quarta-feira, 4 de outubro de 2023

Guiné 61/74 - P24724: Historiografia da presença portuguesa em África (388): Grandes surpresas na publicação "As Colónias Portuguesas", Revista Ilustrada (3) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 23 de Fevereiro de 2023:

Queridos amigos,
Tenho para mim que esta revista ilustrada das Colónias Portuguesas é uma publicação que merece a maior atenção dos investigadores e historiadores. Repare-se no mapa hoje publicado, e com data de 31 de dezembro de 1887, onde, estou em crer, se procurar reproduzir fidedignamente as fazendas agrícolas que marcavam claramente o que era a presença portuguesa fundamentalmente no sul da colónia, comércio esse, ponto curioso, que será severamente abalado no mesmo ano em que a Guiné será desafetada de Cabo Verde, 1886. Não será por acaso que os números desta publicação referentes a 1887 e parte de 1888 estejam escritos num tom tão lamentoso, a Guiné é dada como perdida, o que deve chamar a nossa atenção para a grande importância comercial que tinha Ziguinchor e o tráfego comercial no Casamansa. A revista mostra imagens espantosas do desenvolvimento em Angola, usos e costumes na Índia e Timor, enfim, é uma publicação que só pelas suas ilustrações de altíssima qualidade merecia que um editor as publicasse, mostram a saga portuguesa quando o sonho do império africano se tornara numa frutuosa aventura comercial.

Um abraço do
Mário



Grandes surpresas na publicação "As Colónias Portuguesas", Revista Ilustrada (3)

Mário Beja Santos

A publicação "As Colónias Portuguesas", Revista Ilustrada, publicou-se entre 1883 e 1891, era inequivocamente dirigida à classe política, não descurava a atração de investimentos, procurava dar informação aos funcionários da administração colonial e a potenciais estudiosos do Terceiro Império. Comecei, na Biblioteca da Sociedade de Geografia de Lisboa, por percorrer o volume referente a 1883 e a 1884. Não posso esconder o entusiasmo que sinto ao folhear estas páginas, elas comportam informações que, por um lado, corroboram o que a historiografia vai lavrando, e, por outro lado, temos inesperadamente acesso a testemunhos que se afiguram genuínos, um dos redatores efetivos, António A. F. Ribeiro terá montado uma rede de contactos e o que vai aparecer sob a forma de correio parece-me de insofismável valor.

Estamos agora em janeiro de 1887, sou forçado a folhear delicadamente o volume, está muito combalido, o papel esgarçou, despegou-se da lombada, há cortes e remendos, impõe-se o maior cuidado, é volume histórico. Estão ausentes quaisquer imagens da Guiné, o leitor que se prepare para comentários do editor e de um leitor que se assina A. B. (presumivelmente Augusto Barros, que se apresentou em 1883), predomina um tom lamentoso, derrotista, lendo estes escritos parece que a Guiné portuguesa bateu no fundo.

Começa-se por um comentário do editor logo no número de janeiro:
“Nesta província onde se presenceia continuada decadência, tudo são empregos para uns e para outros, com ordenados mesquinhos e pobres; tudo feito sem nenhum critério, sem nenhum estudo que proceda à criação desses mil empregosinhos, mais funestos que úteis à administração pública.
As forças públicas, apesar dos mais honrados esforços, tende à sua frente um oficial dedicado e de subido merecimento, continuam no mais grave abandono, pois que em vez de soldados se lhes apresentam essa coorte de malfeitores, que a metrópole, com todos os seus recursos, recusa e não quer nas suas fileiras.”


Segue-se um longo silêncio, estamos agora no número do mês de setembro, o comentário é quase tétrico, a narrativa apocalítica:
“A Guiné portuguesa está perdida, e, contudo, é uma das mais belas das nossas províncias ultramarinas. Cortada por dois grandes rios, o Rio Grande de Bolola e o Geba, formam na sua foz um grandioso estuário, orlado de todos os lados da mais surpreendente vegetação, têm as suas nascentes nos célebres territórios de Futa-Djalon, onde os grande mananciais auríferos, a fertilidade do sono, o espíritos agrícola e industrial dos seus habitantes, causa inveja às melhores colónias do mundo.
Em 1886, quando pela primeira vez tivemos ocasião de conhecer esta colónia, estava ela no seu esplendor comercial. A agricultura florescia, trabalhava-se, havia vida e ânimo para novos empreendimentos e viam-se as águas num e noutro rio cobertas de navios de alto bordo, franceses, suecos, ingleses, russos, espanhóis, italianos, etc., que ali iam tomar importantes carregamentos de diversa produção do país.
O ouro e o marfim encontravam-se igualmente no comércio. Hoje, na nossa Guiné, tudo é triste, medonho, pobre, desgraçado. Assim o quiseram os homens que legislam sem o conhecimento das colónias.
A produção atualmente nem a um terço atinge, e as propriedades estão completamente abandonadas. Um silêncio de morte reina hoje, onde tanta vida, tanto trabalho e tanta atividade houve ainda há pouco tempo.

Santa Cruz de Buba, situada na margem direita do Rio Grande, que tanto florescia como centro do melhor negócio com todos os povos circunvizinhos, lá está na mesma tristíssima situação: nenhum comércio, tudo abandonado! O comércio da amêndoa de palma, que fornecia a permutação com os Bijagós, enfraqueceu igualmente e restaria a borracha, que na província aumentou em proporção notável nos últimos tempos, se não fosse também perdendo o seu valor, porque os gentios lhe juntam matérias estranhas, com ainda derrubam as árvores para lhe aproveitar todo o suco leitoso, porque não conhecem os simplicíssimos processos para tal fim empregados.
Em Geba, empório do comércio com as tribos mais trabalhadoras da costa leste de África, em cera, couros, ouro, marfim, etc., está igualmente aniquilado; tais foram as funestas negociações de Paris para a delimitação das nossas fronteiras nestas colónias, que melhor fora vender de vez.
É em 1883 onde se acentua mais violentamente este desgraçado estado de coisas.
A grande baixa dos produtos coloniais, o enfraquecimento do solo, as guerras constantes entre os naturais, levaram igualmente um enorme desastre àquela colónia; mas se isto era motivo para tomar em atenção os meios que conviria adotar para contrabalançar tais prejuízos, lançaram impostos tão excessivos na propriedade rústica, que ocasionou a sua fatal ruína.”


Permito-me agora dois comentários. O primeiro atende à referência que o autor faz a dois rios, o de Buba e o Geba, o que significa que em 1886 não havia comércio e navegação no Corubal, este rio sim com nascente e foz, tal como o Geba. O autor lamenta a convenção luso-francesa mas não faz nenhuma referência à quantidade de território recebido para o interior, exatamente em direção a Futa-Djalon, e aonde a nossa presença nem chegava a ser meramente simbólica.

O segundo refere-se a um mapa que vos mostro com muito orgulho e que tem a ver com o abandono completo das fazendas agrícolas, está datado de 31 de dezembro de 1887, as duas folhas estão muito maltratadas, estou convencido de que se trata de um mapa jamais referenciado pela historiografia da Guiné, corresponde ao desaparecimento dos entrepostos comerciais fundamentalmente no Tombali e no Quínara, produto acima de tudo das guerras do Forreá.

Estamos agora em 1888, mantém-se o tom lamentoso, é momento de dar a palavra a A. S., é uma jeremiada pegada:
“Choremos a perda do nosso Casamansa, mas ponhamos também luto carregado todos os anos no aniversário da assinatura do tratado dos limites franco-lusitano, porque se é verdade que perdemos, para sempre, aquele riquíssimo empório de comércio, é dever nosso também memorar os que como Honório Barreto, e outros, souberam honrar o nome português.” E escreve mais adiante: “Em 1835, o nome de francês ainda era ali completamente desconhecido, e no Rio só se conhecia o nome português, ainda como no Cacine e no Nalu, ainda há poucos anos. Mas no que ninguém pensou, nem poderia pensar, é que o sertão correspondente à nossa colónia pudesse por um instante ter contestação, por limitar com o de régulos Futa-Fulas. A questão foi o futuro que os franceses salvaguardaram, e que nós, implicitamente, desprezamos.”

E assim termina o libelo acusatório:
“O primeiro governador, em lugar de desenvolver energia e atividade de castigar rebeldes, ocupar o fortificar os lugares que ocupava, concentrava os seus cuidados em organizar repartições, montar secretarias, fazer regulamentos, nomear comissões, que tudo leva demoras, escrever ofícios e relatórios sobre o estado em que encontrara a colónia!
Dez anos após a autonomia, cometem-se os mesmos erros iniciais. A Guiné tem descido, e continuará a descer, se não se reformar a sua administração, até que o governo se há de ver na dura e triste necessidade de a ligar novamente a Cabo Verde, senão a vê-la perdida para sempre. Acudam à Guiné.”

Assina A. S., repito que é suposto ser Augusto Barros, já colaborador em 1883.

Creio tratar-se de um mapa credor da atenção dos historiadores, mostra as fazendas agrícolas então existentes, nomeadamente no sul e que foram abandonadas, na sua quase totalidade, até 1886

(continua)

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Nota do editor

Último poste da série de 27 DE SETEMBRO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24705: Historiografia da presença portuguesa em África (387): Grandes surpresas na publicação "As Colónias Portuguesas", revista ilustrada (2) (Mário Beja Santos)

2 comentários:

Fernando Ribeiro disse...

Há muitas pessoas convencidas de que a designação "Província Ultramarina" foi uma invenção do Estado Novo. Eu próprio estava convencido disso, mas estava errado. A designação "Província Ultramarina" é muito mais antiga e remonta ao tempo da Monarquia, não sei dizer desde quando. Repare-se no cabeçalho do mapa que o Mário Beja Santos reproduz, o qual diz: «PROVINCIA DA GUINÉ PORTUGUEZA». Ainda mais visível é o cabeçalho da página reproduzida na imagem imediatamente a seguir, que diz: «PROVINCIAS ULTRAMARINAS». No entanto, a revista chamava-se «As colonias portuguezas». Parece-me que posso deduzir que no tempo da Monarquia era indiferente utilizar uma ou outra designação.

Já que me refiro às designações atribuídas às possessões ultramarinas portuguesas, lembro que, a partir de certa altura (julgo que desde 1972), Angola e Moçambique passaram a merecer a designação de Estado, à semelhança da que era dada à Índia Portuguesa. Ninguém chamava à Índia Portuguesa "Província Ultramarina da Índia", mas sim e sempre "Estado da Índia". A partir de 1972, Angola e Moçambique também passaram a chamar-se "Estado de Angola" e "Estado de Moçambique", respetivamente. Atente-se na seguinte gravação (existente num endereço de áudio puro, que pode ser aberto sem receio de vírus) da abertura de uma emissão do Rádio Clube do Moxico, em Angola, onde, apesar de uma irritante interferência de uma estação telegráfica, se consegue ouvir: «Do Estado português de Angola, no Luso, transmite o Rádio Clube do Moxico...»

http://www.intervalsignals.net/sounds/agl-z-radio_clube_do_moxico_ik_c1967.mp3

Valdemar Silva disse...

Um nosso camarada, que quase passou as passas do Algarve, não fora a época das chuvas, na guerra da Guiné, em conversa com um seu neto explicava que tinham sido muito difíceis os 24 meses passados naquela Província Ultramarina.
O neto Rui já crescidote e curioso questionou pq a tropa viajou no paquete "Vera Cruz" da Companhia Colonial de Navegação.
O nosso querido camarada que teria estado na Ponte Cayum ou passado 24 meses em abrigos de defesa de constantes ataques do PAIGC, apeteceu-lhe responder 'devia ser algum navio soviético', mas disse 'antigamente a Guiné era uma colónia'.

Valdemar Queiroz