sexta-feira, 2 de setembro de 2022

Guiné 61/74 - P23578: Notas de leitura (1487): "Sinais de Vida, cartas da guerra 1961-1974", por Joana Pontes; Tinta-da-China, 2020 (1) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 29 de Janeiro de 2020:

Queridos amigos,
Temos aqui um olhar singular sobre a correspondência trocada entre militares e família e amigos, uma sala de conversa onde cabem namorados, pais e filhos, amigos e camaradas de armas e muitas madrinhas de guerra. Joana Pontes disseca admiravelmente as mentalidades, o papel do homem ainda cheio de autoridade, o mundo rural a caminho do abandono, os sinais de desenvolvimento, a muita gente que parte para o estrangeiro à procura de melhores condições de vida. E ver-se-á à frente, quando a abordagem for o modo de viver a guerra, que até se ultrapassam os limites impostos pela censura, há quem se vanglorie das suas façanhas, quem chore os amigos mortos e feridos. Enfim, um olhar sobre documentos, necessariamente de valor limitado, mas que podem contribuir para entender como estes jovens mudaram lá fora numa sociedade que mudava cá dentro.

Um abraço do
Mário



A correspondência da guerra colonial: uma amostra de mudanças em Portugal (1)

Mário Beja Santos

Trata-se de um belíssimo trabalho, de uma fecunda investigação, é uma das obras mais originais que até hoje se produziu em torno dos olhares sobre a guerra colonial, documento a partir de agora indispensável: "Sinais de Vida, cartas da guerra 1961-1974", por Joana Pontes, Tinta-da-China, 2020. 

Joana Pontes é doutora em História na especialidade de Impérios, Colonialismo e Pós-Colonialismo, tem currículo firmado no jornalismo televisivo e foi membro da Direção da Liga dos Amigos do Arquivo Histórico-Militar. Colaboradora no Projeto Recolha, destinado a evitar o desaparecimento da memória escrita da guerra, acompanhou de perto a chegada de um arquivo fecundíssimo, pois foram contabilizadas cerca de 4400 cartas e aerogramas, aproximadamente 11300 páginas, operação que decorreu entre 2003 e 2010. 

Recordo que ainda hoje não é difícil encontrar aerogramas e cartas deste período na Feira da Ladra, o artista Manuel Botelho adquiriu na Feira da Ladra um acervo da correspondência de um casal, ele fazia a sua comissão no Bachil, a 25 km de Cacheu, deu origem a uma instalação. Uma correspondência espantosa, há os entusiasmos iniciais, os projetos que ficaram adiados dois anos, em dado momento há sinais de desalento, parágrafos onde se manifesta o acabrunhamento, a dúvida, o fogo lento da solidão, por vezes pavorosa. Quantos casais não partilharam esta esfera sentimental?

No prefácio da obra, Aniceto Afonso dá-nos uma explicação comportamental dos ex-combatentes:

“A relação dos ex-combatentes com a sua memória da guerra teve um percurso complexo. Começou timidamente após o 25 de Abril, estagnou por vários anos e acabou por florescer em torno da passagem do século. A partir daí, multiplicaram-se os fóruns, os livros de memórias (ficcionados ou não), as entrevistas, as publicações individuais ou mesmo coletivas. A abundância de depoimentos, de regressos escritos ou falados, de despreocupadas ou penosas intervenções nas redes sociais, onde tantos têm tido oportunidade de contar a sua história, toda esta corrente de informação, de lembranças, de opiniões, vêm colocando, como sempre colocaria, um sério problema aos estudiosos que se dispõem a analisar todo este imenso material, que todos os dias se acrescenta”

E o investigador refere igualmente o interesse manifestado na esfera universitária pelo universo da guerra colonial, nas suas múltiplas vertentes.

Joana Pontes estrutura o seu trabalho em dois enormes módulos: o primeiro intitula-se “As palavras escritas no papel e na alma”, com o subcapítulo “A vida por mensagem”; o segundo “Viver a guerra”.

Confesso que valorizo mais este primeiro módulo, a investigadora é rigorosa nos enquadramentos de um Portugal que caminha para o modelo industrializado e abandona a agricultura. Ela não tem ilusões e escreve:

“A visão de conjunto dada por estas narrativas individuais é necessariamente uma visão incompleta e imperfeita da guerra, mas permite encontrar respostas a questões que são políticas no sentido lato e que se colocam relativamente a este acontecimento: o que é que aconteceu, que importância e consequências teve?”

Elenca os intervenientes, na sua maioria de origem rural, também a maioria pertenceu ao Exército, e apresenta microbiografias dos intervenientes. O aerograma é a principal ferramenta de comunicação; aliás, escasseia o papel, os envelopes e os selos no mato, as chamadas telefónicas eram dispendiosas, qualquer telefonema era marcado com antecedência. Há correspondência que leva desenhos e até poemas. Quando se mandam cartas, escolhe-se geralmente papel fino. Luís, destacado no extremo norte de Moçambique, escreve à mulher o espaço em que está confinado e a importância do correio para os militares:

“Existe em Nangade um retângulo de terra batida onde aterram aviões. Às sextas e terças-feiras sentimo-nos como que impulsionados para junto desse pedaço de terra lisa e barrenta. Todos, iguais, soldados e chefes, são nivelados pela mesma ansiedade e palpitar de emoção. E poucos são aqueles que têm o privilégio de ainda dentro do edifício onde se abrem os sacos de correio receberem o pedaço de papel que lhes revigora a alma e lhes faz sentir menos penoso o calvário. Mas são também poucos aqueles que têm que esconder duas lágrimas quando este privilégio os coloca na situação de simples espetadores…”

E desfilam as emoções, o momento da distribuição do correio, o desalento e até algum desespero de quem não recebe notícias, é o amor de mãe, são as notícias da mulher ou da namorada, é o perceber que a milhares de quilómetros de distância existem raízes e alguém que informa o que por ali se passa, até os falecimentos de outros jovens. É bom que alguém nos escreva lá nosso fim do mundo, aquela frase cala fundo: quando recebo carta tua é uma alegria tão grande que tenho e ajuda-me a viver. Quem está na guerra procura explicar o terreno, o tempo, as tarefas, faz perguntas, vem completamente à tona o quadro de mentalidades: o meter a cunha, o querer a mulher recatada, os códigos cifrados em matéria sexual, a conversa variegada com as madrinhas de guerra. 

As fotografias são da maior importância, o ausente é classificado como ícone: “A tua fotografia está em todos os cantos da casa”. A ânsia por novidades cabe nesta frase, vinda da guerra: “Se souberes novidades manda dizer que eu gosto de saber”. Há famílias em extrema dificuldade financeira, há as fugas a salto para França e outras paragens, em dado momento vão pululando informações sobre o dinheiro da França, o turismo no Algarve, os apoios sociais, o subsídio de Natal. A imagem do homem que manda aparece com muita nitidez, quem está na guerra pede recato, há mesmo saudades de autoridade do macho: tu chegavas os sábados vinhas ainda me batias mas eu tenho tudo guardado quanto passei contigo.

A religião pesa e muito:

“Encontramos inúmeras referências às figuras de devoção a quem se fazem estas promessas: São Lázaro, São Judas Tadeu, São Roque, Anjos da Guarda, Senhora da Hora, Santa Maria Adelaide, Santa Maria Madalena, Santa Sãozinha, Nossa Senhora da Paz, Nossa Senhora da Saúde, Nossa Senhora dos Aflitos, que acode a quem vai ter filhos, São José, São Veríssimo, São Sebastião, advogado dos soldados, Santo Amaro, advogado dos ossos e Santa Rita, advogada das coisas impossíveis”

O culto mariano é uma constante nesta correspondência. A Igreja e o Movimento Nacional Feminino não esqueciam a necessidade de manter o moral em alta e levar os militares a um comprometimento maior com o esforço de guerra, patriótico e cristão.

Mas ainda há mais algumas coisas a dizer sobre a experiência da distância de casa, o que chega à guerra e o que da guerra parte para a família e para os amigos.
Exposição/instalação de Manuel Botelho intitulada Cartas de Amor e Saudade, Centro Cultural de Cascais, 2011

(continua)

____________

Nota do editor

Último poste da série de 1 DE SETEMBRO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23577: Notas de leitura (1486): "Panteras à solta", de Manuel Andrezo (pseudónimo literário do ten gen ref Aurélio Manuel Trindade): o diário de bordo do último comandante da 4ª CCAÇ e primeiro comandante da CCAÇ 6 (Bedanda, 1965/67): aventuras e desventuras do cap Cristo (Luís Graça) - Parte VI: "Cercados de guerrilheiros por todos os lados", diz o alf mil Ribeiro, no "briefing" da praxe...

Sem comentários: