Queridos amigos,
Mindelo tem muito para ver, dá para perceber que a sua vida cultural já foi mais intensa, mas asseguram-me que o renascimento está em curso. Nestes escassos dias em que por aqui pouso, já bati à porta da biblioteca municipal, visitei a Alliance Française, acabei por comprar o Zadig, de Voltaire, numa daquelas edições escolares recheada de comentários oportunos e esclarecedores. Não deu para visitar uma zona típica, Ribeira Bote, goza de muita popularidade o seu carnaval mandinga, tornou-se atração turística com os seus cafés e restaurantes e parece que não faltam pizzarias nem hambúrgueres. Ficará para a próxima. Gostei muito de visitar o antigo Liceu Gil Eanes, primorosamente recuperado, muitos estudantes, meti conversa, um desses jovens perguntou-me se eu podia disponibilizar uns escudos para comer, viera do fundo da ilha a pé, fazia-lhe bem uma sopa e um casqueiro na cantina, tinha um olhar sincero, só espero que tenha sido um dia de muito proveito nos estudos. Falando mais tarde desta situação vivida com professores da Alliance Française, disseram-me que é uma situação comum, ninguém falta às aulas, o sonho de tirar um curso atiça muito a juventude, o grande problema é que quando se apanham com qualificações a tentação é partir, o cabo-verdiano dissemina-se pela Europa e pela América, na generalidade dos casos não esquece o seu chão e ergue casa, ajuda a família. Daí a idiossincrasia subjacente às canções dolentes a que se contrapõe o frenesim da coladeira, morabeza!
Um abraço do
Mário
Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (105):
Com sangue d’África, com ossos d’Europa: com os pés no Mindelo, mas já a sonhar com Santo Antão (4)
Mário Beja Santos
Ontem à noite estive a ordenar o dia de hoje, primeiro Mindelo, depois os arredores, quero voltar a Salamansa. Aproveitei o serão para ler uma obra de João Lopes Filho, Cabo Verde, Retalhos do Quotidiano, Editorial Caminha, 1995, antropologia logo o ciclo da vida, tudo começa com a gravidez e o nascimento, os cerimoniais à volta do parto, depois o casamento, não faltam as cerimónias fúnebres; e há o sincretismo religioso, a romaria da Senhora da Cintinha, os festejos dos Santos Populares, os cânticos religiosos, o Natal, o fim de ano e os Reis, mas também o canto pelas almas. Começo a ler empolgado o fabrico do grogue, como são os trapiches cabo-verdianos, nem me passa pela cabeça que dentro de dias vou viver ao lado de um trapiche em funcionamento, leio sobre a matança do porco, a marcação do gado, as fainas de pesca e as peixeiras, fico a saber que há muitas tartarugas no arquipélago. Bom, estou pronto para sair, o Mindelo ainda tem muito para me mostrar, tenho regalos à minha espera.
Cesária Évora numa obra de Vhils
Casa de Cesária Évora, Mindelo
O antigo Liceu Gil Eanes, aqui estudou Amílcar Cabral, é hoje departamento universitário
O Palácio do Povo, antigo Palácio do Governador, bati sempre com o nariz na porta, abre para eventos e exposições
Monumento dedicado à viagem de Gago Coutinho e Sacadura Cabral, mesmo a beijar a plataforma portuária
Quis ir visitar o Centro Cultural do Mindelo, dispõe de uma boa livraria, era o antigo edifício da alfândega, foi inaugurado no reinado de D. Pedro V, era ministro do Mar e do Ultramar o visconde de Sá da Bandeira, mais uma das múltiplas provas de respeito que o passado merece às gentes de Cabo Verde.Escultura de José Cutileiro, prende-se com a primeira travessia aérea do Atlântico Sul (1922)
Lápide que acompanha o monumento, oferta da Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, tem a ver com as comemorações do V Centenário da assinatura do Tratado de Tordesilhas (28 de julho de 1994)Escultura dedicada a Diogo Afonso, primeiro donatário da parte norte da ilha de Santiago
Vim até Salamansa, por aqui passeei em agosto de 1970 quando regressei da Guiné, era então um porto de pesca com umas habitações avulsas, tem crescido graças aos emigrantes, gostam do clima e a zona de praia não fica atrás das melhores praias cabo-verdianas.Estas duas imagens marcam o contraste da natureza do solo, irei encontrar mais à frente rochedos, mas por aqui não há areia preta
Era fatal como o destino, vim despedir-me da belíssima baía do Mindelo, amanhã tenho barco para Santo Antão, é aquele sentimento ambíguo de quem poisou num lugar e tem inquietação no itinerário que se seguirá, nem me passa pela cabeça as paisagens deslumbrantes que me esperam nessa ilha montanhosa, fertilíssima, que dá milho, feijão e frutos, vou ver gado de toda a espécie e cana do açúcar de que se faz o grogue. Para que conste, e como forma de aliciamento para quem me acompanha nestes percursos.
(continua)
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Nota do editor
Último poste da série de 27 DE MAIO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24345: Os nossos seres, saberes e lazeres (574): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (104): Com sangue d’África, com ossos d’Europa (3) (Mário Beja Santos)
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