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terça-feira, 30 de agosto de 2022

Guiné 61/74 - P23569: In Memoriam (451): Gratas recordações do confrade António Júlio Emerenciano Estácio (1947-2022) (4): “Bolama, a saudosa…”, lembranças afetuosas da sua juventude (Mário Beja Santos)

1. Mensagem de 26 de Agosto de 2022 do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70):

Queridos amigos,
É a hora da despedida do António Estácio, saboreei a releitura da sua pesquisa sobre a presença portuguesa na Guiné, não há revelações surpreendentes, mas uma enumeração exaustiva de eventos, vamos ter informações em catadupa desde a criação de Bolama até à sua viagem de despedida, falará comovidamente da família, do convívio, das brincadeiras com outros meninos, é tocante. Minucioso, não esquece tanto as guerras de pacificação como a questão de Bolama, bateu à porta de muita gente, neste texto recolheu o testemunho de alguém que viveu no ilhéu do Rei e que descreve a intensidade fabril daquela Casa Gouveia; viajaremos por diferentes tempos, ouviremos falar de muita gente, fas publicações, dos escritores e em dado momento ele lembra-nos Fernanda de Castro que era filha do capitão do porto de Bolama, aqui morreu sua mãe, aqui ela encontrará inspiração para aquele que terá sido o best seller infanto-juvenil do Estado Novo, Mariazinha em África. Há que confessar que António Estácio adoeceu entretanto e a edição ressentiu-se da falta de revisão. Mas o que é mais relevante é que esta viagem a Bolama é um testamento de amor que não esqueceremos tão cedo.

Um abraço do
Mário


Gratas recordações do confrade António Estácio:
“Bolama, a saudosa…”, lembranças afetuosas da sua juventude

Mário Beja Santos

Deste livro, edição de autor, 2016, nesse mesmo ano aqui deixei as minhas impressões de leitura, o meu pasmo com o acervo informativo que Estácio foi recolhendo, primeiro sobre a história da nossa presença na Guiné, antes de 1879, quando esta foi desafetada de Cabo Verde. Estácio leu muito, e não se limitou ao Boletim Oficial da Guiné. Leu António Loureiro da Fonseca que recorda aos vindouros o sangue que se derramou em sucessivas guerras. Não esquece os dados essenciais dessa nossa presença, desde as companhias de tipo majestático, o comércio de Cacheu e Ziguinchor, a questão de Bolama, a criação do seu município em setembro de 1871, entre tantíssimos exemplos que eu aqui podia relevar.

Recorre a testemunhos de gente do seu tempo, caso do Manuel Duarte Freire que era filho de trabalhador da Casa Gouveia e que descreve a vida no ilhéu do Rei, ficamos a saber um pouco mais sobre a CUF:
“No ilhéu do Rei, local onde a CUF tinha o seu complexo industrial, talvez o único e o maior que me lembre, o qual era composto por vários armazéns, de enorme capacidade, consoante o tipo de mercadoria a que se destinasse, como, por exemplo, de 30.000 toneladas para o amendoim, 10.000 toneladas de arroz em casca e de várias toneladas de coconote. Tinha uma fábrica de descasque de arroz, outra para mancarra e uma outra de aproveitamento de óleo. Na fábrica destinada ao descasque de mancarra ficava a de óleo de amendoim, sendo esta ali construída no ano de 1956, ou seja, no mesmo ano em que foi construída uma ponte nova que tornou possível a atracagem de barcos de maior dimensão. No ilhéu, havia tratores para mudar e transportar as mercadorias, assim como as diversas balanças para assegurarem as pesagens. No caso do descasque de arroz, ele era ali processado e embalado, enviando-se para Bissau ou carregando-se para outros destinos, quer fosse Lisboa ou diversos países. A mancarra foi ali descascada, ensacada e enviada para a metrópole, onde era produzido o conhecido Óleo Fula. Porém, a partir de 1957, a fábrica de óleo da ilha do Rei começou a separar logo e a produzir o óleo, farinhas, sabão, glicerina e o Óleo Fula passou a ser logo ali produzido. Todos os resíduos foram aproveitados para farinhas que eram exportadas para a Holanda, o mesmo sucedendo com o sabão e a glicerina. Este é o meu testemunho, vivido no ilhéu do Rei, na boa e velha Guiné, onde cheguei em 15 de março de 1951 e permaneci até 1958. Regressei com a finalidade de continuar a estudar em Tomar, tendo tido a sorte de ir parar onde havia tantos guineenses amigos e de quem guardo imensas saudades (certamente que Manuel Duarte Freire se refere ao Colégio Nun’Álvares, instituição de ensino onde estudaram muitos guineenses)".


Nesta curta memória é inviável elencar a farta pesquisa de Estácio, põe o enfoque no período republicano, fala-nos da Liga Africana, Liga Guineense e Centro Escolar Republicano; não esquece a bravura de Sebastião Casqueiro e as operações militares no Churo, a ocupação do Oio, as operações de Teixeira Pinto, transcreve mesmo as narrativas do próprio Capitão João Teixeira Pinto. E há o contraditório, o advogado Loff de Vasconcelos a apresentar queixa-crime contra Teixeira Pinto e Abdul Indjai, indicando um rol de testemunhas de grande peso socioeconómico, era a contestação ao que se chamou o regime abusivo de Teixeira Pinto. E se isto se trata de uma listagem impressionante de nomes, informações em catadupa sobre acontecimentos de vária ordem, nomeações, inaugurações, muitos recortes de notícias publicadas na imprensa local.

Não esquece Honório Pereira Barreto, a presença de Gago Coutinho, a governação de Velez Caroço, o acidente com a Esquadra Balbo, as visitar alemãs, a autorização dada a Pan American de faz escala em Bolama; em 1947 dá-se a inauguração da carreira aérea Dacar-Bissau, por avião e Junker 52 da Air France; e a participação de dezenas de guineenses das etnias Bijagó, Balanta e Fula na I Exposição Colonial Portuguesa, capitaneava a participação um bravo militar, o régulo Mamadu Sissé, acompanhado de quatro mulheres e dois filhos; não são esquecidos os periódicos (todos eles de vida breve); a revolta republicana de 1931 e a sua precária Junta Governativa; a figura do escritor e publicista Fausto Duarte; e em 1953 chega a Guiné o professor Paulo Quintela à frente de um grupo de antigos estudantes de Coimbra; e até o Manuel Joaquim do cinema não é esquecido.

Convém abreviar, aqui se endereça um derradeiro abraço de saudade a este confrade que irá lembrar emotivamente a vida familiar, os seus amigos, irá ouvi-los e não se coibirá de dizer que estava a viver as mais belas recordações da sua vida. Não esquece o nome de escritores e evoca Fernanda de Castro que viveu em Bolama, autora de um impressionante bestseller infantojuvenil que marcou gerações, Mariazinha em África, fui buscar a minha edição da Ática, de 1947, com desenhos de Ofélia Marques, e transcrevo algumas passagens:
“Dum lado e doutro da estrada, só se viam arrozais, arrozais verdes, arrozais a perder de vista… Estava calor, um calor de rachar, mas o ar deslocado pelo carro em movimento dava uma sensação de frescura a Mariazinha e a Ana Maria. Pássaros de todas as cores, de todos os feitios, voavam sobre o arrozal. Insetos enormes vinham esborrachar-se de encontro aos vidros do automóvel. Uma cobra amarela, pintalgada de preto, rastejava ao longo da estrada. E nem uma árvore, nem um arbusto, nem uma sombra no horizonte.
Pouco a pouco, porém, a paisagem foi mudando. Às superfícies cultivadas dos arrozais sucedia-se agora o capim, capim alto, serrado, onde uma fauna perigosa e hostil proliferava, palpitava, rastejava… Árvores enormes, a princípio isoladas, pareciam sentinelas à beira da floresta”
.


E, mais adiante:
“Meia hora depois, surgia Buba, terra de maravilha! Nem casas, nem barcos, nem carros, nenhum sinal de civilização. Os raros comerciantes brancos que ali viviam, tinham as suas casas no interior, muito longe do cais, e este cais rudimentar era o único vestígio da passagem dos brancos por aquelas terras.
No rebocador, os marinheiros manobravam para atracar e todos se preparavam já para o desembarque.
A região não podia ser mais bonita! Bananeiras carregadas de bananas vinham quase até ao rio. Borboletas que pareciam flores e flores que pareciam pássaros confundiam-se, nas árvores, com os frutos coloridos – as mangas, as goiabas, os cajus.
- Olha, Ana Maria! – exclamou Mariazinha. – O cais está cheio de gente!
Com efeito, no cais apinhavam-se dezenas, centenas de pretos, alguns dos quais tocavam uma música estranha nuns instrumentos ainda mais estranhos. O barulho era ensurdecedor… Raparigas e mulheres, embrulhadas em panos berrantes, com lenços vistosos na cabeça e fios de contas de vidro em volta do pescoço, dos pulsos e dos tornozelos, batiam palmas a compasso e sorriam para os brancos; pretinhos nus, com enfiadas de sementes vermelhas em volta da barriga, guinchavam e saltavam como macaquinhos; separados dos outros, estavam os tocadores, que tocavam tantã e uns instrumentos esquisitos que pareciam violinos mal feitos. E, ao longo do cais, uma multidão colorida acenava, gritava, barafustava, uma multidão amiga que abriu alas à passagem dos brancos e depois os seguiu, em cortejo, até a casa do Administrador.”


Ainda encontrei uma outra obra da responsabilidade do António Estácio mas dedicada à escola de regentes agrícolas que ele frequentou, seguramente outro belo testemunho de saudade.
Porto de Bolama, 1912
Bolama, fachada do Banco Nacional Ultramarino, mais tarde Hotel Turismo
Monumento aos aviadores italianos caídos em desastre aéreo, no início da década de 1930
Lembranças da velha Bolama
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Nota do editor

Último poste da série de 25 DE AGOSTO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23555: In Memoriam (450): Gratas recordações do confrade António Júlio Emerenciano Estácio (1947-2022) (3): Uma viagem a Bissau para saber mais sobre a mítica Nha Bijagó (Mário Beja Santos)

quarta-feira, 13 de janeiro de 2021

Guiné 61/74 - P21765: Historiografia da presença portuguesa em África (247): Guiné, o seu primeiro grande relato no século XIX: O Capitão-de-Fragata da Real Armada, José Joaquim Lopes de Lima (3) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 13 de Fevereiro de 2020:

Queridos amigos,
Despeço-me pesaroso de Lopes de Lima, um alto funcionário de coturno, deram-lhe a estafa de inventariar a existência nas possessões portuguesas, foram seis volumes, o primeiro dedicado a Cabo Verde e Guiné, esta então dependente daquela. É seguramente o melhor documento para esta primeira metade do século XIX, sem desprimor para esse espantoso documento político de Honório Pereira Barreto, a Memória da Senegâmbia.
Está aqui a Guiné das praças e presídios, vale a pena olhar demoradamente a carta que ele gizou sobre a Guiné, nunca aflora o interior, se ele lá não foi, se não nos deixa registo é porque a presença portuguesa, como muito bem sabe, ficava por Geba e arredores. Por ironia do destino ou acaso da História, precisámos da Conferência de Berlim, da Convenção Luso-Francesa e dos apetites das outras potências colonizadoras para nos lançarmos num processo colonizador. Portugal despertou para a Guiné depois do desastre de Bolor, que levou à desafetação da Guiné de Cabo Verde. Na I República, o Governador Carlos Pereira mandou remover as muralhas de Bissau, mas foi preciso esperar-se por Teixeira Pinto para submeter o estado de contenda e a ameaça constante das populações da Ilha de Bissau.

Um abraço do
Mário


Guiné, o seu primeiro grande relato no século XIX:
O capitão-de-fragata da Real Armada José Joaquim Lopes de Lima (3)


Mário Beja Santos

J
osé Joaquim Lopes de Lima, 1797-1852, foi Oficial da Armada e Administrador Colonial com vasto currículo, governou a Índia e Timor e Solor, entre outras responsabilidades. Cavaleiro da Torre e Espada, membro do Conselho de Sua Majestade Fidelíssima, a Rainha D. Maria II, deram-lhe uma incumbência graúda, que ele abraçou, dando à estampa seis volumes que a pretexto da estatística das possessões portuguesas revelou-se um emérito plumitivo, um viajante curioso e documentado. O primeiro volume é dedicado a Cabo Verde e às suas dependências na Guiné Portuguesa. Tanto quanto sabemos, e independentemente de na época ser publicada a memória sobre a Senegâmbia Portuguesa, de Honório Pereira Barreto, outra joia narrativa e peça historiográfica incontornável, o relato de Lopes de Lima é o primeiro grande documento sobre a Guiné do século XIX, recorde-se que a data de publicação é 1844.

Prossegue a narrativa descrevendo o que há em Bissau e restantes Praças e Presídios, é muito sumário:
“Em Guiné, o que é já indispensável é reparar, e pôr em bom estado a Praça de Bissau; - a Casa-forte, baluartes e tabanca de Cacheu; - as Baterias de Bolor; - e as pequenas Fortificações antigas dos outros Presídios: e sobretudo ter toda a artilharia bem montada; - o que aliás não é de grande despesa em terra tão abundante de boas madeiras, se houver o cuidado de se mandarem alguns Carpinteiros para cada uma das Praças; - e para Bissau alguns Pedreiros: em Cacheu, e Bolor, e mesmo nas outras partes aonde se queira levantar algum Baluarte, ou Bateria, é preferível, atenta a falta de pedra, construí-los, bem como as casas, de tijolo, que já se faz em Cacheu muito bem feito, e muito consistente, porque o barro de Guiné é muito próprio para ele, e sendo rebocado com a cal de ostra, que ali se fabrica em grande quantidade, e mui barata, e caiado de novo todos os anos, promete uma grande duração. Se vier a formar-se povoação de gente nossa no Ilhéu do Rei, fronteiro à Praça de Bissau (o que me parece muito conveniente) é mister então fortificá-lo: o mesmo digo, e ainda com mais interesse, da Ilha de Bolama, cuja colonização reputo de muita importância: e o mesmo direi ainda da Ilha das Galinhas.
Em Guiné, mais que em qualquer outra parte da Província, carecemos de estar de contínuo precatados em acção de guerra contra as hostilidades, sempre iminentes, de povos bárbaros, e as tentativas, ilegais e perigosas, de forasteiros insolentes”
.

Pelo adiante da sua narrativa, irá alongar-se em descrever a vivência dos lugares. Alerta com pormenor a situação de Bissau, é despudorada a interferência francesa, imiscui-se por todos os lugares, faz um apelo a que se reforce a posição portuguesa em Bissau, que assim descreve:
“A fortaleza dista uns cem passos da borda da praia, tendo em frente da porta principal dois grandes poilões, servem de marca aos navios. É neste espaço, o qual se estende um pouco para oeste além dos muros, mas ao alcance da artilharia, que umas duzentas choupanas, entre as quais surgem cinco ou seis cobertas de telhas, constituem a chamada povoação portuguesa, aonde residem uns poucos negociantes, comissários das casas inglesas de Gâmbia e francesas de Gorée; e tudo mais são Cristãos Negros Grumetes da Praça: esta povoação nem ao menos é, como as outras em Guiné, cercada de uma estacada: o Gentio de todas as partes entra nela armado a toda a hora do dia, introduz-se sem cerimónia pelas casas dos moradores a pedir aguardente, ou o que lhes dá na vontade.
Defronte do fundeadouro está o Ilhéu do Rei, o qual tem uma milha de comprimento, e meia milha de largura, e é todo coberto de arvoredo parrado: este Ilhéu foi comprado para a Coroa Portuguesa por Honório Pereira Barreto, em 1838, e há muito quem aconselhe o transferir-se para ali a povoação mercantil de Bissau, rodeando o ilhéu de algumas fortificações, que cruzem o seu fogo com a Praça. No ilhéu indicado há umas árvores sagradas junto às quais existe a China maior de toda a região dos Papéis, à qual estes concorrem aos milhares todos os anos no plenilúnio de Março a celebrar cerimónias”
.

As observações seguintes revelam-se do maior interesse, dá nota da superfície da Ilha de Bissau com os seus diferentes regulados, as ilhas próximas, recorda a descrição do Macaréu feita por André Alvares de Almada para sublinhar os perigos existentes na navegação do Geba, e já perto do final do seu trabalho descreve com raro primor o presídio e o comércio em Geba:
“Cem milhas distantes de Bissau, Geba é a aldeia portuguesa de cristãos-pretos, poucos mulatos e cinco ou seis brancos, dos quais já teve muitos, que passaram a povoar o presídio de Farim, como atrás fica explicado: não tem estacada, nem fortificação alguma, e ali vivem os cristãos de lá, e os que vão de Bissau, em tão boa paz com os Mandingas e mesmo com os vizinhos Beafadas, que um pequeno destacamento é tão inútil como inconveniente. Por inútil tenho também o haver ali um comandante militar, que nada comanda: melhor seria a terra governada por um capitão-mor – pessoa influente no país. Geba é um grande mercado, aonde concorre muita courama, muito marfim, bastante cera, algum ouro, e todos os mais géneros deste país em abundância, os quais se resgatam a troco de sal, cola e mercadorias da Europa, levadas de Bissau àquele ponto em grandes canoas, que andam continuamente neste caminho: o grande comércio de Bissau se reduziria a bem pouco, se lhe faltasse Geba, - e bem assim o de Cacheu faltando-lhe Farim e Zinguinchor: é por isso que eu já em outra parte disse, e não me canso de o repetir, ao comércio português, que uma Companhia em Guiné, a quem se concedesse como exclusivo o comércio do interior dos rios, tiraria avultadíssimos lucros; porque não sofreria concorrência, senão na compra do arroz, que bem podia abandonar, por ser o ramo menos lucrativo: bastaria o monopólio do sal e cola de lá, e das armas, e pólvora de cá, para Geba e Farim a enriquecer uma sociedade mercantil; pois quem não levar estes quatro artigos não pode lá fazer resgate. Entre Geba e Farim há comunicação fácil, sendo a distância entre os dois presídios – dezoito léguas – de que as doze se andam em canoas pelo rio de Farim até à aldeia de Tandegú e as seis por terra de Tandegú a Geba.
Fica esta povoação de Geba na margem direita do rio assentada agradavelmente entre arvoredos: tem mais de seiscentos habitantes livres e oitocentos escravos pelo menos, tudo gente cristã; mas infelizmente está aquela Igreja órfã de Pastor há longos anos”
.

Assim se põe termo ao inventário de Lopes de Lima na Senegâmbia Portuguesa. Carreia achegas preciosas, é alto funcionário experimentado, deram-lhe a faculdade de se pronunciar com sugestões, o que ele faz com fluência. Terminará dizendo que é um total desperdício e erro crasso o país não contar com as riquezas da Guiné, não criar uma aliciante companhia e sobretudo trazer gente cristã como forma de colonização. Recorde-se que são apelos constantes dirigidos a Lisboa, basta recordar o que fez André Alvares de Almada, em pleno período filipino. Apelos que não tiveram resposta.

Fortaleza de Cacheu. Imagem retirada da Revista África e Africanidades, em http://www.africaeafricanidades.com.br/documentos/0020250122017.pdf, com a devida vénia

Fortaleza São José, Amura. Imagem retirada da Revista África e Africanidades, em http://www.africaeafricanidades.com.br/documentos/0020250122017.pdf, com a devida vénia
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Nota do editor

Último poste da série de 6 de janeiro de 2021 > Guiné 61/74 - P21739: Historiografia da presença portuguesa em África (246): Guiné, o seu primeiro grande relato no século XIX: O Capitão-de-Fragata da Real Armada, José Joaquim Lopes de Lima (2) (Mário Beja Santos)

quarta-feira, 21 de outubro de 2020

Guiné 61/74 - P21471: Historiografia da presença portuguesa em África (236): “África Ocidental, notícias e considerações”, por Francisco Travassos Valdez; impressas por ordem do Ministério da Marinha e Ultramar, 1864 (3) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 20 de Julho de 2017:

Queridos amigos,
Faço apelo a que leiam atentamente estas três recensões à volta da memória descritiva de Travassos Valdez da Senegâmbia ou Guiné Portuguesa. É alguém que vem bem habilitado, tem importante currículo colonial, é culto e bom observador. E escreve com facilidade, cede aos sentimentos mas não transige na importância do relato: a importância do Ilhéu do Rei, a situação na Fortaleza de S. José de Bissau e o estado deplorável em que se vive dentro da cidade, deplorável e de incompleta instabilidade, a quase total ausência de missionários, a natureza dos negócios, como se processa o comércio, quem são e como atuam os negociantes de Bissau e Cacheu, quais os pontos significativos da presença portuguesa que segundo o seu relato não passa de Geba na região Leste, fala dos Felupes, do Cacheu, dos Bijagós e do rio Grande.
É pois um relato deliberadamente preparado para se saber o que existe naquela parte do mundo, lembre-se que o autor dedica a edição portuguesa ao rei D. Luís I.
Era esta a Guiné em 1861, para que conste.

Um abraço do
Mário


Francisco Travassos Valdez e a Senegâmbia (3)

Beja Santos

O livro intitula-se “África Ocidental, notícias e considerações”, por Francisco Travassos Valdez, impressas por ordem do Ministério da Marinha e Ultramar, 1864. Primeiramente, a publicação surgiu em Londres com o título Six years of a traveller’s in western Africa, 1861. Francisco Travassos Valdez tem um curioso currículo: ex-árbitro das Comissões Mistas Luso-Britânicas e do Cabo da Boa Esperança; ex-Secretário da Comissão Especial de Colonização e Trabalho Indígena das Províncias Ultramarinas; Secretário do Governo da Província de Timor.

O volume é apresentado como 1.º, abarca as seguintes descrições: Porto Santo e Madeira; Canárias; Cabo Verde (ilhas de Barlavento), Cabo Verde (ilhas de Sotavento); Senegal e Senegâmbia (Guiné Portuguesa). Nesta recensão trata-se exclusivamente o que o viajante viu e sentiu na Senegâmbia, mais tarde reportaremos o que do Senegal tem interesse relevante para a Guiné do século XIX. Sente-se que está bem informado e viaja cheio de curiosidade pelas porções de território onde há presença portuguesa. Não abordará o vasto território do Gabu nem a península de Cacine, é tudo ainda região ignota, só ficará legalmente confirmado como território português depois da Convenção Luso-Francesa, que ainda vem longe.

Está a subir o rio Geba, dá-nos um quadro pitoresco de Fá, no Geba estreito, o presídio de Fá defronte do Porto das Almadias: “O território onde está situado este pequeno estabelecimento pertencia a uma preta denominada a Fidalga de Fá, Beafada, que patrocinava muito os brancos desde que tomara amores com um morgado do engenho de S. Tiago de Cabo Verde, que passara a Bissau e dali a Geba, chamado José Valério de Santa Maria, e que deu causa a que se estabelecesse ali povoação portuguesa de Europa e de Cabo Verde, pelo ano de 1820, chamando a dita fidalga cristãos de Bissau, para sossegar o seu amante que se queria retirar com o receio de que pela sua morte não houvesse quem lhe rezasse por alma. Por morte dele, a fidalga querendo que não se realizasse o que o seu amante tanto receara, e vendo que os cristãos se queriam retirar, cedeu o território então a Portugal, tendo nós hoje ali um sargento com meia dúzia de soldados e sem haver forte algum!”. Nesta linha de pensamento o autor tira uma ilação da falta de ocupação do território: “E há quem se admire de que os estrangeiros nos vão usurpando os nossos territórios na Senegâmbia ou Guiné Portuguesa, como a ilha de Bissau, Sello ou Casamansa e no rio Grande, etc, quando não temos ou não tínhamos na maior parte nem ao menos quem içasse a bandeira de Portugal”. Fá maravilha-o e não o esconde: “Chega até ao estabelecimento de Fá a maré com água salgada, continuando ainda muito acima, mas já com água doce. O solo é fértil, tendo o sítio muitas laranjeiras, limoeiros, coqueiros, cana-de-açúcar, mandioca, bananas, palmares, muitos ananases e até cerejeiras e macieiras importadas de Portugal”.

Depois de lamentar a decadência de Geba, tece considerações sobre a falta de missionários: “Por mais de uma vez nesta obra temos chamado à atenção sobre a extraordinária e lamentável falta de sacerdotes instruídos e morigerados nas possessões africanas. Mas ainda mais sensível, por assim dizer, se torna esta falta em Geba, até sob o ponto de vista político; porque atenta a influência que naqueles povos exercem as pompas do culto católico, e a inclinação decidida que têm para assistir às festividades nos tempos, se se tivesse cuidado seriamente em ter ali a igreja por vida de sacerdote, e se este fosse de um procedimento regular, cresceria muito o nosso poderio na mesma proporção que se aumentasse ou estendesse o número de convertidos”.

Antes de se voltar para o Sul da colónia ainda deixa uma descrição de Geba: “Geba não tem fortificação alguma ou paliçada nem maior guarnição de que um dez soldados com um comandante militar; mas é um mercado sofrível onde se vende algum ouro, marfim, couros e outros produtos do país, que todos são permutados por sal, cola e mercadorias europeias”.

Agora o Sul, aquele em que os portugueses tinham tido ou mantinham presença: “Passando agora a falar das dependências de Bissau no rio Grande, sentimos dever ter de dizer que o grande comércio que tinham no meado do século XVI os habitantes de S. Tiago de Cabo Verde com o Porto da Cruz na foz do rio, na ponta do Norte, em Biguba, 18 milhas mais acima, na margem direita, e em Guinala, quase que chegou a paralisar-se de todo, indo lá nos modernos tempos raras vezes os nossos navios comerciar com os Beafadas e Mandingas ao Norte, com os Nalus ao Sul, e com os Bijagós nas suas ilhas, à entrada do rio”.
Procede a descrições primorosas das diferentes etnias, começando pelos Beafadas, Nalus e Bijagós, aborda a questão de Bolama (não esquecer que ainda não tinha sido proferida a sentença do presidente Ulysses Grant). A incursão muda de rumo, vai-se para Cacheu, sua praça e dependências. Eis o que ele viu ou sentiu: “Gozemos a pitoresca vista de arvoredos frondosos que cobrem as margens, onde, como alinhamentos de marcas de pedras, se descobrem de espaço a espaço, enfileiradas com a maior singularidade, cardumes de pelicanos brancos, bem como grandes graças. Fundeemos finalmente em frente da praça, cuja perspectiva é realmente pitoresca e agradável, vendo-se bons edifícios, entre os quais sobressai o magnífico palacete que o falecido Comendador Honório Pereira Barreto fazia para a sua residência”. E viaja-se até Casamansa, o rumo é Ziguinchor: “Este presídio de Ziguinchor é importante porque comunica pelo interior com o rio da Gâmbia, e porque nas terras sitas no Norte de Casamansa abundam as gomas e uma espécie de cocos muito oleaginosos, mas de que nunca tirámos partido por desleixo, e de que já não podemos tirá-lo desde que os franceses se instalaram no Sello (bem como os ingleses). A defesa deste presídio consta de uma estacada ou tabanca e três fortins de pedra e barro, com oito más peças de artilharia e de apenas oito soldados de guarnição; mas apesar disso, Ziguinchor é talvez a única excepção honrosa da maneira por que geralmente se portam os seus moradores em relação ao gentio. Com efeito, os gentios respeitam muito o presídio, porque os notáveis e o povo se armam, e vão denodadamente bater, mesmo sem socorro algum do governo, o gentio que se atreva a fazer-lhes o mais pequeno insulto”. Prossegue as suas descrições étnicas, é muito minucioso com as cerimónias religiosas dos Felupes.

E muito curioso é o termo da sua viagem à Senegâmbia, como se pode ler: “Terminaremos a descrição da Guiné Portuguesa dizendo que uma das insígnias do Mordomo-Mor em Portugal (o bastão, a que chamamos negrinha) teve origem em comemoração da descoberta e conquista daquela região.
Com efeito, no reinado de El Rei D. Afonso V, O Africano, pelos anos de 1442, vindos os primeiros negros trazidos da Guiné a Portugal, por António Gonçalves, criado do Senhor Infante D. Henrique, e pelos anos de 1448 os primeiros dentes de elefante da costa do sul de Cabo Verde, ordenou aquele monarca a Álvaro de Souza, Senhor de Miranda, seu Mordomo-Mor, que a todos os actos públicos da corte assistisse à direita do soberano com um bastão ou bengala de marfim, tendo por castão uma cabeça de negro como para indicar o novo domínio da Coroa Portuguesa naquela parte do mundo”
.

Aqui finda a narrativa, mas voltaremos a Travasses Valdez para escutar o que ele diz da presença portuguesa no Senegal.

(Continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 14 de outubro de 2020 > Guiné 61/74 - P21449: Historiografia da presença portuguesa em África (235): “África Ocidental, notícias e considerações”, por Francisco Travassos Valdez; impressas por ordem do Ministério da Marinha e Ultramar, 1864 (2) (Mário Beja Santos)

quarta-feira, 14 de outubro de 2020

Guiné 61/74 - P21449: Historiografia da presença portuguesa em África (235): “África Ocidental, notícias e considerações”, por Francisco Travassos Valdez; impressas por ordem do Ministério da Marinha e Ultramar, 1864 (2) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 18 de Julho de 2017:

Queridos amigos,
Francisco Travassos Valdez é um viajante bem equipado, tem estrutura cultural, sabe observar, seguramente que procurou os dados mais fiáveis e usa-os de forma comedida, ajustando-os aos seus comentário. É viajante cedendo ao deslumbramento, parece ter a técnica de um repórter, disseca o comércio, a composição social da entidade colonizadora, manda recados sobre o grande abandono a que a colónia tem sido devotada, e quanto à ação missionária é minucioso na descrição do seu desastre, mostra as igrejas arruinadas e as comunidades de fiéis entregues a si próprias. É um documento imprescindível para conhecer a Senegâmbia Portuguesa em 1860, é uma narrativa lúcida com variados alertas para a classe política em Lisboa.

Um abraço do
Mário


Francisco Travassos Valdez e a Senegâmbia (2)

Beja Santos

O livro intitula-se “África Ocidental, notícias e considerações”, por Francisco Travassos Valdez, impressas por ordem do Ministério da Marinha e Ultramar, 1864. Primeiramente, a publicação surgiu em Londres com o título "Six years of a traveller’s in western Africa, 1861". Francisco Travassos Valdez tem um curioso currículo: ex-Árbitro das Comissões Mistas Luso-Britânicas e do Cabo da Boa Esperança; ex-Secretário da Comissão Especial de Colonização e Trabalho Indígena das Províncias Ultramarinas; Secretário do Governo da Província de Timor.

O volume é apresentado como 1º, abarca as seguintes descrições: Porto Santo e Madeira; Canárias; Cabo Verde (ilhas de Barlavento), Cabo Verde (ilhas de Sotavento); Senegal e Senegâmbia (Guiné Portuguesa). Nesta recensão trata-se exclusivamente o que o viajante viu e sentiu na Senegâmbia, mais tarde reportaremos o que do Senegal tem interesse relevante para a Guiné do século XIX. A importância que confiro a este relato pessoalíssimo, passa pela capacidade de observar: a aproximação do território e o desfrute que lhe dá; os contactos no Ilhéu do Rei e a chegada a Bissau; o quadro socioeconómico da colónia e as suas potencialidades; e fica-se com uma estampa do que era o conhecimento da Senegâmbia, aproximadamente 20 anos antes da criação da Guiné Portuguesa. É severo com o estado da Fortaleza de S. José, as deploráveis condições higio-sanitárias do hospital; adianta alguns elementos sobre o estado da Igreja em Bissau, não se repete aqui o que ele aduz na medida em que já se fez uma extensa recensão da obra mais importante sobre a história das Missões Católicas na Guiné, de um competentíssimo autor, Padre Henrique Pinto Rema.

Travassos Valdez enuncia as freguesias existentes na colónia: Nossa Senhora da Candelária (Bissau), Nossa Senhora da Natividade (Cacheu), Nossa Senhora da Luz (Ziguinchor), Nossa Senhora da Graça (Farim) e Nossa Senhora da Garça (Geba). Fala a seguir dos aspetos judiciais, dá-nos informações curiosas: “No estabelecimento de Bissau, ainda que importantíssimo ao comércio, são raros os pleitos comerciais, pois que poucos são os moradores portugueses e com os gentios tornam-se quase impossíveis as demandas”. Faz um resumo da organização administrativa, militar e da Fazenda da Guiné. Espraia-se sobre importações e exportações e receitas fiscais, nas vantagens em alterar as pautas, que são muito elevadas e que levam a que os habitantes da colónia procurem abastecer-se fora do país.
E aduz um comentário muito curioso:
“Na Praça de Bissau não há comércio propriamente português. Os negociantes portugueses que existem nas Praças de Bissau e Cacheu não são mais do que comissários dos estrangeiros. São quase todos indivíduos naturais do arquipélago de Cabo Verde que se estabelecem na Guiné, e a quem os negociantes da Gâmbia fiam fazendas por um ano, para serem pagas por géneros de produção em África. Os negociantes estrangeiros na Gâmbia e Gorée também não são outra coisa mais do que as gentes das poucas e grandes casas comerciais francesas, inglesas, americanas e algumas belgas, que monopolizam todo o comércio da costa, desde o Senegal até à Serra Leoa. A importância de produtos de Portugal, quer seja da nossa indústria, ou de reexportação das nossas alfândegas, é coisa que ali não há, e mesmo a única casa comercial estabelecida em Portugal que algumas especulações tem começado a fazer em Bissau (a casa Burnay) é belga, e posto que importa os objectos em navios portugueses falo directamente da América, motivo porque dizemos que o comércio português é coisa que lá não há”.

E não é menos importante o que vai comentar a propósito dos negociantes de Bissau e Cacheu:
“Qualquer daqueles negociantes, saindo do arquipélago de Cabo Verde, sem possuir nem um real seu, dirigindo-se para a Guiné, começa por se hospedar em casa dos seus parentes já estabelecidos; depois, se quer tornar-se negociante recebe dos estrangeiros que comerceiam com os seus parentes os géneros que pretende para no ano seguinte pagar em produções do país. Embarca depois para o rio Geba ou para o rio Grande, onde em uma feitoria que estabelece trata de permutar o que pode e fia o resto ao gentio, para no ano seguinte lhe pagarem em produções.
No ano seguinte, não tendo recebido tudo o que lhe devem os gentios, havendo despendido consigo alguns valores, tendo-se-lhe avariado alguns géneros, ou havendo deixado de os vender, e portanto não tendo com que pagar os seus débitos, fica alcançado o chamado negociante.
Nestes termos, para cobrar suas dívidas vê-se obrigado a continuar as suas transacções, mas para se poderem fazer é necessário um sortimento mais amplo e variado de modo que o agente de Gorée ou Gâmbia, que todos os anos vai a Bissau, no tempo próprio, lhe fia maior porção de fazenda, com obrigação de ser embolsado nos seguintes anos. Tem então aquele novo e pretendido negociante português de comprar escravos, fazer uma casa em Bissau ou Cacheu, estabelecer uma ou mais feitorias com as competentes moradas, fazer presentes aos régulos do chão em que negoceia, mandar construir ou comprar lanchões para transporte de géneros pelos rios, sustentar o luxo de mesa dos negociantes de África, pagar pesados direitos e finalmente ter de confiar as fazendas a caixeiros de má nota. Todas estas abundantes considerações vão culminar numa espiral infernal de endividamentos”
.

Travassos Valdez descreve com clareza o conjunto de circunstâncias que concorrem para que os compradores prefiram as feitorias estrangeiras às nossas, e tece considerações detalhadas do que deveriam ser as pautas comerciais, vê-se que está bem informado e tem ideias próprias.

Importante é também o que nos diz sobre a composição social, antes de passar para as descrições de usos e costumes e das povoações do território. Diz ele: “Os habitantes da Guiné Portuguesa, sujeitos ao nosso domínio, andarão por 4 mil almas (sem falar nos Grumetes de Bissau estabelecidos no chão de Bandim), divididos em três classes distintas: a comercial, composta de brancos, mulatos e pretos, que trajam à europeia, muitos dos seus negócios são dirigidos por intervenção de agentes do sexo feminino; soldados e degradados, mandados de ordinário estes de Portugal e aqueles de Cabo Verde; Grumetes ou cristãos do país”.

E lança seguidamente numa ampla descrição sobre o que se sabe do território e da presença portuguesa, começa por descrever as povoações à volta de Bissau e a sua organização socioeconómica e depois os locais de Geba preponderantes: logo S. Belchior (perto de Enxalé, continuando hoje a existir), Xime e margens do Corubal (espraia-se sobre o fenómeno do macaréu, e a seguir entramos no Geba estreito).

(Continua)

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Nota do editor

Último poste da série de 7 de outubro de 2020 > Guiné 61/74 - P21427: Historiografia da presença portuguesa em África (234): “África Ocidental, notícias e considerações”, por Francisco Travassos Valdez; impressas por ordem do Ministério da Marinha e Ultramar, 1864 (1) (Mário Beja Santos)

quarta-feira, 7 de outubro de 2020

Guiné 61/74 - P21427: Historiografia da presença portuguesa em África (234): “África Ocidental, notícias e considerações”, por Francisco Travassos Valdez; impressas por ordem do Ministério da Marinha e Ultramar, 1864 (1) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 17 de Julho de 2017:

Queridos amigos,
Dentre os relatos de viagem mais impressivos, ao longo do século XIX, avulta, pela qualidade de observação e o rigor de análise a narrativa deste viajante qualificado que conhecia algumas parcelas o império. Vem confirmar os preciosos documentos de Honório Pereira Barreto e o abandono a que tínhamos votado a Senegâmbia; fica um claro registo do pouco espaço ocupado, dos negócios efetuados e até das dificuldades previsíveis. Não se esqueça que o livro é dedicado ao rei D. Luís I, o funcionário pretende ir mais além e sensibilizar a Coroa para a triste situação da Senegâmbia, que só em 1879 será desafetada de Cabo Verde, e terá então governador e capital em Bolama.

Um abraço do
Mário


Francisco Travassos Valdez e a Senegâmbia (1)

Beja Santos

O
livro intitula-se “África Ocidental, notícias e considerações”, por Francisco Travassos Valdez, impressas por ordem do ministério da Marinha e Ultramar, 1864. Primeiramente, a publicação surgiu em Londres com o título "Six years of a traveller’s in western Africa, 1861". Francisco Travassos Valdez tem um curioso currículo: ex-árbitro das comissões mistas luso-britânicas e do Cabo da Boa Esperança; ex-Secretário da Comissão Especial de Colonização e Trabalho Indígena das Províncias Ultramarinas; Secretário do Governo da Província de Timor.

O volume é apresentado como 1.º, abarca as seguintes descrições: Porto Santo e Madeira; Canárias; Cabo Verde (ilhas de Barlavento), Cabo Verde (ilhas de Sotavento); Senegal e Senegâmbia (Guiné Portuguesa). Nesta recensão trata-se exclusivamente do que o viajante viu e sentiu na Senegâmbia, mais tarde reportaremos o que do Senegal tem interesse relevante para a Guiné do século XIX. Falando da extensão do território, faz um registo singular: “Desde o Cabo Roxo começa a notar-se diferença na cor das águas, passando de um azul carregado a um verde-claro ou amarelo turvo, que se conserva em todo o litoral. São estes mares junto à costa de difícil navegação pelos numerosos parcéis (escolhos recifes), por diversas correntes de sensível velocidade, pela sujeição das marés nas entradas dos canais e pela irregularidade dos ventos; apesar destas circunstâncias, há alguns práticos tão experimentados, que tendo vento ou maré, navegam a qualquer hora da noite, e por escuro que seja, e com o poderoso auxílio da sonda marcam precisamente a posição relativa do navio em um dado momento”.

É um viajante que não escamoteia o que lhe vai mexendo nos sentidos, o barco aproxima-se e nesta aproximação dá-se um maravilhamento que ele passa a escrito: “Quando principiamos a avistar as viçosas ilhas do arquipélago e a costa da Guiné, notamos quanto contraste há com as ilhas de Cabo Verde! Nestas, as massas basálticas, as montanhas enegrecidas pelas terras vulcânicas, quase todo o ano privado de vegetação, mostrando uma aridez e uma esterilidade que por fortuna não se dá nas aprazíveis e viçosas ribeiras do interior; na Guiné, pelo contrário, tudo denota ao viajante um país muito rico de produtos da natureza, terras baixas e extensas, literalmente cobertas de uma vegetação pomposa”. Feita a aproximação, entra-se no Ilhéu do Rei, e logo o autor observa que é opinião de muita gente que se deveria ter colocado o estabelecimento comercial que existe em Bissau aqui, em consequência do ilhéu ser mais saudável, ser arborizado e de bonita aparência. Mas informaram-no de uma dificuldade insuperável: “O busílis era haver ali uma proliferação de árvores sagradas, inclusivamente a china, que é a maior de quantas existem no território dos Papéis, aqui se dirigem anualmente milhares de negros na mais devota romaria, durante a lua cheia do mês de Março”. Fica impressionado com o que vê no ilhéu, a sua importância: “A feitoria do senhor Nazolini está no referido Ilhéu do Rei desde 1847, é o mais importante de todos os estabelecimentos portugueses na Senegâmbia: 300 escravos empregados em cultivar quase todo o ilhéu, nas oficinas e no carregamento da mancarra (…) A casa de habitação e da mais pitoresca aparência, bem edificada e muito cómoda, dando-lhe os alpendres de que se acha cercada um tipo próprio daquelas regiões, e proporcionando-lhe igualmente agradável frescura”.

Regista igualmente certas singularidades do clima: “As trovoadas começam em meados de Maio e duram até ao fim de Outubro; são imponentes e majestosas, principalmente para quem não está acostumado a presenciá-las. Primeiramente forma-se uma forte aglomeração de nuvens no horizonte, e segue-se logo o fuzilar ao longe com uma constância e frequência incríveis; em seguida, vem o tufão com tal violência que arranca árvores frondosas, desloca as telhas e faz tal barulho com o bater de todas as portas e janelas que levanta, que parece realmente a quem pela primeira vez presenceia este fenómeno que as casas vão ser destruídas. Muitos navios estando bem fundeados no porto têm feito da quilha portaló. A este tufão segue-se a trovoada que parece estalar sobre a cabeça, e depois a chuva, caindo os raios com frequência”.

Do Ilhéu do Rei passamos para Bissau, vejamos a opinião do viajante: “A sua perspectiva é agradável pelo arvoredo que a adorna e pelos seus arrabaldes atapetados de verdura, de modo que o viajante, para não perder a ilusão e a saúde, fica talvez melhor em limitar-se a ver a terra de bordo. Aceitou-se o obsequioso convite que nos fez o opulento Comendador Honório Pereira Barreto”. No ato do desembarque, fica muito mal impressionado com o grande número de tubarões que ali nadam à superfície das águas. Contrafeito e um tanto timorato atravessa uma ponte com sinais de pouca segurança até chegar a terra firme, informa-nos que o edifício da Alfândega fica no largo da Mãe Júlia, fronteiro à porta da Praça de Bissau. Registou o exótico da sua chegada: “O que mais atrai as vistas são as bajudas ou donzelas, que pelo seu estado são excessivamente modestas no vestuário, que se compõe unicamente de avental de dimensões microscópicas, avental que, como o pedacito de coiro ou o búzio que os mancebos usam adiante suspenso por um barbante nem sempre lhes oculta de todo o que a decência manda recatar!”. Faz depois a descrição do comércio na rua principal onde os vendedores estão enfileirados e acocorados ao longo da rua, ali se trocam objetos, fundamentalmente exerce-se ali uma economia de troca, mas há exceções: “Às vezes admitem também algum patacão, como chamam à nossa antiga e incómoda moeda de 40 reis, que aqueles negros reservam unicamente para a manufactura dos seus grosseiros artefactos”.

Desembarcou, percorreu interessado o comércio na rua principal, vai agora falar-nos de Bissau: “A Praça de S. José, com os seus poilões, árvores gigantescas que se erguem com majestade nos quatro baluartes, e que os abrigam com a sombra, está situada na foz do rio Geba, e foi construída no ano de 1756, no reinado de D. José I”. Tece comentários à sua construção, que terá custado a vida a mais de 2 mil portugueses e que ficou num estado miserável, dá-nos também a notícia de que ultimamente têm tido o incremento algumas obras militares. Diz igualmente que aquela Praça não passa de uma povoação mal alinhada, com algumas casas palhoças, outras de barro e bem poucas de sólida construção. Há por ali um problema elementar, a fonte que fornece a água de consumo à Praça fica no Pidjiquiti, a cerca de uma milha, quando há desacatos e cercam a Praça levanta-se um problema sério de abastecimento de água. É franco na descrição das condições hígio-sanitárias, são deploráveis. E daí entender-se a descrição que faz do hospital: “Para se fazer ideia da desgraça a que chegaram os enfermos na Guiné basta dizer que só há bem pouco, com melhoramento muito importante, se compraram 12 camas de ferro para o hospital, a fim de se armarem com cortinas para evitar o flagelo dos mosquitos!”.

(Continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 30 de setembro de 2020 > Guiné 61/74 - P21405: Historiografia da presença portuguesa em África (233): “Guiné, Alguns aspetos inéditos da atual situação da colónia”, por A. Loureiro da Fonseca; Sociedade de Geografia de Lisboa, 1915 (Mário Beja Santos)

sexta-feira, 8 de outubro de 2010

Guiné 63/74 - P7101: (Ex)citações (99): A FAP, o Strela e o Ilhéu de Rei ou... São mais as vozes duvidosas do que a certeza das boas nozes (Carlos Silva)



Guiné > Bissau > s/d > Vista aérea parcial de Bissau e o Ilhéu de Rei, ao fundo. Bilhete Postal, Colecção "Guiné Portuguesa, 142". (Edição Foto Serra, C.P. 239 Bissau. Impresso em Portugal,  Imprimarte -  Publicações e Artes Gráficas, SARL). 


Colecção: Agostinho Gaspar / Digitalização / edição: Luís Graça & Camaradas da Guiné (2010).

1. Comentário de Carlos Silva [, foto à direita], ao poste P7088 (*): 



Data: 7 de Outubro de 2010


Meu Caro Amigo Gil e Grande Piloto:


Gostei de ler o teu testemunho que corresponde ao que tenho ouvido de outros camaradas, incluindo o nosso camarada Cor Miguel Pessoa, então Ten Pilav quando foi abatido para os lados do Sul da Guiné,  e outros camaradas da Aviação.


Ainda no passado dia 2 na Tabanca da Linha ouvi pessoalmente,  da boca do nosso camarada Miguel Pessoa,  em resposta a outro nosso camarada do Exército, e outros arautos da verdade que botam faladura na Tabanca Grande,  [a contestação da tese da]  inoperância da FAP. 


Esses camaradas estavam em todo o território da Guiné como controladores aéreos e,  como tal,  são os senhores da verdade absoluta, até porque,  além de controlarem todo o território, também são especialistas da força aérea...


A rapaziada do PAIGC é que eram os valentes e,  enquanto possuidores de pouco mais de meia dúzia de mísseis, já controlavam a FAP, o território, enfim, ocupavam efectivamente toda a Guiné e nós, tropa-macaca,  estávamos encurralados no Ilhéu do Rei.


Não quero com isto dizer que a tal arma [, o Strela,] não teve influência no comportamento da FAP, mas daí até ficarmos encurralados no Ilhéu do Rei para a partir daí sermos evacuados para navios fundeados no alto mar,  vai muito longe.


Apesar de ter lido alguns testemunhos de camaradas da FAP no Blogue da Tabanca Grande, deveria haver mais, para ver se esses arautos da verdade e controladores de todo o território, de uma vez por todas,  se convencem do contrário. São dos tais que actualmente reivindicam uma enfermeira, um médico, um polícia e outros mais técnicos à sua porta de casa.


Só quem não quer ver a realidade, é que não quer compreender o que efectivamente estava em causa. Haveria mais para desenvolver, pois o tema ainda não está dissecado,  como tu dizes, porque são mais as vozes duvidosas do que a certeza das boas nozes.(**)


Gostei do teu Testemunho
Um abraço amigo


Carlos Silva 


2. Comentário de L.G.:


Obrigado, Carlos, vou pôr este provérbio na minha colecção... com direitos de autor, claro, atribuídos à tua pessoa. Conhecia aquele outro, menos filosófico, mais sociológico: "Na boda dos pobres, são mais as vozes do que as nozes"... Pudera, que as nozes estão caras e, além disso, diz o povo,  Deus dá nozes a quem não tem dentes... Com ou sem dentes, todos os tabanqueiros têm direito a botar faladura na Tabanca Grande, sem o receio de caírem... da nogueira abaixo. Ou melhor: do poilão... Gostei da metáfora do Ilhéu de Rei. Nunca lá fui. Nem tive curiosidade em lá ir. No meu (que foi também o teu) tempo (1969/71), ainda não havia o Strela, é verdade, mas nem por isso deixámos de contar, sempre, com a asa protectora dos nossos dos nossos aviões e dos nossos pilotos...


Ironia tua, à parte, viva o bom humor entre os tabanqueiros e viva sobretudo o bom senso e o bom gosto que fazem  parte da sua/nossa cultura de tolerância. Se há provérbio que aqui não tem direito de cidadania, é aquele outro, que também poderias ter citado: "Com papas e bolos se enganam os tolos" ou "Quem não tem cão, caça com gato ou... com strela".


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Notas de L.G.:

(*) Vd. poste de de Outubro de 2010 > Guiné 63/74 – P7088: FAP (54): O papel da Força Aérea na Guiné nos anos de 1972 e 1973 (Gil Moutinho)



 (**) Último poste desta série > 
30 de Setembro de 2010 > Guiné 63/74 - P7057: (Ex)citações (98): Ninguém ama a sua Pátria por ser grande / Mas sim por ser sua! (António Botto / José Martins)