quarta-feira, 27 de setembro de 2023

Guiné 61/74 - P24705: Historiografia da presença portuguesa em África (387): Grandes surpresas na publicação "As Colónias Portuguesas", Revista Ilustrada (2) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 23 de Fevereiro de 2023:

Queridos amigos,
É facto que o ano de 1886 gerou pesar e profundo ceticismo sobre o futuro da Guiné, como colónia portuguesa. Os alertas sobre Ziguinchor eram constantes, os redatores da Revista Ilustrada esperavam que as negociações em Paris não se saldassem numa Guiné retalhada. É bem curioso que a par deste tom apocalítico com que se fala de uma Guiné moribunda, nenhum destes ânimos encolerizados refira o que se ganhou em extensão, já que até então a presença portuguesa estava bem limitada à faixa litoral, pela convenção luso-francesa subscrita em 12 de maio de 1886 ficávamos legalmente com uma faixa de território que se estendia até perto do Futa Djalon, onde nunca houvera presença portuguesa, a par de termos ficado numa situação legitimada com a península de Cacine. O que mais pesava era a perda do Casamansa e de o comércio no rio Nuno. Recorde-se que não fora por acaso que se escolhera Bolama por esta estar na interseção entre Bissau, o Quínara e o Tombali, os rios Nuno e Pongo, que facilitavam o comércio na Serra Leoa, onde tínhamos estabelecimentos comerciais. Não consigo entender como é que esta Revista Ilustrada denominada As Colónias Portuguesas não fazer parte da bibliografia essencial da Guiné, sobretudo neste final do século XIX.

Um abraço do
Mário



Grandes surpresas na publicação "As Colónias Portuguesas", Revista Ilustrada (2)

Mário Beja Santos

A publicação As Colónias Portuguesas, Revista Ilustrada, publicou-se entre 1883 e 1891, era inequivocamente dirigida à classe política, não descurava a atração de investimentos, procurava dar informação aos funcionários da administração colonial e a potenciais estudiosos do Terceiro Império. Comecei, na Biblioteca da Sociedade de Geografia de Lisboa, por percorrer o volume referente a 1883 e a 1884. Não posso esconder o entusiasmo que sinto ao folhear estas páginas, elas comportam informações que, por um lado, corroboram o que a historiografia vai lavrando, e, por outro lado, temos inesperadamente acesso a testemunhos que se afiguram genuínos, um dos redatores efetivos, António A. F. Ribeiro terá montado uma rede de contactos e o que vai aparecer sob a forma de correio parece-me de insofismável valor.

Já chegámos ao n.º 1 de janeiro de 1885. Veja-se esta carta de um leitor de Cacheu que refere a indisciplina que ali grassavam, a hostilidade a quem vivia na fortaleza: “Uma lição severa os poderá tornar humildes e submissos; porém, para ter lugar essa lição, são necessários recursos que nós não temos.” E para além de falar na falta de recursos que tornam a vida tão intranquila dentro da fortaleza, o leitor tece acusações à Administração em Cacheu do capitão Sérgio Leitão de Melo, terminando assim: “Eis a nossa situação; dentro da Praça o povo amotinado contra as autoridades, e fora os gentios dispostos à guerra contra nós. E a metrópole, o que fará? Nada.”

Vejamos agora o n.º 3, de março de 1885, é um texto de queixa e de mágoa, intitulado Os Rios Nunes e Casamansa:
“É gravíssimo o estado em que está a nossa Guiné. A França, querendo possuir de força o nosso rio Casamansa, faz, quem sabe se em vista das informações dos seus delegados, as maiores diligências para nos emaranhar por forma tal que quando um dia se chegue a tratar deste assunto nos ser já impossível podermos reaver o que por todos os títulos nos pertence!
É necessário dizer também que não é só o rio Casamansa que a França nos ambiciona. É o rio Nunes, de que se vai apossando. A colónia francesa, Senegâmbia, reavida em parte do poder dos ingleses, pela paz aceite pelos diferentes estados da Europa depois das sanguinolentas guerras de 1808 a 1814, não era a que prendia mais atenção dos seus homens de Estado. Sirva de exemplo o procedimento da França e não nos iludamos com as boas relações e amizades de que se fala, mas que não impede que vão tomando posse dos pontos mais importantes da nossa província da Guiné.”


Registei de um documento sobre o estado financeiro de cada uma das nossas províncias além mar, sendo autor o Secretário de Estado dos Negócios da Marinha e Ultramar, Manuel Pinheiro Chagas, apresentado ao rei, em 29 de dezembro de 1875, no que se refere exclusivamente à Guiné:
“As receitas tinham chegado à mais completa decadência. As continuadas guerras dos pretos traziam consigo uma falta de segurança, que paralisava a agricultura e, por conseguinte, o comércio. O estabelecimento do telégrafo submarino melhorou completamente as condições dessa província cujo governador pôde rapidamente chamar navios de guerra estacionados em Cabo Verde, assegurando assim dentro em pouco a tranquilidade de agricultura, logo que os tumultuários vejam que têm pronta repressão qualquer motim que intentem.”

Estamos agora em 1886, ano IV. Escreve António A. Ferreira Ribeiro sobre a rua do governador Caldeira, em Bolama:
“Escolhida para capital, pela elevação do antigo distrito da província independente em 1879, teve esta povoação grande desenvolvimento nos primeiros anos, e, sem obedecer a um qualquer plano, hoje, espalhadas à vontade construções de regular merecimento, tanto particulares como do Governo, tudo, porém, foi caprichoso, precipitado e autoritário, o que deu em resultado tornar-se uma povoação irregular e feia no seu conjunto, suficientemente elevada acima do nível do mar e da natureza que a revestiu com árvores frondosas e da mais bela folhagem. A rua do governador Caldeira que a gravura representa, foi assim denominada em homenagem ao nome de um bravo militar que da defesa do território português soube sempre lutar com honra e brio pela sua independência e integridade, quer contra os gentios aguerridos quer contra as ambições teimosas e insistentemente atrevidas dos nossos vizinhos e ‘amigos’, França e Inglaterra. A primeira casa, lado esquerdo, ao nascente, a residência oficial, e avistando-se ao fundo da rua, que forma ao centro uma pequena curva o segundo andar do prédio de Aimé Olivier, a quem Portugal premiou com o título de visconde de Sanderval, em honra, talvez, das suas vilãs tentações contra o domínio português, quer nas ilhas do grande arquipélago dos Bijagós, quer nos diferentes lugares que visitou. O amor à ciência é desinteressado, dizia ele, e assim percorreu por toda a parte como o mais abstrato sábio e mártir do progresso e da civilização, indo, depois, com toda a diplomacia á bon citoyen français, oferecer os tratados secretos com régulos já sujeitos à soberania de Portugal, ao Governo do seus país!”
E assim conclui a sua apreciação sobre Bolama: “A povoação assenta em lugar relativamente elevado, mas faltando-lhe todos os cuidados de asseio, e ficando muito próximo à praia, que é lodosa em grande extensão, precisam os seus habitantes do máximo resguardo e cautela para se precaverem contra as febres do país, que na mudança das estações torna muito perigosa, pela permanência prolongada no mesmo sítio, tanto europeus como africanos.”

E deteta-se na leitura que a questão de Ziguinchor é alvo de uma escrita em pânico, é como se estivesse o autor a tocar uma sirene de alarme para que o Governo em Lisboa viesse salvar a praça e impedir o domínio absoluto do rio pelos franceses. Aliás, lê-se um comentário, ainda no n.º 1 de janeiro de 1886:
“A Guiné está perdida, e perdida porque, de um lado, os negociadores dos seus limites, ao norte e ao sul, vieram afirmar a indiferença da grande maioria dos nossos homens da atualidade, dando o melhor dos seus terrenos, as mais importantes comunicações fluviais com o interior, sem que o pulso lhes doesse ao sancionar tais atos, de que, por força, hão de dar explicações ao público, que tem direito a saber porque entregarão a um país estranho, o que, de séculos, era português.”

E conclui-se a leituras destes números com a carta de Frederico de Barros ao governador (não se sabe se é Francisco de Paula Gomes Barbosa ou José Eduardo de Brito, ambos estiveram ao leme da governação nesse ano:
“Sr. Governador, prezo-me de saber conhecer bem, e compreender razoavelmente os direitos e os deveres que constituem a pessoa moral e política, de que faço parte. Sei que na qualidade de Presidente do Conselho Governativo ao entregar o governo dela a Vossa Excelência me cumpria dar notícias do seu estado.
Por cá há intriguistas e aduladores perigosíssimos, cujas ciladas Vossa Excelência deve evitar. Tenho muito que expor sobre o estado desgraçado desta província. Disseram a Vossa Excelência que eu não me tenho dado bem com nenhum dos governadores, é bem verdade, e disse-me de orgulho. Espero que nos daremos bem. Mas se a Guiné Portuguesa tem lavrada, como eu creio, a sua sentença de morte, isto é, se está prestes a ser riscada do mapa das nossas possessões coloniais, e se a má sorte venha a ser que Vossa Excelência se torne o último governador português, que a terra lhe seja leve!”
Bolama, capital da moribunda Guiné, 20 de outubro de 1886, o Africano, Frederico de Barros.

Deve-se a Alexandre Herculano uma magnífica peça de oratória no Parlamento, o grande escritor respondeu encrespado a um deputado da Madeira que observara que a palavra Casamansa era um barbarismo e que o melhor era entregar tudo aos franceses
(continua)

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Nota do editor

Último poste da série de 20 DE SETEMBRO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24679: Historiografia da presença portuguesa em África (386): Grandes surpresas na publicação "As Colónias Portuguesas", revista ilustrada (1) (Mário Beja Santos)

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