sábado, 7 de outubro de 2023

Guiné 61/74 - P24734: Os nossos seres, saberes e lazeres (594): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (123): Oh Bruxelles, tu ne me quittes pas! (14) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 2 de Julho de 2023:

Queridos amigos,
O homem põe, a companhia aérea dispõe. Tudo levava a crer que já passaria a manhã em Zaventem, com chegada a Lisboa ao princípio da tarde. Olhe que não, quem decide do horário é a companhia aérea, a informação chegou ao fim da noite anterior, descobri de repente que tinha mais meio-dia de férias, nem pensar em meter-me num museu, enquanto esperava o Zé Pestana ocorreu-me refazer um percurso daqueles que desenhei para preparar o meu romance Rua do Eclipse. Tudo nos conformes, amanhecia e já estava no Grand Sablon, é a meio da manhã que me dá um impulso para entrar num centro de estudo do Partido Socialista local, muito bem recebido, trouxe material para refletir e estou convidado para quando voltar ir visitar um acervo gráfico, uma coleção de cartazes do partido político como talvez não haja outra. Aqui se põe termo a um período de férias enternecedor, e fica uma imensa vontade de regressar, já que só os viajantes é que acabam, a viagem, de tão sublime, inaudita, imprevista, é sempre uma fonte de descobertas. À tantôt!

Um abraço do
Mário



Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (123):
Oh Bruxelles, tu ne me quittes pas - À tantôt! (14)

Mário Beja Santos

Pus o despertador para as seis da manhã, há que cronometrar o uso do tempo, voltarei a Watermael-Boitsfort o mais tardar às 15 horas, pegaremos na bagagem, faz-se uma viagem de táxi até Zaventem, houve uma última alteração, partiremos um pouco mais cedo. Pelas 8 horas já estou no cenário do adeus, adormeci a esboçar o miniprograma de este inesperado acrescido meio-dia de férias. Está uma manhã fresca no Grand Sablon, quem te vê e quem te viu, num dos meus guias de viagem assentas em terrenos pantanosos e de areeiro, mesmo junto à primeira cintura urbana do século XIII. Já vi bilhetes postais com toda esta região envolvida por casario, em 1948 deu-se a demolição, ninguém se atreveu em tocar em Notre-Dame du Sablon, ainda hoje tratada como um quase santuário. Tem feira de antiguidades e traquitana uma vez por semana, a praça tem lojas chiquérrimas, de chocolates a livraria, de restaurantes a galerias de arte, passo por aqui com uma certa regularidade quando vou aos concertos gratuitos na igreja dos Minimes, ou venho da Feira da Ladra em direção ao Museu de Belas-Artes. Contemplada ao amanhecer, muito branca, preparando-se para negócios azafamados, levanto-me do banco onde a estive a contemplar, passo junto da igreja e detenho-me no Petit Sablon.
O Petit Sablon tem como ícone o jardim de Egmont e Hornes, dois mártires ao tempo das insurreições contra a presença dos Áustrias, este jardim público foi edificado entre 1879 e 1890, ao estilo Renascença flamenga, face a esta praça temos ruas com edifícios dos séculos XVII e XIX, é uma área de tráfego intenso, o eixo principal é a Rue de la Régence.
Pormenor do Petit Sablon

Percorri rua a rua toda esta região na altura em que escrevinhava Rua do Eclipse, descia muitas vezes da rue de la Régence atá o boulevard d’Empereur, restam poucos vestígios do passado, é o caso da torre Anneessens, está agora em obras, entro na rue de Rollebeek, agora a pedonal, com fachadas neoclássicas, há mesmo um albergue do século XVII “L’Estrille du Vieux Bruxelles”. Despeço-me, inverto a marcha e regresso ao boulevard de la Régence, mal sabia que ia buscar lenha para me queimar. Ao longo destas décadas, não resisto, sempre que há disponibilidade, e fruto do acaso, de bater à porta de sindicatos ou de partidos políticos, perante anos fui o representante dos consumidores designado pela Confederação Europeia dos Sindicatos, era natural que me interessasse em obter opiniões sobre medicamentos genéricos, amianto, tabaco, e algo mais. É no boulevard de la Régence que vejo a indicação do Partido Socialista e de uma instituição designada por Instituto Émile Vandervelde, centro de estudos da formação política, consagrado á análise prospetiva das questões que se põem hoje na sociedade. Dei comigo a pensar que valia a pena recolher como termo de comparação a atividade destes senhores (são governo na Bruxelas-Capital) com os desafios postos pela pandemia, para ver se houve grandes diferenças com o homólogo português. Bato à porta, digno na receção ao que venho, se posso conversar com alguém, com certeza que vai ser atendido, respondem-me, tenho direito a café e copo de água, apresenta-se um senhor que é bibliotecário e arquivista, sou conduzido a um espaço, aí atemorizei-me, vi milhares de livros e muitos metros de dossiês, relembrei a quem ali me conduz que vim exclusivamente com a intenção de uma conversa informal, qual quê, vou ter direito a conversar com a conselheira Anna-Maria Livolsi, digo ao que venho, sim tenho muito gosto em conversar consigo, atemorizo-me de novo, a bibliotecária vai trazendo documentos atrás de documentos. E começa a exposição conduzida pela dona da casa.
Um dos restaurantes mais típicos de Bruxelas na Rue de Rollebeek
O senhor que me atendeu no Instituto Émile Vandervelde, Joffrey Liénart, bibliotecário e arquivista
Émile Vandervelde

A exposição decorre em tom ameno, como se fez a deteção quanto ao modo quanto a crise sanitária amplificou a desigualdades, como revelou as fragilidades do trabalho, foi tempo em que se perdeu a segurança nas categorias socioprofissionais. Uma crise que gerou uma tomada de consciência coletiva do valor social do trabalho e dos profissionais que o exercem. Salientou a admiração pelos profissionais de saúde, designadamente nos tempos agudos de 2020 e 2021, mas também pelas profissões invisíveis do pessoal hospitalar foi de uma dedicação extraordinária. A própria lógica da globalização ia conhecer fendas, houve mostras de solidariedade e o paradigma digital revelou-se uma das armas mais espantosas para pôr os seres humanos em comunicação. Desenvolveu-se o trabalho do cuidado. Em termos ideológicos surgiu uma nova abordagem sobre o que se entende sobre consciência de classe e consciência social.
Eu só quero chamar à atenção do leitor que não tugia nem mugia, a não ser para responder ao que me perguntava sobre a situação portuguesa quando irrompeu e se viveu a pandemia. A minha anfitriã resolveu mudar a agulha para algo, creio eu, que está em debate entre os socialistas belgas, como encontrar resposta da consciência social e do valor social do trabalho quando as classes trabalhadoras, tal como se definiam no passado, perderam a sua centralidade, dissolvidas que estão entre novas profissões. O que se registou e continua a estudar ao nível deste instituto são as novas formas de solidariedade, o que se passou com a Covid continua a aguardar um exame da consciência coletiva. No pós-Covid terá que se interpelar o que tem vindo a acontecer com as desigualdades que aceleraram. Na verdade, mesmo com a retoma económica, estão mascaradas realidades muito heterogéneas entre as pessoas e os setores. Os peritos do Instituto procuram desenhar as quatro fases do pós-Covid, que vão desde a urgência no combate às desigualdades neste período de retoma, qual a natureza do relançamento e as reconfigurações que se irão produzir.
Eu de vez em quando olhava para o relógio, metera-me na cova do lobo, a minha interlocutora falava agora em preocupações sobre o mundo do futuro, como se deverá vizinhar um novo contrato social e ecológico à escala planetária, como iremos reduzir a dependência da energia e contrapor às devastações causadas por um modelo de produção que contribui para a perda de biodiversidade e a propagação de doenças.
Alertei a minha gentil interlocutora que estava muitíssimo interessado em estudar o modo de conservar o espírito para o crescimento das despesas públicas para melhorar o quadro da saúde pública, num conto de desenvolvimento sustentável. Agradecia-lhe muito se me pudesse dar pistas sobre uma transição para uma economia de baixo carbono e políticas de coesão social e territorial. Remeteu-me para um site: www.iev.be
Se eu pensava que era só agradecer e partir, puro engano. Sugeriram-me que contactasse a vice-presidente do PS para partilhar mais informações, agradeci as sugestões, e é nisto que o senhor Joffrey Liénart fez questão de me mostrar imagens da figura lendária dos socialistas belgas, Émile Vandervelde e o acervo de cartazes políticos, senti-me muito penhorado, e a ver alguns e quando voltasse a Bruxelas, ficava prometido, visitaria com tempo este impressionante acervo gráfico e histórico.

Cartaz do 1º de Maio, 1926

Estou a caminho do metro, tenho os minutos contados, ainda preciso de comer e preparar farnel para a viagem. Houvesse tempo, e iriamos percorrer cuidadosamente este espaço do meu culto, quantas belas exposições aqui não vi, até concertos com Madredeus e Maria João Pires, é uma decoração concebida por um dos génios da arquitetura belga, Victor Horta, haja retorno e faremos a visita a preceito.
Fachada do Palácio das Belas-Artes de Bruxelas, o Bozar
O vestíbulo do Bozar
O mesmo espaço num evento de fotografia, com uso de tecnologia de vanguarda

São as derradeiras imagens da extremosa Bruxelas, antes de partir para Zaventem olho assombrado para as cerejeiras japónicas da rua, é uma primavera florida, resplandecente, e digo para mim próprio que eu nunca esperei chegar a esta idade e assistir a fissuras de dimensão gigantesca, uma nova forma de Guerra Fria, pelas minhas contas é a primeira vez que a europa se reagrupou e congregou por inteiro, nem quando os turcos estavam às portas de Viena aconteceu esta reação, olho estas cerejeiras e pergunto-me o que se sucederá a esta globalização, a deste mundo de dependência energética, que tipo de relações se afinarão com o espaço russo e o continente asiático quando esta guerra na Ucrânia findar. Até lá, ainda espero regressar a esta cidade e a este país a que me sinto tão irmanado. À tantôt!
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Nota do editor

Último poste da série de 30 DE SETEMBRO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24714: Os nossos seres, saberes e lazeres (593): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (122): Oh Bruxelles, tu ne me quittes pas! (13) (Mário Beja Santos)

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