1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 22 de Outubro de 2020:
Queridos amigos,
A descrição desta segunda viagem trouxe uma inevitável polémica entre os historiadores dos Descobrimentos, não há consenso sobre as paragens cabo-verdianas que ele regista. Atenda-se que ele umas vezes fala do Cabo Verde continental, na primeira viagem faz até uma bela apreciação paisagística, esta segunda viagem leva-o até ao rio de Gâmbia, é certo e seguro que o Infante D. Henrique lhe pediu para explorar a costa abaixo, e assim o vemos no batizado Cabo Roxo, depois o Casamansa e depois o rio Grande ou Geba, onde ele deu conta do macaréu, coisa que nunca vira. É um mercador, percebe-se sem dificuldade que anda ali a desempenhar o papel de cronista, o registo que faz nas suas viagens prima pela curiosidade do seu olhar, tem conhecimentos de Náutica, fascina-se com a vegetação, com os animais e as aves, teme a aproximação das caravelas da terra, de vez em quando é patente a hostilidade quando chega. Quando acabamos esta saborosa leitura e sabemos que virão um Lemos Coelho, um André Donelha, um Duarte Pacheco Pereira, um André Álvares d'Almada, rendemo-nos a este espírito curioso, alguém que já tinha mundo e que mercadejava no Mediterrâneo e que regressa à sua terra onde exercerá cargos políticos. É uma peça-chave da nossa tão fecunda literatura de viagens, talvez a reportagem mais viva que guarda a historiografia deste projeto henriquino em que Cadamosto embarcou, pois não disfarça que também queria enriquecer.
Um abraço do
Mário
Entre o melhor da literatura de viagens do século XV (3):
As viagens na África Negra de Luís de Cadamosto (1455-1456)
Mário Beja Santos
A segunda viagem de Luís de Cadamosto aconteceu em 1456, ele e Antonieto Usodomar armaram duas caravelas e rumam para o rio de Gâmbia, partem com o agrado do Infante D. Henrique. “Saímos do lugar chamado Lagos, com vento próspero, e pusemos o rumo para as Canárias. Sendo o tempo favorável, não nos preocupámos de tocar nas ditas ilhas, mas navegámos em seguida para o Sul e com a corrente da água, que impetuosamente seguia para Sudoeste, andámos muito”. Assim chegaram ao Cabo Branco, foram colhidos por um forte temporal, mudaram de azimute, e depois avistaram terra, nada sabiam daquelas paragens. Começaram por uma ilha desabitada: “Havia imensa quantidade de pombos. No alto da montanha tiveram vista de três outras grandes ilhas de que não tínhamos dado conta, porque uma nos ficava a sotavento da parte do Norte, e as outras duas estavam na mesma linha, do lado oposto, da parte do Sul, também na nossa derrota, e todas à vista umas das outras”. E depois chegaram à vista das outras ilhas, correram ao longo da costa, desembarcaram, encontraram tartarugas, percorreram o rio. “À primeira ilha onde desembarcamos, demos o nome de ilha da Boa Vista, por ter sido a primeira vista da terra naquelas partes; e a esta outra, que nos parecia a maior das quatro, demos o nome da Ilha de Sant’Iago, porque fomos lançar âncora nela no dia de S. Filipe e Sant’Iago”. E daqui partiram para um lugar chamado Duas Palmas, entre Cabo Verde e rio de Senegal e assim chegaram ao rio de Gâmbia, não encontraram oposição de ninguém, encontraram uma ilha e puseram o nome de Sant’André, prosseguiram viagem pelo rio Gâmbia, apareceu alguém que percebia do intérprete que tinham levado que lhes disse que aquele país era Gâmbia, e que o seu principal senhor era Forosangoli, que vivia a nove ou dez jornadas, este senhor dependia do imperador do Mali, mas que havia muitos senhores menores, disse mesmo que os levaria a um deles chamado Batimansa, oferta que agradou aos navegadores.
Chegados ao destino, enviaram um presente ao senhor Batimansa, uma camisa. “Mandámos-lhe a dizer que tínhamos vindo de mandado do nosso Senhor, o Rei de Portugal, cristão, para travar com ele boa amizade e para saber se precisava das coisas dos nossos países, que todos os anos o nosso Rei lhas enviaria, e com muitas outras palavras”. Permaneceram onze dias naquele local, receberam muitas visitas, havia gente que queria vender coisas. “As coisinhas que nos traziam eram algodões, fiados de algodão e panos de algodão feitos à sua maneira. Traziam também muitos macacos e babuínos grandes e pequenos. Também traziam gatos de algália e peles deles para vender”.
Dá-nos um quadro bem curioso das almadias e do modo de remar. E tece também considerações sobre os usos e costumes, e não deixa de falar do clima: “Esta terra é muito quente, e quanto mais se anda para o Sul tanto mais parece pedir a razão que as regiões sejam quentes; e sobretudo neste rio havia muito mais calma do que no mar, por estar povoado de muitas árvores e muito grandes. Da grandeza destas digo que estando nós a fazer aguada numa fonte junto à margem do rio, havia uma árvore grandíssima e muito grossa; porém, a altura não era proporcional à grossura, porque julgámos que tivesse de altura uns 20 passos, e a grossura, mandando-a medir, achámos umas 17 braças de circunferência, no pé”.
Também muito saborosa é a descrição que faz dos elefantes, deram-lhe a comer carne de um deles, achou-a dura e desenxabida. “Trouxe um dos seus pés e parte da tromba para o navio, e também muitos dos cabelos do corpo, que eram pretos e compridos um palmo e meio e mais; e tudo, juntamente com parte daquela carne que foi salgada apresentei depois em Portugal ao dito Senhor D. Henrique, que as recebeu como grande presente, por serem as primeiras coisas que tinha recebido daquele país, descoberto por indústria sua”. Volta a fazer comentários sobre as coisas que viu no rio de Gâmbia, e põem-se ao caminho para Casamansa, onde também havia um senhor chamado Casamansa. Daqui partiram para o Cabo Roxo, chegaram depois à boca de um rio de razoável grandeza, deram-lhe o nome de rio de Sant’Ana, continuaram e encontraram outro rio a que puseram o nome de São Domingos, e assim chegaram à boca de um grandíssimo rio, que julgaram ser um golfo. “Estivemos sobre a embocadura deste grande rio, ou Rio Grande, dois dias, e a Estrela do Norte aparecia aqui muito baixa. Neste lugar encontramos uma grande contrariedade, que não há em outro lugar, pelo que pude ouvir, e foi que, havendo aqui maré de água enchente e vazante, como em Veneza e em todo o poente, e enquanto em toda a parte cresce seis horas e baixa outras seis, aqui cresce quatro horas e baixa oito, e é tão forte o ímpeto da corrente da dita maré, quando começa a encher, que é quase incrível, porque três âncoras na proa mal nos podiam segurar, e com esforço, e momentos houve em que a corrente nos fez fazer à vela à força, e não sem perigo, porque tinha mais força do que as velas com o vento”. Cadamosto, sem o saber, estava a experimentar o macaréu, será provavelmente esta a primeira descrição feita por um europeu deste fenómeno da natureza.
E deste modo finaliza a sua segunda viagem: “Partimos da embocadura deste grande rio para voltar a Portugal, e fizemo-nos em direção àquelas ilhas, que estavam distantes da terra firme umas 30 milhas. Chegámos a elas, são duas grandes e algumas outras pequenas. Estas duas grandes são habitadas por negros e são muito baixas, mas abundantes de belíssimas árvores, grandes, altas e verdes. Também aqui não pudemos falar, porque não nos entendiam, nem nós a eles, e partindo dali, fomos para os nossos países dos cristãos, para os quais, por nossas jornadas, tanto navegámos, que Deus por sua misericórdia, quando lhe aprouve, nos conduziu a bom porto”.
Texto de inexcedível beleza e de uma incontornável riqueza para esta literatura de viagens encetada no século XV.
Guerreiro guineense, gravura de Balthazar Springer, 1509
Mulher guineense e filhos, também gravura de Balthazar Springer, 1509
Guinéus, também gravura de Balthazar Springer, 1509
Carta da África Ocidental (pormenor), Paris, 1667
____________Nota do editor
Último poste da série de2 DE JUNHO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24362: Notas de leitura (1587): Entre o melhor da literatura de viagens do século XV (2): As viagens na África Negra de Luís de Cadamosto (1455-1456) (Mário Beja Santos)
3 comentários:
Caros amigos,
Salvo erro de entendimento, com esta pitoresca descriçao do Navegador Cadamosto, fica provado que, afinal, contrariamente a narrativa oficial que ainda perdura na narrativa portuguesa sobre as ilhas de Cabo-Verde, algumas delas, Boavista e Santiago, designadamente, eram habitadas por negros antes das ditas descobertas conforme podemos constatar nos paragrafos seguintes:
“E depois chegaram à vista das outras ilhas, correram ao longo da costa, desembarcaram, encontraram tartarugas, percorreram o rio. “À primeira ilha onde desembarcamos, demos o nome de ilha da Boa Vista, por ter sido a primeira vista da terra naquelas partes; e a esta outra, que nos parecia a maior das quatro, demos o nome da Ilha de Sant’Iago, porque fomos lançar âncora nela no dia de S. Filipe e Sant’Iago”
“E deste modo finaliza a sua segunda viagem: “Partimos da embocadura deste grande rio para voltar a Portugal, e fizemo-nos em direção àquelas ilhas, que estavam distantes da terra firme umas 30 milhas. Chegámos a elas, são duas grandes e algumas outras pequenas. Estas duas grandes são habitadas por negros e são muito baixas, mas abundantes de belíssimas árvores, grandes, altas e verdes. Também aqui não pudemos falar, porque não nos entendiam, nem nós a eles, e partindo dali, fomos para os nossos países dos cristãos, para os quais, por nossas jornadas, tanto navegámos, que Deus por sua misericórdia, quando lhe aprouve, nos conduziu a bom porto”.
Cordialmente,
Cherno Baldé
Caro Cherno Baldé
Julgo que o "Grande Rio" seria o Geba e as ilhas habitadas as Bijagós, 30 milhas serão cerca de 55 quilómetros.
"O arquipélago de Cabo Verde ficou desabitado até ao século XV... a cerca de 600 e 800 kms da península senegalesa de Cabo Verde ..."
(in História de Cabo Verde)
Abraço
Valdemar Queiroz
Caro Valdemar,
Pois, se calhar trata-se mesmo das ilhas dos Bijagos, mas a frase no texto pode criar confusao quando escreve: (...) e fizemo-nos em direcçao aquelas ilhas..." que tanto podiam ser as Bijagos como as de Cabo-Verde, porque nao tinha falado delas na viagem de vinda, mas na verdade a distancia de 55 Km seria muito curta para atingir as ilhas Caboverdianas, partindo da embocadura do rio Geba.
Obrigado pelo esclarecimento.
Um grande abraço,
Cherno Baldé
Enviar um comentário