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sexta-feira, 9 de junho de 2023

Guiné 61/74 - P24381: Notas de leitura (1589): N’Krumah, o líder da unidade africana, o denunciante das tramas do neocolonialismo (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 16 de Novembro de 2020:

Queridos amigos,
O líder ganês foi uma figura altamente influente junto dos movimentos de libertação. Não escondia a sua propensão para a ideologia, teve mesmo ambições filosóficas, os seus apelos à unidade africana foram escutados por muitos políticos, Amílcar Cabral não foi insensível ao princípio do continente unido e aos perigos do neocolonialismo, deixou escrito que poderia ser uma ameaça à Guiné independente. Nkrumah escreve este seu último livro antes de ser deposto dando informação detalhadissima sobre os recursos africanos e como as antigas potências coloniais continuaram a influenciar o sistema económico-financeiro das nações formalmente independentes, privilegia a posse que tais monopólios tiveram das riquezas extraídas, desde estanho, alumínio e níquel, ao ouro e diamantes. O mundo da cobiça alterou-se profundamente, a China está por toda a parte, a Índia está a chegar em força e os grandes negócios ocidentais também precisam das matérias-primas fundamentais para dominarem o paradigma digital. Na posse desta informação, não deixa de ser curioso reler N'Krumah e perceber que a África tem sempre tutores que esvoaçam à volta para comprar barato a matéria-prima e vender caro o produto transformado.

Um abraço do
Mário



N’Krumah, o líder da unidade africana, o denunciante das tramas do neocolonialismo

Mário Beja Santos

Não se pode estudar o pan-africanismo, o movimento independentista africano e a ascensão do Movimento dos Não Alinhados sem trazer à colação o pensamento e a obra de N’Krumah [foto à direita], o presidente do Gana que foi deposto por um golpe de Estado em fevereiro de 1966, e posteriormente obrigado a viver no exílio. Os ditadores ganeses subsequentes deram diferentes razões para o golpe de Estado e uma delas era que N’Krumah fomentava a subversão na África. Este livro sobre o neocolonialismo foi editado em inglês em 1965 e editado em 1967 pela editora Civilização Brasileira. É um estudo impressionante pela documentação carreada sobre a presença inequívoca das antigas potências coloniais apoiadas por poderosíssimas multinacionais que cobiçavam matérias-primas, desde o cobre ao ouro e os diamantes.

É uma escrita de denúncia, como ele esclarece:
“Descolonização é uma palavra insincera e frequentemente usada com os porta-vozes imperialistas para descrever a transferência de controlo político, da soberania colonialista pan-africana. A pedra-mestre do colonialismo continua a controlar a soberania. As nações novas são ainda as fornecedoras de matérias-primas, as velhas de produtos manufaturados. A alteração das relações económicas entre as novas nações soberanas e os seus antigos senhores é apenas de forma. O colonialismo encontrou novo disfarce. E o neocolonialismo está-se entrincheirando rapidamente dentro do corpo de África, através de combinações de consórcios e monopólios. Esses interesses estão centralizados nas companhias mineradoras da África Central e do Sul. Da mineração, ramificam-se em uma trama complexa de companhias de investimento, interesses manufatureiros, organizações de transporte e utilidade pública, indústrias de petróleo e químicas, instalações nucleares e muitas empresas demasiado numerosas para se enunciar”.


Metodicamente, N’Krumah discorre sobre os recursos de África, a natureza dos obstáculos postos ao progresso económico africano, como atua a finança dos poderosos, como funciona a equação entre os recursos primários e os interesses estrangeiros, passa em revista os grandes grupos envolvidos, esclarece o mecanismo do neocolonialismo. Ao pôr o título Neocolonialismo – Último estágio do imperialismo, certamente convicto que era título impactante, a História encarregou-se de pôr em causa a asserção, na atualidade o imperialismo mudou de look e natureza, a China é uma presença poderosíssima e as multinacionais ocidentais disputam as matérias-primas que têm a ver com as tecnologias do futuro, sem prejuízo dos recursos profissionais. O líder carismático do pan-africanismo acreditava que as antigas potências coloniais olhavam para os seus antigos territórios como incapazes de desenvolvimento independente, procuraram desde a primeira hora da independência formal em manter vínculos, desde a preparação dos novos quadros dentro de uma lógica mental ocidental até à oferta da segurança militar. Manteve-se a lógica económica do passado, o que interessava eram as matérias-primas que continuavam a ser processadas no mundo ocidental, e os produtos acabados regressavam, acarretando grandes lucros às empresas fabricantes. Ele igualmente anota a disparidade dos preços atribuídos à matéria-prima comparado com o bem de consumo.

Não há riqueza que ele não estude, veja-se a título exemplificativo a exploração do diamante, neste tempo centralizada na Diamond Corporation, organização com papel aquisitivo central para os compradores internacionais de diamantes, tendo depois assento na Companhia de Diamantes de Angola, e com conexões com poderosos grupos, caso do Morgan Guaranty Trust. Morgan estava também associado ao Banque Belge que representava na direção da Companhia dos Diamantes de Angola outra empresa angolana, a Companhia de Pesquisas Mineiras de Angola. “A Angola Diamonds tem direitos monopolistas que lhe permitem extrair diamantes em quase um milhão de quilómetros quadrados de Angola. Estão em operação 43 minas, abertas para substituir outras tantas cujas reservas se extinguiam. A Companhia está registada em Portugal e o Governo de Angola tem nela interesse direto, como agente administrativo local do Governo Português. O Governo de Angola possui 200 mil ações, ligeiramente acima das 198.800 pertencentes à Société Générale. Cerca de metade dos trabalhadores africanos da Companhia são forçados, reunidos compulsivamente pelas autoridades. Os excelentes lucros da Companhia são divididos igualmente entre a província de Angola e os acionistas, depois de 6% terem sido reservados à administração (…) Diamond Corporation tem acordos contratuais para a compra da produção da Angola Diamond, que vinha sendo recentemente de mais de um milhão de quilates e poderá ser ainda maior, segundo as estimativas. Os diamantes preciosos representam 65% da produção”.

É impressionante o império que estava na mão da De Beers. E referindo-se aos interesses em minérios na África Central, N’Krumah lembra-nos a criação da British South Africa Company, obra de Cecil Rohdes para a construção de impérios. No início da década de 1890, impulsionou a compra de grandes extensões de terra governadas por chefes nativos, contribuiu para guerras entre etnias, com a colaboração de soldados da South African Company, os chefes enganados bem procuraram justiça, estava em marcha a criação de uma via entre Cape Town até ao Cairo, o governo de Londres limitou-se a intimidar as autoridades portuguesas, constituiu-se uma espinha dorsal de negócios que se estendeu pela Zâmbia, Rodésia e a antiga Bechuanalândia, entrando no Malawi, e com associações como a que estabelece com Harry Oppenheimer e a Angloamerican Corporation, o autor desenvolve a teia de mil fios entre a Rodésia e a Zâmbia, é um extenso trabalho em que põe a nu os interesses neocoloniais, que mistura com zonas monetárias e a presença da banca estrangeira. Não menos impressionante é o que ele revela sobre a importância estratégica dos negócios do Congo e a maquinação perpetrada pelos belgas para continuar à frente dos negócios congoleses.


Reclamando sempre a unidade africana, adverte que nenhuma potência imperial jamais concede a independência a uma colónia a não ser que as forças fossem tais que não houvesse outro caminho possível. “A unidade africana está ao alcance do povo africano. As empresas estrangeiras que exploram os nossos recursos de há muito compreenderam a força que pode ser obtida através da ação em escala pan-africana. As companhias aparentemente diferentes formaram de facto um enorme monopólio capitalista. O único meio efetivo de desafiar esse império económico e recuperar a posse da nossa herança é agirmos também em escala pan-africana, através de um governo unido. Ninguém poderia dizer que se todos os povos da África combinaram formar a sua unidade, a sua decisão poderia ser revogada pelas forças do neocolonialismo”.

Este trabalho de N’Krumah é hoje uma relíquia para investigadores. Poucos meses antes da sua deposição ele deixou esta radiografia de África, um admirável quadro clínico dos males que afligem os povos africanos e lhes estorvam o desenvolvimento. N’Krumah, diga-se em abono da verdade, era um intelectual de formação sólida, hesitando entre uma linha marxista autónoma e uma filiação do pan-africanismo ao Movimento dos Não-Alinhados. Utópico, é assim que hoje se classifica este sonhador, no entanto deixou a tal radiografia que se mantém inalterável, só que os jogos africanos hoje têm novos protagonistas, aqui se digladiam, com grande ferocidade, os interesses ocidentais e asiáticos. Chamem-lhe o que quiserem, mas não deixa de ser neocolonialismo.
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Nota do editor

Último poste da série de 5 DE JUNHO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24369: Notas de leitura (1588): Entre o melhor da literatura de viagens do século XV (3): As viagens na África Negra de Luís de Cadamosto (1455-1456) (Mário Beja Santos)

segunda-feira, 27 de junho de 2022

Guiné 61/74 - P23388: Notas de leitura (1459): “Ébano”, por Ryszard Kapuscinski; Livros do Brasil/Porto Editora, 2018, o mais espantoso trabalho jornalístico sobre a nova África (3) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 7 de Outubro de 2019:

Queridos amigos,
Não conheço relato mais impressivo, rigoroso, construído com grande respeito e genuína curiosidade sobre a África da descolonização até aos conflitos de hoje como "Ébano", daquele que é tido como figura de topo do jornalismo mundial, Ryszard Kapuscinski. Ele aterra no Gana no período em que Kwame Nkrumah é olhado como um semideus, um líder libertador, nele estavam centradas as esperanças de quem acreditava que chegara a hora da prosperidade, fechando assim as portas ao jugo colonial. Assistiremos a golpes de Estado, a coisas tão incompreensíveis como o drama da Libéria, o inenarrável conflito entre tuaregues e agricultores sedentários, em diversos países, o jornalista dá-nos uma chave explicativa para compreender um monstro que se chamou Idi Amin, e em dado momento, a poucos quilómetros de Adis Abeba ele percorrerá quilómetros de material de guerra inerte oferecido pelos soviéticos aos etíopes para destruir os eritreus, que a tudo resistiram, e alcançaram a sua independência. É um livro indispensável para compreender a história africana do último meio século, é de leitura obrigatória.

Um abraço do
Mário



Ébano, o mais espantoso trabalho jornalístico sobre a nova África (3)

Beja Santos

“Ébano, febre africana”, por Ryszard Kapuscinski, Livros do Brasil/Porto Editora, 2018, abarca reportagens concatenadas de um dos maiores jornalistas do mundo que chegou a África em 1957 e passou a acompanhar regularmente acontecimentos relacionados com o fim da descolonização, golpes de Estado, lideranças ditatoriais, tudo alicerçado numa observação de estudo cuidado e de um grande respeito e genuína curiosidade. É uma longa viagem, caminhamos para o terminal, tudo começou no Gana, eram tempos de muita inocência, acreditava-se que numa braçada se atingia a civilização, o desenvolvimento, o fim do obscurantismo.

O repórter percorre o Tanganica, o Uganda, o Quénia, cai a pique num golpe de Estado em Zanzibar, acompanha um golpe de Estado na Nigéria, tudo truculento e bizarro, sobe à Etiópia, descreve um ditador patológico chamado Idi Amin, explica-nos o genocídio de Ruanda. É uma África caleidoscópica, onde há pores de sol deslumbrantes e feiticeiros sanguinários. É cuidadoso no enunciado, possui uma comunicação incisiva, vê-se que tudo estudou sobre aquele dossiê, quer fazer-nos compreender, não nos obriga a tomar qualquer partido.

Veja-se a forma primorosa como descreve os conflitos inenarráveis do Sudão, com o seu norte árabe e islâmico e o sul negrilho, cristão, duas sociedades com antagonismo fortemente enraizado. A primeira guerra sudanesa durou dez anos, até 1972, seguiu-se uma década de paz frágil e instável, até que em 1983 o governo islâmico de Cartum tentou impor a lei islâmica, iniciou-se uma desastrosa fase de guerra, que se mostra interminável. É porventura a guerra mais longa e de maior dimensão da História de África e provavelmente a de maior dimensão no mundo, como não ameaça diretamente a Europa e os Estados Unidos, os media não falam dela. No norte do Sudão há predominantemente areia e pedras, pelo meio temos um cordão verde largo e intenso de campos e plantações, nas margens do Nilo; o sul é marcado pelo verde-esmeralda dos campos. Os campos ao longo do rio serviram de sustento a milhões de felás árabes e tribos nómadas.

O poder em Cartum expulsou os felás, estes apropriaram-se dos solos férteis do Nilo, desencadeou-se uma guerra contra o Sul, são tratados como uma colónia. Veja-se um exemplo do prodígio narrativo de Kapuscinski:

“Os habitantes do norte são cerca de vinte milhões, os do sul apenas seis milhões. Os habitantes do sul repartem-se por dezenas de tribos com numerosas línguas, religiões e cultos. Nesse mar de tribos do sul, há duas, porém, que emergem mais claramente, dois povos que juntos representam metade da população desta parte do país. São os dinkas e os nuers. É fácil identificá-los à distância: são enormes, dois metros de altura, magros e têm uma cor de pele muito escura. Uma raça bonita, atlética, digna, talvez até um pouco arrogante. Alimentam-se praticamente só de leite e, às vezes, do sangue das vacas, que criam e idolatram”.~

São nómadas, precisam de espaço, responderam de armas na mão às humilhações de Cartum. E gente inocente morre de fome, vive em acampamentos. Continuam à espera de voltar à sua terra, acreditam que um dia chegará a paz.

O repórter segue para a Somália, outra descrição incomparável. E partimos para Bamako, a capital do Mali:

“Eu estava em Bamako porque esperava encontrar ali a guerra contra os tuaregues. Os tuaregues são eternos vagabundos. Será que poderemos chamar-lhes assim? Um vagabundo é alguém que percorre o mundo à procura de um lugar para si, uma casa, uma pátria. O tuaregue tem uma casa, uma pátria, onde vive há milhares de anos – o interior do Saara. A sua casa é diferente das nossas. Não tem paredes nem telhado, portas ou janelas. O tuaregue despreza tudo o que lhe restringe os movimentos. A sua pátria não tem limites, abrange milhares de quilómetros de areia e rochas, um mundo imenso, enganador e infértil, que todos os outros homens temem e evitam. As fronteiras desta pátria do deserto são onde terminam o Saara e o Sahel e começam os campos verdes e as aldeias das tribos suas inimigas. Há séculos que se trava uma guerra entre estas duas partes. Muitas vezes a seca no Saara é tal que se esgotam todas as fontes e os tuaregues são forçados a deixar o deserto, com os seus camelos, e a mudar-se para as regiões verdes, na direção do Níger e do lago do Chade. Os camponeses africanos sedentários consideram estas visitas uma espécie de invasão. O ódio entre eles e os tuaregues é visceral e eterno, porque estes não só lhes incendeiam as aldeias e lhes roubam o gado, como também transformam os camponeses em escravos seus. Os tuaregues são berberes de pele clara e consideram os africanos negros uma raça desprezível de seres inferiores”.

E, mais adiante:

“Os tuaregues estão em vias de extinção, a sua existência tende para o fim. São expulsos do Saara pelas terríveis e intermináveis secas. Além disso, antigamente, uma boa parte dos tuaregues ganhava o seu sustento assaltando caravanas que hoje já praticamente não existem ou então vão bem armadas. Assim, têm que se mudar para regiões melhores, onde haja água, mas essas já estão ocupadas. Há tuaregues no Mali, na Argélia, na Líbia, no Níger, no Chade e na Nigéria, mas há-os também noutros países do Saara. Não se consideram cidadãos de nenhum país nem querem ter de se submeter a nenhum governo, nem a nenhum poder estatal”. 

Haverá descrições de horrores, ninguém pode ficar insensível ao drama da Libéria, ao mais insólito dos racismos, como ninguém pode ficar insensível àquela guerra sangrenta que dilacerou a Eritreia e a Etiópia.

É estonteante a visita que Kapuscinski faz a Debre Zeyit, a alguns quilómetros de Adis Abeba:

“Uma planície a perder de vista, sem uma única árvore até à linha do horizonte que aparece envolta numa nebulosidade ténue. Toda esta superfície está coberta com material de guerra.
Quilómetros e quilómetros de material de campanha de diferente tipo, filas intermináveis de tanques médios e pesados, florestas de canhões antiaéreos e morteiros, centenas de carros blindados, veículos camuflados, postos móveis de rádio e veículos anfíbios. E, do outro lado da colina, há gigantescos hangares e paióis – os hangares albergam componentes de metralhadoras por montar, e os paióis estão cheios de munições e minas. Aquilo que mais nos surpreende e perturba são as quantidades inimagináveis de material bélico, este amontoado incrível de centenas de milhares de metralhadoras, obuses e helicópteros de guerra. Todo este equipamento foi oferecido ao longo de muitos anos por Brejnev a Mengistu e enviado da União Soviética para a Etiópia. Mas na Etiópia não havia pessoas suficientes para utilizar nem sequer 10% destas armas. Estes tanques serviam para conquistar todo o continente africano; a força destes canhões e ‘katiushas’ reduziria toda a África a pó e cinza. Ao passear pelas ruas desertas desta cidade de aço imóvel, onde em cada esquina espreitava a mira de um canhão e onde as filas de tanques arreganhavam os dentes, pensei no homem que sonhou subjugar todo o continente africano”
.

E despede-se com uma advertência:

“Quando um europeu viaja por África, vê apenas uma parte do continente – geralmente a parte exterior, que não tem grande interesse e é a menos importante. O seu olhar percorre a superfície sem penetrar mais fundo, como se não pudesse acreditar que por detrás de cada coisa há um segredo escondido e esse segredo está no centro das próprias coisas. Mas a cultura europeia não nos preparou para estas expedições à profundidade, às origens de outros mundos e culturas. O drama de algumas culturas – entre as quais a europeia – foi devido ao facto de, no passado, os seus primeiros contatos com outras culturas terem sido estabelecidos por pessoas da mais estranha espécie – mercenários, aventureiros, criminosos, traficantes de escravos, etc. Havia também outros, mas em menor número – missionários honestos, viajantes e exploradores entusiasmados”.

Foi uma questão de contabilidade, prevaleceu o maior número, a pilhar, saquear e matar. E as culturas, em vez de se conhecerem, se aproximarem e se misturarem, confrontaram-se ou ficaram indiferentes entre si. E as relações entre as pessoas foram determinadas pelo mais primitivo dos critérios, a cor da pele. O racismo tornou-se a ideologia em função da qual as pessoas ocupavam o seu lugar na ordem do mundo. Enfim, é necessário possuir muita humildade para compreender a História africana do último meio século e dos desafios que hoje se põem. Esta obra-prima do jornalismo é uma chave como não há outra, no panorama literário.

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Nota do editor

Último poste da série de 24 DE JUNHO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23382: Notas de leitura (1458): “Ébano”, por Ryszard Kapuscinski; Livros do Brasil/Porto Editora, 2018, o mais espantoso trabalho jornalístico sobre a nova África (2) (Mário Beja Santos)

segunda-feira, 20 de junho de 2022

Guiné 61/74 - P23370: Notas de leitura (1457): “Ébano”, por Ryszard Kapuscinski; Livros do Brasil/Porto Editora, 2018, o mais espantoso trabalho jornalístico sobre a nova África (1) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 4 de Outubro de 2019:

Queridos amigos,
Quando surgiu este livro em 1998, foi um murro no estômago para muita gente. Uma das figuras gradas do jornalismo mundial que acompanhara sistematicamente os eventos do continente africano durante mais de quatro décadas, punha a nu novas e velhas tiranias de regimes exclusivamente africanos, com a sua encenação de massacres, genocídios, lideres paranoicos e corruptos. É impossível não sentir um calafrio a ver quilómetros de sucata soviética posta ao serviço de um terrível conflito no Corno de África. Como ele escreve: "Não é um livro sobre África, mas sim sobre algumas pessoas de lá. É um continente demasiado grande para poder ser descrito. É um verdadeiro oceano, um planeta independente, um cosmos variado e rico. É apenas por uma questão de simplicidade e de comodidade que falamos de 'África'. De facto, essa África não existe sequer, a não ser como conceito geográfico".

Um abraço do
Mário



Ébano, o mais espantoso trabalho jornalístico sobre a nova África (1)

Beja Santos

Ryszard Kapuscinski é reconhecido como um dos nomes maiores do jornalismo moderno, um repórter inigualável na cena mundial. Foi um observador direto do início do fim da era da colonização e nos quarenta anos seguintes aqui voltou, deixando testemunhos marcantes de golpes de Estado, massacres hediondos, desvelamento de estranhíssimas guerras tribais e a emergência do racismo. Para quem quer saber o que se tem passado nessa África independente é fundamental conhecer esta obra-prima do jornalismo: “Ébano”, por Ryszard Kapuscinski, Livros do Brasil/ Porto Editora, 2018.

Tudo começa no Gana, em 1958, tempo impulsivo e de inocência, Kwame Nkrumah ainda é tratado como um semideus. E vai anotando, para que o leitor europeu saiba diferenciar em vez de minimizar ou ridicularizar:
“Os europeus e os africanos têm noções de tempo completamente distintas. A perceção que têm do tempo é diferente, como é diferente a relação que com ele mantêm. O europeu está convencido de que o tempo tem uma existência exterior a ele próprio, uma existência objetiva e com uma natureza mensurável e linear. O europeu vê-se a si próprio como um escravo do tempo, está dependente dele, é-lhe submisso. Para poder existir e funcionar tem de respeitar as suas leis férreas e imutáveis, as suas regras e princípios inflexíveis. Os africanos vêem o tempo de modo diferente. O tempo é para eles uma categoria bastante ligeira, elástica, subjetiva. O homem influencia a configuração do tempo, o modo como ele decorre e o ritmo (obviamente só o homem que vive em boas relações com os seus antepassados e com os deuses o consegue). Uma inversão completa do pensamento europeu. Daí que um africano, depois de entrar num autocarro, nunca pergunte quando vai partir; entra, senta-se no lugar livre e passa imediatamente a um estado no qual passa uma grande parte da sua vida – à espera”.

E segue-se outra observação, que se deve atrelar à anterior: “O problema de África é a contradição entre o homem e o ambiente, entre a imensidão africana e o homem indefeso, descalço e pobre que é o seu habitante. Para onde quer que nos voltemos, a paisagem é sempre imensa, tudo está vazio, sem ninguém a perder de vista. Antigamente tinham de se percorrer centenas, até milhares de quilómetros para se encontrar outras pessoas. Não havia informação, saber, progresso técnico, riqueza, mercadorias, experiências diferentes – tudo isto se mantinha longe, não chegava até ali, porque não encontrava o caminho”.

O jornalista viaja, está agora em Kampala, o Uganda dentro de dias será independente. E ele comenta:
“A política interna africana e a dos seus estados é complicada e difícil de perceber. Tal situação deve-se, sobretudo, ao facto de, aquando da partilha de África entre eles, os colonizadores europeus terem reduzido a pouco mais de quarenta colónias os cerca de dez mil pequenos reinados, federações e associações de tribos não estatais, mas independentes, que existiam neste continente na segunda metade do século XIX. Muitos desses reinos e associações tinham um longo historial de conflitos e guerras entre si. E, de repente, viram-se forçados, sem que ninguém lhes pedisse a sua opinião, a integrar a mesma colónia, sendo regidos pela mesma potência (estrangeira) e pelas mesmas leis. Mas tinha começado a era da descolonização. As antigas relações interétnicas, que tinham sido congeladas ou pura e simplesmente ignoradas pelas potências estrangeiras, ressuscitavam, tornando-se de novo ativas. Surgia a oportunidade de libertação, mas uma libertação sob a condição de que os inimigos de outrora formassem agora um estado comum, ao qual servissem em conjunto, económica, patriótica e militarmente”.

Um grande repórter é forçosamente um observador subtil, de cultura aprimorada e dotado para a escrita como escritor maior. Veja-se como Kapuscinski nos apresenta a Etiópia:
“A Etiópia Central é um planalto vasto e grandioso, atravessado por numerosos vales e desfiladeiros. Na época das chuvas, surgem imensos rios no fundo destes enormes despenhadeiros. Nos meses de verão, a maioria seca e desaparece, deixando à mostra o solo seco e gretado e fazendo com que o vento levante nuvens negras de lama, transformada em cinza pelo sol. Ao longo deste planalto, existem montes com três mil metros de altura, que em nada fazem lembrar os graníticos Alpes cobertos de neve, os Andes ou os Cárpatos. Estes são compostos por rocha cor de cobre e bronze, exposta à erosão com os cumes achatados e tão planos que poderiam até servir de aeroportos naturais”.

Apresentada a geografia, informa-nos sobre uma situação bélica descomunal:
“Estamos em meados dos anos setenta. África encontra-se no limiar de duas décadas de maior seca da sua história. Guerras civis, golpes de Estado, massacres e ainda a fome que passavam milhões de pessoas na zona do Sahel (África Ocidental) e na África Oriental (sobretudo no Sudão, no Chade, na Etiópia e na Somália) – eram algumas das facetas da crise. A maioria dos países do continente tinha sacudido o colonialismo e iniciado a sua existência de Estados independentes. Nas ciências políticas e económicas prevalecia naquela altura a convicção de que a liberdade trazia o bem-estar, de que a liberdade iria transformar, da noite para o dia, regiões miseráveis num mundo onde corressem, com abundância, leite e mel. Mas a realidade provou ser muito diferente. Nos novos países africanos, estalaram lutas pelo poder, em que ninguém olhava a meios: conflitos tribais e tensões étnicas, o poder do Exército, as tentações de corrupção, ameaças de morte. Simultaneamente, os Estados davam provas de fraqueza e incapacidade de cumprir as suas principais funções. E tudo isto numa época em que o mundo estava sob o domínio da Guerra Fria, transportada para África tanto pelo Ocidente como pelo Leste. Uma caraterística marcante da Guerra Fria consistia em ignorar pura e simplesmente os problemas e interesses dos Estados fracos e dependentes, encarando os seus dramas e acontecimentos apenas na perspetiva dos interesses próprios, sem lhes atribuir uma importância específica”.

E assim chegamos a Idi Amin, o ditador mais conhecido em toda a história da África Moderna e um dos mais execráveis do século XX em todo o mundo.

(continua)

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Nota do editor

Último poste da série de 17 DE JUNHO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23359: Notas de leitura (1456): Os Jesuítas na Senegâmbia, os personagens de um insucesso (Mário Beja Santos)