domingo, 1 de outubro de 2023

Guiné 61/74 - P24716: Coisas & loisas do nosso tempo de meninos e moços (4): A minha primeira viagem, de camioneta, a Lisboa, com 9 anos (Eduardo Estrela, Faro)


Fonte: EVA  Transportes SA > Arquivo Histórico (2023) (com a devida vénia...) (*)


1. Texto que o Eduardo Estrela nos mandou para a série "Coisas & loisas do tempo de meninos e moços (**):

Data - 30 set 2023 16:51 
Assunto - Viagens da nossa memória

Lembro que o dia apareceu sereno e límpido. Dias antes, a minha mãe tinha começado a preparar a viagem que íamos fazer.

Como prenda dos meus bons resultados escolares, o meu pai ofereceu-me um relógio e através dum pedido que fez ao Sr. Aníbal da Cruz Guerreiro, empresário farense  dono da EVA (*), obteve para ele, para a minha mãe e para mim, a título gracioso, viagens de ida e volta a Lisboa utilizando as camionetas (agora são autocarros) daquela empresa.

Na saída de Faro para S. Brás de Alportel, perto da minha casa, havia uma paragem. Foi aí que entrámos na dita camioneta. Eram 9,30 da manhã dum dia extraordinário para mim, que iniciava nesse momento a primeira grande viagem da minha vida, a caminho do desconhecido e do imaginário.

Ronceiro, o veículo foi galgando quilometros atravessando o Caldeirão e parando amiudadas vezes para largar ou deixar entrar passageiros.

Os meus olhos devoravam o encanto da serra e ficaram inundados com a beleza das planícies do Alentejo e do seu colorido manto.

Perto da hora do almoço, a camioneta parou em Ferreira do Alentejo durante pouco mais de 1 hora, de modo a que os passageiros que fariam o percurso completo pudessem comer.

No final do dia arribámos a Cacilhas, aguardando vez para que, camioneta e passageiros atravessassem o Tejo a bordo do cacilheiro.

A chegada ao Terreiro do Paço era por volta das 7 horas da tarde. Ficámos instalados na casa duma prima irmã da minha mãe, na Rua Palmira aos Anjos, durante uma semana.

Tudo para mim era novo e grande. O movimento das pessoas, dos veículos, tudo feito a um ritmo a que eu não estava habituado. Ficava encantado por ver os eléctricos atrás uns dos outros em constante movimento.

À época, a Almirante Reis estava esventrada por força das obras do metropolitano e ver os trabalhadores lá em baixo na sua azáfama, deixava-me boquiaberto e a pensar como era possível trabalhar àquela profundidade.

Fui ao aquário Vasco da Gama, aos Jerónimos, ao museu dos coches, ao jardim zoológico, ao aeroporto, aos lugares habituais a que iam as pessoas que visitavam a grande cidade pela primeira vez.

Tinha 9 anos e acabava de conhecer um pouco da terra das "muitas e desvairadas gentes".

No regresso a Faro, transmiti aos meus amigos o encantamento da viagem e das coisas que tinha visto.
Depois, pouco tempo depois, a minha vida levou uma dolorosa e tremenda volta.

O meu herói deixou-nos e tivemos eu e a minha mãe, doente cardíaca, que nos adaptar a uma realidade cruel.







(i) ex-fur mil at inf, CCAÇ 14, Cuntima e Farim, 1969/71;

(ii) natural de Faro, vive em Cacela Velha, a jóia da Ria Formosa, cantada por Sophia;

(iii) uma das suas paixões é o teatro amador, mas também comeu, na infância, órfão de pai, "o pão que o diabo amassou";

(iv) é o membro nº 541, da Tabanca Grande, desde 29/2/2012.
____________

Notas do editor:

(*) Empresa de Viação do Algarve, Lda: criada em 1933; hoje EVA Transportes SA, Faro. (Fonte: EVA > Arquivo Histórico)


(...) Teria pouco mais que 8 meses de gestação, estando ainda no quentinho da barriguinha da minha mãe, quando fiz a minha primeira viagem.

Em Dezembro de 1945, o meu pai, ainda solteiro, havia “emigrado” de Azurara, freguesia do concelho de Vila do Conde, para Matosinhos em busca de uma vida melhor. Um familiar da minha mãe tinha-lhe arranjado um modestíssimo emprego como funcionário público na “Junta”, assim era conhecida na época a Administração dos Portos do Douro e Leixões, mas muito bom para quem não tinha nenhum meio de subsistência. A minha mãe, ainda sua namorada, ficou em Azurara, na casa de seus pais, à espera de melhores dias para se poderem casar. (...)

Vd. também postes anmteriores da série:

27 de setembro de  2023 > Guiné 61/74 - P24704: Coisas & loisas do nosso tempo de meninos e moços (1): A Feira (Joaquim Costa, Vila Nova de Famalicão)

(...) Terminado o verão, de pé livre e descalço, minha mãe me levou à feira para comprar umas chancas, para resguardar o pezinho da chuva e do frio no caminho para a escola bem como o “material escolar”.

O dia de feira era um autêntico dia de festa, pelo que era o êxodo das aldeias para a vila na ânsia de encontrarem alguns produtos e artigos (escolares… e não só!) a bom preço, bem como um pouco de divertimento e “galhofa” fugindo, por algumas horas, às rotinas do trabalho diário.(...)


28 de setembro de 2023 > Guiné 61/74 - P24707: Coisas & loisas do tempo de meninos e moços (2): O martírio da viagem de comboio de Afife ao Porto (Valdemar Queiroz, Afife, Viana do Castelo)

(...) Com dez anos fiz a primeira viagem de comboio, foi no correio de Afife ao Porto.
Foi à casa de uma tia nas férias grandes de Verão.

O martírio começou em casa da minha avó, continuou estrada abaixo até à Estação e só melhorou quando o comboio partiu e eu descalcei umas botas novas que me apertavam os pés. (...)

9 comentários:

Valdemar Silva disse...

Estrela, isso é que devia ter sido uma viagem cansativa.
Comigo houve circunstâncias parecidas. A minha mãe ofereceu-me um relógio de pulso por ter feito a 4ª. classe, comprado nas Festas da N.Sra.da Agonia, em Viana do Castelo, e quando vim (Set.1956) para Lisboa fiquei uns meses na casa de uma parente na Rua Maria aos Anjos.
Ainda não havia obras do Metro, ia jogar à bola nas traseiras da Igreja dos Anjos e por causa do meu sotaque minhoto chamavam-me 'o espanhol'.



Saúde da boa
Valdemar Queiroz

Eduardo Estrela disse...

Olá Valdemar boa noite!!
Pois a Rua Palmira era e é mesmo na traseira da igreja dos anjos, num plano mais elevado.
Tudo de bom para ti e....
" SAÚDE DA BOA "
Abraço fraterno
Eduardo Estrela

Eduardo Estrela disse...

A EVA tinha a sua sede em Faro tal como Empresa Rodoviária Sotavento do Algarve, que tinha também como fundador e sócio gerente o Sr. Aníbal da Cruz Guerreiro
Em Portimão estava sediada a empresa Castelo e Caçorino, que foi mais tarde comprada pelo grupo Belos de Setúbal
Eduardo Estrela

Tabanca Grande Luís Graça disse...

Já corrigi, Faro e não Portimão. Ab, Luis

Anónimo disse...

Obrigado Eduardo Estrela por partilhares estas vivências da nossa meninice.
Nunca gostei, nem gosto, de andar de camioneta, sempre enjoei e continuo a enjoar.
Adoro mesmo é andar de comboio. Contudo, viajar de comboio já não dá a pica, do tempo da máquina a vapor e dos bancos de pau.
Tenho registado na minha memória as viagens de comboio de Famalicão à Povoa de Varzim (para ir à praia), em linha estreita, em que iniciava a viagem de camisa branca e chegava à Póvoa de camisa preta.
Outra das viagens que não me saem da memória, já contada aqui, foi fazer a linha do Corgo da Régua a Chaves, onde fui colocado depois da especialidade de Armas pesadas em Tavira. Duas linhas que infelizmente foram desativadas dando lugar a ciclo vias. Enfim! Modernices!!!
Um abraço
Joaquim Costa

Eduardo Estrela disse...

Também gosto muito mais de viajar de comboio Joaquim Costa.
Há 60 ou mais anos, circulavam na linha do Algarve umas automotoras que na frente, para além da cabine do maquinista, tinham ao lado um espaço onde se podia viajar de pé e apreciar a linha numa extensão bem grande. Imaginava ser eu o ferroviário e dominar a máquina no trajecto que fazia. Mas essa benesse visual só era possível num percurso, aquele em que a cabine de comando utilizada não era a da zona da 1a classe.
Só usufruía da mesma quando a automotora circulava no sentido Vila Real de Santo António/Lagos
Forte abraço
Eduardo Estrela

Valdemar Silva disse...

Sim, Estrela.
A Rua Palmira, muito conhecida por ser frequentada por quem ia fazer o exame de código para a carta de condução.

Valdemar Queiroz

Eduardo Estrela disse...

Precisamente Valdemar!!
Já não me recordava desse pormenor mas a tua prodigiosa memória ainda tem os arquivos activos e ordenados.
Grande abraço
Eduardo Estrela

Anónimo disse...

Amigo e camarada:


A morte do teu pai, tão cedo na vida dele e na tua, como pano fundo, entristece a tua viagem à capital tão fascinante e cheia de novas emoções , para ti que despertavas para a vida. Por outro lado gravou mais fundo na tua memória a oferta do relógio e dessa viagem, na sua companhia, foi um sonho de um menino que crescia. O meu pai morreu mais tarde , tinha 59 anos, mas nunca teve um gesto semelhante , nem comigo nem com os outros filhos ou filhas, éramos muitos. Não o culpo, era transmontano, trabalhou muito para todos nós.
Grande abraço

Francisco Baptista