sexta-feira, 15 de janeiro de 2021

Guiné 61/74 - P21769: Esboços para um romance - II (Mário Beja Santos): Rua do Eclipse (35): A funda que arremessa para o fundo da memória

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 31 de Dezembro de 2020:

Queridos amigos,
Compete a Paulo informar regularmente a Annette do teor dos acontecimentos que ela vai organizar, praticamente não falaram da Guiné nas férias em Lier, Groningen e Bruxelas. Agora procede a uma resenha que se estende até outubro. Ainda teve a ideia de falar dos acontecimentos de novembro, são demasiado dolorosos, correspondem à despedida do Cuor, os soldados estão fartos de viver no mato, desde 1966 que andam por Porto Gole, Enxalé e Missirá e Finete. Sonham com uma sinecura, bem enganados ficarão quando virem o que Bambadinca lhes vai oferecer em viagens permanentes e estadias nos lugares mais inóspitos e de elevado risco. E há as promessas das férias da Páscoa, as afeições entranham-se, aquele casal cinquentão goza do privilégio de uma comunicação permanente que a era digital lhes trouxe.

Um abraço do
Mário


Esboços para um romance – II (Mário Beja Santos):
Rua do Eclipse (35): A funda que arremessa para o fundo da memória

Mário Beja Santos

Adorable Annette, mon trésor, regressei felicíssimo das nossas férias, foste muito gentil a preparar o jantar para o Gilles Jacquemain, deixarei para outra carta os assuntos inquietantes que têm a ver com o futuro da política dos consumidores, estão numa encruzilhada, temo com conhecimento de causa que é uma política em desaceleração. Como combinado, faço agora uma resenha dos acontecimentos mais salientes de tudo o que nos ocorreu no Cuor entre junho e novembro. Esqueci-me de te entregar esta imagem da exposição do Ilia Repin que vimos em Groningen, impressionante perspetiva, aqueles homens a puxar desalmadamente um barco em dia sem brisa.

Tirei dos meus apontamentos um conjunto de situações. A primeira, felizmente sem consequências de maior, foi uma noite em que o furriel Casanova ficou retido em Finete, o furriel Pires seguiu para Mato de Cão, fiquei em Missirá com a lida da casa, uma data de homens severamente doentes, quando anoiteceu e me vi praticamente sozinho, fiz a mobilização total dos civis e pus a população nos abrigos. Se houvesse que reagir a uma flagelação teria sido um grande sarilho. Nesse mês de junho toda a região de Bambadinca vive a continuidade das hostilidades do que foi o ataque de 28 de maio, os grupos do PAIGC, e nós ouvimos a tormenta desse fogo em Missirá, atacam tabancas em autodefesa, flagelam quem anda a desmatar entre o Xime e Amedalai, atacam Mansambo. Sinto que o comandante e os majores em Bambadinca estão por um fio e na realidade em breve serão afastados. O essencial das obras chegou ao fim mesmo com escassez de meios, lanço-me em patrulhamentos, há derramamento de sangue, a vida não está fácil para quem se vem abastecer na outra margem do Geba. Os acontecimentos precipitam-se, em 14 de junho, exatamente quando estamos a regressar de uma coluna de reabastecimento, começa um ataque noturno com imenso potencial, não durará mais de 30 minutos, deixarão mortos, munições e armas destruídas. Reagirão semanas depois, devem-no ter feito para levantar o ânimo das suas hostes, são pequenas flagelações, umas morteiradas e uns tiros à distância. Os abastecimentos são cada vez mais difíceis, atravessamos o Geba e entramos na bolanha com chuva torrencial, as duas viaturas estão avariadas, é tudo transportado à cabeça, os feridos de padiola. Virei muitos anos depois a descobrir que foi o período em que escrevi desalmadamente.

Alguém me mostrará, anos depois, um aerograma onde escrevi: “Habituei-me a gostar do mundo que me rodeia, dos cajueiros em flor, do porte gigantesco dos bissilões, das árvores de pau-de-sangue e pau-preto. Habituei-me a achar natural as couves, as beringelas, o tomate, os mangais e as papaias, entraram na minha ordem natural, neste imensíssimo mundo vegetal. Habituei-me ao capim alto de onde podem sair emboscadas, habituei-me, depois de uma longa noite em Mato de Cão à espera que passassem as embarcações, a vir a correr até Canturé, sequioso, aqui há imensas toranjas, é fruta ácida que nos aplaca a sede. Em Mato de Cão, no planalto, contemplo o Geba que corre a imensidão, o imenso tarrafo, direciono o meu olhar para terra firme, para aqueles lânguidos palmeirais e ao fundo as matas herméticas. Então, agradeço a Deus esta possibilidade de amar o que me foi oferecido, a devoção dos meus soldados, o estarmos vivos”.

Vou a Bissau logo no primeiro de julho, sou testemunha do julgamento daquele cabo das milícias de Missirá que tinha a seu cargo a custódia de um prisioneiro e que o deixou fugir enquanto dormia. Irei contar tudo tintim por tintim, fui muito bem recebido por amigos de Bissau, comprei livros e o comandante Teixeira da Mota convidou-me para jantar num vaso de guerra, foi jantar surpreendente, como te contarei. Precisamente a 15 de julho, agentes de Madina voltam a atacar Missirá e sofrerão novo revés. Dias depois, em Mato de Cão, registo um acontecimento inédito, lá longe, em Ponta Varela, atingiram a embarcação civil, danificaram a casa das máquinas, o barco vem rebocado, falo com o contramestre que tem o horror estampado nos olhos. Chegou novo comandante, fez questão de chamar-me, bem como os dois novos majores. Por vezes Missirá é terra de tirocínio, por aqui já andou um pelotão fotocine, veio temeroso e temeroso partiu. Igualmente jovens de uma companhia de caçadores por aqui andaram em patrulhamentos, afligiu-me serem umas quase crianças, mas tudo correu bem. Vou conhecer outra experiência inédita, prestes a atravessar o Geba, assisto a um tornado sobre Bambadinca, nunca vira tal coisa, a mudança das cores do céu, uma repentina ventania fazia vergar as copas das árvores. O canoeiro que nos atravessa para Bambadinca avisa que vem aí um tornado, mal pomos pé em terra firme ouve-se um ronco, depois sem querer um redemoinho, sente-se a violência do vento que começa a fazer saltar as chapas dos telhados, corre-se perigo de vida, foge-se para dentro dos armazéns, as águas saltavam o cais, todos os arbustos se vergavam. E o que tão espetacularmente começou inopinadamente findou e a vida prosseguiu com vindas em Bambadinca, aqui se deixaram os feridos. O pior está para vir e nos próximos dias eu vou contar-te tudo, sabe-se lá com que estremeções para a memória. Em Finete, onde permaneço uns dias, numa emboscada noturna, ouve-se gritaria, foi detetado um grupo, um vulto avança para mim, disparo, um cabo africano perde o autodomínio e chama-me branco assassino, impunha-se a disciplina militar, ficou detido em Bambadinca. Recomeça a penúria de efetivos, estou cada vez mais saturado de tanta sangria. Aproxima-se outubro, é manifesto que estou a perder a sensibilidade por tudo quanto é precaução. A fatura virá depois, no dia 16, em Canturé rebentará uma mina anticarro, vai morrer o condutor, eu sairei da viatura como o homem canhão do circo, temos muitos acidentados, regresso a Finete com as crianças, Bambadinca dar-me-á uma solidariedade exemplar.

Contarei tudo, não te posso esconder que estou a levar uma vida atribulada, mistura-se o trabalho profissional com as minhas aulas, há os relatórios para Bruxelas, e eu aqui morto de saudades de ti, mal chegado daquelas curtas, mas inolvidáveis férias. Até à Páscoa não terei parança. Vamos pensar, meu amor, que numa dessas duas semanas da Páscoa estaremos juntos, como juntos vivemos todos os dias a pensar no próximo encontro. Bien à toi, Paulo.

Barqueiros do Volga, Ilia Efimovich Repin

Banco Nacional Ultramarino em Bolama

Missirá, 40 anos depois da guerra

Rampa de Bambadinca, hoje totalmente alterada

Uma estrada da Guiné
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Nota do editor

Último poste da série de 8 de janeiro de 2021 > Guiné 61/74 - P21748: Esboços para um romance - II (Mário Beja Santos): Rua do Eclipse (34): A funda que arremessa para o fundo da memória

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