1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70) com data de 1 de Março de 2018:
Queridos amigos,
O fito para termo da viagem era mesmo estacionar nas termas de S. Pedro do Sul, o que havia a farejar era no mundo termal, o viandante portou-se como um aquista, deambulou pelas margens do Vouga, repimpou-se na biblioteca do Palace e andou de câmara na mão à procura dos seus regalos.
Ficará para outra oportunidade visitar Manhouce, subir às alturas para contemplar as serras de Montemuro, Estrela e Caramulo e até pôr os pés em Viseu e Lamego, são museus inescapáveis, há para ali arte sacra do melhor, desta vez era a satisfação de uma lembrança por causa dos bilhetes postais que o viandante recebera na Guiné, nestas termas, enquanto procurava aliviar os tormentos das artroses, escrevera-lhe bilhetes postais com votos de boa saúde e que regressasse bem para reiniciar a sua vida, escrevia como se estivesse a fazer promessas e o viandante veio aqui recordar a gratidão que deve a tais lembranças.
Um abraço do
Mário
De Estremoz para as termas de S. Pedro do Sul (4)
Beja Santos
As termas de S. Pedro do Sul são o termo da viagem. Uns vieram à busca de tratamento para os seus males respiratórios, o viandante vem à procura de lembranças, como explica. Durante aqueles anos em que andou a fazer guerra pela Guiné, a sua mãe meteu-se ao caminho e veio aqui fazer cura balnear para os seus joelhos carregados de artroses. Enviou-lhe em agosto de 1968, setembro de 1969 e junho de 1970 postais marcados pela esperança no alívio do seu sofrimento, que tudo estava a correr bem na companhia do neto mais velho, que se banhava nas águas do Vouga, e que estava cheia de saudades do filho, rezava permanentemente para que nada de mal lhe acontecesse. O viandante guardou esses postais e aqui está à cata de lembranças. Resta dizer que se sair de Monsanto e se andou por quilómetros de terra calcinada, paisagens lunares, o grotesco de alturas destemidas e granitos furibundos contrastando com solos enegrecidos, ainda será pior no regresso quando o viandante regressar sozinho de autocarro, logo Vouzela e Oliveira de Frades pareciam ter levado com uma bomba de neutrões em cima, eram florestas derribadas, aquele violento contraste entre o casario de pé rodeado dos vestígios do fogo adormecido. Pois bem, chegou-se às termas, olhou-se especado para este Titanic em terra e o viandante disse com fé: daqui não saio, é só ler e passear aqui à volta, daqui não saio, daqui ninguém me tira.
O escritor Alain Robbe-Grillet escreveu o argumento do filme “O Último Ano em Marienbad” de Alain Resnais, e o viandante nunca esqueceu aquele ambiente alucinante com misturas de tempo incríveis; também guarda lembranças do sanatório em que decorre uma das obras-primas de Thomas Mann, “A Montanha Mágica”, os temas bailam pela cabeça do viandante. Começa a itinerância passeando-se pelo Inatel Palace Hotel, o gigante data do início da década de 1930, conheceu maus momentos e teve que ser remodelado anos depois de aqui terem vivido famílias de retornados. Nos anos 1990 foi alvo de obras e aqui está, sumptuoso e confortável. O viandante anda à volta e procura dimensionar o que a região das termas oferece.
O ciclópico hotel tem quartos para todas as dimensões e bolsas, vai da suíte ao turístico, é acolhedor na sala de jantar e no bar, oferece biblioteca e um conjunto de jogos, tem piscina, solário e jardins. S. Pedro do Sul está a escassos quilómetros, tem a fama o Vale de Lafões e a Serra de S. Macário de onde se avistam as serras de Montemuro, Estrela e Caramulo, pormenores que nesta viagem não provocam qualquer aliciante ao viandante, veio para bisbilhotar, matar a curiosidade, cheirar águas sulfurosas, ouvir conversas dos termalistas, captar pormenores, anda atento aos elementos Arte Deco, são discretos, leves e muito bem enquadrados.
Quem desenhou a traça deste hotel ciclópico sabia da poda, rasgou corretamente os pontos de luz, estabeleceu para esses espaços comunitários uma boa relação na escala, desenhou bons truques, lambris, sugeriu dimensões palacianas para o restaurante e adjacências, os aquistas podem aqui entrar alquebrados mas rendem-se à majestade do lugar.
Quando o viandante foi pagar a primeira refeição teve a agradável surpresa de ver uma rutilante aguarela de Sofia Areal, artista que muito aprecia, vejam como assenta como uma luva, ainda bem que convocam as belas-artes para estes espaços.
No chamado período laboral, ruído não falta à volta desta região termal, andam a fazer obras em frente do hotel, são as ruínas romanas e uma igreja porventura medieval que são alvo dos trabalhos. Porque o local é antigo, a nascente de água termal de S. Pedro do Sul é explorada desde o século I da nossa era. Os romanos construíram um balneário (o que dele resta é hoje monumento nacional), sobre cujas ruínas D. Afonso Henriques mandou edificar um novo balneário. Passeia-se pelas ruas e sentem-se os odores das águas sulfúricas, o viandante descansou, passeou, teceu planos para próximas viagens, daquilo que tem em agenda irá em breve à Provença, mais tarde aos Pirenéus franceses, recebeu um convite para passar uns dias entre Haia e Roterdão com o inevitável regresso a Bruxelas e depois uns dias não muito longe de Oxford. Se Deus nosso Senhor lhe der vida e saúde, 2018 será sulcado por passeios europeus, ficará para mais tarde outros passeios mais alentados.
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Nota do editor
Poste anterior de 5 de maio de 2018 > Guiné 61/74 - P18606: Os nossos seres, saberes e lazeres (265): De Estremoz para as Termas de S. Pedro do Sul (3) (Mário Beja Santos)
Último poste da série de 10 de maio de 2018 > Guiné 61/74 - P18621: Os nossos seres, saberes e lazeres (266): VI Encontro de Teatro Sénior, de 11 a 13 de Maio de 2018, na Academia de Instrução e Recreio Familiar Almadense, em Almada (António José Pereira da Costa)
Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
sábado, 12 de maio de 2018
sexta-feira, 11 de maio de 2018
Guiné 61/74 - P18624: XIII Encontro Nacional da Tabanca Grande (25): Monte Real, 5 de maio de 2018: o olhar do fotógrafo 'strelado' Miguel Pessoa - Parte II
O Carlos Alberto Cruz, ladeado pelo Carlos Vinhal, à direita, e pela Giselda Pessoa, à esquerda, e acompanhado da sua filha Ana Cristina. Depois de um grave problema de saúde, de internamento hospitalar de alguns dias e de uma lenta mas bem sucedida recuperação, foi um alegria vê-lo, a ele, à Irene, sua esposa e restante família em Monte Real, 5 de maio de 2018, no nosso XIII Encontro Nacional.
O nosso coeditor Eduardo Magalhães Ribeiro mais a esposa do Francisco Silva, Maria Elisabete, e a filha de ambos, Ana Cláudia, e os netinhos Sofia e Tiago.
O régulo da Tabanca da Maia, pois quem haveria de ser?!... J. Casimiro Carvalho, herói de Gadamael
O Juvenal Amado, mais o camarada Almiro Gonçalves e esposa Amélia Gonçalves, frequentadores da Tabanca do Centro.
O António Martins de Matos, o Mário Leitão e a Giselda Pessoa... Só podem estar a falar de aviões e de peripécias aéreas...
J
osé Saúde, Manuel Oliveira Pereira e outro camarada de costas que temos dificuldade em identificar
José Manuel Cunté, Manuel Joaquim, António Graça de Abreu e mais o nosso "periquito" António Joaquim Alves.
Mário Gaspar, Juvenal Amado e Almiro Gonçalves.
Os casais António João Sampaio e Maria Clara (Leça da Palmeira / Matosinhos ) e Virgínio Briote e Maria Irene (Lisboa)... O Virgílio, não é preciso recordá-lo, é o nosso coeditor jubilado, um histórico da Tabanca Grande...
Nas pontas Luís Paulino e Armando Pires... Ao meio, um outro camarada, o Urbano Oliveira, que pertenceu, tal como o Paulino, à CCaç 2726. Vem da Figueira da Foz e já o ano passado esteve no nosso XII Encontro Nacional.
Monte Real > XIII Encontro Nacional da Tabanca Grande > 5 de maio de 2018 >
Fotos (e legendas): © Miguel Pessoa (2018). Todos os direitos reservados [Edição; Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]
1. Mesmo combalido, na sequência de um "acidente doméstico", o nosso Miguel Pessoa não quis deixar de vir a Monte Real, e fazer a sua cobertura fotográfica do evento...
Obrigado, Miguel, pelas 52 fotos que nos mandaste. Aqui vai uma segunda seleção. Todos os amigos e camaradas da Guiné te desejam rápidas melhoras. E vê se finalmente consegues dormir na tua cama!...
Acrescentei as legendas possíveis a partir de Cáceres onde fui em "visita cultural"... O Carlos far-me-á o favor de as corrigir e/ou completar.
Uma saudação especial vai para o nosso veteranos Carlos Alberto Cruz e sua grande família que o ajudou a vir a (e a estar connosco em)Monte Real... Boa continuação, Carlos, da tua recuperação. (LG)
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Nota do editor:
Último poste da série > 8 de maio de 2018 > Guiné 61/74 - P18615: XIII Encontro Nacional da Tabanca Grande (24): Monte Real, 5 de maio de 2018: o olhar do fotógrafo 'strelado' Miguel Pessoa - Parte I
Guiné 61/74 - P18623: (Ex)citações (336): Guerra da Guiné: Paixão e Morte em Madina do Boé (Manuel Luís Lomba)
1. Mensagem do nosso camarada Manuel Luís Lomba (ex-Fur Mil da CCAV 703/BCAV 705, Bissau, Cufar e Buruntuma,
1964/66) com data de 6 de Maio de 2018, trazendo-nos uma reflexão sobre a Paixão e Morte em Madina do Boé:
Guerra da Guiné: Paixão e Morte em Madina do Boé
Este escrito é motivado pelo P18585, um testemunho da Guerra da Guiné na primeira pessoa do T-General Pilav José Nico, que aqui invoco como resposta a uns “ historiadores e cientistas sociais”, que se têm feito notar pela pretensão de rescrever a nossa História, à revelia do seu curso e carácter - qual “produto tóxico”, susceptível de adulterar Os Lusíadas em “Os Expansíades”.
Meus caros:
Primeiro a gesta dos Descobrimentos e depois a saga da Expansão!
De onde vem esse vento? Compare-se a memória descritiva do cubano Óscar Oramas, embaixador e comissário de Fidel Castro junto do PAIGC, com a do então Capitão José Aparício, comandante da CCaç 1790, contidas nesse post e referidas aos mesmos factos acontecimentais e à tropa nomadizada em Madina do Boé.
A região do Boé foi também um dos “amores” da malta operacional do BCav 705, transferido de emergência para o Leste, em Maio de 1965, e calhou à CCav 704 assentar arraiais em Madina e Béli, comandada pelo então Capitão Fernando Ataíde.
Nove meses após essas operações, em Fevereiro de 1966, ia em trânsito de Bissau para Buruntuma no DO do correio, ao levantar voo em Béli o seu lado esquerdo foi cravejada de balas, os vinte e tal impactos sofridos inutilizaram-lhe o rádio, quase arrancaram o ombro e o braço ao seu furriel piloto, este começou a exclamar “maldição! maldição!”, seguiu-se-lhe o desmaio, comigo, ileso mas na maior das aflições, a tentar fazer um torniquete à abundância da hemorragia, a esbofeteá-lo para o manter consciente; e lá sobrevoamos a linha da fronteira e aterrámos em Buruntuma, quase por gravidade, as nossas fardas de caqui muito ensanguentados – a dele pela gravidade das suas feridas e a minha pelo sangue delas.
Três meses depois, a nossa CCav 704 foi rendida pela CCaç 1416, comandada pelo Capitão Mil.º Jorge Monteiro (que será condecorado com a Medalha de Prata de Valor Militar com Palma), com formação agronómica como Amílcar Cabral, o vencedor de Domingos Ramos, ex-furriel mil.º do Exército Português, um dos mais altos quadros do PAIGC, a desempenhar-se como comandante da Frente Leste, abatido no primeiro momento em que desencadeava um poderoso ataque a Madina do Boé, enquadrado por militares do exército regular cubano, já então responsáveis pelos 4 mortos e muitos feridos graves daquela Companhia.
(Fidel Castro foi o único líder mundial a investir militares do seu exército regular em solo português ultramarino, com a missão de matar soldados portugueses. Sem trazer à colação a sua directa prestação no desastre da descolonização de Angola, merece repúdio o facto de, recentemente, S. Ex.ª o PR e Supremo Comandante das nossas FA´s Marcelo Rebelo de Sousa ter movido mundos e fundos, para lhe ir apertar a mão e o reverenciar…).
Quem não se sente não é boa gente.
É sabido que a estratégia de correr a tiro a Europa da África começou a ser preconizada pelos americanos e impulsionada por Lenine, a partir de 1916, que foi o armamentismo e o expansionismo ideológico da União Soviética a patrociná-la, mas que Amílcar Cabral optara por tirocinar a estratégia e táctica para a sua Guerra da Guiné na Academia Militar de Pequim, terá bebido do próprio Mao-Tsé-Tung as lições para transformar a Guiné no “calcanhar de Aquiles” do Ultramar português e bebido do generalíssimo vietnamita Giap a escolha de Madina do Boé, para palco dos eventos decisivos à fundação da Nacionalidade bissau-guineense.
Considerado eufemisticamente como o “Algarve da Guiné”, no entanto sem mar mas com chuvas diluvianas, o Boé (Madina, Beli e Lugajole) tornara-se uma “paixão” na Guerra da Guiné, comum aos seus senhores, o General António de Spínola e o Secretário-geral Amílcar Cabral. Mas enquanto este operara na região (mas além fronteira), com pompa e circunstância e nas barbas da guarnição militar portuguesa, que não usou o direito à perseguição, por razões políticas, a transformação da guerrilha nas FARP, uma espécie de exército convencional, estacionava a sua “roulotte” numa das suas colinas – a colina Cabral – passava lá temporadas, premonitória das suas intenções de Comandante supremo, o Comandante supremo de Bissau operará a sua primeira desistência, com a operação da retirada da guarnição de soberania de Madina do Boé, saldada com 46 mortos dos seus militares, no confronto com o general natural – o rio Corubal.
Retirada da maior transcendência e significado político, porque concedeu ao PAIGC o único território “libertado” de facto, para palco da formalidade da proclamação unilateral da independência da Guiné; e como conquistou Madina do Boé e Béli sem o cerco nem o assalto das suas FARP, o PAIGC transferirá tal manobra para Guidaje, Guileje e Gadamael, abortada sobre Buruntuma.
O alto comandante Osvaldo Vieira, inspector das FARP, também ex-furriel miliciano do Exército Português, delfim e herdeiro político e testamental de Amílcar Cabral, primo direito de Nino Vieira, este a mais alta patente da luta militar do PAIGC, no rescaldo do golpe do assassínio de Amílcar Cabral, viu-se desterrado e acabará os seus dias em Madina do Boé, diz-se que fuzilado nas vésperas da crise dos três G´s (Guidaje, Guileje e Gadamael) à ordem dos seus pares do Conselho Superior de Luta, maioritariamente cabo-verdianos.
O General Spínola tirocinou a guerra na Frente Russa, sob a égide do General Paulus e do exército nazi, e Amílcar Cabral tirocinou-a na Academia Militar de Pequim, privando com Mao e com Giap; a diferenciação abissal entre o pensamento e planeamento militar de ambos na Guerra da Guiné decorrerá dessa contingência?
Amílcar Cabral esforçava-se para chegar a toda a Guiné; ao trocar o vencer pelo aguentar o General Spínola contrariou o mundo darwiniano: o mais fraco sobreviveu ao mais forte.
O abandono da soberania em Madina do Boé pelo General Spínola e a retirada de Guileje pelo Major Coutinho e Lima, serão efeito da mesma causa, não obstante escrutináveis como decisões ao arrepio da disciplina e da lógica militar.
Invoquemos a História:
Nas guerras Fernandinas, o adiantado-mor da Galiza, General Pêro Rodriguez Sarmiento, montou cerco ao castelo de Monção, na fronteira, com o fim de o fazer capitular pela fome. No seu desespero de causa, a alcaideza Deu-la-deu Martins mandou cozer a fornada do último cereal, atirou os pães aos sitiantes, também dele necessitados, a exclamar:
- “Tomai perros famintos! E mais vos darei, se o pedires!”. E ele viu-se forçado a levantar o cerco.
Em 1949, “Berlim ocidental” estava para a Europa livre, como Madina do Boé estaria para a “libertação” da Guiné. Os Aliados fizeram abortar o cerco montado pelo Exército Vermelho com uma ponte aérea, que durante um ano os abasteceu de tudo, sem descurar as flores de decoração, gosto tão cultivado pelas mulheres berlinenses.
Em 1999, no decurso do 50.º aniversário desse acontecimento, no aeroporto berlinense de Schonefield, colhi um poster de um avião DC 4 Skymaster, cheguei à fala com um dos seus veteranos pilotos, que me concedeu um autógrafo.
Circunstâncias especiais exigem homens especiais. E de Portugueses sempre os houve.
O post do T.-General José Nico evidencia que, em 1968-69, não obstante a sua mais evoluída estratégia e tácticas, o PAIGC estava a ser empurrado para as cordas da derrota – o momento psicológico desperdiçado para a resolução da Guerra da Guiné, sem vitórias nem derrotas e, sobretudo, sem o abandono. António Salazar, que era estadista, cai, derrotado pela cadeira do forte do Estoril e a cátedra da Universidade negara a clarividência a Marcelo Caetano, que era jurista. O ónus da criação das condições à eclosão da guerra ultramarina e de não lhe pôr termo em tempo útil recai sobre um e sobre o outro.
O PAIGC rearmou-se e ganhou fôlego, enquanto a cristalização da estratégia e tácticas militares criava anticorpos na comunidade castrense e a estagnação do governo de Lisboa faziam engordar as oposições, interna e externas, à guerra ultramarina.
Amílcar Cabral passara a frequentar Moscovo em vez de Pequim e, para reforçar a sua expansão ideológica, numa demonstração que as aviações não ganham as guerras, mas que as decidem, a União Soviética prometeu-lhe a construção de um aeródromo-base militar no Boé dotado de MIG´s, no contexto da sua estratégia, que esbarrará na oposição de Sekou Touré, por lição do assalto a Conacri, sob o argumento que se PAIGC detinha dois terços do território da sua Guiné, teria muito espaço para essa base.
Se os generalíssimos Mao e Giap foram boas companhias, Sekou Touré foi uma má companhia de Amílcar Cabral, eventual portadora da sua desgraça pessoal; o facto de a Guiné-Bissau ter virado em destroço da descolonização será o preço a pagar pelo seu erro de ter preferido, para a sua empresa da libertação, o déspota e sanguinário guinéu ao senegalês Leopold Shengor, culto, democrata e humanista. Amílcar Cabral vivia em contacto tanto com as evidências anti-humanas do colonialismo de Portugal como com as do “socialismo real”, imposto e vigorante na China, Cuba, União Soviética, Europa do Leste, Guiné-Conacri, etc.
Poderá ser entendido como futilidade, mas a história e a evolução da Guiné-Bissau seriam certamente diferentes.
Esse post também evidencia a visão míope da Guerra da Guiné, por parte da liderança do governo de Lisboa.
Por investigação publicada pelo tabanqueiro José Matos, sabemos que o Secretário de Estado da Aeronáutica da altura relatou e instou o governo a dotar as FA de aviões e da panóplia de misseis e antimísseis, já objecto de estudo especializado, compatíveis com o arsenal da parceria da União Soviética com o PAIGC, que tardará 5 anos a fazê-lo, apenas em 1974, “já Inês estava morta”. E não foi por falta de oferta nem de dinheiro - que tudo é capaz de comprar -, como se viu, pela disponibilidade da França, Alemanha, África do Sul e Israel. Não estávamos endividados, o Banco de Portugal possuía quase 1000 toneladas de reservas de ouro, e constituíra uma reserva de 12 meses de divisas de cobertura às importações, garantidas pelo suor e o patriotismo dos portugueses na diáspora.
Pela falta de capacidade, de raio de acção e de letalidade da aviação de Bissalanca, o êxito da acção sobre Conacri resultou parcial e, em 1973, a mesma aviação que impediu ao PAIGC a formalidade da declaração unilateral da independência em Guileje, não tinha capacidade para a impedir no Boé.
Por ironia em que o destino é fértil, será a ameaça desses MIG´s nos céus de Bissau, invisíveis porque não existiam, a precipitar o golpe militar do 25A74…
Que os mortos combatentes dos dois campos da Guerra da Guiné descansem em paz, que os sobrevivos estejam descansados e com a melhor saúde e que o encontro de Monte Real tenha alimentado o corpo e robustecido a alma da sua malta grisalha.
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Nota do editor
Último poste da série de 5 de abril de 2018 > Guiné 61/74 - P18488: (Ex)citações (335): a crítica "agridoce" de Mário Beja Santos ao meu livro "Guiné-Bolama, história e memórias" (Fernando Tabanez Ribeiro)
Guerra da Guiné: Paixão e Morte em Madina do Boé
Este escrito é motivado pelo P18585, um testemunho da Guerra da Guiné na primeira pessoa do T-General Pilav José Nico, que aqui invoco como resposta a uns “ historiadores e cientistas sociais”, que se têm feito notar pela pretensão de rescrever a nossa História, à revelia do seu curso e carácter - qual “produto tóxico”, susceptível de adulterar Os Lusíadas em “Os Expansíades”.
Meus caros:
Primeiro a gesta dos Descobrimentos e depois a saga da Expansão!
De onde vem esse vento? Compare-se a memória descritiva do cubano Óscar Oramas, embaixador e comissário de Fidel Castro junto do PAIGC, com a do então Capitão José Aparício, comandante da CCaç 1790, contidas nesse post e referidas aos mesmos factos acontecimentais e à tropa nomadizada em Madina do Boé.
A região do Boé foi também um dos “amores” da malta operacional do BCav 705, transferido de emergência para o Leste, em Maio de 1965, e calhou à CCav 704 assentar arraiais em Madina e Béli, comandada pelo então Capitão Fernando Ataíde.
Nove meses após essas operações, em Fevereiro de 1966, ia em trânsito de Bissau para Buruntuma no DO do correio, ao levantar voo em Béli o seu lado esquerdo foi cravejada de balas, os vinte e tal impactos sofridos inutilizaram-lhe o rádio, quase arrancaram o ombro e o braço ao seu furriel piloto, este começou a exclamar “maldição! maldição!”, seguiu-se-lhe o desmaio, comigo, ileso mas na maior das aflições, a tentar fazer um torniquete à abundância da hemorragia, a esbofeteá-lo para o manter consciente; e lá sobrevoamos a linha da fronteira e aterrámos em Buruntuma, quase por gravidade, as nossas fardas de caqui muito ensanguentados – a dele pela gravidade das suas feridas e a minha pelo sangue delas.
Três meses depois, a nossa CCav 704 foi rendida pela CCaç 1416, comandada pelo Capitão Mil.º Jorge Monteiro (que será condecorado com a Medalha de Prata de Valor Militar com Palma), com formação agronómica como Amílcar Cabral, o vencedor de Domingos Ramos, ex-furriel mil.º do Exército Português, um dos mais altos quadros do PAIGC, a desempenhar-se como comandante da Frente Leste, abatido no primeiro momento em que desencadeava um poderoso ataque a Madina do Boé, enquadrado por militares do exército regular cubano, já então responsáveis pelos 4 mortos e muitos feridos graves daquela Companhia.
(Fidel Castro foi o único líder mundial a investir militares do seu exército regular em solo português ultramarino, com a missão de matar soldados portugueses. Sem trazer à colação a sua directa prestação no desastre da descolonização de Angola, merece repúdio o facto de, recentemente, S. Ex.ª o PR e Supremo Comandante das nossas FA´s Marcelo Rebelo de Sousa ter movido mundos e fundos, para lhe ir apertar a mão e o reverenciar…).
Quem não se sente não é boa gente.
É sabido que a estratégia de correr a tiro a Europa da África começou a ser preconizada pelos americanos e impulsionada por Lenine, a partir de 1916, que foi o armamentismo e o expansionismo ideológico da União Soviética a patrociná-la, mas que Amílcar Cabral optara por tirocinar a estratégia e táctica para a sua Guerra da Guiné na Academia Militar de Pequim, terá bebido do próprio Mao-Tsé-Tung as lições para transformar a Guiné no “calcanhar de Aquiles” do Ultramar português e bebido do generalíssimo vietnamita Giap a escolha de Madina do Boé, para palco dos eventos decisivos à fundação da Nacionalidade bissau-guineense.
Considerado eufemisticamente como o “Algarve da Guiné”, no entanto sem mar mas com chuvas diluvianas, o Boé (Madina, Beli e Lugajole) tornara-se uma “paixão” na Guerra da Guiné, comum aos seus senhores, o General António de Spínola e o Secretário-geral Amílcar Cabral. Mas enquanto este operara na região (mas além fronteira), com pompa e circunstância e nas barbas da guarnição militar portuguesa, que não usou o direito à perseguição, por razões políticas, a transformação da guerrilha nas FARP, uma espécie de exército convencional, estacionava a sua “roulotte” numa das suas colinas – a colina Cabral – passava lá temporadas, premonitória das suas intenções de Comandante supremo, o Comandante supremo de Bissau operará a sua primeira desistência, com a operação da retirada da guarnição de soberania de Madina do Boé, saldada com 46 mortos dos seus militares, no confronto com o general natural – o rio Corubal.
Retirada da maior transcendência e significado político, porque concedeu ao PAIGC o único território “libertado” de facto, para palco da formalidade da proclamação unilateral da independência da Guiné; e como conquistou Madina do Boé e Béli sem o cerco nem o assalto das suas FARP, o PAIGC transferirá tal manobra para Guidaje, Guileje e Gadamael, abortada sobre Buruntuma.
O alto comandante Osvaldo Vieira, inspector das FARP, também ex-furriel miliciano do Exército Português, delfim e herdeiro político e testamental de Amílcar Cabral, primo direito de Nino Vieira, este a mais alta patente da luta militar do PAIGC, no rescaldo do golpe do assassínio de Amílcar Cabral, viu-se desterrado e acabará os seus dias em Madina do Boé, diz-se que fuzilado nas vésperas da crise dos três G´s (Guidaje, Guileje e Gadamael) à ordem dos seus pares do Conselho Superior de Luta, maioritariamente cabo-verdianos.
O General Spínola tirocinou a guerra na Frente Russa, sob a égide do General Paulus e do exército nazi, e Amílcar Cabral tirocinou-a na Academia Militar de Pequim, privando com Mao e com Giap; a diferenciação abissal entre o pensamento e planeamento militar de ambos na Guerra da Guiné decorrerá dessa contingência?
Amílcar Cabral esforçava-se para chegar a toda a Guiné; ao trocar o vencer pelo aguentar o General Spínola contrariou o mundo darwiniano: o mais fraco sobreviveu ao mais forte.
O abandono da soberania em Madina do Boé pelo General Spínola e a retirada de Guileje pelo Major Coutinho e Lima, serão efeito da mesma causa, não obstante escrutináveis como decisões ao arrepio da disciplina e da lógica militar.
Invoquemos a História:
Nas guerras Fernandinas, o adiantado-mor da Galiza, General Pêro Rodriguez Sarmiento, montou cerco ao castelo de Monção, na fronteira, com o fim de o fazer capitular pela fome. No seu desespero de causa, a alcaideza Deu-la-deu Martins mandou cozer a fornada do último cereal, atirou os pães aos sitiantes, também dele necessitados, a exclamar:
- “Tomai perros famintos! E mais vos darei, se o pedires!”. E ele viu-se forçado a levantar o cerco.
Em 1949, “Berlim ocidental” estava para a Europa livre, como Madina do Boé estaria para a “libertação” da Guiné. Os Aliados fizeram abortar o cerco montado pelo Exército Vermelho com uma ponte aérea, que durante um ano os abasteceu de tudo, sem descurar as flores de decoração, gosto tão cultivado pelas mulheres berlinenses.
Em 1999, no decurso do 50.º aniversário desse acontecimento, no aeroporto berlinense de Schonefield, colhi um poster de um avião DC 4 Skymaster, cheguei à fala com um dos seus veteranos pilotos, que me concedeu um autógrafo.
Circunstâncias especiais exigem homens especiais. E de Portugueses sempre os houve.
O post do T.-General José Nico evidencia que, em 1968-69, não obstante a sua mais evoluída estratégia e tácticas, o PAIGC estava a ser empurrado para as cordas da derrota – o momento psicológico desperdiçado para a resolução da Guerra da Guiné, sem vitórias nem derrotas e, sobretudo, sem o abandono. António Salazar, que era estadista, cai, derrotado pela cadeira do forte do Estoril e a cátedra da Universidade negara a clarividência a Marcelo Caetano, que era jurista. O ónus da criação das condições à eclosão da guerra ultramarina e de não lhe pôr termo em tempo útil recai sobre um e sobre o outro.
O PAIGC rearmou-se e ganhou fôlego, enquanto a cristalização da estratégia e tácticas militares criava anticorpos na comunidade castrense e a estagnação do governo de Lisboa faziam engordar as oposições, interna e externas, à guerra ultramarina.
Amílcar Cabral passara a frequentar Moscovo em vez de Pequim e, para reforçar a sua expansão ideológica, numa demonstração que as aviações não ganham as guerras, mas que as decidem, a União Soviética prometeu-lhe a construção de um aeródromo-base militar no Boé dotado de MIG´s, no contexto da sua estratégia, que esbarrará na oposição de Sekou Touré, por lição do assalto a Conacri, sob o argumento que se PAIGC detinha dois terços do território da sua Guiné, teria muito espaço para essa base.
Se os generalíssimos Mao e Giap foram boas companhias, Sekou Touré foi uma má companhia de Amílcar Cabral, eventual portadora da sua desgraça pessoal; o facto de a Guiné-Bissau ter virado em destroço da descolonização será o preço a pagar pelo seu erro de ter preferido, para a sua empresa da libertação, o déspota e sanguinário guinéu ao senegalês Leopold Shengor, culto, democrata e humanista. Amílcar Cabral vivia em contacto tanto com as evidências anti-humanas do colonialismo de Portugal como com as do “socialismo real”, imposto e vigorante na China, Cuba, União Soviética, Europa do Leste, Guiné-Conacri, etc.
Poderá ser entendido como futilidade, mas a história e a evolução da Guiné-Bissau seriam certamente diferentes.
Esse post também evidencia a visão míope da Guerra da Guiné, por parte da liderança do governo de Lisboa.
Por investigação publicada pelo tabanqueiro José Matos, sabemos que o Secretário de Estado da Aeronáutica da altura relatou e instou o governo a dotar as FA de aviões e da panóplia de misseis e antimísseis, já objecto de estudo especializado, compatíveis com o arsenal da parceria da União Soviética com o PAIGC, que tardará 5 anos a fazê-lo, apenas em 1974, “já Inês estava morta”. E não foi por falta de oferta nem de dinheiro - que tudo é capaz de comprar -, como se viu, pela disponibilidade da França, Alemanha, África do Sul e Israel. Não estávamos endividados, o Banco de Portugal possuía quase 1000 toneladas de reservas de ouro, e constituíra uma reserva de 12 meses de divisas de cobertura às importações, garantidas pelo suor e o patriotismo dos portugueses na diáspora.
Pela falta de capacidade, de raio de acção e de letalidade da aviação de Bissalanca, o êxito da acção sobre Conacri resultou parcial e, em 1973, a mesma aviação que impediu ao PAIGC a formalidade da declaração unilateral da independência em Guileje, não tinha capacidade para a impedir no Boé.
Por ironia em que o destino é fértil, será a ameaça desses MIG´s nos céus de Bissau, invisíveis porque não existiam, a precipitar o golpe militar do 25A74…
Que os mortos combatentes dos dois campos da Guerra da Guiné descansem em paz, que os sobrevivos estejam descansados e com a melhor saúde e que o encontro de Monte Real tenha alimentado o corpo e robustecido a alma da sua malta grisalha.
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Nota do editor
Último poste da série de 5 de abril de 2018 > Guiné 61/74 - P18488: (Ex)citações (335): a crítica "agridoce" de Mário Beja Santos ao meu livro "Guiné-Bolama, história e memórias" (Fernando Tabanez Ribeiro)
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Guiné 61/74 - P18622: Notas de leitura (1065): Os Cronistas Desconhecidos do Canal do Geba: O BNU da Guiné (34) (Mário Beja Santos)
BNU - Bissau
1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 21 de Dezembro de 2017:
Queridos amigos,
A Guiné não é só uma colónia-modelo na conceção imperial, a produção agrícola de um salto. O BNU, já um grande proprietário, também sonha com a expansão, imiscuiu-se desde a produção até à exportação agrícola, vai lançando os olhos à Sociedade Comercial Ultramarina, a empresa competidora dos interesses da CUF. Se até agora os relatórios mostravam uma impressionante desafetação ao poder político, a agulha mudou de rumo, bajula-se o poder instituído, basta ler aqui a louvaminha totalmente despropositada do gerente à viagem do General Craveiro Lopes.
Um abraço do
Mário
BNU - Bissau
Os Cronistas Desconhecidos do Canal do Geba: O BNU da Guiné (34)
Beja Santos
A década de 1950 é marcante na vida do BNU da Guiné: na colónia sopram ventos de desenvolvimento, e por isso a Sociedade Comercial Ultramarina é cada vez mais atrativa para investimento. O património do Banco é gradualmente mais valioso, composto de prédios, de propriedades, não esqueçamos que inicialmente funcionou como casa de penhores, o aliciante agrícola é indisfarçável, será assim até ao período da independência. Em Maio/Junho de 1953 há uma nova inspeção ao Banco, determinada por Lisboa, no relatório subsequente aparece um documento revelador dessa aproximação entre a banca e os investimentos abarcando a produção, a transformação, o transporte, a exportação, nomeadamente para a metrópole. É do seguinte o documento que surge solto dentro do relatório da inspeção:
“Exma. Administração da Sociedade Comercial Ultramarina
Exmos. Senhores:
A Sociedade é uma grande organização, espalhada por toda a Guiné, é bem administrada.
Tive ocasião de visitar as suas actividades comerciais e industriais e fiquei com a impressão de que é organismo que pode viver e expandir-se mais. A Guiné é rica, está a desenvolver-se, não fica longe de Portugal e portanto da Europa, importante vantagem para os fretes, por isso as actividades podem seguramente, com a prudência necessária, encarar com confiança o futuro.
Ainda que a cotação das oleaginosas venha um dia a cair fortemente, como se supõe, é certo que fica o recurso da exploração orizícola, cuja produção é hoje insuficiente para as necessidades internas da Província e para a exportação, e pode ser muitíssimo aumentada, dada a extensão de regiões próprias para a sua cultura. Haverá apenas que preparar tais regiões e mecanizar a cultura.
Ainda outros recursos existem que podem ser explorados; portanto, não há motivos para desanimar, antes pelo contrário para, com entusiasmo, se explorarem. O clima da Guiné tão mortífero há algumas dezenas de anos, e raros eram os que pensavam em se fixar aqui, está profundamente alterado para melhor. Isto também é um factor importante pois mais fácil é o concurso de europeus.
Não obstante o que deixo dito do clima, ele não é bom e há muitos pontos da Província em que a modificação não é tão acentuada.
Se V. Exas. pensarem, um dia, em virem até aqui, e ainda que seja na época melhor, devem contar com violento calor principalmente em Farim e Bafatá, poeira vermelha e incómoda, e, por vezes, grandes vespas a entrarem no carro e há que ter atenção à mosca transmissora da doença do sono, já não falando nos incómodos mosquitos.
Não vi a mosca do sono, posto que um médico da respectiva missão me dissesse que ela estava muito espalhada e havia muitos casos.
Os vapores que daqui vão para a metrópole ficam ao largo e não atracam, dizem que por causa da febre-amarela, todavia pergunto se há casos e ninguém os conhece. Parece que não missão médica especial para esta doença.
Nos desembarques nas margens dos rios, se a maré está em baixo ou ainda pouco alta, a grande extensão de lodo só pode ser atravessada dentro de pirogas deslocadas à força de braços dos pretos e às vezes até é necessário aceitar a ‘cadeirinha’ que fazem com os braços para pequenas travessias, ou onde não há pirogas.
Na navegação dos rios é necessário, contar por vezes, com os encalhes, e esperar que a maré suba, no rio Cumbijã ali estivemos encalhados três horas.
Nas residenciais do interior, onde há instalações para hospedagem, tirando Bafatá, elas deixam muito a desejar quanto a rudimentares comodidades.
As actividades da sociedade estão a ressentir-se com a falta de fundos, não porque não lhes tenham sido concedidos créditos mas pelo desvio destes e das suas disponibilidades para a construção do bloco industrial na Bolola.
Estão já ali investidos 9.500 contos. Esta soma tem saído parte dos créditos concedidos à Sociedade, parte das suas disponibilidades. Representa uma imobilização cuja importância faz falta às operações comerciais e há que atender que os produtos estão mais caros e por isso a sua aquisição demanda maior quantidade de dinheiro.
Em minha opinião devia conseguir-se um crédito especial de 15 mil contos garantido pelo bloco industrial, garantido pelo bloco industrial: edifícios existentes, em construção e a construir, maquinismos existentes e ainda a adquirir.
Com tal importância, creio que tudo se poderia concluir. Dele havia que retirar os 9.500 contos já ali empregados e reverterem para o maneio da sociedade. Se o Banco Nacional Ultramarino o não quiser conceder, poderia tentar-se de outra origem”.
No relatório da gerência de 1954 a análise à situação das colheitas continua a merecer a melhor atenção. Volta a referir-se a mancarra como o pilar em que assenta a vida económica bem como todo o comércio da Guiné. Por grau de importância, a seguir às oleaginosas é o arroz, mantém-se como o produto base da alimentação dos guineenses. Não é esquecido o óleo de palma, o relator diz que é extraído dos palmares de cultura espontânea em toda a Província, predomina nos Bijagós e na circunscrição de Cacheu, cobrindo uma área de cerca de 90 mil hectares.
“Uma das primeiras medidas tomadas pelo novo governador foi convocar todos os régulos e ‘grandes’ de maior prestígio e tendo-os com ele reunido em Bissau, expôs-lhes as suas ideias quanto ao problema da produção, mostrando-lhes a necessidade de aumentarem as áreas agricultáveis e procurando, assim, interessar mais a massa indígena nos trabalhos agrícolas e implicitamente no aumento da produção desta província, pois é preciso que ela modifique as suas estatísticas que há dezenas de anos acusam os mesmos índices, sem animadoras oscilações, denotando o marasmo e rotina que, à primeira vista, se não explica, embora se creia que a produção tenha aumentado, dados os esforços desenvolvidos nos últimos anos. O que é certo, porém, é que o movimento da exportação, o único meio de que se dispõe, ainda que sem rigor, para se avaliar a produção agrícola, continua a não apresentar alterações que correspondam ao interesse e cuidados havidos.
Assim, servindo-nos dos dados respeitantes às exportações do ano findo de 1954, verifica-se que a produção da mancarra foi inferior em tonelagem. Declínio também se verificou na exportação do coconote, mas este resultante apenas de não ter sido possível a exportação de toda a produção, não só por desinteresse dos mercados estrangeiros como porque foi atingido o contingente destinado à metrópole.
Contudo, e tendo em consideração não só os quantitativos de mancarra exportados em anos anteriores, como a boa produção de arroz que, sem dúvida, foi superior à do ano anterior, pode-se afirmar que foi bom o ano agrícola que findou”.
Imagem extraída da revista "O Mundo Português"
O discurso do relator mudou radicalmente de agulha, aquilo que até agora era uma observação profunda e independente, quer na análise do mercado quer na observação socioeconómica e política, entra em sintonia com a mística do Estado Novo. Basta ler esta introdução à primeira parte do relatório de 1955:
“O facto de maior transcendência e importância, ocorrido na vida desta Província no ano findo, e pode dizer-se que em toda a sua História, foi, conforme toda a imprensa metropolitana e ultramarina o noticiou, a visita a esta Província de Sua Excelência o Senhor Presidente de República que, acompanhado do Senhor Ministro do Ultramar e das respectivas comitivas, aqui chegou no dia 2 de Maio e foi recebido com delirante patriotismo e entusiástica vibração.
Em cinco séculos de existência, foi esta a primeira vez que a Província da Guiné recebeu a visita do chefe de Estado.
Como em Bissau, o Senhor Presidente da República foi alvo de carinhosas manifestações patrióticas no interior da Província, que percorreu durante alguns dias e onde visitou grandes obras em curso, como seja a nova ponte sobre o rio Corubal, e inaugurou o importante melhoramento que constituiu a construção da ponte Salazar, em Bafatá, no rio Geba.
Várias foram as grandiosas cerimónias e festas realizadas em homenagem ao Senhor Presidente da República durante a sua estadia na capital da Província, tendo em, todas elas o nosso Banco sido representado pelo nosso Ilustre Administrador, Excelentíssimo Senhor Doutor António Júlio Castro Fernandes, e também pelo gerente desta Filial.
Porque muito bem se enquadrou no esplendor dessa visita presidencial, não queremos deixar de aqui fazer referência especial à cerimónia da inauguração em Bissau da nova estátua de Teixeira Pinto, pois constitui uma impressionante homenagem ao heróico e valente pacificador da Guiné”.
(Continua)
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Nota do editor
Poste anterior de 4 de maio de 2018 > Guiné 61/74 - P18602: Notas de leitura (1063): Os Cronistas Desconhecidos do Canal do Geba: O BNU da Guiné (33) (Mário Beja Santos)
Último poste da série de 7 de maio de 2018 > Guiné 61/74 - P18614: Notas de leitura (1064): Retrato do colonizado e retrato do colonizador, por Albert Memmi; editado por Gallimard (2) (Mário Beja Santos)
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quinta-feira, 10 de maio de 2018
Guiné 61/74 - P18621: Os nossos seres, saberes e lazeres (266): VI Encontro de Teatro Sénior, de 11 a 13 de Maio de 2018, na Academia de Instrução e Recreio Familiar Almadense, em Almada (António José Pereira da Costa)
1. Mensagem do nosso camarada António José Pereira da Costa, Coronel de Art.ª Ref (ex-Alferes de Art.ª da CART 1692/BART 1914, Cacine, 1968/69; ex-Capitão de Art.ª e CMDT das CART 3494/BART 3873, Xime e Mansambo, e CART 3567, Mansabá, 1972/74), com data de 9 de Maio de 2018 dando-nos notícia de mais uma iniciativa do NAUS:
Espero ter uma boa fila, ou mais, de ex-combatentes bloguianos a aplaudir.
Devem ir ver, "cá o génio" a partir das 18H30 de Sábado. É o grupo de teatro da Associação Cultural da Terceira Idade de Sintra.
Quero ver todos os ex-combatentes aos saltos nas primeiras filas da sala e aos gritos de "Napoleão dá-me os teus calções!"
Um Ab.
J A Pereira da Costa
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Nota do editor
Último poste da série de 5 de maio de 2018 > Guiné 61/74 - P18606: Os nossos seres, saberes e lazeres (265): De Estremoz para as Termas de S. Pedro do Sul (3) (Mário Beja Santos)
Guiné 61/74 - P18620: Parabéns a você (1432): Fernando Valente (Magro), ex-Cap Mil Art do BENG 447 (Guiné, 1970/72) e Henrique Matos, ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52 (Guiné, 1966/68)
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Nota do editor
Último poste da série de 5 de Maio de 2018 > Guiné 61/74 - P18605: Parabéns a você (1431): Joaquim Gomes Soares, ex-1.º Cabo At Inf da CCAÇ 2317 (Guiné, 1968/69)
quarta-feira, 9 de maio de 2018
Guiné 61/74 - P18619: Documentos (30): Directiva n.º 5/71 do General Spínola para disciplinar a atribuição de Condecorações no TO da Guiné, perante a discrepância entre os 3 Ramos das Forças Armadas (Virgínio Briote, ex-Alf Mil Comando)
1.
Mensagem do nosso camarada Virgínio Briote, ex-Alf Mil da CCAV 489 (Cuntima e Alf Mil Comando, CMDT do Grupo Diabólicos, Brá; 1965/67), com data de 19 de Abril de 2018, trazendo em anexo a Directiva n.º 5/71 do General António de Spínola onde chama a atenção para a discrepância entre os três Ramos das Forças Armadas na atribuição de Medalhas Militares.
Boa tarde, Carlos!
Em arrumações, dei com uma pasta com documentos sobre a guerra na Guiné que tem alguns elementos que podem ter interesse, não só para os nossos Camaradas como para os curiosos da Guerra na Guiné.
Por hoje envio-te um documento, sem comentários porque o acho esclarecedor, sobre a premente Questão das Medalhas.
Espero que o apreciem.
Tenho, pelos vistos, mais alguns com interesse, especialmente dos tempos do Gen. Spínola.
Um abraço até Monte Real.
V Briote
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Boa tarde, Carlos!
Em arrumações, dei com uma pasta com documentos sobre a guerra na Guiné que tem alguns elementos que podem ter interesse, não só para os nossos Camaradas como para os curiosos da Guerra na Guiné.
Por hoje envio-te um documento, sem comentários porque o acho esclarecedor, sobre a premente Questão das Medalhas.
Espero que o apreciem.
Tenho, pelos vistos, mais alguns com interesse, especialmente dos tempos do Gen. Spínola.
Um abraço até Monte Real.
V Briote
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Guiné 61/74 - P18618: Consultório militar do José Martins (36): Registo Militar de Henrique Pedro Daniel de Duarte Silva Y Aranda
1. Mensagem do nosso camarada José Marcelino Martins (ex-Fur Mil Trms da CCAÇ 5, Gatos
Pretos, Canjadude,
1968/70), com data de 13 de Abril de 2018 com um trabalho sobre o Major Aranda:
Boa tarde
Oportunamente o nosso camarada de Engenharia Fernando Conde Vitorino escreveu-me, questionando-me se tinha elementos que o habilitassem a prestar uma homenagem ao seu Major Aranda, com quem conviveu no seu tempo da Escola Prática de Engenharia.
Consultei o processo do "nosso Major", que já não se encontra entre nós, e enviei-lhe os dados que recolhi no seu processo militar, junto do Arquivo Geral do Exército.
Como pode ter interesse, junto o referido texto que já se encontra publicado no facebook da Engenharia, juntando foto do TCor Aranda e foto da Medalha de Mérito Militar.
Bom fim de semana.
José Martins
____________
Nota do editor
Último poste da série de 15 de março de 2018 > Guiné 61/74 - P18420: Consultório militar do José Martins (35): elementos para a história da CAÇ 727 (Nova Lamego, Canquelifá, Piche, 1964/66), que teve 18 mortos em campanha, incluindo o alf mil inf António Angelino Teixeira Xavier, natural de Carrazeda de Montenegro, Valpaços
Boa tarde
Oportunamente o nosso camarada de Engenharia Fernando Conde Vitorino escreveu-me, questionando-me se tinha elementos que o habilitassem a prestar uma homenagem ao seu Major Aranda, com quem conviveu no seu tempo da Escola Prática de Engenharia.
Consultei o processo do "nosso Major", que já não se encontra entre nós, e enviei-lhe os dados que recolhi no seu processo militar, junto do Arquivo Geral do Exército.
Como pode ter interesse, junto o referido texto que já se encontra publicado no facebook da Engenharia, juntando foto do TCor Aranda e foto da Medalha de Mérito Militar.
Bom fim de semana.
José Martins
********************
Tenente-Coronel Aranda
Mérito Militar
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Nota do editor
Último poste da série de 15 de março de 2018 > Guiné 61/74 - P18420: Consultório militar do José Martins (35): elementos para a história da CAÇ 727 (Nova Lamego, Canquelifá, Piche, 1964/66), que teve 18 mortos em campanha, incluindo o alf mil inf António Angelino Teixeira Xavier, natural de Carrazeda de Montenegro, Valpaços
Guiné 61/74 - P18617: Historiografia da presença portuguesa em África (114): Uma rivalidade bancária que ajuda a compreender a História da Guiné (Mário Beja Santos)
1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 30 de Janeiro de 2018::
Queridos amigos,
Convém situar este texto. No trabalho que levo em curso sobre a história do BNU na Guiné, cedo fui confrontando com a inexistência de documentação entre 1903 e 1917, praticamente nada existe no arquivo histórico do BNU. A documentação das duas agências é uma realidade a partir de 1917, ano em que a agência de Bissau se vê obrigada a pedir a Lisboa que dirima o contencioso que logo se levantou, em toda a linha das operações bancárias. Este documento solto tem a utilidade de deixar transparecer o que estava a mudar no processo socioeconómico da colónia: Bolama já não podia resistir aos ventos da história, os comerciantes do continente sentiam que as campanhas de pacificação de Teixeira Pinto lhes permitiam agora uma grande liberdade de circulação, os negócios ganhavam fluência e Bolama passara a ser um empecilho. É esse o valor, o significado que atribuo a este documento, o dar-nos um novo olhar sobre a história.
Um abraço do
Mário
Uma rivalidade bancária que ajuda a compreender a História da Guiné
Beja Santos
Em 1917, o BNU que instalara uma filial na capital da Província, em Bolama, criou uma agência na cidade de Bissau. Estamos em plena guerra, a documentação comprova sucessivas más escolhas para a governação e administração. Inúmeras são as carências, e vai avultar neste período a dura realidade que o desenvolvimento económico a partir de Bolama não tinha o mesmo dinamismo que estava a ocorrer em Bissau e as suas ligações comerciais no continente. Houvera guerras intensas e sangrentas na região do Forreá, com verdadeiras migrações e mudanças de peso no mosaico étnico. O Sul incrementava a orizicultura mas os empreendimentos em torno da mancarra e de outras produções encontrara maus gestores. Recorde-se que poucos anos depois, o empresário Vítor Gomes Pereira verá todos os seus bens hipotecados e transferidos para o BNU. Na investigação que levo a curso sobre o BNU na história da Guiné (1917-1974) encontrei um documento datado de 21 de Agosto de 1917, do gerente da agência de Bissau para a gerência do BNU em Lisboa que é revelador do que se estava a passar e indicia a decadência da capital, a sua transferência para Bissau começa a ser assunto corrente no final dos anos 1920, embora só se vá concretizar em 1941.
O título do documento reservado que vai de Bissau para Lisboa tem como assunto relação entre as duas agências, mas vai suficientemente mais longe para permitir perceber que tudo mudara depois das campanhas de Teixeira Pinto, os negócios na Guiné continental eram prometedores e já havia queixas dos comerciantes quanto à necessidade de terem de viajar até Bolama podendo fazer as suas operações financeiras em Bissau. É também um documento esclarecedor que estava aberta uma rivalidade que irá crescendo ao longo dos anos 1930 até atingir o clímax de relações verdadeiramente intempestivas entre os dois gerentes. Enfim, um documento elucidativo do que estava em mudança, o que definhava e o que se expandia. Enquanto lia este documento ia folheando os volumes escritos por Carvalho Viegas, um governador que deixou marcas na Guiné, sobretudo nas obras públicas, isto no exato momento em que ele próprio procura acelerar a mudança da capital de Bolama para Bissau, acarretando discussões enormes entre os grupos económicos na cena, o que é bem visível nos relatórios de execução de Bolama e Bissau neste período, em que Bolama defende encarniçadamente a posição estratégica que aparentemente detém.
O documento reservado que sai de Bissau em 21 de Agosto de 1917 diz o seguinte:
“Tem havido entre esta agência e a de Bolama troca de correspondência a propósito dos clientes que devem fazer as suas operações nesta ou naquela agência, sem que tenhamos chegado a acordo e por isso vimos submeter o assunto à apreciação de V. Exas. para que, resolvendo-o como for de justiça, cada uma das agências saiba depois o que lhe cumpre fazer.
Primeiro, clientes de Bafatá. Pretende aquela agência que os fregueses de Bafatá façam ali os seus negócios contrariamente ao que a clientela deseja. Bissau fica em caminho para Bolama; quem de Bafatá vai para Bolama tem que forçosamente tocar em Bissau, de forma que o cliente chega aqui e nós temos de lhe dizer que vá a Bolama fazer as suas operações! Sucede que todo o negócio de Bafatá se faz exclusivamente com Bissau não indo a menor quantidade de produtos de Bafatá para Bolama, visto que os clientes, tendo aqui os seus correspondentes, preferem aqui fazer as suas operações. As letras que V. Exas. remetem para Bafatá vêm sempre pagáveis em Bissau por a clientela ter quase que diariamente aqui portadores; finalmente, o cliente podendo servir-se desta agência de Bissau e regressar sem demora a sua casa, indo a Bolama perde pelo menos mais 3 dias se tiver transporte imediato, de contrário tem que esperar em Bissau 8 e mais dias, fazendo despesas desnecessárias. Já expusemos isto para Bolama, mas sem resultado. Nas mesmas condições fica Farim e Cacheu, cujas transacções são somente feitas com Bissau que igualmente fica em caminho.
Segundo letras descontadas. Parece que tendo sido aberta esta agência para ela deveriam ter sido enviadas todas as letras que descontadas em Bolama os sacados residissem em Bissau. Pelo facto, porém, das letras terem sido descontadas – pagável em Bolama, por não existir esta agência – recusa-se a agência de Bolama com este fundamento a enviá-las para aqui, sucedendo por este motivo que os clientes têm de ir a Bolama tratar da regularização das suas letras e, se as reformam, de continuar a fazer em Bolama as suas operações. A clientela com isto sente-se prejudicada porque em nada foi beneficiada com a abertura desta agência e traz para nós o inconveniente de privar-nos de fazermos descontos por ignorarmos qual seja em dado momento a responsabilidade das firmas que figuram nas letras a desconto, pois na dúvida de podermos ser logrados preferimos a recusa a descontos, que talvez pudéssemos fazer sem risco algum.
Mas dado o caso do mesmo cliente ter letras em Bolama e em Bissau, não poderá dar lugar a que o cliente venha a ter a sua responsabilidade duplicada? Não poderá algum freguês aproveitar-se desta circunstância e no mesmo dia em que aqui faz um desconto ir a Bolama que dista daqui 3 horas em motor e fazer novo desconto, aumentado responsabilidades que não comporte? Parece-nos que para evitar este inconveniente a melhor maneira seria a agência de Bolama enviar para esta agência todas as letras ali descontadas cujos sacados residam em Bissau e cada uma das agências limitar os seus descontos aos clientes da localidade, dividindo em duas zonas as restantes povoações da Guiné. Assim, a agência de Bissau ficaria com Cacheu, Farim, Bafatá e Bambadinca que lhe fica em caminho e mais próximas de Bissau; e à agência de Bolama pertenceria Bolama, Buba, Cacine e Bijagós.
Para que se pudesse fazer uma rigorosa fiscalização, também entendemos que uma das agências fornecesse à outra, semanalmente, ou que permutasse uma relação de letras descontadas para conhecimento da responsabilidade da clientela, pois pode suceder que um cliente de Bissau se aproveite de um de Bolama para sacado ou sacador, ou vice-versa, e pela relação vínhamos a saber qual era a sua responsabilidade.
Terceiro, contas correntes. Foi com dificuldade que obtivemos a transferência para esta agência dos saldos das contas correntes referentes a clientes de Bissau. Tendo esta agência aberto em 14 de Junho, só em 24 de Julho nos foram enviados de Bolama os saldos das contas, apesar dos nossos reiterados pedidos e igualmente da clientela. Quando, em 8 de Junho, saímos de Bolama, ficava fechada a escrita de Maio, mas a agência de Bolama para poder contar juros nas contas até fim de Junho demorou a transferência das contas, dando lugar a que estivéssemos trabalhando durante todo este tempo apenas com as reminiscências que tínhamos das referidas contas. Ficou ainda na agência de Bolama a conta do Visconde de Thiene pelo facto deste cliente ter ali uma pequena casa comercial que a maior parte das vezes conserva fechada durante meses. Ora sendo a sede da casa em Bissau é aqui, em nosso entender, que deve estar a conta para boa fiscalização.
Quarto, contas hipotecárias. A agência de Bolama pretende ficar ali com a conta hipotecária de Joaquim de Pinheiro Figueiredo que tendo aqui a residência deseja a conta em Bissau. Alega a agência de Bolama que foi ela a procuradora na escritura, mas tendo sido o banco quem fez o contrato e havendo agora em Bissau uma sua dependência, cremos que deveria passar para Bissau a conta, visto o cliente aqui residir e ter aqui outras suas operações.
Tudo isto gira em redor dos lucros que cada uma das agências deseja apresentar no final do exercício, mas nós dentro desses lucros temos em mira principalmente a fiscalização que aqui podemos exercer na defesa dos interesses e dos capitais do nosso banco, fiscalização que, ficando as coisas no pé em que estão, nem nós nem aquela agência pode fazer.
Pelos factos apontados, V. Exas. resolverão como julgarem conveniente, dando-nos as suas instruções”.
Começara a competição, só findará com o encerramento da agência de Bolama, que durante um tempo ainda funcionará como uma correspondência. Quem em Lisboa procede a análise da carta do gerente de Bissau faz anotações a lápis, parece que foram feitas ontem, diz que o Gouveia confirma ou que está certo, seguramente que houve concordância e a clara perceção de que os negócios no continente iam de vento em pompa, terão dado depois crédito às petições de Bissau.
Uma amostra singela mas concludente de que questiúnculas interbancárias podem ajudar a entender as mudanças que a Guiné estava a viver, em plena I Guerra Mundial.
Vista sobre a praia da ilha de Bubaque, fotografia de Francisco Nogueira, reproduzida, com a devida vénia, no livro “Bijagós Património Arquitetónico”, Edições Tinta-da-China, 2016
Nota do editor
Último poste da série de 18 de abril de 2018 > Guiné 61/74 - P18534: Historiografia da presença portuguesa em África (112): Imagens e relatórios dos actos de vandalismo praticados pelo MLG, na Praia de Varela, em Julho de 1961, encontrados no acervo documental do Banco Nacional Ultramarino (Mário Beja Santos)
Queridos amigos,
Convém situar este texto. No trabalho que levo em curso sobre a história do BNU na Guiné, cedo fui confrontando com a inexistência de documentação entre 1903 e 1917, praticamente nada existe no arquivo histórico do BNU. A documentação das duas agências é uma realidade a partir de 1917, ano em que a agência de Bissau se vê obrigada a pedir a Lisboa que dirima o contencioso que logo se levantou, em toda a linha das operações bancárias. Este documento solto tem a utilidade de deixar transparecer o que estava a mudar no processo socioeconómico da colónia: Bolama já não podia resistir aos ventos da história, os comerciantes do continente sentiam que as campanhas de pacificação de Teixeira Pinto lhes permitiam agora uma grande liberdade de circulação, os negócios ganhavam fluência e Bolama passara a ser um empecilho. É esse o valor, o significado que atribuo a este documento, o dar-nos um novo olhar sobre a história.
Um abraço do
Mário
Uma rivalidade bancária que ajuda a compreender a História da Guiné
Beja Santos
Em 1917, o BNU que instalara uma filial na capital da Província, em Bolama, criou uma agência na cidade de Bissau. Estamos em plena guerra, a documentação comprova sucessivas más escolhas para a governação e administração. Inúmeras são as carências, e vai avultar neste período a dura realidade que o desenvolvimento económico a partir de Bolama não tinha o mesmo dinamismo que estava a ocorrer em Bissau e as suas ligações comerciais no continente. Houvera guerras intensas e sangrentas na região do Forreá, com verdadeiras migrações e mudanças de peso no mosaico étnico. O Sul incrementava a orizicultura mas os empreendimentos em torno da mancarra e de outras produções encontrara maus gestores. Recorde-se que poucos anos depois, o empresário Vítor Gomes Pereira verá todos os seus bens hipotecados e transferidos para o BNU. Na investigação que levo a curso sobre o BNU na história da Guiné (1917-1974) encontrei um documento datado de 21 de Agosto de 1917, do gerente da agência de Bissau para a gerência do BNU em Lisboa que é revelador do que se estava a passar e indicia a decadência da capital, a sua transferência para Bissau começa a ser assunto corrente no final dos anos 1920, embora só se vá concretizar em 1941.
O título do documento reservado que vai de Bissau para Lisboa tem como assunto relação entre as duas agências, mas vai suficientemente mais longe para permitir perceber que tudo mudara depois das campanhas de Teixeira Pinto, os negócios na Guiné continental eram prometedores e já havia queixas dos comerciantes quanto à necessidade de terem de viajar até Bolama podendo fazer as suas operações financeiras em Bissau. É também um documento esclarecedor que estava aberta uma rivalidade que irá crescendo ao longo dos anos 1930 até atingir o clímax de relações verdadeiramente intempestivas entre os dois gerentes. Enfim, um documento elucidativo do que estava em mudança, o que definhava e o que se expandia. Enquanto lia este documento ia folheando os volumes escritos por Carvalho Viegas, um governador que deixou marcas na Guiné, sobretudo nas obras públicas, isto no exato momento em que ele próprio procura acelerar a mudança da capital de Bolama para Bissau, acarretando discussões enormes entre os grupos económicos na cena, o que é bem visível nos relatórios de execução de Bolama e Bissau neste período, em que Bolama defende encarniçadamente a posição estratégica que aparentemente detém.
O documento reservado que sai de Bissau em 21 de Agosto de 1917 diz o seguinte:
“Tem havido entre esta agência e a de Bolama troca de correspondência a propósito dos clientes que devem fazer as suas operações nesta ou naquela agência, sem que tenhamos chegado a acordo e por isso vimos submeter o assunto à apreciação de V. Exas. para que, resolvendo-o como for de justiça, cada uma das agências saiba depois o que lhe cumpre fazer.
Primeiro, clientes de Bafatá. Pretende aquela agência que os fregueses de Bafatá façam ali os seus negócios contrariamente ao que a clientela deseja. Bissau fica em caminho para Bolama; quem de Bafatá vai para Bolama tem que forçosamente tocar em Bissau, de forma que o cliente chega aqui e nós temos de lhe dizer que vá a Bolama fazer as suas operações! Sucede que todo o negócio de Bafatá se faz exclusivamente com Bissau não indo a menor quantidade de produtos de Bafatá para Bolama, visto que os clientes, tendo aqui os seus correspondentes, preferem aqui fazer as suas operações. As letras que V. Exas. remetem para Bafatá vêm sempre pagáveis em Bissau por a clientela ter quase que diariamente aqui portadores; finalmente, o cliente podendo servir-se desta agência de Bissau e regressar sem demora a sua casa, indo a Bolama perde pelo menos mais 3 dias se tiver transporte imediato, de contrário tem que esperar em Bissau 8 e mais dias, fazendo despesas desnecessárias. Já expusemos isto para Bolama, mas sem resultado. Nas mesmas condições fica Farim e Cacheu, cujas transacções são somente feitas com Bissau que igualmente fica em caminho.
Segundo letras descontadas. Parece que tendo sido aberta esta agência para ela deveriam ter sido enviadas todas as letras que descontadas em Bolama os sacados residissem em Bissau. Pelo facto, porém, das letras terem sido descontadas – pagável em Bolama, por não existir esta agência – recusa-se a agência de Bolama com este fundamento a enviá-las para aqui, sucedendo por este motivo que os clientes têm de ir a Bolama tratar da regularização das suas letras e, se as reformam, de continuar a fazer em Bolama as suas operações. A clientela com isto sente-se prejudicada porque em nada foi beneficiada com a abertura desta agência e traz para nós o inconveniente de privar-nos de fazermos descontos por ignorarmos qual seja em dado momento a responsabilidade das firmas que figuram nas letras a desconto, pois na dúvida de podermos ser logrados preferimos a recusa a descontos, que talvez pudéssemos fazer sem risco algum.
Mas dado o caso do mesmo cliente ter letras em Bolama e em Bissau, não poderá dar lugar a que o cliente venha a ter a sua responsabilidade duplicada? Não poderá algum freguês aproveitar-se desta circunstância e no mesmo dia em que aqui faz um desconto ir a Bolama que dista daqui 3 horas em motor e fazer novo desconto, aumentado responsabilidades que não comporte? Parece-nos que para evitar este inconveniente a melhor maneira seria a agência de Bolama enviar para esta agência todas as letras ali descontadas cujos sacados residam em Bissau e cada uma das agências limitar os seus descontos aos clientes da localidade, dividindo em duas zonas as restantes povoações da Guiné. Assim, a agência de Bissau ficaria com Cacheu, Farim, Bafatá e Bambadinca que lhe fica em caminho e mais próximas de Bissau; e à agência de Bolama pertenceria Bolama, Buba, Cacine e Bijagós.
Para que se pudesse fazer uma rigorosa fiscalização, também entendemos que uma das agências fornecesse à outra, semanalmente, ou que permutasse uma relação de letras descontadas para conhecimento da responsabilidade da clientela, pois pode suceder que um cliente de Bissau se aproveite de um de Bolama para sacado ou sacador, ou vice-versa, e pela relação vínhamos a saber qual era a sua responsabilidade.
Terceiro, contas correntes. Foi com dificuldade que obtivemos a transferência para esta agência dos saldos das contas correntes referentes a clientes de Bissau. Tendo esta agência aberto em 14 de Junho, só em 24 de Julho nos foram enviados de Bolama os saldos das contas, apesar dos nossos reiterados pedidos e igualmente da clientela. Quando, em 8 de Junho, saímos de Bolama, ficava fechada a escrita de Maio, mas a agência de Bolama para poder contar juros nas contas até fim de Junho demorou a transferência das contas, dando lugar a que estivéssemos trabalhando durante todo este tempo apenas com as reminiscências que tínhamos das referidas contas. Ficou ainda na agência de Bolama a conta do Visconde de Thiene pelo facto deste cliente ter ali uma pequena casa comercial que a maior parte das vezes conserva fechada durante meses. Ora sendo a sede da casa em Bissau é aqui, em nosso entender, que deve estar a conta para boa fiscalização.
Quarto, contas hipotecárias. A agência de Bolama pretende ficar ali com a conta hipotecária de Joaquim de Pinheiro Figueiredo que tendo aqui a residência deseja a conta em Bissau. Alega a agência de Bolama que foi ela a procuradora na escritura, mas tendo sido o banco quem fez o contrato e havendo agora em Bissau uma sua dependência, cremos que deveria passar para Bissau a conta, visto o cliente aqui residir e ter aqui outras suas operações.
Tudo isto gira em redor dos lucros que cada uma das agências deseja apresentar no final do exercício, mas nós dentro desses lucros temos em mira principalmente a fiscalização que aqui podemos exercer na defesa dos interesses e dos capitais do nosso banco, fiscalização que, ficando as coisas no pé em que estão, nem nós nem aquela agência pode fazer.
Pelos factos apontados, V. Exas. resolverão como julgarem conveniente, dando-nos as suas instruções”.
Começara a competição, só findará com o encerramento da agência de Bolama, que durante um tempo ainda funcionará como uma correspondência. Quem em Lisboa procede a análise da carta do gerente de Bissau faz anotações a lápis, parece que foram feitas ontem, diz que o Gouveia confirma ou que está certo, seguramente que houve concordância e a clara perceção de que os negócios no continente iam de vento em pompa, terão dado depois crédito às petições de Bissau.
Uma amostra singela mas concludente de que questiúnculas interbancárias podem ajudar a entender as mudanças que a Guiné estava a viver, em plena I Guerra Mundial.
Vista sobre a praia da ilha de Bubaque, fotografia de Francisco Nogueira, reproduzida, com a devida vénia, no livro “Bijagós Património Arquitetónico”, Edições Tinta-da-China, 2016
Vista do porto de Bissau, década de 1910, imagem do nosso blogue inserida em 8 de Setembro de 2012
____________Nota do editor
Último poste da série de 18 de abril de 2018 > Guiné 61/74 - P18534: Historiografia da presença portuguesa em África (112): Imagens e relatórios dos actos de vandalismo praticados pelo MLG, na Praia de Varela, em Julho de 1961, encontrados no acervo documental do Banco Nacional Ultramarino (Mário Beja Santos)
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terça-feira, 8 de maio de 2018
Guiné 61/74 - P18616: Convívios (855): XXXI Almoço de Confraternização, e comemoração do 46.º aniversário da chegada, dos Oficiais, Sargentos e Praças, e familiares, do BCAÇ 2879, dia 26 de Maio de 2018, em Folgosinho (Carlos Silva, ex-Fur Mil da CCAÇ 2548)
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Nota do editor:
Último poste da série de 2 de maio de 2018 > Guiné 61/74 - P18595: Convívios (854): Encontro dos "Ilustres TSF" em Campanhã - Porto (Hélder Valério Sousa, ex-Fur Mil TSF)
Guiné 61/74 - P18615: XIII Encontro Nacional da Tabanca Grande (24): Monte Real, 5 de maio de 2018: o olhar do fotógrafo 'strelado' Miguel Pessoa - Parte I
O ex-ten pilav António Martins de Matos, hoje ten gen pilav reformado
Isabel e Tó Zé Pereira da Costa... "Fregueses de longa data" dos encontros nacionais da Tabanca Grande
Xico Allen e Agostinho Gaspar
Três "bandalhos" de o "Bando": ao centro o bandalho-mor, Jorge Teixeira; à sua esquerda, o Ricardo Figueiredo; à direita, o António Tavares.
Margarida Peixoto e Giselda Pessoa
O fotógrafo, Miguel Pessoa, com ar cansado... Há dias e dias que não sabe o que é dormir numa cama...
O régulo da Tabanca de Setúbal, Hélder Sousa
Mais dois históricos: o Idálio Reis e o Francisco Silva
Dina Vinhal, Germana e Carlos Silva
Manuel Augusto Reis: se houvesse uma tabanca em Aveiro, ele seria o régulo...
O casal Caseiro, à direita (Maria Celeste e Vítor Caseiro) e a Irene, à esquerda, esposa do Luís R. Moreira
José Ferreira, António Tavares e Carlos Silva (um dos régulos da Tabanca dos Melros, em Gondomar)
Vítor e Maria Celeste Caseiro... O Vítor é o presidente da Junta de União de Freguesias de Santa Eufémia e Boa Vista, concelho de Leiria.
Da esquerda para a direita: Hélder Sousa, Alice Carneiro, Manuel José Ribeiro Agostinho e Elisabete
Monte Real > XIII Encontro Nacional da Tabanca Grande > 5 de maio de 2018 >
Foto (e legenda): © Miguel Pessoa (2018). Todos os direitos reservados [Edição; Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]
1. Mesmo combalido, na sequência de um "acidente doméstico", o nosso Miguel Pessoa não quis deixar de vir a Monte Real, e fazer a sua cobertura fotográfica do evento...
Obrigado, Miguel, pelas 52 fotos que nos mandaste. Aqui vai uma primeira seleção. Todos os amigos e camaradas da Guiné te desejam rápidas melhoras. E vê se finalmente consegues dormir na tua cama!... (LG)
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Nota do editor:
Último poste da série > 7 de maio de 2018 > Guiné 61/74 - P18613: XIII Encontro Nacional da Tabanca Grande (23): um paraquedista, uma enfermeira paraquedista e um maluquinho das máquinas voadoras... O que faziam em Monte Real, no sábado, dia 5 de maio ?
Último poste da série > 7 de maio de 2018 > Guiné 61/74 - P18613: XIII Encontro Nacional da Tabanca Grande (23): um paraquedista, uma enfermeira paraquedista e um maluquinho das máquinas voadoras... O que faziam em Monte Real, no sábado, dia 5 de maio ?
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