quarta-feira, 20 de setembro de 2023

Guiné 61/74 - P24679: Historiografia da presença portuguesa em África (386): Grandes surpresas na publicação "As Colónias Portuguesas", Revista Ilustrada (1) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 21 de Fevereiro de 2023:

Queridos amigos,
O que surpreende nesta publicação, para além de gravuras que julgo completamente inéditas, como é o caso da localização dos estabelecimentos comerciais no Rio Grande antes do seu desaparecimento em consequência da guerra do Forreá, é a franqueza dos comentários, o alerta permanente para a debilidade do nosso posicionamento político-militar, são narrativas em que não se ilude minimamente o estado da vida colonial, deplora-se o desmazelo com que foi tratada a intervenção tardia no Forreá, a má qualidade das tropas, o armamento anacrónico, alerta-se para os métodos capciosos da presença francesa no rio Nuno e fundamentalmente no Casamansa, haverá acusações severas a administrações negligentes nos presídios, como veremos no ano de 1885 (no presente texto faz-se uma súmula das referências aos anos de 1883 e 1884). Estranha-se que a historiografia não tenha prestado a devida atenção ao que se escreve nesta importante publicação.

Um abraço do
Mário



Grandes surpresas na publicação As Colónias Portuguesas, Revista Ilustrada (1)

Mário Beja Santos

A publicação "As Colónias Portuguesas", revista ilustrada, publicou-se entre 1883 e 1891, era inequivocamente dirigida à classe política, não descurava a atração de investimentos, procurava dar informação aos funcionários da administração colonial e a potenciais estudiosos do Terceiro Império. Comecei, na Biblioteca da Sociedade de Geografia de Lisboa, por percorrer o volume referente a 1883 e a 1884. E fui surpreendido por gravuras para mim totalmente inéditas, mesmo que conhecesse o conteúdo. Por exemplo, desconhecia por inteiro a marcação das feitorias portuguesas no Rio Grande de Buba, na sua época áurea, foi um período flamejante que acabou de forma caótica por causa da guerra do Forreá, mesmo quando as autoridades portuguesas conseguiram encontrar um régulo fiel que estabilizasse as relações entre Fulas e Biafadas, os estabelecimentos comerciais apagaram-se. A imagem deixou para a posteridade a localização desses empreendimentos que depois se reduziram à insignificância ou ao apagamento. Nada mau, para quem pretenda investigar a localização destes empreendimentos.

Os aspetos mais curiosos da revista ilustrada eram as pequenas notícias, seja da autoria da redação, seja de alegados correspondentes. Logo no n.º 1 se diz que o clima da Guiné é incompatível com o aturado serviço de europeus. “Aceite este princípio, qualquer organização militar terá que subordinar-se ao emprego do soldado preto como principal componente. Os quadros de oficiais, sargentos e cabos seriam europeus, porém na condição única em que o homem branco pode utilizar-se na Guiné, não servindo efetivamente mais de um ano. A permanência levada além deste período é a doença, a inutilidade.” E avança-se com mais observações sobre o modo de emprego da guarnição militar: ou pela ocupação permanente dos diversos estabelecimentos da Província, fracionando a força; ou a concentração dela na capital, quando o prestígio militar tivesse assegurado o respeito do gentio ou o seu receio, mediante alguns corretivos cujo efeito moral repercutido em todo o país o intimidasse. E avançam-se mais elementos sobre o que deve ser a formação da força armada: um efetivo de 570 homens, 4 capitães, a força disseminada por Geba, Farim, Bissau e Bijagós.

O autor inclina-se para a colonização da Ilha das Galinhas, usando a etnia Fula. Quem assina o artigo é Augusto de Barros que volta à carga no n.º 5 de maio de 1883 com o artigo intitulado "A Praça e o Porto de Buba no Rio Grande de Bolola". Vale a pena reproduzi-lo:
“A praça de Buba é o estabelecimento da Guiné, modernamente assinalado pelos sucessos militares a que a sua sustentação tem dado lugar. Acha-se este estabelecimento a 39 milhas de Bolama no terminal navegável do Rio Grande de Bolola. Este ponto apresenta todo o interesse de um moderno estabelecimento comercial e militar.
Nos primeiros anos de administração da recente Província, ocupou Buba incessantemente a melhor parte da atenção das autoridades, tanto pela importância que adquiriu como mercado de produtos do interior e importados como pela necessidade premente de resolver as relações duvidosas com os chefes gentílicos e a sua complicada política no Forreá (ou território de Fulas-Forros) cuja posse não estava definitivamente reconhecida aos atuais ocupantes. Os negociantes portugueses e estrangeiros estabelecidos em Buba e em outras dependências do Rio Grande, pagavam aos chefes gentílicos uma renda anual pelo direito de ali comerciarem. Cometeram-se abusos por parte dos senhorios, foi o caso da tolerância na posse de escravos. Daí o conjunto de episódios de ocupação militar.”


Elenca o rol de desavenças com o chefe de Bolola, relata como se fortificou Buba com o apoio da população Mandinga e não deixa de referir que diariamente afluía a Buba uma média de 20 a 30 escravos que imediatamente eram tornados livres, ganhara-se a guerra do Forreá, desistira-se do imposto (de nome daxa). Mas mantiveram-se incessantes as lutas entre Fulas-Futas e Fulas-Forros, com consequências sérias na economia. A cultura da mancarra, principal elemento de tráfico, não aguentou esta permanente instabilidade, os negócios paralisaram no Rio Grande e todos os comerciantes franceses retiraram-se.

As notícias sobre a Guiné sucedem-se na publicação, como se exemplifica. Alerta-se para o facto de os rios Nunez (hoje, rio Nuno) e Casamansa absorverem nos flancos a decrépita Guiné toda a atividade e todos os capitais que podiam operar em S. Domingos, no Geba e Rio Grande de Bolola. E, então, o autor faz o seu comentário amargo:
“Uma província que apresenta estes sintomas de derrocada financeira e tem já o orçamento num desequilíbrio de 89 contos de défice, exige que se lhe acuda com algumas medidas salvadoras. A par deste estado lastimoso da fazenda, está hoje a complicada questão política gentílica: a guerra por toda a parte, ameaçando os pontos ocupados onde o nosso domínio se refugia, o desprestígio da falta de dinheiro, o desprestígio da falta de homens dedicados, porque a dedicação em pura perda acaba por mandar tudo ao diabo; a falta de saúde sem compensação, a falta de soldados, a falta de tudo, tem feito da província da Guiné uma tristíssima exibição de inépcia administrativa.”

Quem assina o artigo é Augusto de Barros que volta à liça no n.º 8 (1883) referindo o estabelecimento português no Rio Grande de Bolola, dizendo que se trata de uma paliçada de 900 metros, aproximadamente construída ao modo gentílico, é isto a fortificação de Buba. E volta a lamentar-se: “Que compensações pode oferecer a qualquer aliado gentílico um governador sem dinheiro, com pouco força armada, sem influência séria sobre os naturais, para chamar ao seu campo aliado por quem se bate?”

Passamos agora para o n.º 6 da revista de junho de 1884. Está em cima da mesa o caso de Ziguinchor, dá-se notícia das palavras do deputado Soza Machado (um dos deputados de Cabo Verde) a propósito dos acontecimentos em torno do presídio de Ziguinchor: “Não há soldados na Guiné e os poucos que compõem o batalhão de caçadores e a companhia de artilharia são em geral tão maus que passam a maior parte do tempo metidos no calabouço.”

O redator efetivo António A. Ferreira Ribeiro torna claro que as condições militares na Guiné eram péssimas: as espingardas Lee-Enfield distribuídas tanto ao batalhão como à companhia de artilharia estavam em tal estado de que se tornavam mais um perigo na mão dos soldados que um meio de defesa. E faz um reparo verdadeiramente brutal:
“Não são soldados os que servem na Guiné; são depósito de malfeitores enviados para aqui da metrópole e das outras províncias, a qual, considerada por todos como a pior, é tida pelas nossas justiças militares e civis como o tabelado onde outrora se executavam os assassinos, os ladrões e os traidores à Pátria.”


Edificações do quartel em Bolama, finais do século XIX
(continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 13 DE SETEMBRO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24647: Historiografia da presença portuguesa em África (385): O império da Casa Gouveia em 1970, a grande empresa guineense (Mário Beja Santos)

1 comentário:

Valdemar Silva disse...

“Não são soldados os que servem na Guiné; são depósito de malfeitores enviados para aqui da metrópole e das outras províncias, a qual, considerada por todos como a pior, é tida pelas nossas justiças militares e civis como o tabelado onde outrora se executavam os assassinos, os ladrões e os traidores à Pátria.”

Provavelmente tratavam-se criminosos com penas de degredados nas Colónias, como aconteceu com o José do Telhado, mas este um competente militar em Angola.

Valdemar Queiroz