Queridos amigos,
A investigação deste conceituado historiador que em 2010 publicou a incontornável biografia política de Salazar, é muitíssimo incómoda para todos aqueles que têm procurado tecer hagiografia sobre um dos maiores desastres militares portugueses. Em síntese, a linha democrata do regime republicano, com Afonso Costa na proa, investiu fortemente para a criação do Corpo Expedicionário Português, após a declaração de guerra à Alemanha, tínhamos que nos provar briosos nas trincheiras da Flandres.
O historiador narra as intrigas, as tensões nos Altos Comandos, o diálogo penoso entre estes e a hierarquia militar britânica, o estranhíssimo comportamento de uma maioria dos oficiais do CEP, mal relacionados com os seus subordinados e chegamos àquele 9 de abril que começou com uma tempestade de fogo sobre as linhas do CEP e uma demandada em catástrofe, sobre a mesma há narrativas desencontradas.
Este livro é porventura a investigação mais rigorosa e atual sobre estes acontecimentos fatídicos que irão preludiar a queda do regime republicano.

Um abraço do
Mário


De Lisboa a La Lys: A tragédia de 9 de abril de 1918

Beja Santos

“De Lisboa a La Lys, O Corpo Expedicionário Português na Primeira Guerra Mundial”, por Filipe Ribeiro de Meneses, Publicações Dom Quixote, 2018, é mais uma investigação de gabarito de um historiador que se consagrou com a obra Salazar: Uma Biografia Política. La Lys, como o autor observa, foi um dos dias mais mortíferos da história militar de Portugal. Numa só manhã, perto de 400 portugueses morreram, muitos mais foram feridos e o número de prisioneiros rondou os 6600. O Corpo Expedicionário Português (CEP), símbolo máximo do esforço de guerra nacional durante a I Guerra Mundial, desapareceu dos campos de batalha franceses enquanto unidade organizada. O regime republicano apostara forte neste Corpo Expedicionário, tudo fez para o enviar com celeridade para a Frente Ocidental, o descalabro de La Lys iria pôr o regime em xeque e o seu militar mais prestigiado, Gomes da Costa, aparecerá à frente do 28 de maio de 1926.

O que Filipe Ribeiro de Meneses investiga e dá à estampa é muito incómodo para os nossos brios e compromete em grande parte a hagiografia que se tem pretendido montar sobre os lances de heroísmo e a bravura do militar português nas trincheiras da Flandres. A história bem comportada do CEP, como Ribeiro de Meneses ilustra, é um conto de fadas, baseia-se em inúmeros testemunhos que servem para comprometer o manto diáfano da fantasia.

O historiador enceta o seu trabalho falando de seu avô Mário Ribeiro de Meneses, capturado em La Lys e levado para território alemão, daqui travará correspondência com a família e nos aperceberemos das peripécias do que foi o seu regresso e de outros milhares de militares. Mas peripécias, jogos políticos e um impressionante desfasamento entre oficiais, sargentos e praças, é o que não falta neste documento rigoroso, e com um novo olhar historiográfico.

Chegado o CEP a França, logo começaram as dificuldades, assinaladas as péssimas relações, que atravessaram todo o contingente. Chegaram a Brest e pouco antes tinha havido em Lisboa o golpe de Estado de Machado Santos, com revoltosos detidos, que depois embarcariam para França. O general Tamagnini irá queixar-se permanentemente que estava sob vigilância ideológica do partido de Afonso Costa, através de um major. Eram difíceis as relações com os aliados britânicos, estes cedo se aperceberam que havia que dar mais instrução para a guerra que o contingente português iria enfrentar (o que tinham aprendido em Tancos estava bem distante do que iam experimentar nas trincheiras), Afonso Costa negociara com Londres a contribuição portuguesa para o esforço de guerra: o Exército Português teria o seu setor próprio a defender, com o seu comando próprio, com a sua completa autonomia. A prática ensinou que não podia ser assim. O autor recorda que 1917 foi um ano cruel para os Aliados, a Batalha de Passchendaele que resultou num massacre de enormes proporções, aspirava-se à chegada de contingentes que renovassem os corpos de Exército completamente estafados pela vida das trincheiras e por desaires sucessivos frente aos alemães.

A logística também cedo se revelou difícil, desde o transporte marítimo à distribuição de peças de artilharia e armamento ligeiro; para além do frio, ia muita gente doente e doenças venéreas não faltavam. Ao mais alto nível, discutia-se a preparação e a ida para as trincheiras.

O historiador, mais do que altamente documentado, cruzando agilmente a documentação britânica e portuguesa, revela o vai e vem das decisões, mostra a correspondência intercetada pela censura, veja-se este trecho de um soldado: “Aqui não se fazem avanços. Os que os tentam fazer perdem toda a sua gente com as minas que o inimigo faz explodir, em vista de nós termos minas por baixo das trincheiras deles e eles debaixo das nossas. A guerra das trincheiras é isto só: ataques de artilharia, gases, de noite cortarem arames uns aos outros, metralhadores a fazer constantemente fogo, para não deixar avançar o inimigo, morteiros que enterram um homem vivo e de vez em quando lá morrem meia dúzia, e assim passamos estes dias até nos chegar também a vez”.

Se a falta de coesão no CEP era indisfarçável, o golpe de Estado sidonista e o afastamento dos políticos que tudo tinham feito para que Portugal entrasse na guerra introduziu novos embaraços, acrescidos das dificuldades manifestadas pelos britânicos no transporte regular de tropas portuguesas para a guerra. De janeiro para fevereiro de 1918, o CEP aparecia constituído em corpo de exército mas pouco apto para empreender raides contra posições alemãs. Não obstante, as forças portuguesas passaram a penetrar nas linhas inimigas. O estado de saúde dos militares portugueses não era abonatório, como escreveu nessa altura Jaime Cortesão: “Pálidos, magros, exaustos, os pulmões roídos dos gases, os pés triturados das marchas, sem esperança nem apoio moral, arrastam-se, sob o imenso fogo que tomba do céu, por essas estradas, como uma legião miserável de abandonados”. E assim chegamos ao cenário da ofensiva alemã de 9 de abril, o historiador colige o que há de mais expressivo nas narrativas contraditórias, pois as versões documentais estão longe de coincidir. Os relatos ingleses evidenciam que se susteve a gigantesca ofensiva alemã, a barragem de fogo foi infernal e desfez aquela linha da frente, pôs a generalidade das nossas forças numa retirada caótica, a infantaria alemã não teve dificuldade naquele número elevado de capturas. Iniciaram-se novas discussões, os britânicos entendiam que os portugueses não deveriam regressar como força independente às primeiras linhas e é nesse período transtornado que a Alemanha, exausta e à beira da guerra civil, capitulou. As consequências para Portugal foram igualmente dramáticas: “Em La Lys findou o sonho de uma República capaz de transformar os destinos de Portugal, do seu domínio colonial e dos Portugueses de todo o mundo, mobilizando todas essas forças em torno do sacrifício dos soldados nas várias frentes de combate e da valorização, pelo mundo fora, do bom nome português”.

De leitura obrigatória.
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Nota do editor

Último poste da série de 4 de janeiro de 2021 > Guiné 61/74 - P21734: Notas de leitura (1332): Espaço social e movimentos políticos na Guiné-Bissau (1910-1994), por Philip Havik, na Revista Internacional de Estudos Africanos, n.º 18-22, 1995-1999 (2) (Mário Beja Santos)

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