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quinta-feira, 17 de outubro de 2024

Guiné 61/74 - P26052: (De) Caras (223): Correspondência da Guiné para Paulo Osório de Castro Barbieri (5) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 25 de setembro de 2024:

Queridos amigos,
Estas três últimas cartas de Pedro Barros e Silva para o seu amigo Paulo António, vindas do SPM 0368, são acima de tudo afetuosas, um faz a guerra com uma grande carga de ceticismo, fala mesmo de uma guerra que parece a do Solnado, o outro deverá andar stressado e com problemas familiares. Penso que a carta anterior de Pedro Barros e Silva deverá ser analisada por um investigador que se interesse por este período, ficamos no desconhecimento da sua arma, possui informações topo de gama e refere explicitamente numa das suas cartas que desembarcou numa área do Sul, onde teríamos sofrido quatro mortos. Agora é questão de atar estas cartas com um cordel e entregá-las no Arquivo Histórico-Militar.

Um abraço do
Mário



Correspondência da Guiné para Paulo Osório de Castro Barbieri (5)

Mário Beja Santos

Nota explicativa: o conjunto de cartas que adquiri dizem estritamente respeito a correspondência efetuada na Guiné, e dirigida a Paulo António Osório de Castro Barbieri, residente em Lisboa, embora uma das cartas endereçadas por Pedro Barros e Silva seja dirigida a este destinatário em Palmela. São duas cartas do irmão, tenente Nuno Barbieri e quatro endereçadas pelo Alferes Barros e Silva, inequivocamente um amigo íntimo do destinatário. Havia mais correspondência, mas não tratava da Guiné. Deste pequeno acervo julgo que o documento mais importante foi a carta de Barros e Silva, publicada nas duas últimas semanas. As três que restam, datadas de 15 de fevereiro, 19 de abril e 9 de novembro, de 1966, possuem muitas considerações por caráter privado, houve que as omitir pelo respeito de quem escreveu e quem recebeu.

Em 15 de fevereiro, escreve assim Pedro Barros e Silva:

“Meu caro Paulo,

Depois de ter passado uma semana em Bafatá cheguei hoje a Bissau onde me esperava uma tua carta. Se, por um lado me inquietou ver que te falta a saúde, por outro lado alegra-me teres modificado o teu estilo epistolar. Entre nós há estilos que não encaixam e entre eles os dos relatórios de citação.

Compreendo e sinto o teu problema, pois também me debato com outro semelhante. A plataforma que tenho procurado encontrar para me entender com o resto, ainda não encontrei. É uma ação negativa que me é parecida, quando a vou buscar, mas sem encanto, como o amor de uma prostituta.

O que ainda me vai animando e me vai oferecendo um pouco de atração a esta coisa é eu ter a consciência de que estou continuamente oscilando entre a animalidade e o misantropismo.

E, entretanto, a guerra continua empatada, sem que nenhum dos contendores tenha força nem talvez vontade para a desempatar. É uma guerra tipo Solnado.

Espero que os teus exames tenham corrido bem, que estejas melhor e que me escrevas em breve dando notícias de ti.

Um grande abraço amigo do Pedro,”


Em 19 de abril, o alferes Barros e Silva dirige-se deste modo ao amigo:

“Meu caro Paulo,

Já há bastantes dias que tinha iniciado uma carta, mas ultimamente tenho feito tal vida de andarilho que só agora te escrevo dando mais uma vez motivo para o desencartar da nossa correspondência. Na carta que me escreveste analisavas os vários tipos de fazer a guerra e como tu escreveste devo fazer para do grupo C (os que a fazem tendo por único Absoluto o mar de dúvidas, de incertezas, de relatividades). Simplesmente eu preferi fazê-la de uma outra maneira, mais quente. É que não passo de um alferes.

Tens razão ao relembrar-me o tipo de guerra. É por eu o compreender que me chateia a maneira como esta malta a faz, com muita papelada, muito empecilho burocrático, muita leizinha, muitas merdinhas que quase nos paralisam e que só servem para complicar aquilo que é tão simples.

Não sei se já te falei do assunto, mas tive em sério risco de apanhar uma porrada, pelo menos ameaçaram-me. Motivo: participei de que tinha conhecimento de uma operação realizada em tal data, numa zona do Sul da província e revestida de certa importância. Como caí na asneira de citar o nome de um major, saltaram-me em cima. O pior é que mal desembarcámos tivemos quatro mortos. Os gajos até sabiam o sítio certo de desembarque e limitaram-se a estar à espera.

Caríssimo, não leves tanto tempo como eu a escrever, pois é sempre com grande alegria que leio as tuas cartas amigas.

Um grande abraço amigo do Pedro.”


Temos agora o teor da última carta, data de 9 de novembro:

“Meu caro Paulo,

Não vejo o motivo para te preocupares com o atraso que me respondeste. Também eu já me tenho atrasado, contudo, tive sempre a certeza de que me compreenderias.

Acerca do que me escreveste, não fiquei surpreendido. E decerto que tu também não. Algumas vezes falámos sobre o assunto quando eu ainda aí estava. Vejo que os estudos manquejam, a família chateia-te, tudo te chateia, sentes-te mal no meio de tudo isso. Muda-te, pois, vai para qualquer outro sítio onde a operação seja menor e menos pesada. Em 2 de dezembro espero estar aí, tenho muito para te contar.

Paulo, escreve-me quando quiseres e como quiseres, pois eu procurarei sempre de todos os meus meios compreender-te e estar contigo.

Um grande abraço do teu amigo Pedro.”


A cidade de Bissau que o alferes Pedro Barros e Silva também conheceu
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Nota do editor

Último post da série de 8 de outubro de 2024 > Guiné 61/74 - P26021: (De) Caras (222): Correspondência da Guiné para Paulo Osório de Castro Barbieri (4) (Mário Beja Santos)

terça-feira, 8 de outubro de 2024

Guiné 61/74 - P26021: (De) Caras (222): Correspondência da Guiné para Paulo Osório de Castro Barbieri (4) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 19 de setembro de 2024:

Queridos amigos,
Se é verdade que o tenente Barbieri, na primeira carta aqui publicada, nos dá conta de uma desastrada operação que ocorreu na Península do Sambuiá, obrigando-nos a refletir como todos nós fomos impelidos a viver desaires militares pelo desenho de operações que desconhecia cabalmente o terreno, esta carta do alferes Pedro Barros e Silva é um documento significativo para se ver como em 1966, e seguramente que ele estava altamente informado pelos dados que aqui apresenta, já havia quem, lucidamente, antevia um final pouco feliz para a nossa presença na Guiné, o PAIGC, por este tempo, já dispunha inequivocamente de um armamento no terreno muito superior ao nosso. Ainda vou bater à porta da minha fornecedora para ver se, por bambúrrio da sorte, ainda se possam encontrar mais correspondência deste alferes que devia ter acesso às mais cotadas informações militares, e não só.

Um abraço do
Mário


Correspondência da Guiné para Paulo Osório de Castro Barbieri (4)

Mário Beja Santos

Nota explicativa: tratando-se da segunda parte da carta dirigida em 17 de agosto de 1966 ao alferes Pedro Barros e Silva do seu amigo Paulo António, em Lisboa, convém alertar o leitor que tem tudo a ganhar em ler o texto anterior, lendo e relendo o que o militar enviou para Lisboa já não duvido tratar-se, deste pequeno acervo que adquiri recentemente na Feira da Ladra, de um significativo documento que pode e dever ser orientado para investigadores. 

O alferes Barros e Silva começa a refletir-se sobre como se processou a colonização na Guiné, se as mudanças em curso, perpetradas pelas autoridades portuguesas, chegam ao bom porto, ele está profundamente cético; destaca seguidamente a atividade do PAIGC, aí não tem dúvidas que será na Guiné que se irá definir o futuro do Estado Novo (recorde-se que a carta é escrita em 1966).

É precisamente aqui que ele continua:

“E comparado com a porrada que aqui vai haver e até talvez com a que já há, as lutas de Angola e de Moçambique hão-de parecer infantis guerras de índios e cowboys. O terreno e as populações, e a situação geográfica aliados às estratégias em luta, a intensificação da propaganda IN, a ocupação efectiva de vastas regiões e consequente organização político-administrativa, o aumento da capacidade de combate (armamento, instrução, efectivos, etc.) e o crescente número de russos e cubanos que lutam nas fileiras do IN. Eis alguns indícios cuja análise nos fornece uma desagradável conclusão.

O terreno não é mau nem bom, é simplesmente impróprio para efectuar acção com motorizados. Assim, restam a artilharia e a aviação por um lado, a infantaria por outro. Deste modo, tem de morrer muita gente para os desalojar.

As populações são turras e nós quando as não chateamos não as controlamos, quando as chateamos, elas cavam e vão para as praças-fortes do IN, contribuindo assim para o engrossamento das fileiras deste.

Das estratégias e situação geográfica já falámos. Passamos agora à propaganda.

Há mais de um mês que o IN nos dedica quase diariamente um programa. O convite à deserção é apresentado como algo de aceitável e até de louvável; isto misturado com algumas deserções extraordinárias do vice-chefe da segurança e de outros. 

Insiste-se sobre a situação desesperada em que nos batemos, tudo por causa dos miseráveis capitalistas exploradores do povo, etc., do que o povo português não tem culpa nenhuma. E aqui entram no baile as Frentes Patrióticas com os seus folhetins tais como o ‘Passa Palavra’ e outros, fazendo ver aos compatriotas que somos uns malandros se andarmos a matar os nossos queridos irmãos de cor. E tudo por causa dos fascistas alemães que dão armamento aos salazaristas a troco do santo território pátrio. Estás a ver o género.

Até que ponto estas lengalengas influem no moral do soldado, não sei em absoluto. Mas parece-me que o soldado nem as ouve. Para ele a propaganda adequada é outra.

Como já escrevi por aí, o IN ocupa além do Oio, o Cantanhez, o Quitafine e o Como. São verdadeiras praças-fortes dotadas de abrigos contra ataques aéreos, etc.

Outras regiões foram organizadas política e administrativamente na base de grupos, subsecções e secções. Mas organização em terra de preto é como manteiga em nariz de cão. O mais importante é o poderio militar do IN nestas regiões.

As secções do Exército Popular encontram-se fardadas, treinadas e armadas até aos dentes. E, para ajudar à festa, temos os russos e os cubanos (estes, pelo menos, já têm levado umas coças bastante razoáveis). Pensa-se que dentre em pouco estarão na Guiné mil ou mais cubanos.

O material que o IN possuiu é o que de há de melhor pelos sítios. Só lhes falta aviação e marinha. De resto, postos-rádio, antiaéreas quádruplas, canhões sem recuo de infantaria (fala-se em obuses), bazucas, rockets, morteiros de 61, 82 e até talvez de 120, metralhadoras de todos os tipos e feitios, automáticas a dar com pau, enfim, estão mais bem armados que cá a rapaziada.

A missiva já vai longe. Não era minha intenção massacrar-te com este cumprimento salazarento. Antes de acabar ainda te quero falar sobre as tais prisões e das consequências que delas advieram. Não era segredo para ninguém que muitos dos ocupantes de cargos administrativos estavam à espera de serem ministros. Como o Governo salazarista não os satisfazia, resolverem oferecer os seus préstimos à outra equipa. Neste caso, ao contrário do que acontece com o futebol (lá se foi a Comunidade Luso-Brasileira) quem pagou as luvas foram os jogadores. 

Assim, em Bissau até havia o futuro Presidente da República (abastado comerciante, explorador das carreiras navais para o interior da província e, portanto, da tropa, suspeito de tráfico de armas, dono dos barcos que em 1963 se enganaram na rota e foram mais para o Sul), ministros em profusão nas pessoas-vice-presidente da Câmara, de um vogal no conselho administrativo e até de um modesto alfaiate do Batalhão de Intendência. Todas estas prisões e outras de menos importância tiveram por base o célebre atentado de Farim de que falei na altura.

Ora quando a gente lhes buliu,  os homens grandes de Bissau, os turras muito logicamente decidiram meter um cagaço aos rapazes de Bissau. Assim, deslocaram uns mil ou 2 mil mânfios para a região Nhacra – Mansoa (Balantas, quase todos turras). Este tem-se entretido a chatear a rapaziada. 

Os Comandos ficaram à nora, mandaram as mulheres e as crianças para a metrópole, e de vez em quando lançam tremendos alarmes gerais por toda a cidade. Muito construtivo.

Entretanto, o batalhão de Mansoa tremeu, tremeu e disse: não posso mais. Então, os avisados homens grandes das estrelas decidiram reforçá-lo com unidades vindas do Norte.

Os negros, servos do diabo, agora entretêm-se no Norte a cortar estradas com valas e abatises (o que não acontecia há 2 anos).

Bem, não te quero maçar mais apesar de haver muito mais para dizer.

Um grande abraço do amigo,
Pedro

P.S – lê o artigo de Raymond Cartier no Diário de Notícias de 5 de agosto"

Distribuição do correio, imagem registada na RTP no Natal de 1966, Guiné

(continua)
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Nota do editor

Último post da série de 3 de outubro de 2024 > Guiné 61/74 - P26005: (De) Caras (221): Correspondência da Guiné para Paulo Osório de Castro Barbieri (3) (Mário Beja Santos)

quinta-feira, 3 de outubro de 2024

Guiné 61/74 - P26005: (De) Caras (221): Correspondência da Guiné para Paulo Osório de Castro Barbieri (3) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 18 de setembro de 2024:

Queridos amigos,

Devo a seguinte explicação. Adquiri inicialmente um conjunto de aerogramas, posteriormente perguntei à minha fornecedora se podia remexer lá no saco e ver se havia ainda alguma correspondência da Guiné. Apareceram, de facto, mais cartas do tenente Nuno Barbieri, mas datadas de Luanda, no nosso blogue só trato da Guiné e não vi razão para abrir exceções. 

O que obtive foram mais cartas de um amigo de Paulo António, o alferes Pedro Barros e Silva. Começo por uma carta extensa (publica-se agora só metade), toda esta correspondência foi escrita em 1966, o autor é uma pessoa incontestavelmente informada e culta, a redação comprova-o. 

Vista à distância, tratou com argúcia e pertinência certas observações, outras falhou redondamente, caso do Senegal, naquele mesmo ano de 1966 o PAIGC, depois de um encontro entre Senghor e Cabral, viu a sua vida facilitada com o transporte de pessoal e armamentos através de diferentes corredores; e não passava de pura especulação a possibilidade do PAIGC implantar uma estrutura governamental no Quitafine. 

Esta carta é merecedora da nossa atenção.

Um abraço do
Mário



Correspondência da Guiné para Paulo Osório de Castro Barbieri (3)

Mário Beja Santos

Dei conta ao leitor que nas minhas deambulações pela Feira da Ladra vou sempre cumprimentar potenciais fornecedores, um deles dispõe em cima da sua banca álbuns fotográficos, caixas com velhos bilhetes-postais, fotografias avulsas, maços de aerogramas (infelizmente só de Angola e Moçambique), material avulso, desde programas de ópera a teatro de revista, tudo para satisfazer a clientela de colecionistas, que ali aparece em número apreciável. 

Bato quase sempre com o nariz na porta, mas desta feita apareceram para ali, primeiramente, quatro cartas destinadas a Paulo António Osório de Castro Barbieri, duas escritas pelo seu irmão na Guiné, Nuno Barbieri, e outras duas escritas por um alferes na Guiné, seu amigo, Pedro Barros e Silva, SPM 0368. 

Posteriormente, e depois de pedir à Sra. D. Amélia se tinha mais cartas dentro dos seus sacos, apareceram outras escritas pelo tenente Nuno Barbieri mas relacionadas com a sua presença em Angola, e mais duas de um alferes amigo de Paulo António, Pedro Barros e Silva. 

Já aqui se publicaram as duas cartas de Nuno Barbieri para Paulo António, vejamos agora uma das quatro cartas de Pedro Barros e Silva, datada de 17 de agosto de 1966 (as demais cartas são igualmente de 1966):

“Meu caro Paulo,

Escrevo esta carta na esperança que ainda siga para amanhã no avião militar. O mais provável é que ou o avião não segue ou não segue a carta. Enfim, tenta-se. Recebi a tua carta que chegou, como sempre, em boa altura. Já começava muito seriamente a temer que tivesses ficado submergido sob a avalanche dos exames, mestres, doutores e professores. Felizmente que te safaste com vida e fiquei bastante satisfeito por saber que os teus exames te tinham corrido positivamente. Podes crer que o meu patriotismo ficou ao rubro quando li que tinhas arrancado um 16 a tal coisa da História. Por momentos até acreditei que tivesses entrado no bom caminho. A Pátria que tanto fez por ti não merece as tuas ingratidões. Como já vai sendo habitual, a seguir aos teus exames, aos teus embates ferozes com a sapiência, entras gosse-gosse na tua caverna da Outra Banda, lá ficas a desintoxicar e a descontrair. Eu é que já estou bem necessitadinho de uma caverna pois começo a ficar nas lonas.

Já estou farto desta merda toda. Queres crer que não me importava nada, mesmo nadinha, poder estar fazendo uns estudos sobre essa tal fauna estival de que falas. Bem, espero que as pesquisas decorram frutuosamente e que a tua loura Fúria (loura ou morena?) te não prejudique nos teus trabalhos.

Escrever sobre a situação da Guiné não me parece muito simples. Mas deixemos o perlapié para dezembro, quando eu aí for. Por agora, vou procurar mostrar-te alguns aspectos da situação. Acertaste quando escreveste que eles tocam e nós dançamos. Contudo, não é bom esquecer que não são eles os regentes.

Quando cá cheguei entretive-me durante uns tempos a analisar as relações entre os militares e a população civil. Desta exceptuei os que vieram para a Guiné posteriormente à eclosão da porrada. A presença dos militares é tolerada. Na verdade, o máximo que nos parece ser permitido é pedir que não nos chamem muito alto filhos da puta. Esmagados pelo nosso complexo de culpa, nós, os maus e impuros, vamos atafulhando de dinheirinho as algibeiras dos bons e puros. Talvez eles nos deixem de chamar nomes feios.

Não julgues que este modo de pensar é característica exclusiva dos ‘velhos’. Uma boa parte dos novos também acha que se a gente tratar bem os pretinhos estes nos perdoariam por todos os séculos de chicotada que têm no lombo (se os visses trabalhar perguntarias para que serve o chicote) e passariam a ser bons cristãos e bons portugueses. Normalmente, após terem bebidos uns goles de água da bolanha mudam de ideias e então querem é pisgar-se. Mas isto tem que ser visto no contexto geral das estratégias que uma e outra parte utilizam. As ideias-base da nossa estratégia coincidem com as ideias-base da estratégia inimiga. Diferem no sinal. Assim, enquanto a estratégia do IN é ativa, conquistadora, lançada para um futuro, a nossa é passiva, conservadora, projeção do passado (dos tais 5 séculos).

Assim, bem podemos bradar aos quatro ventos que o IN ataca indistintamente brancos e negros. Será que também não haverá maus negros, traidores que a troco de uns patacões estão prontos a lutar (e alguns bastante bem) do nosso lado?

Nem tudo que é do lado de lá está o lugar deles e efetivamente é lá que está a grande maioria. E porquê? Quando nós dissemos aos Felupes, aos Sossos, aos Fulas, aos Balantas, aos Mandigas, a todos esses selvagens que se odiavam de morte, que eram todos portugueses, todos filhos do mesmo Deus que também era o nosso, quando os afastámos dos seus usos, deturpámos e aviltámos os seus sítios, os arrancámos à tabanca e os lançámos na cidade, não fizemos mais que criar as condições que permitiram a atual situação. Quando o IN proíbe severamente o tribalismo e os privilégios tribais, chama-os a todos guineenses, dá-lhes o português como língua única, limita-se a continuar aquilo que nós iniciámos e que incompreensivelmente continuamos. Quanto a mim, tendo em linha de conta um e outro dispositivo, a derrota é inevitável, a menos que se alterem certos factores externos que influem decisivamente e são susceptíveis de alterar profundamente a situação. Eles tocam, mas não são eles os donos dos instrumentos.

Parece-me que o factor mais importante é a atitude que os EUA possam vir a tomar. Até que pontos os ianques estarão dispostos a auxiliar-nos a ganhar esta guerra (no fundo, trata-se somente de impedir os outros de a ganharem, já que nós somos insuficientemente incompetentes para o fazer).

Vou deixar propositadamente para trás as nossas possibilidades de conquistar a mão da donzela. Há muito que andamos afastados destas lides e andamos esquecidos. Durante algum tempo ainda pensei que quiséssemos empatar a disputa (engolindo à pressa mais vitaminas), hoje cheguei à conclusão de que não temos a audácia e força para a desempatar. Assim, esperemos que o outro pretendente tenha uma paralisia infantil. Ora o outro pretendente é o PAIGC (que tem dois primos raquíticos, a FLING e a FLING combatente). As surpresas do rapaz dependem da atitude que tomarem uns parentes um pouco mais idosos: o Senegal e a Guiné.

Como é óbvio, a posição desses é determinada pelos cataventos da História. Ora sopram daqui, sopram dali. Pelo que toca ao Senegal, está-me a parecer que o PAIGC está a levar com os pés. Não é que os senegaleses nos beijem na boca e nos chamem Tarzan, mas eles têm medo de que o PAI de parceria com o PAIGC lhe meta um cagaço. E como a região do Casamansa é a base do PAI, os rapazes senegaleses estão a empurrar os turras para longe. Para começar proibiram todo o trânsito de material de guerra no seu território.

A concretizar-se mais profundamente o desafio que o Senghor está a oferecer ao Amílcar, é admitir que este tenha de abandonar ou pelo menos de diminuir a intensidade da luta no Norte e até talvez seja levado a abandonar uma das suas mais tradicionais posições: o Oio (apesar do que para aí dizem, nós não entramos no Oio).

Não se alterando a posição do Touré, é provável que tivéssemos de enfrentar um endurecimento da porrada ao Sul, que é, sem sombra de dúvida, aonde estamos de cócaras e onde eles têm posições tão seguras que até já pensam em instalar o Governo no Quitafine. Quanto à Guiné, falou-se por aí de umas desinteligências entre o Amílcar e o Touré. Quanto a mim, não passa de um bec-bec. As forças do PAIGC representam, para o Touré um tampão que lhe protegerá para a fronteira Norte e se necessário o ajudará a manter-se no trono, já que no Sul o rapazola (recentemente cognominado de Le Grand Soleil – maravilhas do socialismo africano) estão de calcinhas, ou por outra, de tanga na mão. De resto, parece-me que não seria muito difícil dar-lhe umas boas palmadas no rabo. Os ebúrneos que se entretenham. Eles têm para lá uma FNL (decerto que entendes a sigla) e já chamam bandidos e outros nomes feios aos moços do PAIGC. Para mim, tanto faz que lá esteja o Mamadu, o Baldé ou Fosquinhas. O principal é que se dê o chuto nos tais bandidos e seja amigo da tropa. A actual situação militar, como já deves ter depreendido através dos monocórdicos comunicados não é propriamente fantástica. A maralha não defronta uns bandos mas (e eu sei) gajinhos muitíssimo bem treinados e ainda por cima enquadrados por russos (chamemos assim aos brancos do lado de lá) e cubanos. Vou até ousar afirmar que não é em Moçambique ou em Angola que vão incidir maiores esforços do IN para nos pôr a andar. É aqui na Guiné.”


Interrompemos aqui a carta de Pedro Barros e Silva para Paulo António, é muito extensa e escusado é relevar que merece ser lida com a maior atenção.

Mensagens de Natal, Guiné 1966, RTP Arquivos

(continua)
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Nota do editor

Post anterior de 24 de setembro de 2024 > Guiné 61/74 - P25976: (De) Caras (220): Correspondência da Guiné para Paulo Osório de Castro Barbieri (2) (Mário Beja Santos)

terça-feira, 24 de setembro de 2024

Guiné 61/74 - P25976: (De) Caras (220): Correspondência da Guiné para Paulo Osório de Castro Barbieri (2) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 12 de setembro de 2024:

Queridos amigos,
Esta carta do tenente Barbieri para o seu irmão, Paulo António, em Lisboa, terá a ver com uma viagem que este oficial da Armada fez a caminho de Luanda com paragem em Bissau. Não deixa de surpreender a riqueza da informação que foi prestada, certamente no Comando de Defesa Marítima da Guiné. Há, evidentemente, dados arbitrários, discutíveis, desde os 10% do domínio territorial do IN, passando pelo gasto de 80 granadas de morteiro numa operação de emboscada, até ao poderio naval do IN, nesta data o PAIGC já deslocava pela calada da noite embarcações no Sul, daí as operações com êxito efetuadas pelo comandante Alpoim Calvão, a previsão do tenente de Barbieri quanto a um poderio naval no Sul nunca se concretizou, bem como o sistema antiaéreo que ele refere na região do Quitafine acabou por ser aniquilado. Este documento, à semelhança da correspondência para Paulo Barbieri, prendendo-se sempre com o tema da guerra colonial, será posteriormente entregue no Arquivo Histórico-Militar.

Um abraço do
Mário



Correspondência da Guiné para Paulo Osório de Castro Barbieri (2)

Mário Beja Santos

Dei conta ao leitor que nas minhas deambulações pela Feira da Ladra conto sempre cumprimentar potenciais fornecedores, um deles dispõe em cima da sua banca álbuns fotográficos, caixas com velhos bilhetes-postais, fotografias avulsas, maços de aerogramas (infelizmente só de Angola e Moçambique), material avulso, desde programas de ópera a teatro de revista, tudo para satisfazer a clientela de colecionistas, que ali aparece em número apreciável. Bato quase sempre com o nariz na porta, mas desta feita apareceram para ali quatro cartas destinadas a Paulo António Osório de Castro Barbieri, duas escritas pelo seu irmão na Guiné, Nuno Barbieri, e outras duas escritas por um alferes na Guiné, seu amigo, Pedro Barros e Silva, SPM 0368. Já aqui se publicou a primeira carta de Nuno Barbieri para Paulo António, vejamos agora a segunda, com data de 12 de maio de 1967:

“Meu caro Paulo:

Deixei Bissau ontem à tarde sob a ameaça de um tornado, que não tardou a desabar sobre nós no canal de Geba e que veio anunciar a época das chuvas por estas paragens. No momento presente o céu está aberto e o Sol começa a escaldar e isto a umas escassas milhas da costa, pois há cerca de 1 horas passámos pelo través do Cabo Verde. Não só este regime é instável, como também estamos em presença de um microclima, o da Guiné.

Devo dizer-te que um dia antes de chegarmos à Guiné a cor do mar sofreu uma alteração sensível de azul para verde-sujo e isto seria uma amostra da cor das águas marinhas daquela costa. Quando nos levantamos verificamos com desagrado que o mar passara a cor de água de charco. Costa não se via ainda, embora pouco mais tarde nos aparecesse misteriosa, encoberta por um véu de neblina que nós atribuímos ao facto de ainda ser manhã cedo.

A nossa chegada a Bissau foi um acontecimento para as forças navais, que nos vieram esperar sob formatura, com todas as pequenas e ‘grandes’ unidades disponíveis no momento. Era uma da tarde e Bissau continuava encoberta por uma neblina agora parda e apenas nos deixava ver a orla costeira de edifícios e árvores. Sob os nossos pés a chapa de aço fazia arder os sapatos e começava a tornar-se incomodativo para quem como nós tínhamos de estar parados em formatura. Devo dizer-te também que no dia anterior à nossa chegada já a noite se apresentou húmida embora estivesse longe da costa e isso não se parecesse nada com o que nos esperava: 93% de humidade na atmosfera!

Tirando os habitantes e os arredores, Bissau parece uma cidade portuguesa de província onde a desmentir tal facto existe talvez um excesso de geometria no traçado das ruas e um elevado número de cores no tipo de moradias. No entanto, existe qualquer coisa que nos lembra imediatamente que estamos numa terra sob a nossa influência. A presença islâmica é aqui verdadeiramente notável, tendo dado ao negro não só uma aparência de dignidade como também uma mobilização humana orientada que nos pode ser útil ou difícil de suportar, conforme a soubermos manejar.

Etnicamente a Guiné compõe-se de Fulas, Futa-Fulas no Leste, Balantas na faixa central, Mandigas na zona de Como e Cantanhez, Papéis e Balantas ao pé de Bissau e Manjacos no Noroeste. Os Fulas não podem com os Balantas e vice-versa, no entanto as nossas autoridades esforçam-se para a pacificação e é nesse sentido que se procura encarar a fraternização dessas duas etnias. 

Se se perguntar qual a razão por que o terrorista se estabeleceu com tanta força no Sul, e se encarniça a defender essas terras, é porque essa é a zona mais rica em agricultura da Guiné, arroz, e também porque pode receber diretamente da República da Guiné o apoio de que necessita.

As vias de abastecimento do IN são nossas conhecidas e de vez em quando flageladas. Tal conhecimento não nos impede, no entanto, de permitir outras vias sob pretextos humanitários, de tratamentos médicos à população do Senegal que ‘pacificamente’ entra na Guiné para receber tratamento.

Chega-se agora à conclusão da necessidade de organizar a nossa administração sob o tipo de hierarquias paralelas, como único meio de fazer frente à forte organização IN. Este realiza um esforço triplo: de informação, de abastecimento em pessoal e material, e finalmente o de guerra.

 A sua informação na maioria dos casos é superior à nossa e a tal ponto que o fator surpresa não conta praticamente para o nosso lado. O seu abastecimento é bastante eficiente pois material não lhes falta, nem tão pouco munições. É vulgar o IN gastar numa operação de emboscada 80 granadas de morteiro. Como sabes, apareceu agora como novo elemento na dança o canhão sem recuo, que é transportada às costas até ao local da emboscada. Ao longo das principais do IN encontram-se peças antiaéreas duplas que tornam praticamente ‘impossível’ o voo da FAP.

Existe também um contra às nossas ações que é dado pela uniformidade de relevo da Guiné. A falta de pontos conspícuos torna difícil a navegação marítima e terrestre. Sempre que uma força é obrigada a desvia-se de estradas ou picadas por razões de surpresa ou de segurança, tem de se fazer navegação por bússola aproveitando o tipo de vegetação como elemento auxiliar na identificação da posição.

A navegação costeira é feita a olho assim como a determinação dos pontos de reunião de forças desembarcadas com as unidades navais de recuperação. Tal facto apresenta o inconveniente da escolha obrigatória de pontos de desembarque e de reunião, facilmente identificados pelo IN.

Logo que os informadores de Bissau assinalam a partida de uma força anfíbia ao Sul, para o Norte, pelo Geba acima, imediatamente as posições prováveis de desembarque e de ação se tornam identificadas. Para fugir a este inconveniente, o desembarque realiza-se muitas vezes acima de um arbusto, quase arbóreo, que pela sua densidade forma uma massa impenetrável. É o tarrafo, que separa a linha de água da terra firme, numa margem de cerca de 300 m e que é necessário percorrer de ramo em ramo com o material às costas e de regresso, com feridos, prisioneiros e material apreendido. Assim consegue-se desembarcar em qualquer lugar do rio ou da costa e ganha-se segurança. 
Porém, o desgaste físico é violentíssimo e a operação de desembarque demora por vezes 45 minutos. 

Outro aspeto característico da Guiné é a quantidade de líquidos que se absorve e o facto de nunca se conseguir ter o corpo seco. Qualquer gole de água que se beba parece que nos sai logo pelos poros da pele. O calor é muito violento, embora exista sempre uma aragem do mar que no nosso suor nos dá uma sensação de frescura. É apenas uma ilusão provocada pela evaporação do suor e talvez mesmo um meio de defesa.

Tudo isto se conjuga para nos dar a ideia de que a Guiné não é para nós a não ser um divertimento ou uma escola militar. É importante salientar o facto de que as populações indígenas constituírem no interior sistemas de autodefesa bastante eficientes e que por vezes por sua iniciativa tomam parte em ações deliberadas contra o adversário. Além disso, existe na Guiné a milícia que tem feito grandes ações e dado provas de bravura muito superiores a algumas das nossas forças.

Como sabes, o terrorista esforça-se para dominar as zonas ricas de gado e agricultura, não só para debilitar a economia da província como para resolver os seus problemas. Assim, pelo domínio substitui a nossa hierarquia administrativa pela sua, que compreende técnicas especializadas em assuntos agrícolas. Aonde o seu domínio não pode ser efetivo, o terrorista em ações isoladas vai subtrair às populações pela força o arroz de que tem necessidade. Porém, isso autoriza a nossa propaganda a classificá-lo como IN. 

Para fugir a tal classificação, o exército popular da libertação da Guiné começa a vir às nossas zonas comprar o arroz às populações com a nossa moeda, o que significa possuírem dinheiro suficiente para nos fazer concorrência ao nosso poder de compra!

Para terminar, basta dizer que o nosso espírito é o do saudosismo pela causa abandonada na metrópole. Felizmente ainda existem casos de reação e de vontade e que com a escassez de meios ao seu dispor conseguem equilibrar e, ultimamente, obter lenta vantagem militar.

Encontrei o Pedro
(adquiri na Feira da Ladra duas cartas do alferes Pedro Barros e Silva também dirigidas a Paulo António Barbieri, delas se fará referência adiante) no Quartel-General onde trabalha numa repartição de nome estranho e pouca importância. 

Persiste no bigode, embora mais curto para substituir as penosas operações militares dedica-se por vezes a pequenos distúrbios. Basta dizer-te que apanhou com uma garrafa na cabeça, mas segundo ele o adversário ficou pior! Saudoso de casa, isto é, da Europa e certos alimentos, o Pedro espera ardentemente livrar-se da Guiné. Faz projetos de férias que, suponho, te vai participar na próxima carta. 

Quanto ao seu aspeto físico achei-o bom embora com aquela cor um pouco verde da gente que aqui vive. As suas taras mantêm-se vivas e julgo que contraria outras bem mais numerosas. Jantei com ele no batalhão de engenharia por convite do coronel Branquinho e esposa. O comandante situa-se perplexo durante a guerra e diz-nos que a nossa ação será difícil. Esquece, porém, uma coisa, que estamos perante um teatro de operações que é do tamanho das nossas terras a Sul do Tejo e que de todo esse teatro só 10% está nas mãos do IN. 

Embora o terreno seja realmente difícil de atuar, as suas dimensões são, por outro lado, um auxílio nosso. A 20 km de Bissau as tropas estão em guerra o que mostra da parte do adversário o conhecimento que as dimensões estão contra ele. Obrigado por razões de economia a estabelecer-se em força no Sul, espalha-se pelo resto do território para evitar que esses 10% de espaço ocupado e de ação se situem numa zona delimitada, fácil de cercar e estrangular pelas suas pequenas dimensões.

Tudo isto é razão de sobra para a nossa atitude de boca aberta. Enquanto os comandos militares sofrerem de admirações e indecisões deste tipo, julgo que a supremacia será deles.

De todos os seus problemas talvez o das vias de comunicações seja o maior. Este traz problemas de atraso de abastecimentos e das informações e ordens, ao mesmo tempo que só são verdadeiramente possíveis deslocações no sentido Oeste-Leste. Norte-Sul implica o atravessar de numerosas vias de água, esta é a menor dimensão da Guiné logo para azar dos turras. Imposição por virtude de necessidades, de atravessar vias de água obriga os turras a lançarem mão de construção naval: pirogas, porém, uma vez obrigados a aceitar água, o turra serve-se dela para acelerar o abastecimento e a informação no sentido longitudinal, reduzindo assim uma combinação de deslocamentos terra-água o comprimento da Guiné para efeitos de tempo.

Parece-me nunca ser possível ao IN a utilização de outro tipo de embarcação, a não ser que a consolidação das suas posições no Como e no Cantanhez permita a instalação de artilharia de costa e assim estabelecer águas territoriais independentes ao Sul.

Essas águas independentes serão a porta de entrada de embarcações de guerra bem equipadas que a República da Guiné lhes queira fornecer. Primeiro como base naval, depois como irradiação do poderio naval para o interior, o Sul apresenta-se hoje como uma pedra-chave ao poderio do IN. 

A nossa fiscalização, embora dificultada pela ação das margens, não tem encontrado reação pelo próprio meio. Esta inicia-se agora por meio de minas nos rios, já tendo sido danificada uma lancha de desembarque, a ação no próprio meio a longo prazo e depois em ação direta do poderio naval. Isto obrigará da nossa parte a um aumento do custo da guerra, o qual deixará de ser compensado pelo nosso fraco objetivo ideológico.

Julgo ter-te dito tudo quanto consegui concluir no prazo de 2 dias em que aqui permaneci. Dá à família os carinhos devidos e insiste no estado perfeito da minha saúde, Nuno".


(continua)

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Nota do editor

Post anterior da série de 17 de setembro de 2024 > Guiné 61/74 - P25951: (De) Caras (219): Correspondência da Guiné para Paulo Osório de Castro Barbieri (1) (Mário Beja Santos)

terça-feira, 17 de setembro de 2024

Guiné 61/74 - P25951: (De) Caras (219): Correspondência da Guiné para Paulo Osório de Castro Barbieri (1) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 10 de setembro de 2024:

Queridos amigos,
Sendo completamente inútil tecer juízes moralizantes quanto às razões pelas quais aparecem na Feira da Ladra correspondência privada, ainda por cima comportando, dada a proveniência deste expedidor e deste recetor, compreensíveis melindres, que os herdeiros deviam acautelar, esta correspondência contribui para a compreensão do estudo de mentalidades, estão em causa duas pessoas de formação superior, pode avaliar-se que o expedidor tem noções claras sobre o muitíssimo que é necessário fazer para inverter a evolução da guerra na Guiné e temos aqui uma apreciação sobre os erros praticados, por incapacidade de avaliação estratégica ao nível de Comandos, numa operação que decorreu em junho de 1970, na Península do Sambuiá. Entregarei, como é óbvio, esta correspondência no Arquivo Historico Militar.

Um abraço do
Mário



Correspondência da Guiné para Paulo Osório de Castro Barbieri (1)

Mário Beja Santos

Nas minhas deambulações pela Feira da Ladra, tenho entre os meus fornecedores uma senhora que tem sempre na banca coleções de aerogramas, álbuns com oficiais da Armada, imensas caixas com bilhetes postais, fotografias, correspondência avulsa. Nesses sábados em que a visito há sempre um ritual da pergunta se apareceu algo relacionado com a Guiné, aerogramas, cartas, imagens. A resposta é sistematicamente negativa, o correio de guerra é sempre polarizado por Angola e Moçambique. Mas eis que naquela manhã a senhora me acenou e disse tenho ali uma carta que diz ser de Bissau, tenho a impressão que tenho lá mais, veja se lhe interessa, se lhe interessar trago o que encontrar.

Esta primeira carta endereçada a Paulo António Osório de Castro Barbieri foi-lhe escrita pelo irmão, tenente Nuno Barbieri, SPM 0418, tem interesse histórico, por isso se reproduz na íntegra. Caso o leitor pretenda saber quem escreve e quem recebe este documento, basta ir ao Google.

Vejamos, pois, o conteúdo da mesma, a primeira a que se irá fazer referência:

Bissau, 28 de junho 1970

Meu caro Paulo:

De boas intenções está o mundo cheio, no entanto é bem mais difícil concretizá-las. Refiro-me, é claro, aos teus anos que acabam de decorrer, a 23. Partindo do princípio que compreendes o que se passou, deixo de lado este assunto, enviando-te, no entanto, um grande abraço de parabéns, um pouco tardio.

Dificilmente consigo compreender as motivações que levam o pai a ocultar-me determinados assuntos, a não ser aqueles inerentes ao próprio “segredo absoluto”, que de forma alguma podem ser conhecidos de uma pequena minoria. Trata-se, decerto, do segredo dos deuses. Porém, como todos os segredos, mais tarde ou mais cedo acaba-se por se conhecer, senão o seu âmago, pelo menos as suas características mais evidentes. Refiro-me, é claro, ao litígio que opôs, em certa altura o pai ao Spínola.

Como a reforçar tudo isto, acabo hoje de aceitar um prolongamento da minha comissão, não no DFE, será rendido à data estabelecida, mas no Grupo de Acções Especiais do Comando-Chefe. A natureza de segurança deste meio não é suficiente a permitir-me esclarecer-te melhor qual o nosso papel e quais as tarefas a desempenhar.

Suponho, no entanto, que te bastará mencionar o facto de que passarei a estar subordinado ao Comandante Calvão. Talvez o pai te possa esclarecer sobre o assunto…

Estou em Bissau desde o dia 21, pois tive a possibilidade de aproveitar um avião, uma DO que fizera o PCV da Operação Meia Nau. Esta operação, espécie de grande batida à zona do Sambuiá, teve como resultado dois mortos do Exército e três feridos, um dos quais grave. Da parte do IN desconhecem-se os resultados, mas é de prever que os efeitos tenham sido ligeiros ou mesmo nulos.

A operação desencadeada visava uma zona já tradicional, procurando-se atuar sobre o IN, nos seus acampamentos de refúgio. Na realidade, as informações obtidas, umas do Senegal, outras de origens várias, eram absolutamente falseadas, lançadas no intuito de levar as nossas forças a desencadear uma operação de desgaste. Os objetivos entregues às tropas especiais, DFE 12 e DFE 7, revelaram-se inexistentes. Por outro lado, o bigrupo do Sambuiá atuaria sobre o perímetro externo de encercamento da zona, constituído por tropa dos aquartelamentos de três pontos distintos: Bigene, Guidaje e Binta.

Por ironia do destino, coincidência, ou fuga de informações, o IN escolheu a posição mais fraca, a assegurada pela tropa de Bigene. Claro que a pobre companhia de caçadores açorianos, quase exclusivamente armada de G3 e HK, foi completamente cilindrada. Valeu-lhe o helicanhão que em 5 minutos alcançou o local e obrigou à fuga do inimigo. Mesmo assim, as munições foram esgotadas e os resultados estavam definitivamente assegurados.

Ao meio-dia de 21, apenas restava mandar levantar o dispositivo posto em ação e contentarmo-nos com a captura de uma PPSH, já velha e três granadas de morteiro 82.  Graças a todos este esquema, estava em Bissau às 17h desse dia.

Para que possas ter uma noção mais completa da ação, será necessário frisar-te o seguinte: a tropa de Bigene e Guidaje, que recebera a missão de fechar o Sambuiá, foram enviadas, respetivamente, para as bolanhas de Samoje e de Facã – prolongamentos naturais do rio de Talicó (extremo Oeste do Sambuiá) para Oeste e deste. Por pouco que conheças a tática militar, logo te apercebes do erro destas “portas naturais”, aonde o terreno é plano. Claro que quem olha para a carta e desconheça este tipo de guerra, convence-se que a mata entre Facã e Guidaje constitui um tampão à passagem. A isto ponho apenas a pergunta: - Se quiseres penetrar no Sambuiá, sabendo que está a decorrer uma ação, ou de lá retirares, com a aviação na área, não irá escolher precisamente a mata? O arvoredo constitui a melhor garantia de cobertura em relação à observação aérea e para uma passagem fácil apenas é necessário abrir um trilho à catanada. Porém, desde há longa data que se fecha o Sambuiá nas bolanhas de Samoje e Facã!

Tirando estes pequenos acontecimentos, que vão constituindo a nossa guerra e a nossa vida, pouco mais há a dizer-te. Da situação geral da guerra deves estar mais bem informado do que eu, até porque enquadras este conflito dentro do quadro completo. 

Além disso, observas diretamente o nosso meio metropolitano, fator definitivo do conflito. Aqui, apenas chegam rumores adulterados do que se vai passando. Temos, no entanto, que compreender que a guerra dura quase há 10 anos, com todo o significado deste lento arrastar.

Aqui na Guiné, se bem que se esteja a trabalhar bem próximo do problema central, a questão socioeconómica, ainda não se adotaram medidas enérgicas para a solução definitiva. A revolução agrária que deveríamos decretar, no género do que se passa em Cuba, para aceleramento de produção de cana do açúcar, e que faria oscilar profundamente os quadros tradicionais africanos, daria a possibilidade de concretização e de luta à camada jovem africana. 

Assim, dentro destas perspetivas, a criação de campos de trabalho de jovens dos liceus, escolas técnicas e industriais, faria mostrar à população estagnada dos centros, que dispõem de meios de progresso e cultura, que a nossa luta é dinâmica e visa a solução do problema fundamental: o zero económico da província.

Por outro lado, poderíamos aproveitar o estado de guerra para expropriar as companhias monopolizadoras do território guineense. Todos os terrenos que não fossem cultivados, pelo menos nas épocas de melhor rendimento, reverteriam para o Governo da província e constituiriam uma espécie de bolo a dividir pelas populações que os pretendessem e cuja segurança pudéssemos garantir. Constituiríamos, assim, um novo tipo de propriedade, em função do investimento e do empenhamento na produção.

Os meios de escoamento das riquezas deveriam ser pertença do Governo, de forma a impedir o bloqueio de produtos por parte das companhias. Se a isto somássemos a obrigatoriedade da mobilização civil, por períodos de 2 anos, veríamos, rapidamente, solucionado o problema dos meios técnicos e humanos, isto é, engenheiros agrónomos, engenheiros civis, economistas, etc., que fariam uma comissão dentro do seu ramo de atividade – considerável aumento de interesse da camada civil de metropolitana por estas condições de Ultramar, devido à especialização que este período de tempo necessariamente acarreta.

Além disto, é necessário acelerar a educação na Guiné, quer ao nível juvenil, que em campanhas de educação de adultos, procurando uma lenta conversão de valores, fácil de obter em espíritos simples. Mas, sobretudo, é necessário compreender que não poderemos responder à real e profunda revolução africana de caráter comunista a “tranquilidade das populações”, tão do estilo do defunto Salazar. Alargar-me-ia muito mais sobre este assunto. No entanto, isto é o suficiente para te passar a palavra.

domingo, 7 de janeiro de 2024

Guiné 61/74 - P25046: Fotos à procura de... uma legenda (179): o que é o Joshua Benoliel fotografou em fevereiro de 1917 ? Um soldado a escrever uma carta de despedida para a família de um camarada analfabeto ? E com quê: lápis de carvão, caneta de aparo, caneta de tinta permanente ?...


Pormenor da capa da "Ilustração Portuguesa", II Série, nº 575, Lisboa, 26 de fevereiro de 1917. (Edição semanal do jornal "O Século"; editor lit.: José Joubert Chaves; nº avulso: 10 centavos.)

1. A legenda diz: "Expedicionários portugueses: escrevendo a um camarada uma carta para a família". ('Cliché': Benoliel)".

Será ? Aqui fica um desafio ao leitor:

O que é o militar (figura do lado esquerdo) escreve em cima do joelho ? É uma carta, um bilhete-postal ou um simplesmente apontamento num caderninho ? Será mesmo uma carta, talvez de despedida, para a família do outro camarada (também de perfil, à direita) ? Ainda estava por inventar o aerograma... e o SPM.

Estamos no cais de embarque, no cais de Alcântara, em Lisboa, em fevereiro de 1917... Os dois militares estão em vias de embarcar para França num vapor inglês, integrados no CEP (Corpo Expedicionário Português)...

E depois também não sabemos com que é que o militar escreve: lápis ou pena  de carvão, caneta de aparo (com bico de pato), caneta de tinta permanente ? A imagem não tem resolução suficiente para se poder tirar conclusões... Tanto pode ser um lápis (pelo comprimento e espessura) como uma caneta simples de aparo...

Com esferográfica, não é, seguramente; ainda não existia, só se iria vulgarizar nos anos 50, depois da II Guerra Mundial, "democratizando" a escrita. (Os mais de 500 ou 600 milhões de cartas e aerogramas que se escreveram ao longo da guerra colonial foram-no com a "Bic", a esferográfica por antonomásia).

Recorde-se que, tal como a nossa geração, os nossos camaradas do CEP (aqueles que tiveram a felicidade de andar na escola) aprenderam a escrever com giz (na ardósia e no quadro preto), com pena de carvão, e lápis e depois com caneta simples, de aparo, de ponta metálica, que se molhava no tinteiro, de porcelana, acoplado no respetivo orifício da carteira escolar...

E o segredo do artista era, então, "não borrar a escrita", isto é, o papel, uma infelicidade que custou a muitos de nós algumas dolorosas reguadas e ponteiradas, por parte do professor (e se calhar também muitos puxões de orelhas, por parte  das nossas mães,  por sujarmos a roupa com o raio da tinta azul real)...

A caneta de tinta permanente (com reservatório) era um luxo que o "papá rico" dava ao menino sortudo quando este era aprovado no exame de admissão ao liceu... Na I Grande Guerra só estaria ao alcance dos oficiais...

Em 1917, o soldado do CEP já se dava por contente se tivesse papel, tinteiro com tinta e caneta de aparo na sua trincheira na Flandres (mas, convenhamos, não era nada prático molhar o bico da caneta no raio do tinteiro ao som dos canhões)...

Bem, vamos lá fazer o "trabalho de casa"... "Bitaites" precisam-se para melhorar a legenda desta grande foto do Benoliel (mais uma, tirada à malta do CEP, e é pena que ele não fosse vivo no tempo em que a gente foi à "guerra do ultramar", partindo do Cais da Rocha Conde de Óbidos nos Niassas e nos Uíges; infelizmente, morreu trinta anos antes).

Em boa verdade, nós, antigos combatentes das "guerras de África"(1961/74), não tivemos os fotojornalistas (e muito menos os fotocines) que merecíamos...

quinta-feira, 6 de abril de 2023

Guiné 61/74 - P24203: Blogoterapia (311): A sombra do jagudi (Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547 / BCAÇ 1887, Canquelifá e Bigene, 1966/68)

A SOMBRA DO JAGUDI

adão cruz

Acordei com um sol baço, esfreguei os olhos, espreguicei-me a todo o comprimento dos braços e bocejei a toda a largura da boca. Na rede mosquiteira, um grande insecto, enredado nas malhas, desesperava por se libertar, arrancando das asas um zumbido estridente de raiva e de agonia. Ainda ensonado, achei que era eu próprio a libertar-me da prisão onde me enfiaram.

Só tinha adormecido pela madrugada, com um peso no peito e um amargo na boca, deixado pela repetida leitura da carta da mãe da Sónia.

A Sónia vivia na África do Sul. Conheci-a em Lisboa, onde ela passava as férias com os pais, que eram amigos da família do meu colega Carvalho Santos. Era uma lindíssima miúda de vinte anos, cheia de sol e futuro. Com ela convivi durante os dias que precederam o meu embarque para a guerra da Guiné e o regresso da Sónia à África do Sul. O tempo suficiente para que dentro de nós se criasse uma linda relação e uma promessa de correspondência futura.

Entra a Guiné e a África do Sul, trocámos tantas cartas quantas o tempo e a distância o permitiram. Todas levavam e traziam as mais bonitas palavras que cada um de nós tinha dentro de si. Mas este fio de água cristalina que tão bem refrescava o calor da Guiné, subitamente secou. Durou metade da guerra. De um momento para o outro, as cartas deixaram de aparecer, como se no céu as estrelas se apagassem. A última que recebi foi da mãe da Sónia, dizendo que a filha morrera, vítima de um cancro da medula. Nunca de tal coisa a Sónia me falara. Nunca as suas cartas se escureceram. O estrondo que senti dentro do peito não foi menor do que o duma bazuca. Fugi para o meu quarto e encolhi-me até onde as carnes se dobraram. Dentro da carta vinha um pequenino alfinete de ouro, “a singela joia de que ela mais gostava” e que ainda guardo… mas não sei onde.

(Jagudi era o nome dos abutres, na Guiné)

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Nota do editor

Último poste da série de 3 DE JANEIRO DE 2023 > Guiné 61/74 - P23944: Blogoterapia (310): Não estou bem, e como anteriormente já dissera, voltei a ir para o "Corredor da Morte" (Mário Vitorino Gaspar, ex-Fur Mil Art MA)

segunda-feira, 5 de setembro de 2022

Guiné 61/74 - P23589: Notas de leitura (1488): "Sinais de Vida, cartas da guerra 1961-1974", por Joana Pontes; Tinta-da-China, 2020 (2) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 29 de Janeiro de 2020:

Queridos amigos,
O livro de Joana Pontes lê-se com fervor, é percetível, do princípio ao fim, a singularidade do projeto, tomar a correspondência trocada para ir assinalando a mudança dos homens e a mudança da época em Portugal. As conclusões da autora são para ter em consideração, já que estão envolvidos todos os anos da guerra: a ânsia em regressar, a alegria de receber a tropa que nos vem render, informar a família de que tudo se faz para que o tempo passe sem incidentes, a ausência de compreensão de um grande ecrã em que se situe toda a questão colonial, fala-se de um período de tempo, de um local, ninguém assume que é o todo, porque não se conhece o todo; e com o passar dos anos o sacrifício que é exigido para defender a pátria esbate-se e contesta-se intimamente. Se alguma lacuna significativa encontro neste belo trabalho é exatamente a desproporção no tratamento dos três teatros de guerra: a Guiné tem a porção menor, quase residual, quando se sabe que nada foi assim, a despeito do acervo de correspondência talvez seja minguado quanto às terras de bolanha e tarrafo. Paciência.

Um abraço do
Mário



A correspondência da guerra colonial: uma amostra de mudanças em Portugal (2)

Mário Beja Santos

Como se disse no texto anterior, trata-se de um belíssimo trabalho, de uma fecunda investigação, é uma das obras mais originais que até hoje se produziu em torno dos olhares sobre a guerra colonial, documento a partir de agora indispensável: Sinais de Vida, cartas da guerra 1961-1974, por Joana Pontes, Tinta-da-China, 2020. Joana Pontes é doutora em História na especialidade de Impérios, Colonialismo e Pós-Colonialismo, tem currículo firmado no jornalismo televisivo e foi membro da Direção da Liga dos Amigos do Arquivo Histórico Militar. Colaboradora no Projeto Recolha, destinado a evitar o desaparecimento da memória escrita da guerra, acompanhou de perto a chegada de um arquivo fecundíssimo, pois foram contabilizadas cerca de 4400 cartas e aerogramas, aproximadamente 11300 páginas, operação que decorreu entre 2003 e 2010.

No seguimento da recruta e da especialidade, em que os militares traziam produtos de fumeiro, queijos, vinho e aguardente, mimos com valor identitário, provas de zelo dos pais, já que corria fama universal que a comida da tropa não era muito atrativa, os cuidados agora, em que há uma separação de milhares de quilómetros, mudam de registo: quem está na guerra fala nos mosquitos, nos perigos da bicharada, nos enlatados das rações de combate, na dobrada liofilizada, no esparguete com salsicha. As mães, mulheres e namoradas não se esquecem de transmitir essa preocupação: Também estou ralada que passes mal de comer. Mas dão conselhos de outro género: Não te deites com a roupa molhada; agasalha-te bem para não te constipares; não tires o soustento ao teu corpo vaite alimentando que tu aí não tens quem olhe por ti. Há de facto a lavadeira e costureiros, mas o grau de dependência destes jovens militares reduz-se significativamente, um deles escreve à mãe: Quando for para aí, serei um outro homem talvez um pouco mais bruto, mas muito mais homem. Se eu tivesse sempre debaixo das suas saias seria menino, e hoje não o sou. Estamos dentro do paradigma de que a tropa ensina a ser homem. As doenças não são esquecidas e os animais perigosos muito menos, fala-se em febres, formigas que mordem, paludismo, clima doentio. Há quem confesse à mulher que está a tomar Librium, para tratar a ansiedade.

As informações sobre a vida nas colónias é uma constante: Luanda é muito cara, o dinheiro desaparece rapidamente, entre amigos há comentários sobre as belas mulheres que circulam nas ruas ou nas praias. Surge um novo léxico, e explica-se para a metrópole o que é ser maçarico, o significado de “checas”, “peluda”, “puto”, “jinguba”, “mainato”, “alfaiates”, “maningue”, “cacimbado”, “água de Lisboa”. Há a descrição das belezas naturais, do que é o Ramadão, fala-se dos filmes que é possível ver, estrangeiros e internacionais. Pedem-se livros às famílias, mas também se podem comprar nas cidades. Nota curiosa que registo de Bissau: na livraria da 5.ª Repartição (Café Bento) podiam ser adquiridos livros recolhidos pela censura na metrópole.

Como observa Joana Pontes, o facto de a situação de guerra ter levado a um corte abrupto com a vida anterior, os ingredientes da narrativa também mudaram de registo e ganham ênfase com o passar dos meses. Mas os episódios mais brutais não são contados às famílias de um modo geral, escolhem-se os amigos para falar de emboscadas, de rebentamentos, de evacuações por helicóptero, das destruições dentro do aquartelamento por obra das flagelações. Mas há casos em que não falta pejo para dar notícias às famílias sobre os episódios da guerra: eu matei um Turra com dois tiros na cabeça e um nas costas e não tive medo nem nonjo. Há quem apele, do lado de cá, para a prudência, do género: Vê se te resguardas. Cumpre o teu dever mas nada de heroísmos mas sim salvar a pele, que é o que mais precioso temos; Fiquei muito contente por saber que ultimamente não tens saído para o mato. Deus queira que isso não aconteça nestes tempos mais próximos, nem nunca mais se possível fosse.

Conta-se o tempo, põem-se cruzes em cada dia do calendário. Do lado de cá, dão-se novidades sobre as mudanças, e não se esconde que se leva uma vida dura: me doi as pernas de Domingo ter ido para o rio da manga lavar estava habituada a lavar na arca-d’água as pedras são mais altas e por esse motivo é que me custa a andar. As transformações são lentas mas sentidas a olhos vistos. A autora recorda que em 1963 o valor da produção industrial se tornou superior ao da produção agrícola. O produto interno bruto português era no final da década de 1950, o mais baixo dos países da OCDE. A abertura económica ao exterior, as poupanças que os emigrantes enviavam para Portugal e as receitas do turismo que, nessa altura, chegava finalmente em massa a Portugal, contribuíam de forma clara para que as taxas de crescimento da economia portuguesa fossem superiores à média da Europa Ocidental. Surgiu a contestação universitária, crescia a presença feminina nos estudos universitários, apareceu o planeamento familiar, o ideal da esposa doméstica deixou de ser um objetivo em si para a maioria das mulheres, expandiu-se a escolaridade, a telescola arrancou em 1965, as cidades cresciam, os campos iam ficando ao abandono. Esta transição insinua-se claramente na correspondência de cá para lá.

Na segunda parte da obra, a vivência da guerra propriamente dita, Joana Pontes repertoria os acontecimentos em Angola, 1961-1963 e 1963-1965, depois Moçambique 1964-1966, voltamos a Angola, agora 1966-1967, e também Angola-Moçambique 1966-1968 (correspondência de um paraquedista que se alistou como voluntário aos 18 anos), o único testemunho da Guiné é referente ao período 1967-1970; segue-se Angola 1967-1969 e vem a seguir Moçambique 1970-1972; caminhamos para o fim, temos agora correspondência em Angola, 1973-1974. A autora tira conclusões sobre a evolução do pensamento dos militares ao longo destes anos de guerra: a vontade expressa de regressar à metrópole, a ânsia permanente; a vontade de não arriscar e fazer o possível para que o tempo passe sem incidentes, procurar só fazer o estritamente necessário; a manifesta falta de compreensão, em sentido lato, da questão colonial; a observação de que a crença na virtude do sacrifício exigido a todos para defender a Pátria se vai esbatendo ao longo da guerra; a ausência de entendimento geral da evolução do conflito, os relatos dos militares assinalam episódios pontuais, podem dar informações privilegiadas, mas nada mais; a insistência em falar no modo de vida precário e falta de condições, a dureza das operações e mesmo a saturação que se atingiu; a descrição do inimigo e do equipamento, à medida que o tempo passa diz-se que os guerrilheiros se apresentam bem armados e enquadrados; e temos ainda a constante da vivência monótona e com diferentes matizes a confissão de estar só, independentemente dos vínculos da camaradagem.

Em termos de epílogo, a autora regista que falta um trabalho de integração destas memórias na narrativa histórica da guerra. “A não existir esta integração, haverá condições mais favoráveis para o aparecimento de uma reelaboração e reinterpretação histórica enviesada, porque desligada de contexto e da realidade social da época”.

Imagem da guerra, retirada do blogue Galeria dos Goeses Ilustres, com a devida vénia
Gil Manuel Pereira Francisco, combatente na Guiné, imagem retirada do site do Instituto Politécnico de Viseu, onde ele foi entrevistado, com a devida vénia
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Nota do editor

Último poste da série de 2 DE SETEMBRO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23578: Notas de leitura (1487): "Sinais de Vida, cartas da guerra 1961-1974", por Joana Pontes; Tinta-da-China, 2020 (1) (Mário Beja Santos)

sexta-feira, 2 de setembro de 2022

Guiné 61/74 - P23578: Notas de leitura (1487): "Sinais de Vida, cartas da guerra 1961-1974", por Joana Pontes; Tinta-da-China, 2020 (1) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 29 de Janeiro de 2020:

Queridos amigos,
Temos aqui um olhar singular sobre a correspondência trocada entre militares e família e amigos, uma sala de conversa onde cabem namorados, pais e filhos, amigos e camaradas de armas e muitas madrinhas de guerra. Joana Pontes disseca admiravelmente as mentalidades, o papel do homem ainda cheio de autoridade, o mundo rural a caminho do abandono, os sinais de desenvolvimento, a muita gente que parte para o estrangeiro à procura de melhores condições de vida. E ver-se-á à frente, quando a abordagem for o modo de viver a guerra, que até se ultrapassam os limites impostos pela censura, há quem se vanglorie das suas façanhas, quem chore os amigos mortos e feridos. Enfim, um olhar sobre documentos, necessariamente de valor limitado, mas que podem contribuir para entender como estes jovens mudaram lá fora numa sociedade que mudava cá dentro.

Um abraço do
Mário



A correspondência da guerra colonial: uma amostra de mudanças em Portugal (1)

Mário Beja Santos

Trata-se de um belíssimo trabalho, de uma fecunda investigação, é uma das obras mais originais que até hoje se produziu em torno dos olhares sobre a guerra colonial, documento a partir de agora indispensável: "Sinais de Vida, cartas da guerra 1961-1974", por Joana Pontes, Tinta-da-China, 2020. 

Joana Pontes é doutora em História na especialidade de Impérios, Colonialismo e Pós-Colonialismo, tem currículo firmado no jornalismo televisivo e foi membro da Direção da Liga dos Amigos do Arquivo Histórico-Militar. Colaboradora no Projeto Recolha, destinado a evitar o desaparecimento da memória escrita da guerra, acompanhou de perto a chegada de um arquivo fecundíssimo, pois foram contabilizadas cerca de 4400 cartas e aerogramas, aproximadamente 11300 páginas, operação que decorreu entre 2003 e 2010. 

Recordo que ainda hoje não é difícil encontrar aerogramas e cartas deste período na Feira da Ladra, o artista Manuel Botelho adquiriu na Feira da Ladra um acervo da correspondência de um casal, ele fazia a sua comissão no Bachil, a 25 km de Cacheu, deu origem a uma instalação. Uma correspondência espantosa, há os entusiasmos iniciais, os projetos que ficaram adiados dois anos, em dado momento há sinais de desalento, parágrafos onde se manifesta o acabrunhamento, a dúvida, o fogo lento da solidão, por vezes pavorosa. Quantos casais não partilharam esta esfera sentimental?

No prefácio da obra, Aniceto Afonso dá-nos uma explicação comportamental dos ex-combatentes:

“A relação dos ex-combatentes com a sua memória da guerra teve um percurso complexo. Começou timidamente após o 25 de Abril, estagnou por vários anos e acabou por florescer em torno da passagem do século. A partir daí, multiplicaram-se os fóruns, os livros de memórias (ficcionados ou não), as entrevistas, as publicações individuais ou mesmo coletivas. A abundância de depoimentos, de regressos escritos ou falados, de despreocupadas ou penosas intervenções nas redes sociais, onde tantos têm tido oportunidade de contar a sua história, toda esta corrente de informação, de lembranças, de opiniões, vêm colocando, como sempre colocaria, um sério problema aos estudiosos que se dispõem a analisar todo este imenso material, que todos os dias se acrescenta”

E o investigador refere igualmente o interesse manifestado na esfera universitária pelo universo da guerra colonial, nas suas múltiplas vertentes.

Joana Pontes estrutura o seu trabalho em dois enormes módulos: o primeiro intitula-se “As palavras escritas no papel e na alma”, com o subcapítulo “A vida por mensagem”; o segundo “Viver a guerra”.

Confesso que valorizo mais este primeiro módulo, a investigadora é rigorosa nos enquadramentos de um Portugal que caminha para o modelo industrializado e abandona a agricultura. Ela não tem ilusões e escreve:

“A visão de conjunto dada por estas narrativas individuais é necessariamente uma visão incompleta e imperfeita da guerra, mas permite encontrar respostas a questões que são políticas no sentido lato e que se colocam relativamente a este acontecimento: o que é que aconteceu, que importância e consequências teve?”

Elenca os intervenientes, na sua maioria de origem rural, também a maioria pertenceu ao Exército, e apresenta microbiografias dos intervenientes. O aerograma é a principal ferramenta de comunicação; aliás, escasseia o papel, os envelopes e os selos no mato, as chamadas telefónicas eram dispendiosas, qualquer telefonema era marcado com antecedência. Há correspondência que leva desenhos e até poemas. Quando se mandam cartas, escolhe-se geralmente papel fino. Luís, destacado no extremo norte de Moçambique, escreve à mulher o espaço em que está confinado e a importância do correio para os militares:

“Existe em Nangade um retângulo de terra batida onde aterram aviões. Às sextas e terças-feiras sentimo-nos como que impulsionados para junto desse pedaço de terra lisa e barrenta. Todos, iguais, soldados e chefes, são nivelados pela mesma ansiedade e palpitar de emoção. E poucos são aqueles que têm o privilégio de ainda dentro do edifício onde se abrem os sacos de correio receberem o pedaço de papel que lhes revigora a alma e lhes faz sentir menos penoso o calvário. Mas são também poucos aqueles que têm que esconder duas lágrimas quando este privilégio os coloca na situação de simples espetadores…”

E desfilam as emoções, o momento da distribuição do correio, o desalento e até algum desespero de quem não recebe notícias, é o amor de mãe, são as notícias da mulher ou da namorada, é o perceber que a milhares de quilómetros de distância existem raízes e alguém que informa o que por ali se passa, até os falecimentos de outros jovens. É bom que alguém nos escreva lá nosso fim do mundo, aquela frase cala fundo: quando recebo carta tua é uma alegria tão grande que tenho e ajuda-me a viver. Quem está na guerra procura explicar o terreno, o tempo, as tarefas, faz perguntas, vem completamente à tona o quadro de mentalidades: o meter a cunha, o querer a mulher recatada, os códigos cifrados em matéria sexual, a conversa variegada com as madrinhas de guerra. 

As fotografias são da maior importância, o ausente é classificado como ícone: “A tua fotografia está em todos os cantos da casa”. A ânsia por novidades cabe nesta frase, vinda da guerra: “Se souberes novidades manda dizer que eu gosto de saber”. Há famílias em extrema dificuldade financeira, há as fugas a salto para França e outras paragens, em dado momento vão pululando informações sobre o dinheiro da França, o turismo no Algarve, os apoios sociais, o subsídio de Natal. A imagem do homem que manda aparece com muita nitidez, quem está na guerra pede recato, há mesmo saudades de autoridade do macho: tu chegavas os sábados vinhas ainda me batias mas eu tenho tudo guardado quanto passei contigo.

A religião pesa e muito:

“Encontramos inúmeras referências às figuras de devoção a quem se fazem estas promessas: São Lázaro, São Judas Tadeu, São Roque, Anjos da Guarda, Senhora da Hora, Santa Maria Adelaide, Santa Maria Madalena, Santa Sãozinha, Nossa Senhora da Paz, Nossa Senhora da Saúde, Nossa Senhora dos Aflitos, que acode a quem vai ter filhos, São José, São Veríssimo, São Sebastião, advogado dos soldados, Santo Amaro, advogado dos ossos e Santa Rita, advogada das coisas impossíveis”

O culto mariano é uma constante nesta correspondência. A Igreja e o Movimento Nacional Feminino não esqueciam a necessidade de manter o moral em alta e levar os militares a um comprometimento maior com o esforço de guerra, patriótico e cristão.

Mas ainda há mais algumas coisas a dizer sobre a experiência da distância de casa, o que chega à guerra e o que da guerra parte para a família e para os amigos.
Exposição/instalação de Manuel Botelho intitulada Cartas de Amor e Saudade, Centro Cultural de Cascais, 2011

(continua)

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Nota do editor

Último poste da série de 1 DE SETEMBRO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23577: Notas de leitura (1486): "Panteras à solta", de Manuel Andrezo (pseudónimo literário do ten gen ref Aurélio Manuel Trindade): o diário de bordo do último comandante da 4ª CCAÇ e primeiro comandante da CCAÇ 6 (Bedanda, 1965/67): aventuras e desventuras do cap Cristo (Luís Graça) - Parte VI: "Cercados de guerrilheiros por todos os lados", diz o alf mil Ribeiro, no "briefing" da praxe...

terça-feira, 19 de julho de 2022

Guiné 61/74 - P23443: Estórias do Zé Teixeira (54): Amores em tempo de guerra: II - Correspondência desviada (conclusão) (José Teixeira, ex-1.º Cabo Aux Enfermeiro da CCAÇ 2381)

1. Em mensagem do dia 17 de Julho de 2022, o nosso camarada José Teixeira (ex-1.º Cabo Aux Enfermeiro da CCAÇ 2381, Buba, Quebo, Mampatá e Empada, 1968/70) enviou-nos, como tinha prometido, a segunda parte da sua estória Correspondência desviada.


Amores em tempo de guerra II

Correspondência desviada (continuação)

Resumo da primeira parte(*)

O alferes José Barbosa foi acordado alta noite. Alguns soldados do seu grupo de combate discutiam. Levantou e foi verificar o que se passava. A discussão centrava-se no Joaquim Santos que ultimamente ao regressar do seu serviço de sentinela acordava os camaradas em altos berros e palavrões.

O alferes, perante as queixas dos camaradas,   dispôs-se a ouvir o Joaquim em privado. Descobriu um homem transtornado. Todas as semanas escrevia à esposa e vice-versa. Ultimamente a correspondência que ele enviava à esposa extraviava-se, o que estava a degradar a relação entre o casal.

O alferes orientou-o quanto à forma segura de fazer chegar a sua correspondência à esposa. Aconselhou-o a ir de férias à metrópole e em conversa com a esposa aclarar a situação e resolver o problema.



Férias bem merecidas

No dia seguinte o Joaquim escreveu à esposa, seguindo o estratagema aconselhado pelo alferes, informando-a que contava regressar de férias dentro de algum tempo para estar com ela. Certo, porém, que o pobre rapaz acalmou depois da conversa com o comandante.

O alferes recolheu os elementos necessários sobre a morte do irmão do Joaquim em Angola, e fez uma exposição ao Comando Chefe de Bissau. Havia de facto uma lei militar que isentava de servir a Pátria, em missão no Ultramar, todo o militar a quem tivesse falecido algum irmão em combate. Tal lei estava escondida num Decreto-Lei e só era usada a requerimento do próprio interessado. Ora como ninguém conhecia a lei, esta não era cumprida.

Passado cerca de quinze dias, embarcou no avião da TAP em Bissau. Ainda a tempo de receber uma carta da esposa que o deixou imensamente feliz. Ela esperava-o ansiosamente, falava-lhe da menina com um entusiasmo de enlouquecer. Para aumentar a sua felicidade, vinha na carta uma fotografia da Anita, a sua menina que mal conhecera.

Tudo aconteceu rapidamente. A confirmação da viagem, a ida para Bissau no lugar do copiloto de um bombardeiro T6 e o embarque dois dias depois, de manhã, para Lisboa, que nem teve tempo de informar a esposa da data de chegada. O único telefone que havia na sua terra era propriedade do merceeiro. Possivelmente o Joaquim não sabia o número do telefone, mas nem pensou em tal. O importante era chegar junto da sua esposa, da sua menina, e abraçá-las.

- Cheguei!... E agora, vou ter com a Ana Maria ao trabalho? Vou a casa dos meus sogros ver a Anita? Vou a minha casa ver a minha mãe e talvez o meu pai esteja por casa!?… - pensou o Joaquim, logo que se viu fora do aeroporto de Lisboa.

Aspirou profundamente o ar de Lisboa, o ar da liberdade, da segurança… Sentia-se seguro, mas estava inquieto, nervoso. Dentro da sua cabeça bailavam fantasmas que tentava expulsar. Seguiu para a central de camionagem à procura de transporte que o levasse até à vila a cerca de cinquenta quilómetros de Lisboa. O restante percurso, de cinco quilómetros, teriam de ser feitos a pé. Não era dia de feira, não havia outro tipo de transporte, a não ser de táxi, muito caro para o seu bolso. O seu meio de transporte era a bicicleta que estava parada em casa da mãe, desde que partira para a vida militar. Talvez depois fosse ter com a Ana Maria, cujo transporte da empresa de confeções até casa, também era a bicicleta.

A mãe do Joaquim, nem queria acreditar. O seu menino regressou. Mal sabia que era apenas por trinta dias, mas estava ali e isso era o mais importante. A Ana Maria tinha-a informado da feliz notícia, mas ela não contava que fosse tão rápido. Tremia. Tremia de alegria incontida. Pendurou-se no seu pescoço. (Tinha um físico de mulher baixa e abonada. Ele era parecido com o pai; alto e forte.) Chorou de alegria. Choraram ambos, mas pouco conversaram. O Joaquim foi buscar a bicicleta e preparou-se para abalar ao encontro da esposa. Azar o seu. A bicicleta por falta de uso tinha os pneus vazios. Felizmente a do pai estava ao lado e o Joaquim nem pediu licença. Partiu a todo o gás para apanhar a Ana Maria à saída.

Ela não contava com o Joaquim ali. A surpresa paralisou-a, para de seguida atirar a bicicleta ao chão e correr para ele. Só os verdadeiros amantes saberão compreender o que se passou naqueles dois corações. Os seus corpos uniram-se em abraços sem fim. Aqueceram-se em ternos beijos e poucas palavras. A felicidade apoderou-se deles. Longos minutos depois, seguiram para cada dos pais da Ana Maria ao encontro da Anita a filha, fruto do seu amor.

O tempo voou. O mês de férias esgotou-se sem que antes pusessem as conversas em dia e alimentassem profundamente o amor que os unia. Tentaram descobrir porque não chegavam os aerogramas que o Joaquim escrevia, sem resposta plausível.

O tio, que lhes cedera o pequeno espaço para Ana Maria e a Anita viverem na ausência forçada do sobrinho, acolheu-os, estranhamente, com alguma frieza. Desconhecia, segundo lhes disse, que a correspondência do sobrinho se extraviava, aliás, queixou-se que a Ana Maria quase não lhe ligava. Apenas o “bom dia” e “boa noite”.

Para não correrem o risco de novo corte da corrente afetiva via correspondência, decidiram continuar com o esquema proposto pelo alferes Joaquim Barbosa. Os aerogramas escritos por ele, para a Ana Maria, seguiam dentro de carta fechada para casa da mãe e esta, os faria chegar ao destino.

Na hora de regresso à Guiné, o Joaquim sentia-se feliz e confiante. Levava com ele a imagem de uma criança que o adorou, tanto quanto ele a ela. A esperança de voltar em breve e sobretudo a certeza de que era amado pela Ana Maria. Isto bastava-lhe.

A felicidade que irradiava ao apresentar-se ao alferes, quando regressou, foi a melhor forma de pagamento que este sentiu, e a vida na Guiné continuou…

Causas e efeitos da correspondência desviada

Naquele fim de tarde, uns tempos depois do regresso do Joaquim, estava o alferes José Barbosa sentado à porta da sua cabana, em amena cavaqueira com dois furriéis, quando vê chegar o Joaquim, um tanto alvoraçado.
- Meu alferes.  dá-me licença? Preciso de falar consigo!
- Não me venha outra vez com outra história da sua mulher! Porte-se como um homem! Já sabe que a todo o momento deve chegar a guia de marcha para o seu regresso a casa. Tenha calma!
- Meu alferes, eu sei que não tenho perdão, disse Joaquim, mas preciso de regressar a casa já. Vou matar o meu tio! - Atirou de topete.
- Está doido homem!
- Não. Não estou. Sabe quem desviava as minhas cartas? Era ele, o grande filho da puta do meu tio. Leia este aerograma da Ana Maria.
- Tenho mais que fazer. Conte-me você!
- Diz ela aqui. O tio, na segunda-feira, convidou-me para ir com ele a Lisboa resolver problemas pessoais. Perante a minha resistência, porque ia perder um dia de trabalho, prontificou-se a pagar-me a féria e tanto porfiou que fui com ele. O sacana não foi tratar de qualquer assunto. Passeamos por Lisboa, de café em café, até que ao aproximar-se a noite, alegando que era tarde para regressar, convidou-me para ir com ele para uma pensão. Usou palavrinhas doces sobre a minha pessoa. Eu era jovem merecia saborear a vida... tu estavas longe e nem precisavas de saber… enfim. Um cabrão de merda.

Meu querido, só tive tempo de correr a apanhar o barco para o Barreiro. A camioneta de carreira preparava-se para fazer a última viagem, mas cheguei a tempo. Tranquei-me em casa com a menina e no dia seguinte fugi para casa da tua mãe.

Ele escrevia a dizer-te que eu era uma doidivana e tu acreditavas. Aí tens. O bandido estragou a fechadura da caixa do correio para me roubar as cartas que me escrevias. Nem penses que vou regressar àquela casa. Aguardo o teu regresso aqui...

- Basta! - disse o alferes - Amanhã vou enviar o seu processo diretamente ao Governador. Tem de partir urgentemente, mas só o faço se me prometer que não vai cometer represálias sobre o seu tio. Esqueça o que se passou! A sua mulher soube resolver o problema da melhor maneira. Não vai, agora, criar conflitos. Promete?
- Como posso prometer,  meu alferes !!... Ele é meu tio, bem o sei, mais que levantar falsos testemunhos sobre a minha mulher, queria abusar dela, aproveitando-se da minha ausência. Como posso prometer ? Eu não lhe perdoo.
- Vá dormir e amanhã falamos. Boa noite.

Uns dias depois o Joaquim recebe ‘Guia de Marcha’ para regressar a Portugal continental. Era o fim da sua guerra, passados vinte meses de sofrimentos e torturas de coração. Era tempo de voltar para junto da sua filhinha e da esposa. Enevoava-lhe a mente o sentimento de vingança sobre o seu tio. Não lhe podia perdoar o que este fizera à sua família, escondendo as suas cartas para a esposa, e muito menos a tentativa de abusar sexualmente da sua amada, apesar do alferes lho ter exigido. Era tempo de agir logo que chegasse à terra. Fervia de emoção só ao pensar, que dentro de alguns dias, voltava para junto das suas mulheres, como costumava dizer para si, nos silenciosos momentos de encontro espiritual.

Foi acompanhado pelo alferes até à avioneta que transportava a correspondência para a Sede da Companhia. Despediram-se num longo abraço entrecortado por palavras de estímulo do comandante e agradecimentos por parte do Joaquim, que em pranto lembrou a noite em que o Barbosa lhe tirou a G3 da mão, e o ouviu pacientemente.
- Sabe, meu alferes, na câmara da arma estava a bala que eu tinha destinado meter na minha cabeça. Não aguentava mais a pressão e os tormentos que vivia. Você salvou-me. Obrigado, estou eternamente grato. Quando regressarem vou esperá-lo no desembarque e levo as minhas mulheres para que conheçam o homem que eu mais estimo.
- E você promete-me que não fazer mal ao seu tio. É uma ordem, ouviu!
- Prometo que vou tentar…

...E subiu para a carlinga...

O alferes José Barbosa ainda tinha esperanças de ver o Joaquim, dois meses depois ao regressar a Lisboa, como ele lhe prometera.

Esqueceu-se com toda a certeza. Nem respondeu às cartas que o José Barbosa lhe escrevera nos primeiros tempos após o regresso. Nunca mais deu sinal de vida.

Passaram-se anos e anos, até que no convívio anual comemorativo do regresso da Companhia, onde o Joaquim nunca compareceu, alguém disse que o “perna marota” tinha falecido.

José Teixeira

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Nota do editor

(*) - Vd. poste de 14 DE JULHO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23430: Estórias do Zé Teixeira (53): Amores em tempo de guerra: II - Correspondência desviada (José Teixeira, ex-1.º Cabo Aux Enfermeiro da CCAÇ 2381)