Mostrar mensagens com a etiqueta feridos. Mostrar todas as mensagens
Mostrar mensagens com a etiqueta feridos. Mostrar todas as mensagens

terça-feira, 10 de setembro de 2024

Guiné 61/74 - P25927: (Ex)citações (429): Ainda a situação do nosso camarada guineense Seco Mané. Sei que há boa vontade a rodos mas quanto a resolver mesmo o problema, tudo com dantes (Morais da Silva, Coronel Art Ref)

1. Mensagem do nosso camarada Coronel Morais da Silva (ex-Cap Art, CMDT da CCAÇ 2796, Gadamael; instrutor da 1.ª CCmds Africanos, Fá Mandinga; Adjunto do COP 6, Mansabá, 1970/72), com data de 8 de Setembro de 2024:

Meus caros camaradas

A propósito da deplorável atitude do HFAR e do CEMGFA, logo que soube da situação do combatente Seco Mané difundi, em 2 de Agosto, o texto que anexo e enviei não só aos meus camaradas como à PR, Min. Defesa, CEMGFA e CEME. Como nada mais soube, julguei o assunto encaminhado. Infelizmente, na passada 6ª feira, o Presidente do Núcleo de Lisboa da ADFA, senhor Janeiro, informou-me que a papelada já estará pronta mas o nó continua.

Não consigo entender porquê o CEMGFA não ordenou imediatamente ao HFAR para tratar o ex-militar Seco Mané ultrapassando a burocracia que tudo asfixia. Caramba, comandar é incompatível com lassidão e muito menos com inacção.

O cor. Armando Ramos acaba de me fazer o ponto de situação da iniciativa que desenvolveu há alguns dias acompanhado do Fernando. Sei pois que há boa vontade a rodos mas quanto a resolver mesmo o problema, tudo com dantes. Mais um exemplo do que somos como equipa eficiente, porque joga bonito, mas INEFICAZ porque não mete golos!

Abraço
Morais da Silva


********************

2. Transcrição do texto que o Coronel Morais da Silva enviou à PR, Ministério da Defesa, CEMGFA e CEME:

Caros camaradas
Há dias horríveis e hoje foi um deles.
Visitei a ADFA onde, pela voz do presidente da delegação de Lisboa, Sr. Janeiro, soube das situações aflitivas e de miséria em que vivem, alquebrados e velhos, ex-combatentes da guerra do Ultramar.

Eis alguns exemplos pungentes:
- pensões da ordem de 300€, doentes e deficientes, sem eira nem beira
- amputados, aguardando ANOS para substituição/manutenção de próteses que lhes garantam alguma mobilidade
- nativos militares na guerra, que vêm a Portugal (de que já foram nacionais!) na esperança de ser tratados das mazelas que os afligem e que esbarram nas barreiras da indiferença.

A última vítima da indiferença dos actuais mandantes é Seco Mané que já foi militar português enquanto a guerra precisou dele durante 11 anos e 195 dias sendo agora um guineense com 75 anos. Ferido gravemente na Guiné (Bedanda) foi tratado no HMP em 1974 após o que regressou à Guiné.

Velho e alquebrado conseguiu vir a Lisboa à procura de tratamento para as mazelas da perna ferida e o inaudito aconteceu. O HFAR recusa-se a tratá-lo porque não é nacional e, portanto não pode ser considerado Deficiente das Forças Armadas. Onde já chegamos!
Temos agora gente boa, liderante na ADFA, a tentar remover a muralha burocrática que nos asfixia, com um Ministério da Defesa inoperante e nominal e um CEMGFA incapaz de ordenar o tratamento imediato do militar ferido ao serviço de Portugal.

Tutelas e Chefias destas, que não respeitam o passado dos que combateram em África, não merecem ser respeitadas e envergonham os velhos profissionais que combateram e bem conhecem as trágicas consequências da guerra.

Nada mais acrescento que não seja dar-vos conta da minha indignação e revolta.

Abraço e muita saúde
Morais Silva
02Ago24

_____________

Notas do editor

Vd. post de 8 de setembro de 2024 > Guiné 61/74 - P25923: Ser solidário (272): Actualização da situação do processo do nosso camarada guineense Seco Mané, que em Portugal procura resolver a sua precária situação de saúde resultante de ferimentos contraídos em combate ao serviço do Exército Português (Fernando de Jesus Sousa)

Último post da série de 22 de fevereiro de 2024 > Guiné 61/74 - P25197: (Ex)citações (428): O sistema AAA, do final da II Guerra Mundial, que "defendia" o aeroporto de Bissalanca e a cidade de Bissau no meu tempo (António J. Pereira da Costa, cmdt da Btr 3434, mai 71/ mar 73)

segunda-feira, 1 de julho de 2024

Guiné 61/74 - P25706: Direito à indignação (17): Seco Mané, antigo Combatente da CCAÇ 6, não tem direito à nacionalidade portuguesa nem aos tratamentos a ferimentos recebidos em combate, nos anos 70, na então Guiné Portuguesa, ao serviço de Portugal (Joaquim Mexia Alves / Carlos Vinhal)

1. Mensagem do nosso camarigo Joaquim Mexia Alves (ex-Alf Mil Op Especiais da CART 3492/BART 3873, Xitole/Ponte dos Fulas; Pel Caç Nat 52, Ponte Rio Udunduma, Mato Cão e CCAÇ 15, Mansoa, 1971/73) com data de hoje, 1 de Julho de 2024:

Caros amigos
Fui alertado por amigos desta notícia saída na Revista Sábado, e que também foi transmitida no canal Now ontem ou sábado às 18.30
Trata-se de uma situação incrível, como é habitual, de desprezo e abandono daqueles que lutaram sob a bandeira portuguesa.
Sugiro que fosse objecto de publicação nos blogues, pedindo a quem puder e tiver influência para isso, a ajuda a este combatente guineense.
Afinal as gémeas brasileiras tiveram a nacionalidade de um dia para o outro, mas este camarigo que combateu ao nosso lado anda de "herodes para pilatos", num desprezo total pela sua vida.
https://www.sabado.pt/portugal/amp/amigos-na-guerra

Ainda sobre o assunto enviei hoje ao Presidente da República, ao Primeiro Ministro e Ministro da Defesa Nacional, o email que anexo.

"Exmo. Sr. Presidente da República
Reporto-me à notícia da Revista Sábado n.º 1052, que refere um antigo combatente guineense, Seco Mané, que serviu nas Forças Armadas Portuguesas, tendo sido ferido em combate, e que vive agora uma situação desesperada em Lisboa.
Trata-se de obter a nacionalidade portuguesa, (o que é estranho não lhe ser de imediato concedida, tendo ele sido para todos os efeitos um militar português, quando a outros sem essa condição já a têm), para que possa ter direito os tratamentos de saúde inerentes, ainda, aos seus ferimentos em combate por Portugal.
Sou um antigo combatente da Guiné, de 1971 a 1973, e esta situação, (para já não falar de outras) afigura-se-me uma vergonha para Portugal.
Venho assim, junto de V. Exa, solicitar todo o seu empenho para que tal situação seja resolvida no mais curto espaço de tempo, porque é de toda a justiça que tal aconteça para quem entregou parte da sua vida pela Pátria.
Tudo está explicado na referida notícia.

Com os melhores cumprimentos
Joaquim Manuel de Magalhães Mexia Alves
Ex- Alferes Miliciano de Operações Especiais"

Páginas da Revista Sábado. Reprodução com a devida vénia

********************

2. Nota do editor:

É certo e sabido a falta de consideração e o abandono a que estão sujeitos os antigos Combatentes, sejam eles brancos ou pretos.
Vi, na Now TV, a reportagem do nosso confrade Fernando Jesus Sousa, que quis o destino encontrasse um seu velho camarada da CCAÇ 6, o Seco Mané, num corredor da Associação dos Deficientes da Forças Armadas, em Lisboa, que vive em condições precárias em Portugal, com o seu filho, para tentar, junto do Hospital Militar de Lisboa, resolver um problema que tem a ver com ferimentos recebidos em combate, em Bedanda nos anos 70, ao serviço do Exército Português.
Como reza a notícia, estranhamente não tem direito à nacionalidade portuguesa apesar de o seu cartão de militar exibir as cores da nossa, e da dele, bandeira.

Lendo o caso na Revista Sábado, o nosso camarigo Joaquim Mexia Alves tomou a iniciativa de enviar ao Senhor Presidente da República, Senhor Primeiro Ministro e Senhor Ministro da Defesa, uma mensagem a dar conhecimento desta injustiça, pedindo ao mesmo tempo os seus bons ofícios no sentido de que se resolva este assunto no mais curto espaço de tempo possível.

O que sugiro? Que cada um de nós envie mensagens similares, o Joaquim Mexia Alves não se importa que se utilize a mensagem dele, às entidades abaixo citadas para que sintam que estamos todos unidos, portugueses de Portugal e camaradas guineenses que não tendo optado pelo nacionalidade portuguesa, tenham direito a ela quanto mais não seja para terem acesso ao tratamento das mazelas advindas de ferimentos em combate.

Para vos facilitar a vida, indico a maneira mais prática de aceder aos respectivos formulários de contacto.
Presidente da República: https://www.presidencia.pt/contactos/formulario-de-contacto/
Primeiro Ministro: https://www.portugal.gov.pt/pt/gc24/primeiro-ministro/contactos
Ministro da Defesa Nacional: https://www.portugal.gov.pt/pt/gc24/area-de-governo/defesa-nacional/contactos

Não me lembro de alguma vez vos ter pedido alguma coisa, desta vez faço-o para que juntos façamos sentir a quem de direito que ainda existimos e que nem sempre as nossas petições são dinheiro, também queremos os direitos e o respeito que nos são devidos enquanto antigos Combatentes.
Não estamos a pedir, estamos a exigir.


Carlos Vinhal

********************

Em tempo:

3. Mensagem de Joaquim Mexia Alves enviada ao Fernando de Jesus Sousa hoje mesmo, dia 2 de Julho de 2024:

Caro Fernando Sousa
Sou combatente da Guiné, 71/73, e amigos meus chamaram-me a atenção para a história do Seco Mané e da vergonha que é toda aquela situação.
Já enviei emails para o PR, PM e MDN sobre o assunto e alertei o blogue da Tabanca Grande para dar cobertura à história, tal como fiz na página da Tabanca do Centro no Facebook e vamos fazer também no nosso blogue.
https://tabancadocentro.blogspot.com/2024/07/p1484-adaptado-da-revista-sabado-e.html

Pergunto é se podemos ajudar também financeiramente.
A Tabanca do Centro faz todos os meses um almoço com combatentes da Guiné e não só, na zona de Monte Real, ao qual vem gente de todo o lado, inclusive de Lisboa.
Quando pagamos o almoço, damos sempre, os que podem, claro, para ajudar os combatentes em dificuldade.
Eu sou o fiel depositário desse dinheiro, (que não é muito), mas serve precisamente para isso e ao longo destes anos temos ajudado alguns combatentes.

Ora o Seco Mané, quanto a mim, está perfeitamente indicado para essa ajuda se assim achares que o devemos fazer.

Fico à espera da tua resposta e até lá envio um forte abraço
Joaquim Mexia Alves

_____________

Nota do editor

Último post da série de 10 DE JULHO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24467: Direito à indignação (16): Senhores da RTP, retirem dos arquivos aquelas provocatórias, hipócritas e desajustadas imagens da visita de 'Nino' Vieira ao marechal António de Spínola, no Hospital Militar Principal (António Ramalho, ex-fur mil at cav, CCAV 2639, Binar, Bula e Capunga, 1969/71)

segunda-feira, 20 de fevereiro de 2023

Guiné 61/74 - P24080: A nossa guerra em números (23): Relatório da 2ª Repartição/CCFAG, relativo ao período de 1jan73 a 15out74: "maior agressividade e potencial revelado pelo IN, e menor capacidade ofensiva das NT"








Fonte: Relatório da 2ª Repartição/CCFAG relativo ao período de 1jan73 a 15out74, citado por CECA  - Comissão para Estudo das Campanhas de África: Resenha Histórico-Militar das Campanhas de África (1961-1974) : 6.º Volume - Aspectos da actividade operacional: Tomo II - Guiné - Livro III (1.ª edição, Lisboa, 2015), pp. 493-499.


1. Com esta série "A nossa guerra em números" (*), não temos nenhuma pretensão, explícita ou implícita, de defender esta ou aquela tese sobre a guerra colonial / guerra do ultramar, em particular no TO da Guiné... O nosso propósito é meramente informativo e didático: cada um dos nossos leitores fará a sua leitura dos números apresentados, a crítica das suas fontes, as eventuais conclusões a tirar, etc...

A análise dos números e a sua interpretação devem ser feitas com cautelas e até reservas. É preciso  ter sempre em conta variáveis como o contexto (por exemplo, político-militar), a qualidade dos dados, a sua fonte, a idoneidade das fontes, quem os recolhe e trata, o fim a que se destinam, etc. Todos nós podemos mentir com números na mão: políticos, economistas, jornalistas, gente da publicidade e do marketing, etc., "usam e abusam" dos números... Para vender produtos e ideias, por exemplo. E depois é ter preciso fazer a distinção entre dados, informação e conhecimento. 

Os dados que temos hoje para apresentar são de fonte portuguesa, oficiosa, a antiga 2ª Rep do QG/CCFAG (Quartel General / Comando-Chefe das Forças Armadas da Guiné). E reportam-se à situação político-militar do ano de 1973 e dos primeiros quatro meses de 1974. Trata-se de uma síntese da atividade do PAIGC neste período final da guerra:

(i) ações de iniciativa do IN;
(ii) ações de reação do IN às NT;
(iii) minas e outros engenhos explosivos implantados pelo IN e neutralizados pelas NT;
(iv) baixas causadas pelo PAIGC às NT e à população (mortos, feridos, capturados, retidos);
(v) baixas sofridas pelo PAIGC (mortos, feridos, capturados, apresentados).

Os comentários dos nossos nossos leitores serão bem vindos.


CECA (2015) - Anexo n° 4 _ Relatório da 2ª Repartição/CCFAG 

relativo ao período de 1jan73 a 150ut74 [Excertos, 1]


O ano de 1973, juntamente com os primeiros meses de 1974 até ao 25 de Abril, constituem um período de nítido agravamento da situação militar, económica e político-subversiva no território da Guiné

Este estado de coisas reflectia a agudização do problema colonial português,  especialmente no plano internacional. Os movimentos emancipalistas, em particular o PAIGC, recebiam apoios ou ajudas de toda a ordem, cada vez mais generalizados, com destaque para os que eram canalizados através da ONU e OUA. [2]

Deste modo tomava-se muito real o isolamento do Governo português, cuja política de intransigência prosseguida apontava para um previsível esgotamento dos recursos do país a mais ou menos curto prazo.

[...] No seguimento da decisão tomada na 20ª Sessão do Conselho de Ministros da OUA, para que fosse empreendido, durante o ano de 1973, um golpe político-militar decisivo, sobre a Guiné, operou-se durante o mês de Maio um muito significativo agravamento da situaç,ão no TO. 

Assim, e em ordem à sua redução, o lN desencadeou poderosas e prolongadas acções de fogo sobre as guarnições fronteiriças de Guidaje, Guileje e Gadamael Porto, as quais conjugou com acções de isolamento terrestre e aéreo (início de emprego de mísseis "SA-7", que limitaram o emprego da Força Aérea), que efectivamente conseguiu, durante alguns dias em Guidaje. 

Quanto a Guileje obrigou as NT ao seu abandono. Na primeira metade de junho, manteve-se o agravamento verificado durante o mês anterior notando-se na última quinzena tendência para o desanuviamento da situação em Guidaje e Gadamael Porto, situação que tudo indicava ser temporária e somente resultante da época das chuvas em curso. 

A partir de fins de ag073 começou a ser referenciada uma concentração anormal de meios na faixa além-fronteira do saliente N/NE do território, a qual, no final do ano, evidenciando as intenções do lN, passou a constituir uma real ameaça sobre as guarnições de Buruntuma, Canquelifá e Copá, em especial esta última, de menor efectivo (2 Gr Comb), isolada e excêntrica.

Neste contexto, as forças do PAIGC não só revelaram uma notável capacidade de manobra e confirmaram o extraordinário potencial de combate que lhes era atribuído, como alteraram profundamente o seu conceito de manobra no TO, passando da actuação dispersa em superficie para a concentração maciça de meios sobre objectivos definidos, normalmente distantes uns dos outros, com o propósito de hipotecar as reservas das NT no local oposto onde pretendia exercer o esforço.

Destas realidades, logo no início de 1974 com o avanço da nova época das chuvas, resultou novo agravamento da situação criada com o empolamento da guerrilha desde abril do ano anterior.

Assim, a partir de jan74, o PAIGC passava verdadeiramente à ofensiva, a qual se caracterizou pela definição de duas áreas de incidência de esforço, diametralmente opostas, uma no extremo NE do TO onde desenvolvia a Op "Abel Djasse" e a outra a Sul, no Cubucaré, para o que inclusivamente tinha constituído um novo órgão coordenador das operações de guerrilha nesta zona: o Comando Sul. 

As acções foram desencadeadas, numa e noutra das áreas referidas, com base em novas unidades das FARP, e com largo emprego de artilharia e armas pesadas, nomeadamente mort 120 mm e fog 122 mm.

Além destes meios os mísseis SA-7 "Strela" eram frequentemente utilizados, o que limitava grandemente o apoio da Força Aérea às guarnições terrestres e, a 31mar74, apareciam as primeiras viaturas blindadas em Bedanda (Cubucaré) o que confirmava o grande aumento de potencial, assim como a crescente capacidade táctica e, sobretudo, logística do PAIGC. 

Nas restantes áreas do TO aumentava igualmente de modo significativo a actividade de guerrilha dispersa em superfície, com relevo para o emprego de engenhos explosivos e acções de terrorismo urbano que alastravam até à própria capital - Bissau.

Como mero exemplo citam-se as 17 flagelações com armas pesadas a outros tantos aquartelamemtos ou  povoações, num único dia (20lan74 - Data da morte de A. Cabral), o rebentamento de engenhos explosivos num café de Bissau (26fev) que provocou 1 morto e a sabotagem no próprio QG/CTIG (22fev) onde parte do edifício principal foi destruída.

No Sul a ofensiva aí realizada permitia ao PAIGC o controlo efectivo de uma área de razoável superfície em que inseria o "corredor" de Guilejepercorrido frequentemente por viaturas das FARP, e que confinava com outra vasta área abandonada pelas NT desde 1969 - o Boé.

Em abr74, dado o esgotamento das reservas do Cmd-Chefe, previa-se que o relançamento da ofensiva no saliente NE, orientada para Sul, tomaria iminente o abandono de Canquelifá e o consequente isolamento de Buruntuma.

Admitia-se ser intenção do PAIGC unir a bolsa assim conquistada com a Região do Boé, por sua vez ligada à zona onde se localizava o "corredor" de Guileje, mais a Sul, concretizando deste modo uma ocupação territorial efectiva que carecia para reforçar a imagem do Estado da Guiné-Bissau parcialmente ocupado pelas Forças Armadas Portuguesas.

Nas áreas de incidência de esforço referido a situação era de tal modo grave para a maioria das guarnições das NT, cujos sistemas de defesa não dispunham de obras de fortificação que pudessem resistir com eficácia às novas armas pesadas do PAIGC, que o Cmd-Chefe alertara do facto o EMGFA, a 20abr74, por uma nota que concluía nos seguintes termos:

"O facto de ter sido confirmada parte das notícias atrás mencionadas pela utilização de viaturas blindadas no ataque a Bedanda, confere certa verosimilhança às restantes notícias que referem a existência de novas armas antiaéreas ou outras, pelo que aquela utilização e o conjunto das circunstâncias descritas na presente nota, nomeadamente a análise das fotografias juntas, são motivo de grande preocupação para este Cmd-Chefe, cumprindo-lhe assinalar as consequências que podem resultar da possível evolução do potencial de combate do PAIGC ou do seu eventual reforço com novos meios das FA da Guiné, quer quanto à capacidade de resistência das guarnições militares que porventura sejam atacadas, quer quanto às limitações de intervenção com meios à disposição do Comandante-Chefe, em especial meios aéreos".

Análise da actividade de guerrilha

A partir de 1964, após a criação das FARP, a curva da variação anual de actividade de guerrilha apresentava, todos os anos certa semelhança: crescia durante toda a época seca, apresentando um ponto alto em jan/fev, após o que decrescia para, em abr/mai, subir de novo até ao começo das chuvas, altura em que alcançava o máximo anual; a partir do começo das chuvas a actividade da guerrilha começava a decrescer regularmente, atingindo no final das chuvaso seu mínimo anual.

A actividade de guerrilha do PAIGC, em 1973, processou-se de acordo com os padrões normais dos anos anteriores, tendo apresentado no entanto a seguinte particularidade: o ponto alto verificado no final da época seca (em mai73) correspondeu a cerca do dobro das acções registadas em 1972, na mesma altura, e o decréscimo observado durante a época das chuvas foi mais acentuado e prolongou-se para além da época seca, até nov73.

No entanto a partir do final de dez73, a actividade de guerrilha aumentou muito acentuadamente, tendo sido em todos os meses do primeiro trimestre de 1974 mais elevada que nos meses homólogos do ano anterior.

Deste modo ao empolamento da actividade de guerrilha em 1973, sucedia outro tanto em 1974. O habitual ponto alto que se previa para abr/mai74, e tudo fazia admitir mais violento que o de 73, só foi sustido pela ocorrência do Movimento de 25Abr.

Pelos quadros anteriores   [vd. acima ] verificava-se que,  quantitativamente, no ano de 1973, se registou um total de 1.514 acções de guerrilha, correspondente a um aumento de cerca de 11% em relação às 1.359 acções verificadas no ano anterior. 

Daquele total, 1.033 acções foram de iniciativa do PAIGC (760 em 1972) e 481 acções de reacção (599 em 1972). Assim, o ano de 1973 foi caracterizado não só por um aumento global de acções, mas especialmente por uma subida pronunciada do número de acções de iniciativa do PAIGC (mais 35%), a par de um decréscimo da actividade de reacção.

Esta tendência - aumento da actividade de iniciativa - acentuou-se mais nos primeiros 4 meses de 1974 (+ 50%), período em que se registaram 415 acções de iniciativa, total significativamente superior às 276 acções realizadas pelo PAIGC em igual período de 1973.

Tais números eram o resultado da cada vez maior agressividade e potencial revelado pelas FARP, assim como a diminuição da actividade de reacção era sintoma claro de uma menor capacidade ofensiva das NT.

Acresce que a actividade de iniciativa do PAIGC, no conjunto do TO, tendo aumentado cerca de 35% em relação a 1972, provocava às NF mais do dobro dos mortos (185/84) registados naquele ano. 

Neste particular o agravamento de 50% verificado nos primeiros meses de 1974, originava um total de mortos sofridos pelas NF até ao final de abr74 (81 M) quase idêntico ao nº registado durante todo o ano de 1973 (84 M). 

Este facto tomava evidente que as acções de guerrilha, além de mais numerosas, tinham uma característica, que os números não podiam traduzir com fidelidade a qual era a cada vez maior violência das mesmas, sendo certo que os valores estatísticos dos quadros apresentados não faziam distinção entre pequenas e grandes acções ou operações de guerrilha.

Em resumo, pode concluir-se o seguinte:

  • Avaliada pelo quantitativo de acções,  a actividade de guerrilha da iniciativa do PAIGC em 1973, aumentou cerca de 35% em relação ao ano anterior. Por sua vez em 1974, no final de Abril, aquele quantitativo era 50% superior ao total registado nos primeiros 4 meses de 1973.
  • A acção do PAIGC vinha sendo caracterizada por um aumento significativo das acções de fogo, em detrimento das acções de terrorismo (raptos e roubos), orientando-se este, cada vez mais, para acções de terrorismo selectivo e sabotagens. Era notória a evolução no sentido do abandono progressivo da actividade de guerrilha dispersa em superfície, em proveito das acções maciças contra objectivos definidos, obrigando a grandes balanceamentos demeios, por vezes, envolvendo elementos de todo o TO.
  • Estas características eram indicadores seguros do aumento de agressividade das FARP e da sua maior capacidade ofensiva, potencial e eficiência.
  • Em reforço da conclusão precedente menciona-se o aparecimento de novas armas durante o período considerado (míssil "Strela" e viaturas blindadas) e um maior emprego de outras (mort 120 mm, fog 122 mm, canh 85 mm, canh 130 mm e minas especiais).
  • Finalmente, a situação militar revelou nítido agravamento a partir de dez73, em especial nas Zonas Sul e Leste.

Dispositivo geral do PAIGC e objectivos

Ao longo de toda a fronteira e nos países limítrofes, o PAIGC dispunha de Bases com estruturas e Comandos próprios, perfeitamente integrados na sua organização militar e que, em conjunto com os "corredores" de infiltração e áreas fulcrais no interior do TO, constituíam a malha do seu dispositivo.

Algumas das Bases ao longo da fronteira tinham simultaneamente carácter operacional e logístico, constituindo pontos de apoio à entrada de grupos armados e de colunas de reabastecimento. Assim:

  • Na Zona Oeste, dispunha fundamentalmente das Bases de M'Pack, Campada, Sikoum, Cumbamory e Hermacono, sedeadas na faixa fronteiriça da Rep Senegal, a partir das quais actuava contra as guarnições de S.Domingos, Ingoré, Guidaje, Farim e Cuntima e infiltrando-se pelos "corredores" da Sambuiá e Lamel irradiava para o interior do TO, respectivamente em direcção às áreas fulcrais de:

- Tiligi, Naga-Biambe e Caboiana-Churo, donde ameaçava directamente o "Chão" Manjaco e as povoações  e Aquartelamentos  ao longo do eixo Có - Bula - Binar - Biambe - Bissorã;

- Bricama, Morés e Sara, donde ameaçava as povoações e aquartelamentso ao longo do eixo Mansoa - Mansabá - Farim, a península de Nhacra e, indirectamente a ilha de Bissau;

  • Na Zona Leste, para pressionamento do "Chão" Fula, dispunha:

- Na Rep Senegal, das Bases de Fakina, Sambolecunda, Sare Lali, Suco/Payongon e Lenguel/Serenafe, ameaçando os regulados da fronteira N, em direcção a Bafatá/Nova Lamego. [... ]

___________

Notas da CECA (2015):

[1] Extractos  do relatório, pp I, 11 a 18.

[2] A Guiné-Bissau tinha sido admitida como membro daquela Organização, após a proclamação unilateral da independência.

[Revisão / fixação de texto / negritos, para efeitos de publicação deste poste: LG ]

__________

Nota do editor:

(*) Último poste da série > 14 de fevereiro de 2023 > Guiné 61/74 - P24065: A nossa guerra em números (22): De um total de 1570 minas e outros engenhos explosivos implantados pelo PAIGC (de 1972 a 20 de abril de 1974), mais de três quartos foram neutralizadas pelas NT, com destaque para as minas A/P

segunda-feira, 22 de fevereiro de 2021

Guiné 61/74 - P21932: Os nossos camaradas guineenses (46): O Jobo Baldé, o padeiro de Missirá e depois do Mato Cão, Pel Caç Nat 52, ferido ao tempo do BART 2917 (Bambadinca, 1970/72), e que sonhava vir para Lisboa e trabalhar na panificação...

Guiné > Zona leste > Região de Bafatá > Sector L1 (Bambadinca) > Missirá > Pel Caç Nat 52 (1968/70)  > 1969 > O sold Jobo Baldé, ao tempo do alf mil Mário Beja Santos, comandante do pelotão. Veio de Galomaro, Cossé, em 1969. Ofereceu-se como voluntário para fazer o pão no destacamento. 

"Esta é a primeira fotografia do Jobo na sua padaria: ele amassa cheio de vontade o nosso primeiro pão; veio um mestre do Cossé ensinar a fazer o forno; ele amassa num cunhete de granadas de bazuca mas do que gosto mais é a determinação do seu olhar, há ali um mundo de sonhos que ninguém, parecia, iria parar. Honra ao trabalho, amassarás o teu pão com o suor do teu rosto." (*****)

Foto (e legenda): © Beja Santos (2006). Todos os direitos reservados. [Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]

1. Chamava-se Jobo Baldé, recorda o seu antigo comandante, o Mário Beja Santos. Era "o padeiro de Missirá, empreendedor topo de gama, sacrificava todos os seus lazeres para fazer pãozinho para a população civil".  (*)

E acrescenta o nosso camarada e colaborador permanente: "Revejo sempre esta fotografia com orgulho e olhos humedecidos. O Jobo prepara o pãozinho num cunhete de granadas de bazuca. Enviei esta fotografia à minha noiva e digo: 'Jobo, o padeiro que Rossini esqueceu para as suas óperas'...

"O Jobo tinha um fio de voz, quase ciciava, seguia bem perto do seu alferes. Escreveu-me anos a fio, também queria vir trabalhar para Portugal. Em Dezembro de 2010, procurei vê-lo. O Fodé Dahaba telefonou-lhe, não tinha dinheiro para se deslocar da região de Galomaro a Bambadinca, e nós não podíamos lá ir. Caí na asneira de lhe dizer que regressaria à Guiné, alguém ouviu, e é por isso que de vez em quando me escrevem para saber quando eu volto"… (*)

2. Mensagem do Beja Santos, com data de 29 de Setembro de 2006:

Caro Luís, a violência deste exercício ficou atenuada quando a Cristina me passou para as mãos as centenas de aerogramas que lhe enviei. Estou presentemente a arrumar por anos e depois passarei aos meses e dias. Até agora a memória não me tem atraiçoado, das cartas encontradas do período abordado vejo que há episódios humanos que merecem ser relatados.

E descobri algumas cartas dos meus soldados que te vou enviar pois eles enriquecem a histórias de todas as nossas relações afectivas, o português que se usava, o amor que se instalou entre os homens. Tu farás o uso que entenderes desta correspondência, tens plena liberdade para reproduzires como e quando for mais conveniente. (...) (**)

Exmº Sr Meu Alferes

por Beja Santos

Passou por aqui há dias o Queta Baldé, antigo soldado do Pel Caç Nat 52. É segurança nocturno numa empresa das redondezas, e de vez em quando vem partir mantenha. Trouxe-me uma carta datada de 1 de Janeiro, de Bissau, e assinada por Jobo Baldé. A fotografia dele já aqui apareceu, era o nosso padeiro a quem demos uma concessão de vender algumas fornadas de pão à população civil.

Na época das chuvas, não era possível trazermos os sacos de farinha na viatura e pedimos apoio aéreo. Lembro a ocasião em que um helicóptero nos largou a 15 metros de altura, sob a parada, um saco de farinha que tivemos de peneirar para tirar a terra... O Jobo escreve assim:

"Antes de mais desejo-te uma boa continuação de saúde e felicidade. Espero que não tenhas esquecido o Jobo. Olha Alfer Becha dos Santos você tinha-me dito vai me levar em Lisboa quando eu entrego a farda da tropa. Eu era o teu antigo padeiro em Missirá. Quero ir para Lisboa. Cumprimento para a sua família da casa. Jobo em Bissau, telefone 25-51-25."

Guardei outras missivas do Jobo. Por exemplo:

"Meu Senhor Alferes que eu queria dizer uma coisa que seja verdade porque meu mulher já pariu na nossa terra. Olha, ela pariu na segunda feira passada. Dá autorização a Jobo para ir a Galomaro"...

E outra:

"Querido Alferes, eu queria visitar meu familiar, empresta-me 500 ou 400 escudos pois tenho que fazer festa do filho e sem dinheiro eu fico com muita vergonha. Eu peço 4 dias de dispensa. Adeus".


3. O Jobo Baldé não vinha da formação inicial do Pel Caç Nat 52, ao tempo do alf mil Henrique Matos (Enxalé, 1966/68). Mas chegará ao fim. O Pelotão será extinto em agosto de 1974, era comandante o alf mil Luís Mourato Oliveira (***).

Demos de novo a palavra ao seu "biógrafo" (****):

(...) Depois do grande incêndio de Missirá, em 19 de Março de 1969, durante a reconstrução, deu-se azo à imaginação, alguns progressos foram possíveis no nosso ameaçado bem-estar. Para substituir Sadjo Baldé, um dos falecidos durante a flagelação, veio o Jobo, natural de Galomaro.

Não tínhamos padaria, e em conversa informal perguntei tanto no Pel Caç Nat 52 e do Pel Mil 101 se havia voluntários para as tarefas da padaria. Jobo ofereceu-se logo, e, moderno e polivalente, fez-me a seguinte proposta: Faria pão para a tropa dentro do seu horário, independentemente dos reforços, idas a Mato de Cão, colunas de abastecimento, emboscadas e operações; fora do serviço queria dedicar-se ao que hoje se chama o empreendedorismo.

E assim foi, ele era bem jovem e deu conta do recado tanto na actividade independente como nas tarefas marciais. Era um regalo o cheirinho a pão, a partir de Julho de 1969. A Missirá civil deu-lhe farta clientela, todo o pão alvo era escoado sem reclamações.

O Jobo ainda resistiu quando fomos para Bambadinca, em Novembro, queria ficar, mas ninguém no Pel Caç Nat 54 quis trocar com ele. Resignado, abandonou as lides da panificação" (...) (****)

Aqui fica o retrato possível de mais um nosso camarada guineense (*****), o improvável padeiro de Missirá (1969) e depois de Mato Cão (1973/74). Oriundo do Cossé, o seu sonho ainda era vir para Lisboa e ser padeiro. E se estamos a falar do mesmo militar, o Soldado Atirador Jobo Baldé 82068868, do Pel Caç Nat 52, ficamos também a saber que ele faz parte da lista dos feridos do Sector L1 ao tempo do BART 2917 (Bambadinca, 1970/72), pormenor do seu CV militar que, se calhar, tanto o Beja Santos como o Luís Mourato Oliveira desconheciam. (******)
_________

Notas do editor:


(****) Último poste da série > 5 de junho de 2017  > Guiné 61/74 - P17435: Os nossos camaradas guineenses (45): Encontro no LNEC com o Augusto Delgado, ex-Fur Mil da CCAÇ 18, hoje Engenheiro Técnico (Hélder Sousa, ex-Fur Mil TRMS TSF)


domingo, 15 de julho de 2018

Guiné 61/74 - P18848: (D)o outro lado do combate (34): A logística nas evacuações dos feridos do PAIGC na Frente Norte: um itinerário até ao hospital de Ziguinchor (Jorge Araújo)


Citação: (1963-1973), "Guerrilheiros do PAIGC atravessando uma ponte", CasaComum.org, Disponível HTTP: http://hdl.handle.net/11002/fms_dc_43132 (2018-7) [Cortesia da Fundação Mário Soares > Casa Comum > Arquivo Amílcar Cabral]




Jorge Alves Araújo, ex-Furriel Mil. Op. Esp./RANGER,  CART 3494 
(Xime-Mansambo, 1972/1974); coeditor do nosso blogue



GUINÉ: (D)O OUTRO LADO DO COMBATE > A LOGÍSTICA NAS EVACUAÇÕES DOS FERIDOS DO PAIGC NA FRENTE NORTE: UM ITINERÁRIO ATÉ AO HOSPITAL DE ZIGUINCHOR (SENEGAL)



1. Introdução


Há exactamente dois anos, tomei a iniciativa de dar início neste fórum de ex-combatentes à publicação, em fragmentos, de algumas das memórias grafadas no livro escrito pelo jornalista e investigador cubano Hedelberto López Blanch, com o título «Historias Secretas de Médicos Cubanos», onde o autor dá a conhecer as histórias que lhe foram contadas, em castelhano (espanhol), por quinze médicos cubanos que estiveram na Argélia, na Guiné (Bissau), no Congo Leopoldville (belga), no Congo Brazzaville (francês) e em Angola, apoiando os movimentos de libertação daqueles territórios.

No caso concreto da Guiné foram três os entrevistados, por esta ordem: 

(i) o médico-cirurgião Domingo Diaz Delgado [P16224; P16234; P16285 e P16304];

(ii) o médico de clínica geral, com experiência em cirurgia, Amado Alfonso Delgado [P16357; P16380; P16396; P16420 e P16441];

(iii) e o médico militar, especialista em cirurgia geral, Virgílio Camacho Duverger [P16592; P16613; P16721 e P17151], 

os quais relatam algumas das suas muitas memórias [experiências], vividas na primeira pessoa, e das motivações que os levaram a optar por um dos lados do combate.

Como antecedente histórico ao acima exposto, recorda-se que os apoios cubanos ao PAIGC tiveram a sua génese no encontro realizado em Conacri, em 12 de Fevereiro de 1965, entre Ernesto "Che" Guevara (1928-1967) e Amílcar Cabral (1924-1973), com o primeiro a comprometer-se a ajudar, na medida das possibilidades, o segundo, na qualidade de líder daquele movimento nacionalista.

Decorridos três meses, a 11 de Maio de 1965, a primeira (grande) ajuda de Cuba chega a Conacri, a bordo do navio Uvero, constituída por cento e trinta e sete caixas de medicamentos, sessenta e seis caixas com armas, munições, minas e uniformes militares, assim como alimentos, cigarros e fósforos.




Mas é em Janeiro de 1966, por causa/efeito da participação de Amílcar Cabral (1924-1973) na I Conferência Tricontinental efectuada em Havana, durante a qual é aprovada a criação da Organização de Solidariedade dos Povos de África, Ásia e América Latina (OSPAAAL), que o Secretário-Geral do PAIGC recebe a notícia de mais apoio (material e técnico) traduzido no envio de viaturas para a deslocação dos guerrilheiros, mecânicos, instrutores militares e médicos, como corolário da reunião tida com o presidente Fidel de Castro (1926-2016).

No âmbito da cooperação técnica na área da «Saúde», o primeiro grupo de nove médicos chega a Conacri no início de Junho de 1966. Passado um mês (Julho) estes são divididos em três equipas, com a seguinte distribuição operacional:

(i) Frente Norte >  Domingo Dias Delgado (cirurgião); Pedro Labarrere (medicina interna) e Teudi Ojeda Suárez (ortopedista);

(ii) Frente Sul >  Rómulo Soler Vaillant (cirurgião); Luís Peraza Cabrera (cirurgião) e Julio Garcia Olivera (Bebo) (cirurgião);

(iii) Boké (Hospital na Guiné-Conacri) >  Raúl Currás Regalado (medicina interna); Jesús Pérez (ortopedista) e Virgílio Camacho Duverger (cirurgião). Ali já se encontrava, há dois meses, o médico panamiano Hugo Spadafora (1940-1985).


2. Testemunhos do médico Domingo Diaz Delgado (1966)

Para enquadramento desta narrativa – a da logística clínica em contexto da guerrilha – recupero alguns testemunhos transmitidos pelo médico-cirurgião Domingo Diaz Delgado (n.1936), referentes à sua passagem pelas bases de Sambuiá, Maqué, Morés e Sará, na Frente Norte, itinerários percorridos durante o segundo semestre de 1966.

Conta ele: 

[…] "Luís Cabral levou-me até Ziguinchor. Aí permaneci dois ou três dias, tendo-me encontrado com os chefes militares mais importantes que actuavam no Norte da Guiné, entre eles Osvaldo Vieira (1938-1974) porque, como era o primeiro cubano que ali chegava, estavam à minha espera. 

Despediram-se de mim [6 de Julho] e saí com um grupo de combatentes. Era noite quando cruzei a fronteira por essa zona escoltado por uns quantos. A caminhada, feita por um terreno acidentado, para mim foi terrível. Demorei quatro a cinco horas até chegar à primeira base guerrilheira que se chamava Sambuiá. Passei a noite nessa base, já com os pés bastante maltratados. 

Essa caminhada que fiz em quatro ou cinco horas, quando regressei fi-la em cinquenta minutos, porque tinha menos trinta quilos e levava já um ano caminhando naquele terreno.

Passada a noite nesse lugar, de madrugada retomámos a caminhada até à próxima base da guerrilha, penetrando profundamente no território da Guiné (Bissau). 


À volta de quarenta minutos caminhámos com uma vegetação que nos protegia da aviação, mas para alcançar o rio Farim, que teríamos de atravessar para chegar à base de Maqué, faltava ainda percorrer sete quilómetros muito planos, e sem qualquer protecção natural".

Acrescenta: 

(...) "Pouco habituado a estas tarefas, caminhava lentamente face ao estado em que estavam os meus pés e todo o corpo. O meu estado de desespero também começou a dar sinais e que não me deixava ficar tranquilo, e não dava conta que olhavam para o céu, uma vez que naquele lugar os helicópteros armados e os jactos (aviões de guerra), metralhavam e matavam quem fosse detectado. Os guerrilheiros estavam desesperados porque tinham que zelar pela minha segurança, pois era o primeiro médico que ali chegava.

Finalmente chegámos ao rio Farim, onde o abundante caudal tornava difícil a sua travessia nas pequenas canoas que eles fabricavam com troncos de árvores. Atravessámos o rio e chegámos pela noite à base de Maqué, onde levava dois dias a andar e estava bastante mal. 

No trajecto tivemos de beber água em más condições. Ali a água potável era a dos rios, e eles habituaram-se a fazer uns buracos na terra, bem localizados e escondidos para encherem quando chovia. Ao longo do itinerário realizado sabiam onde tinham os buracos para tirar a água com terra e era a que, a partir desse momento, comecei a beber.

Como era o primeiro grupo cubano na Guiné (Bissau), não tínhamos antecedentes. Quando cheguei à base de Maqué já as diarreias começavam a fazer estragos, mas nem por isso deixámos de comer o que encontrávamos pelo caminho. No dia seguinte, antes de amanhecer, reiniciámos a caminhada, avançando pelo país até alcançar a base de Morés. Nesse lugar estivemos um dia, seguindo, depois, uma nova caminhada até chegar à base onde permaneci cerca de seis meses: Sará". […]



Base de Sará (1966) – Da esqª/dtª., o instrutor militar tenente Alfonso Pérez Morales (Pina); o ortopedista Tendy Ojeda Suárez; o cirurgião Domingo Diaz Delgado e o médico de clínica-geral Pedro Labarrere. (in. op. cit.).



Continua: 

"A base de Sará estava praticamente no centro do território. Aqui já estavam dois companheiros médicos do meu grupo, dos três que saíram de Cuba em avião, o ortopedista Teudi Ojeda e o médico Pedro Labarrere, e os três fomos os únicos que naquele tempo [1966] estivemos na Zona Norte. De Sará, estávamos a quatro dias de distância da fronteira [Senegal] e não era fácil transportar coisas para lá. 

Tínhamos um pequeno arsenal de medicamentos, instrumentos cirúrgicos, mas muito rudimentar, para resolver problemas que se apresentassem naquele tipo de conflito. A possibilidade de enviar feridos até à fronteira era muito escassa, pela distância e a maneira de os transportar, e a forma como se movimentava o inimigo. 

O acampamento mudava de lugar em certas ocasiões, pois apesar de que nesse tempo era uma base guerrilheira, não se podia permanecer fixo e havia que mudá-lo constantemente para maior segurança. Chegou o momento em que detectaram a base, e a aviação a atacou e a metralhou em várias ocasiões.

De qualquer maneira, nós permanecemos cerca de seis meses nessa base [até dez'66] e depois de vários bombardeamentos vimo-nos na obrigação de mudar o hospital [enfermaria no mato] para outro lugar que ficava a hora e meia dessa base". […]



Mapa da Frente Norte – região do Oio – assinalando-se as bases por onde passou o médico Domingo Diaz Delgado.


3. Testemunhos do médico holandês Roel Coutinho (1973/74)


Para melhor compreensão do descrito pelo médico cubano Domingo Diaz Delgado no ponto anterior, nada melhor do que associar às suas palavras algumas imagens do mesmo contexto, ainda que entre si exista uma diferença temporal superior a sete anos. Esta oportunidade, e coincidência, só foi possível graças ao espólio fotográfico disponibilizado pelo médico holandês Roel Coutinho [Roelland Arnold Coutinho], também ele cooperante com o PAIGC, particularmente na actividade clínica dos sujeitos dela carenciada: combatentes e população sob o seu controlo.

A sua missão na guerrilha decorreu nos anos de 1973 e 1974, tendo percorrido várias localidades da Frente Norte do território da Guiné, com destaque para Campada, Farim, Hermangono, Sará, Canjambari e Ziguinchor (Hospital do PAIGC, no Senegal).

Ao doutor Roel Coutinho, reputado médico microbiologista, epidemiologista e professor universitário jubilado, agradecemos a possibilidade de utilizarmos as suas imagens neste trabalho relacionado com a nossa presença no CTIG.



Fotos da série PAIGC Military, Guinea-Bissau, Coutinho Collection 1973-1974.




Wikimedia Commons > ASC Leiden > Coutinho Collection > 14 08 > Roel Coutinho in Sara > Guinea-Bissau [o médico Roel Coutinho lendo e ouvindo a rádio portátil em Sará].



Wikimedia Commons > ASC Leiden > Coutinho Collection > G07 > Ziguinchor, Senegal > Vaccination [o médico Roel Coutinho administrando uma vacina com injector de jacto, visando a imunização (protecção imunológica de uma doença infecciosa) de adultos].



Wikimedia Commons > ASC Leiden > Coutinho Collection > B23 > Infirmary in Sara > Guinea-Bissau > Heartbeat check-up by doctor Antonio [O médico cubano Dr. António durante uma consulta com auscultação cardíaca].


Wikimedia Commons > ASC Leiden > Coutinho Collection > A17 > Surgery in Sara > Guinea-Bissau > Operation details [De costas, o médico cubano Dr. António durante um acto cirúrgico a um elemento do PAIGC, acompanhado de três enfermeiros e um militar].


Wikimedia Commons > ASC Leiden > Coutinho Collection > A19 > Surgery in Sara > Guinea-Bissau > Operation details [O médico cubano Dr. António durante um acto cirúrgico, acompanhado de dois enfermeiros, um cubano (Gustavo) e um guineense].


Wikimedia Commons > ASC Leiden > Coutinho Collection > F34 > Life in Sara > Guinea-Bissau > Transporting the wounded from Candjambary to the Senegalese border [Transporte de ferido desde Canjambari até à fronteira do Senegal].



Wikimedia Commons > ASC Leiden > Coutinho Collection > F35 > Life in Sara > Guinea-Bissau > Carriers of wounded people [Carregadores de feridos].


Wikimedia Commons > ASC Leiden > Coutinho Collection > F36 > Life in Sara > Guinea-Bissau > Bearers of the wounded on one day walking distance to the Senegalese border [Um dia de caminho até à fronteira do Senegal (de Canjambari)].




Wikimedia Commons > ASC Leiden > Coutinho Collection > F37 > Life in Sara > Guinea-Bissau > Armed escort carrying the wounded to the Senegalese border [Transporte de ferido para a fronteira do Senegal com escolta armada].



Wikimedia Commons > ASC Leiden > Coutinho Collection > C40 > Walk from Candjambary to Sara > Guinea-Bissau > Military escort with rifle during trip [Militar – criança-soldado? – do PAIGC, armado de Kalashnikov (AK-47), durante uma escolta].



Wikimedia Commons > ASC Leiden > Coutinho Collection > G04 > Ziguinchor, Senegal > Infirmary ambulance [Ambulância da enfermaria (Hospital do PAIGC) de Ziguinchor, (aguardando a chegada de feridos do interior da Guiné?)].



Wikimedia Commons > ASC Leiden > Coutinho Collection > 11 05 > Ziguinchor hospital, Senegal [Enfermeiras no hospital do PAIGC, em Ziguinchor, tratando de guerrilheiros feridos].



Wikimedia Commons > ASC Leiden > Coutinho Collection > 11 06 > Ziguinchor hospital, Senegal [Enfermeiras no hospital do PAIGC, em Ziguinchor, tratando de guerrilheiros feridos].




Wikimedia Commons > ASC Leiden > Coutinho Collection > 10 05 > Nurses in Ziguinchor hospital, Senegal [Enfermeiros no hospital do PAIGC, em Ziguinchor].



Itinerário da evacuação dos feridos entre Canjambari e Ziguinchor. A verde; marcha a pé até à fronteira com o Senegal. A amarelo; em ambulância até ao hospital do PAIGC de Ziguinchor.



Termino, agradecendo a atenção dispensada.

Com um forte abraço de amizade e votos de muita saúde.

Jorge Araújo.

06JUL2018.
________________

Nota do editor:

Último poste da série > 17 de junho de 2018 > Guiné 61/74 - P18749: (D)o outro lado do combate (33): As deserções no PAIGC no Sector de Tite ao tempo do BART 2924 (1971-1972) e suas consequências (2) (Jorge Araújo)

segunda-feira, 6 de junho de 2016

Guiné 63/74 - P16171: Efemérides (227): 20 de Maio de 1968, "Um dia, dos muitos que a guerra teve..." (José Martins, ex-Fur Mil TRMS da CCAÇ 5)

 

1. Em mensagem do dia 23 de Maio de 2016, o nosso camarada José Marcelino Martins (ex-Fur Mil Trms da CCAÇ 5, Gatos Pretos, Canjadude, 1968/70), lembra o fatídico dia 20 de Maio de 1968, quando, na estrada Mampatá-Nhala, uma coluna auto do BART 1896, a pouco tempo de terminar a sua comissão de serviço, sofreu uma emboscada, da qual resultou a morte, por ferimentos em combate, de 4 militares e a retenção pelo IN de mais 8.



************

2. Comentário do editor

Entre os militares retidos no dia 20 de Maio de 1968 está o ex-1.º Cabo Mec Auto da CCS/BART 1896, Rui Rafael Correia, natural de Leça da Palmeira, homenageado pelos seus amigos e pela Liga dos Combatentes no passado dia 30 de Abril, na Sede do Núcleo de Matosinhos.
Com a permissão do camarada José Martins, aqui ficam duas fotos alusivas ao acto:

O homenageado Rui Rafael (à esquerda na foto); Raul Ramos e Ribeiro Agostinho, seus amigos e vizinhos 
Foto: Núcleo de Matosinhos da LC

O Rui recebeu dos seus amigos uma boina; das mãos do senhor Major-General Fernando Arruda (Direcção Central da LC), uma Medalha da Liga e, das mãos do senhor Ten-Coronel Armando Costa, o Cartão de Sócio do Núcleo de Matosinhos da LC. 
Foto: Núcleo de Matosinhos da LC

Para memória futura aqui deixamos este ofício do então Serviço de Informação Pública das Forças Armadas, de 3 de Junho de 1968, enviado ao pai do Rui Rafael, comunicando a situação de prisioneiro do seu filho.

©: Com a devida vénia a Rui Rafael Correia
____________

Nota do editor

Último poste da série de 1 de junho de 2016 Guiné 63/74 - P16155: Efemérides (226): Programa do XXIII Encontro Nacional de Combatentes, dia 10 de Junho, em Lisboa (Manuel Lema Santos)