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domingo, 17 de dezembro de 2023

Guiné 61/74 - P24968: Coisas & loisas do nosso tempo de meninos e moços (24): O meu natal minhoto (Joaquim Costa, Vila Nova de Famalicão)


As rabanadas. Foto: LG (2023)


É NATAL NO MINHO!

por Joaquim Costa


É o pinheiro “roubado”,
Os penedos tosquiados,
O azevinho sagrado
Da linda moura encantada.

É bonecada que renasce,
O musgo que lhe dá chão,
A manjedoura que se aquece,
É o presépio que nasce.

É as sopas que o vinho aquece,
É a doçura sem doces,
Mexidos com padre nossos,
É o milagre que o pão tece.

É o cheiro que a canela enaltece,
O milagre do esparguete em doce,
Rabanadas que embebedam
E vinho fino que enobrece.

É da salgadeira p’ra devinha
O porco que alimentei,
Bacalhau do miudinho,
Mais espinha que lombinho.

É noite das lamparinas
Nunca mais é amanhã,
Correndo para a chaminé,
Chocolate e tangerinas.

É o rapa, depois a missa,
Para os pezinhos beijar
Beija uma, beija duas,
Beija até o galo cantar.

É a roupa velha quentinha,.
Como eu gosto, meu Deus!
Pena que seja a “girândola”
A anunciar... o ADEUS.

Joaquim Costa

Com votos de um santo e feliz Natal DE 2023 para todos.

_________________

Nota do editor:

Ultimo poste da série > 30 de novembro de 2023 > Guiné 61/74 - P24898: Coisas & loisas do nosso tempo de meninos e moços (23): Pequeno glossário do português... à moda do Porto

terça-feira, 24 de outubro de 2023

Guiné 61/74 – P24787: Coisas & loisas do nosso tempo de meninos e moços (13): 50 ofícios e profissões de antigamente, extintos ou em vias de extinção (Luís Graça, Lourinhã)


O "Pitrolino". Foto e legenda: Cortesia do Museu da Lourinhã


(...) "A função do Petrolino, designado como “e;pitrólino”e; devido à pronúncia local, era percorrer as aldeias do concelho nas “voltas”, constituídas pelo alvará, carroça, macho, reservatórios, líquidos e produtos em armazém. Vendia azeite e petróleo assim como sabão e aguardente. O petroleo era originário da BP-Britum Petroleo e da Vacuumm, que pertencia ao Sr. José Maria de Carvalho, e o azeite era proveniente de Castelo Branco.

"Esta actividade foi transmitida pelo Sr. Veríssimo, de Poiares – Coimbra, ao Sr. José António Mateus que doou, juntamente com o filho, a totalidade da exposição presente no museu." (...)




O "amolador". Foto e legenda: Cortesia do Museu da Lourinhá

(...) As peças em exposição foram pertences do Sr. Garcia, conhecido como “Espanhol” e doadas por este ao Museu da Lourinhã. O Sr. Garcia, galego e natural da zona de Orense, veio para Portugal fugido da Guerra Civil Espanhola, assim como muitos dos seus conterrâneos, procurando melhor vida. 

Estes exerciam, na generalidade, dois tipos de profissão: Amoladores, na qual eram mestres, arranjando chapéus de chuva, amolando facas e tesouras, actividade que lhes deu o nome, colocando “gatos” (espécie de agrafos) em loiça partida, etc.; e Taberneiros, comprando carvoarias, transformando-as mais tarde em tabernas e depois em restaurantes.

O Sr. Garcia foi disso um exemplo típico. Fixou-se na Lourinhã em 1955 executando sempre a actividade de amolador e adquirindo mais tarde uma taberna, na antiga praça, que era conhecida como “Taberna do Espanhol”.

Da exposição sobressai a roda do amolador, roda essa que o Sr. Garcia doou para o Museu e vinha amolar facas e tesouras na presença dos visitantes, como na foto. (..)



1. Camaradas, que aqui têm escrito, na série "Coisas & Loisas do Nosso Tempo de Meninos e Moços" (*)... 

Já aqui falámos de alguns ofícios e profissões que desapareceram na voragem do tempo ou estão em vias de extinção, mas de que guardamos memórias; ceifeiras, mondadeiras, almocreves. ferradores, nomeadamente no sul do país, na terra do Zé Saúde, Aldeia Nova de São Bento, Serpa. 

Mas havia também usos e costumes que se perderam ou estão a perder, como a vindima (manual), a pisa (das uvas), as desfolhadas do milho, a matança do porco,  as feiras, as nossas primeiras viagens de comboio ou de camioneta até à "cidade grande", etc.

Lembremos aqui (porque também fazem parte da nossa identidade, da nossa infància, das nossas memórias..)  outros ofícios e profissões que desapareceram, no campo e na cidade, com as mudanças operadas pelo desenvolvimento da econonia de mercado, a motorização dos transportes, a mecanização e automitazação do trabalho, a urbanização, o consumo de massa, etc.:

Deixem-me acrescentar mais alguns ofícios e profissões que desapareceram com a industrialização e o êxodo da população rural para as cidades e para o estrangeiro... E dentro das próprias cidades, com a "modernização" (caso do aguadeiro e do limpa-chaminés, por exemplo).

(i) leiteiro e/ou queijeiro que vendia porta a porta (queijos de cabra e ovelha)

(ii) aguadeiro (nas vilas e cidades, antes do saneamento básico) (em Lisboa eram galegosó,  depois dos negros e antes dos escravos)

(iii) cocheiro  (condutor de carroças, charretes, carruagens); falando dele, temos que falar do segeiro, o construtor de veículos de tracção animal, ambos vítimas do automóvel; nas casa ricas o cocheiro passou a "chaufeur" ou chofer...

(iv) correeiro (faz arreios,  albardas para os cavalos, machos e burros) 

(v) sapateiro / sapateiro-remendão (fazendo calçado novo ou só consertos)

(vi) latoeiro / funileiro (no Norte, diz-se caldeireiro; no Norte; trabalha o cobre, a folha de Flandres, faz alambiques, caldeiras, artigos de latoaria...)

(vii) limpa-chaminés;

(viii) borreiro / sarreiro  (limpava comprava as as borras e o sarro dos depósitos do vinho. nomeadamente na regiáo do Oeste e Ribatejo);

(ix) tanoeiro (nas regiões vinicolas)

(x) amola-tesouras / amolador ( oficío muito ligado aos galegos);

(xi) parteira/aparadeira (quando os partos eram em casa, até tarde, ao final dos anos 60)

(xii) barbeiro-sangrador (profissão oficialmente extinta, com a proibição da flebotomia ou sangria m 1875!);

(xiii) boticário (fábricava medicamentos "caseiros" ou segundo formulários  codificados, a pedido do médico,  antes do desenvolvimento da indústria farmacêutica)

(xiv) alfaiate (o pronto-a-vestir matou o alfaiate, que agora só existe na alta costura)

(xv) chapeleiro

(xvi) taberneiro

(xvii) carvoeiro (vendedor de carvão)

(xviii) oleiro

(xix) lavadeira (no rio ou lavouro público ) e engomadeira  (que passava a ferro com ferro aquecido a carvão, hoje "ferro elétrico")

(xx) caiador (no sul, pintavam-se as casas com cal)

(xxi) varina / vendedora de peixe (que se fazia notar pelos seus pregóes e a canastra à cabeça)

(xxii) saltimbanco (ambulante), animando as ruas e praças de vilas e aldeias)

(xxiii) vendedor de água fresca e capilé (nomeadamente nas cidades, no verão) (ver aqui foto do grande fotógrafo portuguès Joshua Benoliel, de 1918)

(xxiv) quinquilheiro (feirante, em geral, que vendia quinquilharia, bugigangas, miudezas...)

(xxv) capelista (vendedor, em loja de quinquilharias ou materiais usados na costura e enfeites de vestuário, como fitas, linhas ou botões, etc.)

(xxvi) vendedor de banha da cobra nas feiras

(xxvii) outros vendedores ambulantes ou em feiras (muitas vezes sazonais, adaptaram-se aos tempos modernos: o assador e vendedor de castanhas, por exemplo; ou o vendedor de gelados e bolas de berlim, nas praias)

(xxviii) ardina (vendia jornais, não confundir com jornaleiro, trabalhador agrícola pago à jorna, como o cavador de enxada)

(xxix) modista / costureira / alfaiate (na realidade eram ofícios distintos, o ultimo era exercido por homens, fazia fatos para homens);

(xxx) bordadeira

(xxxi) ajuntadeira (costureira de botas, sapatos, artigos de pele)

(xxxii) moleiro (no sul, há moinhos de vento;no norte, engenhos movidos a água; engenhos de linho, engenhos de farinha)

(xxxiii) fotógrafo "à lá minuta" (tiraram-nos os primeiros retratos quando éramos miúdos)

(xxxiv) telefonista dos correios

(xxxv) boletineiro (entregava os telegramas)

(xxxvi) engraxador de sapatos (na cidade)

(xxxvii) calceteiro (trabalha no empedramento de estradas, ruas, passeios, etc.).

(xxxviii) canteiro (edreiro ou artífice que trabalha a pedra de cantaria)

(xxxix) matador de porcos, castrador, açougeiro e equivalentes

(xl) pastor / guardador de rebanhos ( adueiro (pastor de porcos)

(xli) regente escolar (do tempo em que não havia em número suficiente professores/professoras diplomadas pelas Escolas do Magistério Primário)

(xlii) regedor (antiga autoridade administrativa de uma freguesia civil; função extinta com o advento do 25 de abril de 1974; era uma #"figura camiliana")


(xliii) sacristão (que ajudava à missa e tocava o sino)

(xliv) carpideira (Mulher ou grupo de mulheres a quem se pagava para chorar ou prantear nos velóriso e enterros, nas aldeias)
(xlv) alcoviteira / casamenteira (arranja ou arranjava casamentos; não confundir com proxeneta)

(xlvi) mineiro (de pá e pica)

(xlvii) alambiqueiro (trabalha na destilação por alambique)

(xlviii) carcereiro (agora "guarda prisional")

(xlix) dactilógrafa/o

(l) vedor (pesquisador de nascentes de água, munido de uma varinha)...


2. A lista não é exaustiva e algumas destes ofícios e profissões, nomeadamente manuais,  podem ser recordados, por exemplo, no Museu da Lourinha, na secção de Etnografia

E em todas as terras da província as alcunhas estavam muitas vezes relacionadas com as profissões (Luís Sapateiro, Jorge Funileiro, o Capelista, Ambrósio Correeiro, o Pitrolino ) ou a naturalidade (Zé Penicheiro, a Bimba, o Espanhol).
__________

Nota do editor

segunda-feira, 16 de outubro de 2023

Guiné 61/74 – P24761: Coisas & loisas do nosso tempo de meninos e moços (11): A primeira visão aterradora de uma aeronave, um Alouette II ou III, aos 4 ou 5 anos (Cherno Baldé, Fajonquito)

Guiné > Região de Tombali > Catió >  CCAÇ 617 / BCAÇ 619 (Catió, Ilha do Como e Cachil, 1964/66) > Alouette II > "O meu batismo em heli". 

Foto (e legenda): © João Sacôto (2019). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]

Angola > BCP 21 (1970/72) > Leste > Chiume > Dezembro de 1971 > No Leste de Angola, Chiume (Cú de Judas), heli AL III  no apoio ao 3º pelotão,  1ª CCP /  BCP 21.


Foto (e legenda) © Jaime Bonifácio Marques da Silva (2022). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné


A primeira visão aterradora 

de um helicóptero aos 4 ou 5 anos 

por Cherno Baldé (*)


Uma valiosa c0ntribuição guineense para a série "Coisas & loisas do nosso tempo de menino e moço" (**) 



O Cherno Baldé, em 1987,
na Moldávia, na antiga URSS
Foi naquela época que, na idade de 4 ou 5 anos, aconteceu a minha primeira visão de uma máquina voadora, que terá sido, provavelmente em meados de 1964, precisamente na altura em que estávamos em Samagaia, pouco tempo antes do ataque à zona que nos obrigaria a deixar a aldeia para nos refugiarmos em Cambajú, onde o meu pai já se encontrava a trabalhar alguns anos antes.

Estava com o meu irmão mais velho, Ibraima, a pastar as vacas nas imediações da aldeia, quando de repente ouvimos um ruído potente que vinha de cima, 

Quando nos virámos para ver, o avião já estava em cima das nossas cabeças, não dava para fugir, instintivamente, meti-me por baixo de umas raízes enormes de um poilão que estava por ali perto. Escondi-me o melhor que pude mas, foi por pouco tempo. 

Como o meu irmão estava a espreitar o avião e não lhe acontecia nada, sai também para ver. Na altura, os meus olhos viam com bastante nitidez e o avião voava a baixa altitude o que me permitiu ver, após uma breve inclinação deste, as pessoas sentadas, dois à frente e um na abertura lateral com as mãos apoiadas no que parecia ser uma metralhadora.

Esta visão ficou para sempre gravada na minha memória

Estranhamente, era também a visão da guerra que  alastrava pouco a pouco e que mudaria o cenário da vida, aparentemente pacífica, que levávamos até aí e mudaria, de forma inesperada, o caminho dos nossos destinos, criando, mais tarde, a incompatibilidade e a confusão entre o futuro que tínhamos vislumbrado na infância e ao qual queríamos dar continuidade e a nova realidade para onde nos tinha empurrado um destino diferente, passando pela escola portuguesa e enfrentando, assim, um futuro incerto e completamente desconhecido que nos levaria primeiro para Bafatá e mais tarde à capital, Bissau, onde funcionava o único liceu, na altura, e mais tarde para terras distantes e desconhecidas, no estrangeiro.

Uma vida feita de aventuras interessantes e também de sofrimentos, de conquistas e derrotas, de descobertas e imposições, de solidariedade e mercantilismo, sempre em ambientes de opressão cultural permanente e de recuo impossível, fruto da rápida transformação e globalização a que fomos sujeitos pela máquina de dominação Europeia e Ocidental.


Cherno Abdulai Baldé, Chico

Natural de Fajonquito, Sector de Contuboel, Região de Bafatá | Pertence à Tabanca Grande desde 18/6/2009, e tem cerca de 285 (!) referências no nosso blogue. É nosso colaborador permanente, especialista em questões etno-longuísticas. É autor de, pelo menos, três notáveis séries de conteúdo autobi0gráfico:
  • "Memórias do Chico, menino e moço";
  • "Memórias do Chico no Império dos Sovietes";
  • "Memórias do Chico: Refugiado na sua própria terra durante a guerra civil de 1998/99: 200 km e oito dias de aflição, entre Bissau e Fajonquito".
Vive em Bissau, onde é quadro superior numa organização estrangeira.
____________

Notas do editor:

(*) Vd. poste de 19 de junho de 2009 > Guiné 63/74 - P4553: Memórias do Chico, menino e moço (Cherno Baldé) (1): A primeira visão, aterradora, de um helicanhão

sexta-feira, 13 de outubro de 2023

Guiné 61/74 - P24752: Coisas & loisas do nosso tempo de meninos e moços (8): "Se tens galinha pedrês, não a mates nem a dês" (Luís Graça)

Marco de Canaveses > Paredes de Viadores > Candoz > Quinta de Candoz >  2011 > O velho carro de bois, centenário, típico da região de Entre Douro e Minho. Não existe mais, hoje, a não ser as rodas...Símbolo de um mundo que desapareceu... E com ele,  uma certa ruralidade e rusticidade do homem português, características socioantropológicas sem as quais muito possivelmente não teria sido possível manter a nossa longa guerra colonial / guerra do ultramar (1961/74)... E a resistência, ativa e passiva, contra a violência de Estado e dos senhores da nobreza e do clero... E a guerrilha contra os invadores da Pátria, os Junot, os Soult, os Massena... E a cumplicidade com os Zé do Telhado, os Brandão, os Remexido... 

 Foto (e imagem): © Luís Graça (2011). Todos os direitos reservados. [Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


Se tens galinha pedrês, não a  mates nem a dês

por Luís Graça

Como era simples a vida da camponesa que ia ao monte buscar lenha, a moinha, as pinhas, as giestas. No carro de bois, que chiava pelo estradão, com a ca(n)ga(nça) toda de uma junta de bois nados e criados em Entre Douro e Minho. 

Ou que, de saco à cabeça, ia levar o grão de centeio ou de milho à azenha, lá longe, no Porto Antigo onde abicavam os barcos rabelos, depois de vencidos os temidos cachões do rio Douro, até então indomável.

Seguia, a pé, pela linha férrea do Douro, feita senhora, a Leonora, mas não segura... Com o comboio a apitar ao longe, e a avisar que já tinha chegad0 ao Juncal. E que a barragem do Carrapatelo haveria de trazer um dia a luz, a civilização, o emprego, a paz, a ordem e o progresso.

E que abria as pernas, depois, ao seu homem e senhor, seu amo, no meio do campo de milho.

Que quadro, que pintura, que pitoreco, que beleza, tardo-naturalística,  desta humilde cena portuguesa, desta gente sem rosto, sem nome, sem registo, sem trilho, sem a mística nem a estética do Movimento Nacional Feminino. Sem dom nem dó. Mas com fé, esperança e caridade. 

"Porra e lenha, é quanto a venha", diz o meu home, que anda num virote, enquanto a água de Covas é benção do céu para o milho e a vinha que cresce, apertada, na bordadura, nos solcalcos de granito...

Como era simples e bruta a vida da mulher do campo, no tempo em que ainda havia a distinção socioantropológica entre a cidade e o campo, ou a diferenciação teológica entre o céu, o purgatório e o inferno. E cada coisa estava no seu lugar.  E a freima também matava a gente. A freima da lavoura, mais a salgadeira.  E "na casa deste home, quem na trabalha na come"- 

E havia o carro de bois, e o penso para o tourinho, e a lavagem para os cevados, e a maçã, biológica, do paraíso perdido, e o império colonial,  e as expedições do Serpa Pinto, vizinho ali de Cinfáes, à distância de um tiro de canhão, e as campanhas de pacificação do Teixeira Pinto (a quem os guinéus chamavam o "capitão-diabo")... 

E mais a costeleta de Adão e as criadas de lavoura que eram violadas em cima da meda da palha de centeio. Enquanto os bois gemiam e babavam-se, sob a canga,  e estrumavam a terra,  as rodas do carro chiavam, e o varapau voltejava no adro da romaria, sob o efeito  estonteante do vinho e dos foguetes,  e o senhor abade praguejava: "freiras e frieiras é coçá-las e deixá-las". 

Como eram imutáveis as leis que regiam as relações entre a terra e o sol, o solstício do verão e do inverno, entre presas e predadores, entre machos e fêmeas, entre fidalgos e rendeiros, entre donzelas e donzéis, entre soldados e capitães, entre operários e patrões, entre ricos e pobres. entre cabaneiros e os sem eira nem beira. E a sexta-feira era o dia de praticar a caridade, dar aos pobres,  que o mesmo era emprestar a Deus. E o filho do "manjor"  e da criada brincava com o "morgadinho" que nunca poderia ser seu irmão  à luz das leis de Deus e dos homens. Porque fora feito no pecado, em cima da palha do milho  na eira e  não em lençóis alvos e castos e bentos de linho. 

"Se queres conhecer o vilão mete-lhe o mando na mão". E cada um tomava o seu lugar no desconcerto da nação e no palco do teatro da vida e da morte.

E ela levava, com a sua licença, a vaca, ao boi do povo para a emprenhar, E, com a sua licença, o porco à feira para, com sorte, no regresso trazer uns vestidinhos de chita, por meia dúzia de reis, para o dia da comunhão da filha da puta da canalha.

Como era estupidamente alegre e feliz e livre a infância, breve, dos rapazes e raparigas, no tempo em que a sardinha era para três. E sobrevivia o mais forte e o pai era pai e patrão e a mãe era mãe, pai e patroa,  quando o home partia para os brasis ou outros eldorados que ficavam para além do mar, ou simplesmente para lá ou para cá das serras do Marão,das Meadas,  de Montemuro, da Aboboreira, de Montedeiras. E muitas vezes já não voltava, muito menos rico, muito menos vivo ou inteiro.

E o galo cantava para a galinha pedrês, e a vida fiava-se e tecia-se linha a linha, em branco fio de linho, no tear da dor e da solidão.

Como era curta a vida, a esperança de vida, e certas, tão certas, a velhice e a morte. Mais a morte que a velhice, que "esta vida não chega a netos nem a filhos com barba", garantia o coveiro e certificava o facultativo.

"Muita saúde, pouca vida, porque Deus não dava tudo", lembrava o sino da igreja da aldeia, quando morria algum cristão, velho, que os novos já tinham seguido nas naus da Índia, fugidos da santa inquisição.

E "quem não poupa lenha não poupa nada que tenha", acrescentava, misógino, o rifão. Ou noutra variante, quiçá feminista "avant la letre": "Se tens galinha pedrês, não a mates nem a dês".

Quinta de Candoz,
setembro de 2008, 
versão revista em 5/10/2023
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Nota do editor:

Último poste da série > 9 de outubro de 2023 > Guiné 61/74 - P24737: Coisas & loisas do nosso tempo de meninos e moços (7): O Pão que Deus Amassou (Joaquim Costa, Vila Nova de Famalicão)

domingo, 1 de outubro de 2023

Guiné 61/74 – P24717: Coisas & loisas do nosso tempo de meninos e moços (5): A nossa feira de setembro (José Saúde, Aldeia Nova de São Bento, Serpa)

A nossa feira de setembro



1. O nosso Camarada José Saúde, ex-Fur Mil Op Esp/RANGER da CCS do BART 6523 (Nova Lamego, Gabu) - 1973/74, enviou-nos a seguinte mensagem. 
    

Camaradas,  

Em primeiro lugar, aplaudo a excelente iniciativa que nos faz recuar ao nosso tempo de meninos e moços; em segundo lugar, aplaudo, também, tudo o que tenho lido sobre esse tempo no nosso blogue; em terceiro lugar, mas com a devida vénia, vou colocar um texto que fez parte de um dos meus livros sobre a terra que viu nascer: Aldeia Nova de São Bento – Memórias, Estórias e Gentes, uma obra que vai na segundo edição.      

O texto diz-nos como era a feira de setembro, 1, 2 e 3, na minha aldeia e os seus diversos contextos para uma miudagem que não perdia a oportunidade de acompanhar passo a passo o desenvolvimento de uma novidade, anual, que traziam normalmente novidades. Aliás, era assim esse já recuado tempo, pois, atualmente tudo mudou de forma radical. 

A nossa feira de setembro

por José Saúde

 

Aspeto geral da feira, mas numa fase de construção. Vê-se a marcação das ruas ainda incompletas 


A curiosidade da rapaziada ao longo da semana que antecedia a nossa feira que se realizava nos dias 1, 2 e 3 de setembro, apresentavam-se divinalmente ao rubro. A bisbilhotice da miudagem era interessante. Tudo começava quando se dava início ao colocar os postes de iluminação, o estender dos fios nos postes e o subsequente colocar das lâmpadas, assim como a definição das ruas. 

Seguia-se o interesse pela chegada dos primeiros tendeiros que se faziam transportar por um carro puxado por uma besta. Depois as camionetas atulhadas com o material para o carrossel, ou de carros para a pista de automóveis, e outros que transportavam tudo o que fosse importante para a montagem do circo. O circo era constituído por famílias de artistas que utilizavam as suas próprias caravanas, o mesmo sucedendo para os proprietários dos carrosséis e da pista dos automóveis. De resto, tudo passava pelo coabitar nas próprias barracas.

Na verdade, a semana era deveras estonteante para uma juventude que passara o ano a pensar na sua feira. A malta, sempre ativa, não arredava pé do recinto e inteirava-se de todos os pormenores. Seguiam-se as cavaqueiras de uma mocidade que via na feira a grande novidade desse tempo.Novidades que se estendiam por diversos acontecimentos, quiçá únicos, vistos nessa altura.           

Apareciam os vendedores de versos avulsos, os amola-tesouras, as bancas de brinquedos no exterior do mercado, gentes a pedir esmola, as tendeiras a procurarem uma costureira para lhe arranjarem um vestido, ou de pessoas dos circos, carrosséis, ou da pista dos carros a procurarem um mecânico para um pontual arranjo no seu veículo, enfim, havia de tudo um pouco.

Recordo o mestre Portela que tinha uma oficina num casão que era propriedade de Luís de Lá Féria, propriedade esta que fazia parte da sua mansão familiar, hoje essa antiga residência é pertença da Junta de Freguesia, ser muito solicitado para os amanhos dos velhos automóveis dos feirantes, sobretudo de pessoas do circo que possuíam a maioria desses de transporte. Um ano tive a oportunidade em assistir a um arranjo na oficina do Portela do automóvel do “palhaço pobre” do circo e que era um espetáculo de homem. Os seus apartes punham a malta em delírio.

O primeiro dia de feira era, na parte da manhã, destinado à corredora. Ali faziam-se os negócios do gado. Não havia cheques nem transferências bancárias. Todo o negócio era feito com dinheiro vivo. O vendedor aprontava para o preço do animal e o comprador retorquia com um valor muito abaixo do pretendido pelo dono da besta. Pelo meio aparecia o “cortador” (homem feito ao ganho de uma percentagem previamente acertada e normalmente um individuo de raça cigana), pessoa esta que fazia “chantagem” para a concretização no negócio, sendo os ciganos mestres nestas andanças.

Ciganos, “negociantes” de gado

A muito custo o vendedor lá ia cedendo ao preço lançado pelo comprador. Exemplificando: partindo do princípio que o vendedor pretendia dez notas, isto significava que uma nota, nesses tempos, era de 100 mil réis, sendo o preço lançado de mil réis, mas o comprador propunha o valor de 500 mil réis. Entretanto, aparecia o “cortador” a intrometer-se no negócio oferecendo, também, dinheiro para a compra do animal. Conversa puxa conversa, o vendedor fraquejava e o comprador avançava com mais uma nota. Chegava-se, finalmente, a um acordo e a passagem do dinheiro para a venda do animal ficar concluída.

Ao lado dos negócios do gado, situavam-se pequenas barrancas que continham os apetrechos para os animais. Cabrestos, chocalhos, albardas, golpelhas para transportar a palha, molins, arreatas, de entre outros utensílio

                                                            A corredora

Nesses tempos dizia-se que o primeiro dia era dos campaniços. Esta pressuposta dicotomia é-nos plenamente admissível. As pessoas viviam em montes dispersos na serra aldeã, logo, o dia era propício para se fazerem negócios. Havia que reforçar a frota com animais novos. A idade sabia-se pelos dentes das bestas. Mas, na feira compravam-se utensílios que não existiam normalmente na aldeia.

O povo enchia-se de gentes que, vestindo-se de grave, passeavam pela feira que assumia o estatuto de evento de grande porte. Comprava-se torrão, algodão doce, bugigangas, pratos, panelas de alumínio, tachos, cadeirões em buinho, jarras, molduras, jogava-se um tiro nas barracas onde as meninas, sempre solícitas, chamavam os clientes que no fim recebiam um miminho, andava-se no carrossel, conduziam-se os carros na pista, e, à noite, ia-se ao circo. 

Havia, ainda, quem se dedicasse aos jogos de lazer, onde o objetivo passava por trazer algo para casa ou umas moedinhas para os bolsos, ou desembolsar os tostões que lhe fugiam inadvertidamente da algibeira. Existiam também as barracas de comes e bebes e um frango assado na brasa, naquele tempo, apresentava-se como repasto de se lhe tirar o chapéu.

A rua que dava acesso à feira, aquela que se situa entre o Largo do Rossio pequeno e o Rossio grande, estava apetrechada com barracas de fruto, particularmente de peros amarelos, sendo o seu cheiro deveras divinal, sobretudo ao longo da noite. Ou de barrancas onde se vendiam as mantas trazidas pelos vendedores vindos das Beiras, onde se comercializavam os safões, as pelicas, com a famosa lã de ovelha, as mantas, de entre outros agasalhos de inverno.

Lembro, também, a visita dos forasteiros que se instalavam nas tabernas onde mastigavam os seus farnéis. Puxavam de um “talego” e lá vinham os bons nacos de presunto, ou de paios, ou de toucinho com “vieirinho” magro, que acompanhavam com o vinho, ou cerveja, arrefecidos no fundo do poço localizado no quintal, pois nesses tempos não havia frigoríficos, sendo que nessas vendas aconchegavam os seus estômagos. Existia, ainda, a possibilidade de refrescar a bebida, comprando-se barras de gelo na fábrica que os taberneiros colocavam em alguidares de barro.

O terceiro dia de feira era o mais forte. Pelo menos foi essa a impressão com que o povo ficou e que ainda hoje preservo. O circo, por exemplo, cedo anunciava “grátis às damas, damas grátis” e a plebe enchia as bancadas à volta da pista do espetáculo.

Nós, então crianças, delirávamos com a magia do espetáculo. Os contorcionistas, os palhaços (o rico e o pobre), os trapezistas, os ilusionistas, os malabaristas, o trabalho com animais ferozes feito pelos domadores, enfim, uma amalgama circense que nos levava a inimagináveis sonhos.

À entrada da feira, à esquerda, situava-se, habitualmente, a barraca do Favinhas, um retratista que fora, sem dúvida, um homem que fotografou milhares pessoas cujas imagens são agora restos de saudade. Não fora ele não existia hoje reproduções dos nossos antepassados.

Assim era, em resumo, a nossa feira de setembro!


Um abraço, camaradas

José Saúde
Fur Mil Op Esp/RANGER da CCS do BART 6523
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Nota de M.R.:

Vd. último poste desta série de  1 DE OUTUBRO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24716: Coisas & loisas do nosso tempo de meninos e moços (4): A minha primeira viagem, de camioneta, a Lisboa, com 9 anos (Eduardo Estrela, Faro)

Guiné 61/74 - P24716: Coisas & loisas do nosso tempo de meninos e moços (4): A minha primeira viagem, de camioneta, a Lisboa, com 9 anos (Eduardo Estrela, Faro)


Fonte: EVA  Transportes SA > Arquivo Histórico (2023) (com a devida vénia...) (*)


1. Texto que o Eduardo Estrela nos mandou para a série "Coisas & loisas do tempo de meninos e moços (**):

Data - 30 set 2023 16:51 
Assunto - Viagens da nossa memória

Lembro que o dia apareceu sereno e límpido. Dias antes, a minha mãe tinha começado a preparar a viagem que íamos fazer.

Como prenda dos meus bons resultados escolares, o meu pai ofereceu-me um relógio e através dum pedido que fez ao Sr. Aníbal da Cruz Guerreiro, empresário farense  dono da EVA (*), obteve para ele, para a minha mãe e para mim, a título gracioso, viagens de ida e volta a Lisboa utilizando as camionetas (agora são autocarros) daquela empresa.

Na saída de Faro para S. Brás de Alportel, perto da minha casa, havia uma paragem. Foi aí que entrámos na dita camioneta. Eram 9,30 da manhã dum dia extraordinário para mim, que iniciava nesse momento a primeira grande viagem da minha vida, a caminho do desconhecido e do imaginário.

Ronceiro, o veículo foi galgando quilometros atravessando o Caldeirão e parando amiudadas vezes para largar ou deixar entrar passageiros.

Os meus olhos devoravam o encanto da serra e ficaram inundados com a beleza das planícies do Alentejo e do seu colorido manto.

Perto da hora do almoço, a camioneta parou em Ferreira do Alentejo durante pouco mais de 1 hora, de modo a que os passageiros que fariam o percurso completo pudessem comer.

No final do dia arribámos a Cacilhas, aguardando vez para que, camioneta e passageiros atravessassem o Tejo a bordo do cacilheiro.

A chegada ao Terreiro do Paço era por volta das 7 horas da tarde. Ficámos instalados na casa duma prima irmã da minha mãe, na Rua Palmira aos Anjos, durante uma semana.

Tudo para mim era novo e grande. O movimento das pessoas, dos veículos, tudo feito a um ritmo a que eu não estava habituado. Ficava encantado por ver os eléctricos atrás uns dos outros em constante movimento.

À época, a Almirante Reis estava esventrada por força das obras do metropolitano e ver os trabalhadores lá em baixo na sua azáfama, deixava-me boquiaberto e a pensar como era possível trabalhar àquela profundidade.

Fui ao aquário Vasco da Gama, aos Jerónimos, ao museu dos coches, ao jardim zoológico, ao aeroporto, aos lugares habituais a que iam as pessoas que visitavam a grande cidade pela primeira vez.

Tinha 9 anos e acabava de conhecer um pouco da terra das "muitas e desvairadas gentes".

No regresso a Faro, transmiti aos meus amigos o encantamento da viagem e das coisas que tinha visto.
Depois, pouco tempo depois, a minha vida levou uma dolorosa e tremenda volta.

O meu herói deixou-nos e tivemos eu e a minha mãe, doente cardíaca, que nos adaptar a uma realidade cruel.







(i) ex-fur mil at inf, CCAÇ 14, Cuntima e Farim, 1969/71;

(ii) natural de Faro, vive em Cacela Velha, a jóia da Ria Formosa, cantada por Sophia;

(iii) uma das suas paixões é o teatro amador, mas também comeu, na infância, órfão de pai, "o pão que o diabo amassou";

(iv) é o membro nº 541, da Tabanca Grande, desde 29/2/2012.
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Notas do editor:

(*) Empresa de Viação do Algarve, Lda: criada em 1933; hoje EVA Transportes SA, Faro. (Fonte: EVA > Arquivo Histórico)


(...) Teria pouco mais que 8 meses de gestação, estando ainda no quentinho da barriguinha da minha mãe, quando fiz a minha primeira viagem.

Em Dezembro de 1945, o meu pai, ainda solteiro, havia “emigrado” de Azurara, freguesia do concelho de Vila do Conde, para Matosinhos em busca de uma vida melhor. Um familiar da minha mãe tinha-lhe arranjado um modestíssimo emprego como funcionário público na “Junta”, assim era conhecida na época a Administração dos Portos do Douro e Leixões, mas muito bom para quem não tinha nenhum meio de subsistência. A minha mãe, ainda sua namorada, ficou em Azurara, na casa de seus pais, à espera de melhores dias para se poderem casar. (...)

Vd. também postes anmteriores da série:

27 de setembro de  2023 > Guiné 61/74 - P24704: Coisas & loisas do nosso tempo de meninos e moços (1): A Feira (Joaquim Costa, Vila Nova de Famalicão)

(...) Terminado o verão, de pé livre e descalço, minha mãe me levou à feira para comprar umas chancas, para resguardar o pezinho da chuva e do frio no caminho para a escola bem como o “material escolar”.

O dia de feira era um autêntico dia de festa, pelo que era o êxodo das aldeias para a vila na ânsia de encontrarem alguns produtos e artigos (escolares… e não só!) a bom preço, bem como um pouco de divertimento e “galhofa” fugindo, por algumas horas, às rotinas do trabalho diário.(...)


28 de setembro de 2023 > Guiné 61/74 - P24707: Coisas & loisas do tempo de meninos e moços (2): O martírio da viagem de comboio de Afife ao Porto (Valdemar Queiroz, Afife, Viana do Castelo)

(...) Com dez anos fiz a primeira viagem de comboio, foi no correio de Afife ao Porto.
Foi à casa de uma tia nas férias grandes de Verão.

O martírio começou em casa da minha avó, continuou estrada abaixo até à Estação e só melhorou quando o comboio partiu e eu descalcei umas botas novas que me apertavam os pés. (...)

quinta-feira, 28 de setembro de 2023

Guiné 61/74 - P24707: Coisas & loisas do nosso tempo de meninos e moços (2): O martírio da viagem de comboio de Afife ao Porto (Valdemar Queiroz, Afife, Viana do Castelo)


Viana do Castelo > Afife > A soga > Postal iliustrado, s/d, c. 1940. (Diz-se "levar os bois à soga"; a soga é uma tira de couro cujas extremidades se prendem às pontas do boi, e pela qual ele é puxado ou guiado.)

Fonte: Arquivo Municipal de Viana do Castelo (com a devida vénia...)


1. O Joaquim Costa (*) e agora o Valdemar Queroz já pagaram a "obada" ou "côngrua" ao "prior desta freguesia", escrevendo e publicando a uma historieta do tempo de antigamente... (Aqui não se paga em espécie, mas em géneros...).

O primeiro escreveu sobre a feira, em Vila Nova de Famalicão, onde ia, mais a mãe, comprar chancas (não se podia ir descalço para a "escolinha"...). O Valdemar, esse,  lembrou-se da sua primeira viagem de comboio (em tudo na vida, há sempre uma primeira vez)... Uma história não menos deliciosa de um menino que gostava era de andar descalço e comer "coubes", lá na casa da avó, em Afife, em "Biana" do Castelo...

Afife fica a 10 km a norte de Viana do Castelo, sede do concelho. Hoje a distância ao Porto (70/80 km) faz-se em menos de uma hora de carro ou de comboio. Mas em 1955 devia ser uma eternidade, a avaliar pelo "martírio" quer sofreu o nosso "djubi", como ele conta aqui com verve e com graça...

Minhoto de nascimento, alfacinha por criação, avô de netos neerlandeses, e para mais vivendo sozinho trancado em casa na Rua de Colaride, Agualva-Cacém, é uma figura muito querida da Tabanca Grande. 

Que os bons irãs lhe deem vida e qualidade de vida (que  a saúde, essa, anda muito remendada, por mor de um raio de uma DPOC)...


Valdemar Queiroz, minhoto por criação, lisboeta por eleição, 
ex-fur mil, CART 2479 / CART 11, Contuboel, Nova Lamego, 
Canquelifá, Paunca, Guiro Iero Bocari, 1969/70; 
aqui, na foto, em Contuboel, 1969.


O martírio de viagem ao Porto

por Valdemar Queiroz

Com dez anos fiz a primeira viagem de comboio (#), foi no correio de Afife ao Porto.
Foi à casa de uma tia nas férias grandes de Verão.

O martírio começou em casa da minha avó, continuou estrada abaixo até à Estação e só melhorou quando o comboio partiu e eu descalcei umas botas novas que me apertavam os pés.

Eu ia sozinho e com medo de me roubarem as botas atei-as à cintura,  até parecia um "cowboy" com duas pistolas,  e fiz toda a viagem descalço, que nada me custou por estar habituado.

O martírio das botas passou, mas outro tão complicado apareceu, passada a Ponte de Viana: 

− Nunca saias do teu lugar!  − dissera-me a minha avó à frente do chefe da Estação que parecia um polícia.

O tempo ia passando e eu, com uma grande vontade de correr dentro do comboio, para ver o que se passava nas outras carruagens. E assim foi,  até chegar à carruagem de 1.ª classe com os bancos de couro avermelhado.

Não passou muito tempo de admiração para levar com um 'estás a levar um puxão d'orelhas, vai já pro teu lugar', disse-me o "polícia'" da carruagem.

Lá me sentei no meu lugar do banco de pau da 3.ª classe (?) e adormeci até chegar ao Porto.

No Porto foi um martírio calçar as botas, andar com elas a olhar para todos os lados que nunca tinha visto.

Passado pouco tempo de andar de boca aberta na grande cidade, comecei a chorar e a pedir para voltar à minha terra pra casa da minha avó.

Foram quinze dias de martírio, aflito dos pés e ser obrigado a comer bife com esparguete.
Ah! que saudades quando regressei a Afife, poder andar descalço e a comer couves com batatas, toucinho e chouriço.

Manias de criança mimada.

Valdemar Queiroz

Nota do autor: (#) no ano seguinte voltei a viajar de comboio pra Viana, para  ir fazer o exame da 4.ª classe (Instrução Primária)

27 de setembro de 2023 às 15:29 (*)

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Nota do editor:

(*) - Ultimo poste da série > de 4 setembro de 2023 > Guiné 61/74 - P24704: Coisas & loisas do nosso tempo de meninos e moços (1): A Feira (Joaquim Costa, Vila Nova de Famalicão)

quarta-feira, 27 de setembro de 2023

Guiné 61/74 - P24704: Coisas & loisas do nosso tempo de meninos e moços (1): A Feira (Joaquim Costa, Vila Nova de Famalicão)


Quinta de Candoz > A matança do porco (c. 1980): uma cena que Bruxelas conseguiu banir definitivamente dos nossos campos e aldeias (mas não da nossa memória) em nome de uma conceção fundamentalista da saúde pública e de uma Europa securitária, globalizada, normalizada e tecnocrática, matando a etnodiversidade... (Declaração de interesses: Não sou "vegan", adoro carne de porco... Claro que eu hoje não queria ver a minha neta a assistir a uma cena destas... Na nossa infância tivemos que "ver e ouvir" os gritos lancinantes do pobre animal, mas a seguir comíamos-lhe o sarrabulho, os rojões, as "febras", as bochebas, o presunto,   os salpicões ... E jogávamos a bola com a bexiga!)


Marco de Canaveses > c. 1980 >   O "toirinho", vendido na feira do Marco, uma das poucas fontes de receita dos caseiros, para além do vinho e do milho - (Este é um boi de trabalho, não de engorda; a junta de bois puxava a charrua de ferro, e trazia do "monte" uma carrada de lenha.) Por sua vez, o porco era o governinho da patroa (que o guardava, com engenho e arte,  na "salgadeira" ou no "fumeiro"). (*)

Quinta de Candoz > 2023 > O que resta do velho carro de bois: duas rodas desconjuntadas...


Quinta de Candoz > 2023 > As enxadas, as pás, as picaretas... (Ainda se usam, a par do trator e demais utensílios e alfaias agrícolas modernas)


Candoz > 2023 > A "mina" (nascente de água): matou a sede a gerações e gerações... e regou o milho


Quinta de Candoz > 2023 > A água da bica que corre, livre, para o Douro, a albufeira da barragem do Carrapatelo, a poucos quilómetros...


Quinta de Candoz > Socalco e escadas em pedra...

Fotos (e legendas): © Luís Graça (2023). Todos os direitos reservados. [Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]

1. Luís Graça, que  não é antropólogo (mas ficou com o "bichinho" da antropologia / etnologia, aquando das aulas e trabalhos de campo com o seu grande mestre e amigo Joaquim Pais de Brito, no ICSTE,  no âmbito da sua licenciatura em sociologia, 1975/80), tem pelo menos a sensibilidade cultural (ou socioantropológica, passe o palavrão) para olhar para o passado sem saudosismos nem miserabilismos, mas sabendo que a roda de um carro de bois, a enxada, a matança do porco, a salgadeira, a panela de ferro,  a "mina" (nascente de água") ou os muros de suporte da Quinta de Candoz de antigamente (quando ainda se fazia o milho, o centeio e havia rendeiros...), todos esses "signos", todas essas "coisas & loisas" falam do "antigamente" da gente. Falam da nossa infância, falam do campo da nossa infância, falam das nossas pequenas vilas e cidades de provincia, falam dos nossos "usos e costumes", das formas de vida e de trabalho, dos nossos pais e avós... nomeadamente na regiáo de Entre Douro e Minho, a que se referem as fotos que reproduzimos acima.

Há dias lançámos o mote e o desafio (**)...Vamos lá "relembrar" algumas das "coisas & loisas do antigamente", ainda do tempo em que nascemos, crescemos, andámos na escola, começámos a trabalhar e a namorar (e alguns casaram)  e, entretanto,  fomos para a tropa e depois para a "nossa querida Guiné" (**)... com "licença para matar e morrer"...

Vamos abrir uma série para deixar espaço para essas "recordações avulsas",  de modo a que não se percam na voragem do tempo... Interessam-nos sobretudo as nossas vivências  (no campo, mas também nas vilas e cidades onde nos fizemos homens).  Afinal, tudo isto faz parte do nosso ADN sociocultural, da  nossa identidade, da nossa humanidade, da nossa portugalidade... São as nossas raízes "telúricas", não as podemos enjeitar, temos orgulho nelas: afinal nascemos num pequeno grande país, já milenar,,,

O pontapé de saída cabe ao nosso querido amigo e camarada, minhoto dos quatro costados, Joaquim Costa (***).

Vila Nova de Famalicão  > c. meados dos anos de 1950 > A família Costa: da esquerda para a direita na fila de trás: José (pai) e Gracinda (Mãe), seguindo-se os irmãos: Maria, Avelino, Manuel (que esteve na Guiné), Eduardo (o columbófilo) e na fila da frente o João (o Don Juan da família) a Noémia e o Joaquim, o mais novo.


Foto (e legenda): © Joaquim Costa (2022). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


2. Coisas & Loisas do Tempo de Meninos e Moços  (1):  A Feira (Joaquim Costa, Vila Nova de Famalicão)


(i)  ex-fur mil at Armas Pesadas Inf, CCAV 8351 (Cumbijã, 1972/74); 

(ii) membro da Tabanca Grande desde 30/1/2021, tem cerca de 7 dezenas de referências no blogue;

(iii) autor da série "Paz & Guerra: memórias de um Tigre do Cumbijã (Joaquim Costa, ex-mil arm pes inf, CCAV 8351, 1972/74)" (de que se publicaram 28 postes, desde 3/2/2021 a 28/7/2022), e que publicou em livro ("Memórias de um Tigre Azul - O Furriel Pequenina", por Joaquim Costa; Lugar da Palavra Editora, 2021, 180 pp); 

(iv) tirou o curso de engenheiro técnico, no ISEP - Instituto Superior de Engenharia do Porto; 

(v) foi professor do ensino secundário; 

(vi) minhoto, de Vila Nova de Fmalicão, vive em Fânzeres, Gondomar.


Terminado o verão, de pé livre e descalço, minha mãe me levou à feira para comprar umas chancas, para resguardar o pezinho da chuva e do frio no caminho para a escola bem como o “material escolar”.

O dia de feira era um autêntico dia de festa, pelo que era o êxodo das aldeias para a vila na ânsia de encontrarem alguns produtos e artigos (escolares… e não só!) a bom preço, bem como um pouco de divertimento e “galhofa” fugindo, por algumas horas, às rotinas do trabalho diário. A feira era o sítio onde tudo se vendia e em que tudo podia acontecer:

  • venda de gado apalavrado no recinto da feira e selado na taberna da Sara Barracoa à volta de uma malga de vinho tinto e montes de notas saltando de mão em mão. Durante toda a tarde nunca a malga era lavada : "Sara! lave com a mesma água !");
  • onde se ferravam os cavalos enquanto os homens confraternizavam e reviam velhas amizades na Sara;
  • onde se apregoavam e vendiam panfletos com histórias mirabolantes : um burro que nasceu com 3 cabeças e um homem que foi “morto matado” por um coice do cavalo e ressuscitou quando o cavalo se ajoelha junto do “morto matado” de lágrimas nos olhos de arrependimento;
  • onde se jogava a vermelhinha (jogo com dois copos, manuseados com destreza, e um dado) com o homem em permanente fuga da GNR, montando e desmontando a banca percorrendo toda a feira;
  • onde homens se zangavam, puxando do pau para uma boa refrega, com aplausos da assistência, a intervenção da GNR e as pazes na Sara Barracoa;
  • onde sempre aparecia um grupo de saltimbancos com as suas habilidades, malabarismos, magias e o mais extraordinário o “cospe” fogo;
  • onde não faltava, nos dias de maior calor, a “aguadeira”, com o seu cântaro de barro à cintura vendendo copos de água com limão, quente mas que apregoava como fresca;
  • onde se vendia literalmente de tudo, desde todos os produtos agrícolas, roupa, móveis, ouro, animais e tudo o mais que se possa imaginar (...não esquecendo a banha da cobra) e em que as mulheres pagavam com o dinheiro embrulhado num lenço guardado em segurança entre os seios.

Depois de feirar: ver, apalpar, experimentar, regatear e pouco comprar, lá chega o momento do caçula. Depois da compra do material escolar: uma lousa, uma dúzia de “riscotes”, uma tabuada, um metro de serapilheira para fazer a sacola… e é tudo…, lá fomos às chancas.

Não era propriamente uma sapataria mas sim um artesão de calçado com sola de pau (Socas, chancas e outros artigos em madeira. O artesão era já conhecido, pois foi ele que calçou ao longo dos anos toda a família. Conhecedor dos hábitos da família começou logo a colocar vários pares de chancas para eu provar. Lá se chegou ao número que eu considerei o mais confortável. O artesão, que já conhecia o hábito da Gracinda diz: leva dois números acima não é D. Gracinda! Claro senhor António, sempre assim foi, pois eles crescem todos os dias e este é o último e não tem a quem deixar!

Sempre usei as chancas com com papeis ou trapos enfiados na biqueira para que as mesmas não me saíssem dos pés!

Nota: As tabernas da Sara Barracoa em Famalicão e a Bagoeira em Barcelos, poiso dos lavradores nos dias de feira, felizmente, ainda sobrevivem, com algumas adaptações aos novos tempos.

24 de setembro de 2023 às 12:27 (**)
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quinta-feira, 19 de janeiro de 2023

Guiné 61/74 - P23996: Origens do Tigre Azul: Nado e criado entre Famalicão e o Porto (Joaquim Costa, ex-fur mil, CCAV 8351, Cumbijã, 1972/74) - Parte II: A mãe Gracinda


Lisboa > Mosteiro dos Jerónimos > Um casal de "Fidalgos" do Minho (Gracinda e Zé), no casamento do filho “caçula”

Foto (e legenda): © Joaquim Costa (2023). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



Joaquim Costa, ex-fur mil at Armas Pesadas Inf, CCAV 8351 (Cumbijã, 1972/74); membro da Tabanca Grande desde 30/1/2021; autor da série "Paz & Guerra: memórias de um Tigre do Cumbijã (Joaquim Costa, ex-mil arm pes inf, CCAV 8351, 1972/74)" (de que se publicarm 28 postes, desde 3/2/2021 a 28/7/2022. Tirou o curso de engenheiro técnico, no ISEP - Instituto Superior de Engenharia do Porto. 



Capa do livro do Joaquim Costa, "Memórias de Guerra de um Tigre Azul: O Furriel Pequenina, Guiné: 1972/74". Rio Tinto, Gondomar, Lugar da Palavra Editora, 2021, 180 pp.


1. Texto enviado pelo  Joaquim Costa, no passado dia 5 de janeiro, às 02:01:

"(...) Dando continuidade à nova série sobre parte da minha história de vida (humilde e singela!?), aqui vai mais um poste, para caso lhe reconheças qualidade e de interesse o publicares.# (...) (*)


Origens do Tigre Azul: Nado e criado entre Famalicão e o Porto (Joaquim Costa, ex-fur mil, CCAV 8351, Cumbijã. 1972/74) - Parte II: 
A mãe Gracinda


Tatuagem: "Amor de Mãe".
Cortesia do livro "Guerra
na Pele – As tatuagens
da guerra colonial",
de João Cabral Pinto,
  edição de autor, 2019.


"Amor de Mãe", foi, porventura, a frase mais tatuada pelos militares na Guerra Colonial. Assunto que já deu origem a vários livros.

Nunca fiz nenhuma, nem penso fazer, contudo nutria uma certa admiração pelos soldados que as faziam. No fundo era a exteriorização da tatuagem que tinham gravado nas suas alma e nos seus corações.

Todos temos consciência que foram as nossas Mães que mais sofreram com a guerra no ultramar, uma dor mais intensa e dolorosa porque em silêncio.

Decidida a intenção/aventura/ousadia... de publicar em livro as minhas memórias de guerra, como por instinto, iniciei a narrativa com uma homenagem singela aos meus pais. Parece a despropósito, mas para mim só podia começar desta maneira já que foram figuras marcantes e sempre presentes em cada dia de Guiné, em particular nos dias mais difíceis, ouvindo (quem disser o contrário mente!?) os seu sábios conselhos.

Dando sequência à publicação da série " Origens do Tigre Azul: Nado e criado entre Famalicão e o Porto" (*),  aqui vai mais um poste. Hoje sobre a Mãe Gracinda. São histórias dos primórdios do "Tigre Azul" e  "Furriel Pequenina", que complementam o meu  livro "Memórias de Guerra de um Tigre Azul: O Furriel pequenina".


A mãe Gracinda

No dia 27 de abril de 1950 (dia do meu nascimento), cinco anos após o fim da II Guerra Mundial e ainda com o cheiro a pólvora no ar, de acordo com os relatos mil vezes contado pelo meu irmão Manuel, que nesse mesmo dia passa com distinção e louvor no exame da quarta classe, morre a avó paterna, o Barrigana lesiona-se com gravidade num treino e o meu irmão Eduardo (columbófilo) perde a sua melhor pomba que não regressou de um torneio. 

Um dia do tamanho de uma vida. No mesmo dia, se ri, se chora, se nasce e se morre. Muitas emoções contraditórias no ar.

Sendo o sétimo filho do José e da Gracinda, tendo em conta a época, nasci em berço de ouro, o mesmo não podendo dizer-se dos meus irmãos.

O Manel viveu toda a sua vida com a mágoa de nunca terem valorizado e festejado, condignamente, a sua aprovação com distinção e louvor no exame da quarta classe. Feito já mais visto na família e na aldeia. De forma diferente a Avó e o irmão tiraram-lhe o protagonismo.

O pai Zé e a Mãe Gracinda viveram a miséria dos tempos da primeira e da segunda guerras mundiais, da gripe pneumónica e da guerra civil espanhola, saindo destes conturbados acontecimentos sem esmorecerem, continuando a lutar, resilientes, por uma vida melhor para a família

A Gracinda cumpriu exemplarmente o estatuto que estava reservado às mulheres na altura: acompanhar as decisões do marido e criar os filhos “dados” por Deus.

Dizem que, enquanto solteira, não havia terreiro de dança que não a conhecesse, ouvindo-se a sua voz, sobrepondo-se às demais, nas cantorias do Minho. Nas desfolhadas, no cantar das Janeiras e dos Reis (#), ninguém lhe passava a perna.

Quando fui estudar para o Porto, uma vez que o orçamento familiar não comportava as despesas de alojamento e alimentação na Invicta, todos os dias fazia a viagem Famalicão / Porto / Famalicão, aproveitando o facto de ter direito a um passe gratuito. Para apanhar o comboio, levantava-me todos os dias às cinco horas da manhã,  tendo a minha santa mãe já o pequeno-almoço na mesa.

Assim abalava eu para a odisseia diária. Mas não estava só: mal saía de casa, ainda noite escura, logo ouvia, para além do cantar dos galos e o ladrar dos cães, um grupo de mulheres que chamavam umas pelas outras em altos berros audíveis de uma ponta à outra da aldeia (ó Mariiiiiiiiiiiiiia, já qui bouuuuuuue!) transportando grandes molhos de caruma (ou pruma, como elas diziam) à cabeça, até às padarias da vila, para aquecerem os fornos. Cumprimentavam-me carinhosamente dizendo: 

−  Vamos ter guarda-livros na aldeia?!

Passados uns dias, não suportei ver a minha santa mãe, que era a última a deitar-se, levantar-se todos os dias às cinco horas da manhã para fazer o pequeno-almoço para o menino, pelo que, tomei uma decisão:

− Mãe, a partir de hoje, sou eu que trato do meu pequeno-almoço. 

E assim foi, todos os dias, junto à porta de saída, tinha uma caixa de bolachas Maria, tirava duas… às vezes uma,  e uma garrafa de vinho fino, de que bebia um cálice... às vezes dois.

Mais tarde, o meu pai, com um semblante de caso (que me assustou), abeirou-se de mim e disse-me (já com um leve e indisfarçável sorriso maroto (que me distendeu): 

− Meu filho, decidi alugar-te uma casa no Porto, porque me fica muito mais barato do que o teu mata-bicho diário.

Aqui ficou decidido manter as bolachas e trocar o vinho fino por leite, já fervido de véspera. Mas!…, como por “milagre”, no local das bolachas e do vinho fino, todas as manhãs lá apareciam o pão com marmelada e o leite com café sempre quentinhos (##)-

(Continua)
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Notas do autor:

(#) Letra:

Aqui estamos nós,
Todos reunidos,
P’ra cantar os Reis
Aos nossos amigos;
Sem nenhum interesse,
Com muita amizade,
Cantando as “reisadas”
À sociedade.

(...)

Viva o patrão desta casa,
Homem de grande careca,
Abra lá a sua porta
E encha lá a caneca.

Viva a patroa da casa,
Mulher de muito trabalho,
Põe rabanadas na mesa
E umas achas no borralho
(...)


(**) Em resultado destas drásticas alterações, ia muito menos alegre para o Instituto mas, vai-se lá saber porquê !?, melhorei em muito os resultados escolares…