sábado, 10 de junho de 2023

Guiné 61/74 - P24384: Os nossos seres, saberes e lazeres (576): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (106): Com sangue d’África, com ossos d’Europa: chegou a hora de me embrenhar na floresta mágica de Santo Antão (5) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 3 de Maio de 2023:

Queridos amigos,
Santo Antão vale, é remédio santo para quem porfia êxtases da natureza em espaço insular. Entra-se num coletivo em Porto Novo, o condutor é loquaz, manda olhar para aqui e para ali, olhe lá em cima para o farol de Lombo de Boi, há um estudante que diz que não é bem assim, chama-se farol Fontes Pereira de Melo, há uma paragem em Pombas, o que até agora foi secura e aridez, o que trouxe reminiscências de S. Vicente, começa-se a encher de arvoredo, que sobe pelas escarpas e se avista até ao cimo das montanhas, os nomes dos lugares são adoráveis, momentos há em que me parece que estou em S. Miguel, aliás vamos em direção à Ribeira Grande, depositados à porta do albergue, negoceia-se um passeio para o dia seguinte. Com a senhora italiana que nos acolhe, sorridente, é melhor falar francês, avisou-nos que domina o crioulo, o português moita, descemos por ruelas esconsas para comprar mantimentos e pelo caminho negoceia-se o jantar, virá a revelar-se um manjar dos deuses. Santo Antão já está a enlear-se em mim, atrai-me esta floresta de verde e o mar sempre próximo, consta que aqui chove e que estes leitos de calhaus rolados conhecem, durante escassos dias, a correnteza das águas que vêm dos altos, alguém informa que há minas, água com fartura, daí a diversidade agrícola. Para o dia de chegada, vinte valores.

Um abraço do
Mário



Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (106):
Com sangue d’África, com ossos d’Europa: chegou a hora de me embrenhar na floresta mágica de Santo Antão (5)


Mário Beja Santos

Gosto muito desta primeira imagem, estamos ainda na baía de Mindelo, ao fundo o Monte Cara, sei que vou conhecer uma atmosfera bem distinta de S. Vicente, passei uma boa parte do serão a fazer uma síntese da História de Cabo Verde desde que os primeiros colonos aportaram em Santiago em 1462. Rapidamente o conjunto populacional tornou-se heterogéneo, fossem algarvios ou alentejanos deu-se a miscigenação com gente que vinha da Senegâmbia, formara-se uma sociedade escravocrata em Santiago e Fogo, ali confluem brancos, funcionários e degredados, negros que até vêm de Angola, começam as categorias de vizinhos e moradores, pretos-forros casados, escravos de confissão ou ladinos e escravos de doutrinação, os boçais; impossível não considerar o papel do cristianismo nesta fermentação cultural, missões, colégios e escolas aparecem sempre que há população; e muita gente lança-se no comércio da costa ocidental africana, recorde-se que André Álvares de Almada, a quem se deve uma das mais importantes obras da literatura de viagens, o Tratado breve dos Rios de Guiné (1594), era cabo-verdiano e cavaleiro da Ordem de Cristo; proliferam os proprietários da terra, um dia virá a abolição da escravatura, tudo irá mudar, ou quase.
Empolgo-me com este mar, venho à ré ver S. Vicente, a esfumar-se numa coroa de nuvens, Santo Antão vai ganhando nitidez, em breve recorda-se em toda a sua dimensão o Porto Novo, a mais importante infraestrutura portuária de Santo Antão, após desembarque negoceia-se o preço do coletivo e vamos para a próxima morada, Ribeira Grande, a dona é italiana de Bolzano, o marido é pescador, toca viola e canta, fará questão de perguntar sempre que peixinho queremos para o dia seguinte.
No coletivo vem a primeira advertência que nos próximos quilómetros não se espere mais do que muita secura, declives penhascosos sobre o mar, depois, sim, um oásis permanente, que nos preparemos para uma agricultura farta, montanhas e vales, paisagens de sonho.

À saída da baía do Mindelo
S. Vicente cada vez mais longe
Em frente, a terra prometida de Santo Antão, já se vê uma larga mancha de casario
Atenda-se à imagem, bem procurei brochuras, desdobráveis, nada, só mapas enormes que talvez sejam úteis para a rapaziada que faz escalada ou vem disposta a longos percursos pedestres. Dou-me bem com o nome das povoações, saímos em Porto Novo, iremos por Aguada, passa-se ao lado do Farol de Lombo de Boi, mas houve um jovem que me disse enfaticamente que o seu verdadeiro nome é Farol Fontes Pereira de Melo, fiquei intrigado, seguimos por Pombas, o condutor, brejeiro, fez saber que o único cemitério de pombas que existe no mundo é aquele, depois Sinagoga, que tem uma bela praia, pena foi, que no dia da visita, o mais estivesse tão endiabrado, temi ser atirado para aquelas rochas afiadas, limitei-me a contemplar a ondulação bravia na companhia de uma cerveja da terra; não esqueci o Paúl, que também visitarei, e que é um deslumbramento, registei imagens e vou mostrar, há mais de uma hora que vimos por boa estrada, o senhor Adelino larga-nos à porta do albergue, estamos num topo da Ribeira Grande, e já se começa a discutir o peixinho que se vai comer à noite.
A praia da Sinagoga, quem é que em dia de tanta braveza das águas se afoitava a mergulhar naquelas ondas, mas que tudo é belo neste vulcânico agreste, não subsistem dúvidas
Estava em Pombas a comer uma deliciosa cachupa e olhei para o alto, o que é que faz aqui Santo António, perguntei ao patrão do tasquinho, resposta pronta, o santo é nosso patrono, para a próxima venha às festas, até temos corridas de cavalos no leito dos rios, fiquei arrepiado com a informação, mas vi em Pombas monumentos aos cavalos e creio que quem tem devoção antonina se irá comprazer com esta imagem.
Santo Antão é assim mesmo e não há volta a dar, o senhor Adelino irá levar-nos num passeio para percorrer a Ribeira Grande, Corda, Esponjeira, Lagoa, Cova de Paúl, daqui regressaremos à Ribeira Grande para desfrutarmos a beleza primeiro de Xôxô e depois a Ponta do Sol, aqui até parece o fim do mundo mas vê-se à vista desarmada que é uma importante atração turística, tem hotéis e pensões à farta.
Houve um enorme passeio até a um ponto alto onde ficámos dois dias, como já disse teremos ao lado de um balcão imenso de onde se avista a montanha uma fábrica de grogue, com imenso trapiche e montanhas de cana do açúcar à porta. Perguntei se isto da cana era um exclusivo de Santo Antão, que não, S. Nicolau tem várias áreas dedicadas a esta cultura, os engenhos de açúcar estão referenciados há séculos, iremos ver trapiches em atividade (é o nome dado aos engenhos que moem a cana, puxados por animais, esta aguardente foi negócio para a costa da Guiné a troco de escravos, mas o que aqui hoje se pretende mostrar é o esplendor da montanha, por vezes com os seus cimos enevoados e como última imagem, pedi ao senhor Adelino para parar porque não acreditava no que estava a ver, aquela fenda de um bloco monumental de pedra erguia-se, e com alguma majestade uma árvore, com outra encostada ao lado, atenda-se àquela palha pelo chão espalhada, vestígios de que por ali passou a cana sacarina.

(continua)

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Nota do editor

Último poste da série de 3 DE JUNHO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24364: Os nossos seres, saberes e lazeres (575): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (105): Com sangue d’África, com ossos d’Europa: com os pés no Mindelo, mas já a sonhar com Santo Antão (4) (Mário Beja Santos)

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