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quinta-feira, 7 de novembro de 2013

Guiné 63/74 - P12262: Memórias de um passado (Joaquim Cardoso) (3): Um bacalhau que ficou para a história

1. Mensagem do nosso camarada Joaquim Cardoso (ex-Soldado de TRMS do Pel Mort 4574, Nova Lamego, 1972/74), com data de 4 de Novembro de 2013:

Meu caro amigo, Carlos Vinhal:
Envio o presente texto, que é mais um episódio dos que retenho na memória.
Peço-te o favor de o ler e, caso entendas ser digno de publicação, dá-lhe o teu toque pessoal e coloca-o no respectivo lugar. 
Um grande abraço para ti e toda a tertúlia
Até breve.
J.Cardoso.


MEMÓRIAS DE UM PASSADO

3 - Um bacalhau que ficou para a história

Decorria o ano de 1973 e, em Agosto desse ano, completava eu, ou tinha completado, 1 ano (?) de permanência no Gabú-Nova Lamego-Guiné.
Os ponteiros do relógio teimavam em ser demasiado lentos, dando a sensação de cada hora passada ser um dia, cada dia um ano e, um ano uma eternidade!

A monotonia do dia a dia, juntamente com as saudades da família, o stress começava a apertar! Como se isso não bastasse, a alimentação que nunca foi famosa por aquelas bandas, vinha piorando cada vez mais, a ponto de haver mais que um levantamento de rancho, (recusa de comer a respectiva refeição).

Na ementa diária constava, salvo raras exceções, num dia arroz com "estilhaços" no outro esparguete com "estilhaços" (pedacinhos de carne). Legumes, não havia! Dizia-se que o Vagomestre se estava a governar com o "pilim" que era devido a cada militar para sua alimentação.

Por essa altura escrevi a meus pais, queixando-me da dita alimentação. Que estava enjoado de comer constantemente arroz e esparguete e, em termos de desabafo, manifestei um desejo à minha saudosa mãe, dizendo-lhe:
- Ah mãe... Quem me dera comer uma boa posta de bacalhau. Fosse cozido, assado ou mesmo cru! (É meu prato preferido).

 Confesso que nunca imaginei o resultado deste meu desabafo! Apesar de meus pais viverem numa aldeia e serem pessoas de fracos recursos, minha mãe interiorizou o meu queixume e o amor de mãe falou mais alto. Deslocou-se aos correios, percorrendo a pé uma distância de aproximadamente 8 quilómetros, informando-se sobre a possibilidade ou não, do envio de uma encomenda para a Guiné. Como a resposta foi afirmativa, na volta do correio entre outras coisas, dizia mais ou menos seguinte:
- Meu filho, recebi as tua carta e tomei nota do que dizias relativo à alimentação. Sabendo dos teus desejos, fui aos Correios de Vila Meã e despachei um pacote com bacalhau. Quando o receberes, dá-me notícias. Reconheço que não será o suficiente para te matar a fome, mas creio, contribuirá para teres alguns momentos de satisfação.

Cabe aqui uma nota de agradecimento:
- Obrigada mãe. Onde quer que estejas, que tenhas a devida recompensa pelo bem que me fizeste. De mim, nesta altura que escrevo, só poderei a título póstumo, publicamente agradecer-te e saudosamente recordar-te, vertendo algumas lágrimas de emoção causada pela prática do teu ato.

Depois de tão surpreendente novidade, dei por mim a imaginar se tal encomenda chegaria ao destino! Tomasse ela o rumo de algumas "folhas de vide" (notas de 20 escudos), que eram enviadas dobradinhas junto às notícias dentro dos aerogramas e, dificilmente comeria bacalhau! 

Felizmente assim não aconteceu! Passadas que foram cerca de 3 semanas(?), recebi o aviso e levantei a dita encomenda! Fiquei maravilhado. Coloquei o pacote às costas com cerca 4 kg, dirigi-me à caserna, e imediatamente o abri. Ali estavam diante de meus olhos umas boas postas do fiel amigo!

Para o saborear, convidei meia dúzia dos meus amigos e camaradas mais próximos e, no final do repasto, o resultado fica à imaginação de cada um, bastando para tanto visualizar as fotos que junto. Quando mais tarde noticiei a minha mãe o gosto que me tinha dado, ela, algum tempo depois, repetiu a dose, e o resultado final do segundo foi idêntico ao do primeiro. 

Penafiel. 4/11/2013
Joaquim Moreira Cardoso
Ex-Sold.Trans. NM 194530/71


Nesta foto, a começar da esquerda em plano mais baixo: O Vasco e eu Cardoso. Em plano mais alto, Pereira e Cunha(?). Na direita e plano mais baixo, o Monteiro e Morim(?)



Nesta foto, à esquerda, o Graça, de costas o A.Santos e mais 3 colegas dos morteiros e na direita eu, Cardoso
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Nota do editor

Último poste da série de 20 DE SETEMBRO DE 2013 > Guiné 63/74 - P12063: Memórias de um passado (Joaquim Cardoso) (2): Um só dia e uma só noite no mato bastaram para um grande susto

sexta-feira, 20 de setembro de 2013

Guiné 63/74 - P12063: Memórias de um passado (Joaquim Cardoso) (2): Um só dia e uma só noite no mato bastaram para um grande susto

1. Mensagem do nosso camarada Joaquim Cardoso (ex-Soldado de TRMS do Pel Mort 4574, Nova Lamego, 1972/74), com data de 17 de Setembro de 2013:

Caros Amigos e Camaradas:
Envio este texto, que é mais um pedaço daquilo que se vai mantendo no meu arquivo memorial. Certo das insuficiências que ele contém referentes a datas e, qual a Companhia e/ou Batalhão do pessoal que me acompanhou. Fiz algumas pesquisas, mas considerei insuficientes para arriscar as suas nomeações. Penso contudo que dará para subentender um momento de aflição por que passei em terras Africanas.


MEMÓRIAS DE UM PASSADO

2 - Um só dia e uma só noite no mato bastaram para um grande susto 

Foi em princípios do mês de Setembro de 1972 que cheguei ao Gabú-Sara em Nova Lamego na Guiné, isolado, (como já tive a oportunidade de referir noutro texto), dos meus companheiros do Pelotão de Morteiros 4574/72.
Após a chegada, comecei por contactar os serviços praticados no Posto de Rádio, Central Telefónica e Centro de Mensagens, afectos à CCS do BCAV 3854, de forma a obter experiência e, posteriormente, fazer parte da escala de serviço dos restantes companheiros de transmissões.

Três ou quatro dias(?) depois de ter chegado, fui informado pelo 1.° Sargento Martins que pertencia ao mesmo Pelotão, para na manhã do dia seguinte me equipar com a farda de mato para seguir para o CAOP, (Quartel Velho), a fim de acompanhar uma coluna em serviço de transmissões, (por falta de pessoal no dito Quartel), coluna essa que tinha como finalidade, (soube depois), o reconhecimento de um local que diziam ser muito perigoso e que já tinha sido utilizado pelas tropas opositoras nas suas ações de guerrilha.

Dando cumprimento à ordem que havia recebido, de manhã vesti o camuflado, preparei a mochila, enfiei 4 carregadores de munições no cinto, peguei na G3 e aguardei.
Transportaram-me depois num jeep até ao Quartel Velho e, após me ter juntado ao resto do pessoal, fomos transportados em Berliets e Unimogs que atravessaram a Bolanha, seguindo pela estrada alcatroada em direção a Oco Maúndo.

Percorridos alguns quilómetros(?), as viaturas pararam e apeámo-nos junto a uma picada em terra batida, tendo as ditas viaturas recolhido ao Quartel.
Não conhecia ninguém do grupo por duas razões: -Ter chegado há poucos dias ao Gabú e não pertencer àquele Quartel. Ali estava eu, junto daqueles operacionais, com a minha farda "novinha em folha" ainda a cheirar a naftalina, contrastando com a deles, em que se notava sem qualquer motivo para dúvidas, o desgaste provocado pelo tempo e/ou trabalhos já passados.

Mochila às costas, G3 num ombro e o rádio AVP1 (Banana) no outro. O rádio Racal que fazia parte do meu equipamento, para comunicações a longa distância, seguia às costas de um carregador, contratado para o efeito, (era um luxo!).

O Alferes que comandava a coluna apeada ordenou para o pessoal formar duas filas, uma no lado direito e a outra no lado esquerdo da picada. Já habituados àquelas "andanças", o pessoal começou desde logo a tomar posições de acordo com as funções que cada um desempenhava e, as filas em pouco tempo ficaram formadas. Eu porém mantinha-me fora da fila, juntamente com o acompanhante com o rádio às costas, esperando orientações.

O Alferes que ia acompanhando os movimentos do pessoal, ao ver-me fora da fila, perguntou:
- Ó transmissões, não vais para a tua posição?

Respondi:
- Meu Alferes, cheguei há poucos dias da Metrópole. É a primeira vez que faço este tipo de serviço e não sei que posição tomar!

Dito isto, olhou para mim com ar de preocupado, com voz alterada e em linguagem militar pergunta:
- Sabes trabalhar com essa "merda"? - apontando com o dedo para o rádio.

Respondi-lhe:
- Depois de terminar a especialidade, utilizei um rádio Racal em duas finais de curso de Comandos na Serra das Meadas em Lamego e, sendo os rádios iguais, não vejo motivo para dificuldades.

Tinha já em minha posse os códigos correspondentes, (os que utilizo a seguir são fictícios), coloquei os auscultadores, puxei a antena, coloquei o botão na respectiva frequência, peguei no microfone e chamei o Posto de escuta:
- OSCAR OSCAR, aqui PAPÁ, diga se me ouve? - Escuto.
O OSCAR respondeu:
- PAPÁ aqui OSCAR, afirmativo-informe
O PAPÁ de novo:
- OSCAR aqui PAPÁ, é uma chamada de experiência.
O OSCAR responde:
- PAPÁ aqui OSCAR, ouço em perfeitas condições.
Finalmente o PAPÁ:
- OSCAR aqui PAPÁ, Ok terminado.

Depois do PAPÁ conseguir comunicar, foi para o meio duma fila onde afinal era o seu lugar!
Seria meio da manhã e, à ordem de avanço, as filas puseram-se em movimento.
Seguimos em marcha moderada com os elementos que a compunham distanciados cerca de 3 metros entre si, a arma em posição de fogo e em permanente vigilância das duas partes do matagal. 

Por volta do meio dia, meia hora(?), parámos para comer a ração de combate. Alguém já conhecedor do meio ambiente, fez uma pequena fogueira, não por falta de calor, que disso estavam todos bem abastecidos, mas para tentar afastar a mosquitagem que além de nos morder constantemente, teimavam em pousar no conteúdo da lata de conserva para dar umas bicadas.

A água do cantil em pouco tempo esgotou e só foi possível reabastecê-lo mais tarde, com a água existente nuns charcos de uma clareira rochosa, "quente como caldo" como é habitual dizer-se.
O Enfermeiro distribuiu ao pessoal "quininos" (habituais comprimidos), para sua desinfeção, e não sendo agradável bebê-la naquelas condições, serviu para humedecer os lábios, limpando-lhes a saliva que se havia acumulado.

A meio da tarde a marcha prosseguia, começando a ouvir-se algumas vozes discordantes, queixando-se ao Alferes do esforço que o pessoal estava a fazer. Entretanto, a marcha mudou de direção. Deixámos a picada e entrámos "mato dentro", agora numa só fila.
Caminhámos por um trilho ladeado de capim com mais de 2 metros de altura. A marcha aqui, tornou-se mais lenta, não só devido ao cansaço dos muitos quilómetros percorridos mas também, pelo aumento das dificuldades que se iam encontrando à medida da sua progressão.
Deu para entender que era local perigoso. As ordens vinham da frente para trás e, em passa-palavra dizia-se:
- Redobrar atenção, aproximar 1 metro, alargar 2 metros, etc.

Passado esse trilho, chegámos ao fim da tarde a um local amplo, onde passámos a noite.

É neste local onde apanhei o que considero ser, o maior "cagaço" da minha vida!
O Alferes ordenou ao pessoal para formar um círculo. Eu fiquei, entre outros, no meio desse círculo, distanciado cerca de 3 metros do Alferes. Seriam, 23 ou 24 horas(?), não havia luar, não se podia acender um cigarro, era escuridão quase absoluta.

Estendido no chão, estava o meu cérebro, bem como o resto do corpo, a aliviar-se um pouco do cansaço que a marcha lhes tinha provocado, quando de repente senti, ou sonhei, um puxão na capa com que me cobria, dando a sensação de me quererem raptar!

Acordo terrivelmente assustado, com o coração a bater mais forte que nunca, mas na incerteza, não "piei". Segundos depois outro puxão, mas agora não tinha dúvidas, era mesmo realidade!
Porém, logo de seguida, uma voz em tom de silêncio e com pronúncia Africana chama:
- Meu Alfero?

Ah... que alívio. - Era o guia!

Homem negro, conhecedor do terreno, que orientava o pessoal em plena mata, procurava aos apalpões na escuridão o Alferes para lhe comunicar que ouviram um barulho e convinha fazer reconhecimento.
Verificou-se depois que o dito barulho, fora provocado por animais que passavam próximos, e não por alguém que certamente estaria no nosso imaginário.

Com muita dificuldade refiz-me do susto, voltando à posição inicial, mas o sono que também se terá assustado, naquela noite não voltou.

Ao romper da aurora, vieram ao nosso encontro algumas viaturas que nos transportaram de regresso ao Quartel.
Após a minha chegada, dirigi-me à Enfermaria e pedi algo para colocar nos pés e músculos por forma a reparar o mal que a marcha dos mais que prováveis 30kms (?), lhes tinham causado.

Finalizando, refiro um à-parte que para mim foi curioso:
O Alferes, Comandante do meu Pelotão, abordou-me e perguntou:
- Onde estiveste ontem que não te vi?

Fiquei admirado com tal pergunta, e expliquei-lhe o que tinha acontecido.
Respondeu-me que nada sabia acerca do assunto e, por esse motivo, sendo o nosso Pelotão Independente, de futuro não voltaria a sair do Quartel, para qualquer tipo de serviço, sem sua autorização.

Tomei nota da sua recomendação e, felizmente para mim, nunca mais voltei ao verdadeiro mato, bastando assim um só dia e uma só noite para apanhar um grande susto.

Castelões- Penafiel, dia 17 de Setembro de 2013
J.Cardoso,
Ex-Sold. Trans. 194530/71

Joaquim Cardoso e Graça

Joaquim Cardoso na Cabina Telefónica

António Santos e Joaquim Cardoso
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Nota do editor

Primeiro poste da série de 21 DE AGOSTO DE 2013 > Guiné 63/74 - P11966: Memórias de um passado (Joaquim Cardoso) (1): O começo foi assim

quarta-feira, 21 de agosto de 2013

Guiné 63/74 - P11966: Memórias de um passado (Joaquim Cardoso) (1): O começo foi assim

1. Mensagem do nosso camarada Joaquim Cardoso (ex-Soldado de TRMS do Pel Mort 4574, Nova Lamego, 1972/74), com data de 12 de Agosto de 2013:

Camaradas e Amigos
Envio este texto que considero ser a primeira parte das memórias que guardo da passagem pela vida militar, do Continente à Guiné.
A sua publicação dependerá dos meus amigos em considerar ter ou não algum interesse para a causa da Tabanca, na certeza de que, ao escrevê-lo, para me envaidecer ou a alguém influenciar, haja posto aqui mais do que vi, senti e imaginei.
Joaquim Cardoso


MEMÓRIAS DE UM PASSADO

1 - O COMEÇO FOI ASSIM: 

Antes de seguir para o Ultramar, no Continente passei pelas seguintes Unidades:
- GACA 3 em Espinho: Recruta - Outubro de 1971.
- BC 5 em Campolide: Especialidade de Transmissões - Janeiro de 1972.

Terminada a Especialidade, em Março desse ano, segui para o CIOE em Lamego onde fiquei colocado, passando a desempenhar serviço na Secretaria de Mobilização.

O tempo foi decorrendo com normalidade, até que em princípio do mês de Agosto chegou o momento esperado, mas jamais desejado.
Estando afeto ao citado serviço, ao abrir-se o correio, um dos envelopes continha um dossiê que me dizia respeito!
Tratava-se da minha mobilização para o Ultramar que, não sendo agradável, tinha a agravante de ser para a Guiné, de onde tão más notícias chegavam a respeito da guerra.

Foi um choque!
Depois de receber algum conforto dos companheiros mais próximos, cerca de três ou quatro dias depois segui para o R15 em Tomar, (U. Mobilizadora) e à chegada, deu-se um caso para mim bastante insólito.
Entreguei a guia de marcha na Secretaria e, quando esperava orientações para me juntar aos companheiros que faziam parte do Pelotão de Morteiros 4574/72, o militar que me atendeu, após consultar pastas no arquivo e trocar algumas impressões com outros militares ali em serviço, informou-me sem mais explicações, que o dito Pelotão,  de que eu iria fazer parte, já estava na Guiné há quase um mês, tendo, por esse motivo, de seguir "sozinho".

Fiquei desolado.
Perante esta situação, imaginei desde logo o que iria sentir sem a presença dos meus companheiros com quem pudesse aliviar a pressão do momento, e interrogava-me:
- Será que chegando ao destino, encontrarei alguém conhecido?
Seria bom, mas era uma incógnita.

Um dia depois de ter chegado ao RI 15 em Tomar, recolhi à minha residência paragozar os 10 dias de licença para a despedida, findos os quais segui para um Quartel na Calçada da Ajuda em Lisboa, (se a memória não me atraiçoa, era da PM), para dali seguir para o Aeroporto .
Porém, como o avião atrasou, fui de novo mais três dias para casa havendo, por esse motivo, nova despedida, desta vez de menor intensidade emocional, (a segunda nunca é como a primeira!).

Regressado ao Quartel e transportado bem cedo ao Aeroporto, num dia de sábado, 26 de Agosto de 1972, o 727 dos TAM desta vez não falhou.
Sem bater asas levantou voo, tomou a devida altura e passadas que foram algumas 3 horas, aterrou no Aeroporto de Bissau por volta do meio dia.
Sendo para mim a primeira viagem de avião, não gostei! À passagem pelos chamados "poços de ar" o avião perdia altura e causava-me desagradável sensação. Ficou-me essa ideia, que ainda hoje é meio de transporte que procuro evitar.

Começava então a pisar chão Guineense, bem diferente do que estava habituado.
Este "queimava" devido ao tórrido calor que se fazia sentir, ficando em poucos minutos encharcado com suor.
Um militar "velhinho", ao ver-me naquele estado, disse para me pôr à vontade, que ali não havia grande rigor com o modo de trajar. (Em Nova Lamego não fora bem assim, como mais tarde constatei). Esteve lá um tal "Hitler"!).

O militar o disse, e eu melhor o fiz.
De camisa bem arregaçada, sem gravata, e com a ajuda do ar, embora quente, provocado pelo movimento da viatura que me transportou ao Depósito Geral de Adidos em Brá, senti-me menos acalorado.
Após a chegada, fiz a minha apresentação, sendo-me dito que iria aguardar transporte, barco ou avião, para Nova Lamego, indicando-me de seguida o refeitório e a caserna onde comer e pernoitar.
Chegada a hora do almoço, lá fui para a fila. Nunca tinha visto um Quartel com tantos militares mas, sendo um Depósito de Adidos por onde passavam praticamente todos os militares que chegavam e partiam, era compreensível.

No interior do refeitório sentia-se um calor sufocante e o cheiro à comida era tão intenso, que quase nada comi.
Aquando da tomada da refeição, através dos orifícios na parede que permitiam o arejamento do refeitório, pude ver o que infelizmente outros já tinham visto.No exterior permaneciam ali algumas crianças, umas nuas outras seminuas, que espreitando pelos ditos orifícios, fixavam os olhitos em quem comia, à espera que lhes dessem alguma coisa para comer e, na latita que uma delas possuía, lá pus um pouco do muito fraco que me haviam servido.
Notava-se a fome daquelas crianças que não "olhavam" a cheiros ou gostos, e se nada mais houvesse, até os restos comiam!

Este e outros episódios que mais tarde presenciei nos tabancais, onde pessoas com ferimentos horríveis e ausência total de tratamento, foram suficientes para perceber até que ponto ia a miséria daquele povo!

Após o período de refeição, deambulei pelo interior do Quartel na expectativa de, como disse, encontrar alguém conhecido. No primeiro dia o resultado foi negativo. No segundo, exatamente o mesmo. Porém, ao terceiro dia "se fez luz"!

A cerca de 200 metros, passava em sentido transversal um militar que pelo seu aspeto físico e forma de movimentos, despertou-me desde logo a atenção.
Dirigi-me de imediato em sua direção e, quanto menor era o espaço que nos separava, maior era a minha convicção.
Já próximos, estavam desfeitas todas as dúvidas: Ali, na minha frente, e surpreendentemente, estava o Graça, companheiro de Pelotão na Especialidade de Transmissões no BC 5 em Lisboa!
Abraçámo-nos e pergunta-me ele:
- Para onde vais?

Respondi-lhe:
- Vou para guerra em Nova Lamego - e perguntei - já ouviste falar desse local?

Resposta pronta:
- Eu também estou em Nova Lamego! - Estou aqui em Bissau para uma consulta externa.

De seguida fez outra pergunta:
- Qual o Batalhão ou Companhia que integras?

Disse-lhe que não se tratando de uma rendição individual, desconhecia o porquê de ir sozinho para fazer parte do Pelotão de Morteiros 4574/72 e, segundo me haviam dito, já estava na Guiné há cerca de um mês.
Admirado, retorquiu que também ele pertencia a esse Pelotão, incluindo o Santos e o Vasco! (éramos todos do mesmo Pelotão e Especialidade no BC5 em Lisboa), e sendo assim, por ironia do destino, nos iríamos juntar de novo!

Confesso que na altura duvidei do que acabava de ouvir. Não por pôr em causa a honestidade do Graça, mas por considerar ser bom demais para ser verdade. Para tirar dúvidas, dirigi-me de imediato à secretaria, onde me confirmaram o que eu há pouco havia duvidado. Nesse momento, o sentimento de tristeza e melancolia que estava vivendo, se modificou, pois estava convicto que, estando junto dos meus ex-companheiros, estaria certamente entre família, o que mais tarde realmente se provou.

Passando mais de uma semana a dormir numa caserna cujo ambiente deixava muito desejar, fui avisado para que na manhã do dia seguinte, presumo que era quarta-feira(?), pelas 5 horas da manhã, estar pronto a fim de ser transportado ao cais e prosseguir a viagem de barco.
Sendo também a minha primeira viagem neste tipo de transporte, não imaginava ser transportado numa LDG (Barco de Guerra), mas como não tinha contrato de viagem aceitei sem reclamações.

Embarcadas as cerca de 40 ou 50 pessoas, a maior parte nativas, foram retiradas as amarras, e o barco começou a afastar-se do cais para seguir rio Geba acima.
À saída, imaginei ali no Cais o Velho do Restelo, maneando três vezes a cabeça descontente e, com o saber só de experiência feito, estas e outras palavras tirar do esperto peito: (Ó glória de mandar, ó vã cobiça Desta vaidade a quem chamamos Fama!).

Estaria-se a navegar talvez a meio do percurso, quando no céu se formaram escuras nuvens de enorme dimensão, dando origem pouco tempo depois, a assustadores relâmpagos e trovões e, de seguida, a uma intensa chuvada que me deixou "ensopado".
Com esta situação, também aqui me lembrou o Canto Sexto dos Lusíadas, com a descrição da Tempestade, (ressalvando naturalmente as devidas proporções), considerei ter sido aquela o meu batismo das tempestades tropicais.
Como normalmente, a seguir à tempestade chega a "Bonança", também ali se cumpriu o ditado e, passado que foi cerca de meia hora, o sol voltou a brilhar e forte como de costume, alterando rapidamente o meu estado de molhado a seco e assim se continuou a navegar.

Pouco tempo depois, alguém avisava que por questões de segurança, todas as pessoas que ocupavam as partes cimeiras do barco, se deviam deslocar para as partes mais baixas. No momento que se cumpria tal ordem, as anti-aéreas que o barco dispunha, começaram a fazer movimentos, prontas a disparar se preciso fosse, ao mesmo tempo que dois aviões Fiat faziam voos por cima do barco a baixa altitude, com ruídos ensurdecedores, e no sentido circular, visionando a envolvência nas duas margens do rio.

Surpreendido com os aparatosos movimentos, pensei que certamente se estaria a chegar ao verdadeiro "Teatro de Guerra"!
Soube depois que este cenário se repetia e justificava, sempre que barco passasse naquele local que, por ser dos mais estreitos do rio, se tornava estratégico para o IN praticar as suas ações de guerrilha, o que já tinha acontecido.
Felizmente nada de especial aconteceu e, passado o perigo, tudo voltou à normalidade.

A viagem prosseguia mas, aproximava-se do fim.
Pouco tempo depois, seriam 11horas(?)  chegou-se ao Xime, local indicado para o desembarque.
À chegada, encontravam-se ali vários militares e diversas viaturas para dar continuidade à viagem, mas desta vez por terra.
Como durante a viagem de barco não tinha sido dado qualquer alimento, pouco tempo depois da coluna iniciar a viagem, fez uma paragem no Quartel de Bambadinca, onde foi distribuída meia ração de combate que constava de: uma lata de atum, um pacotinho de leite e umas bolachas de água e sal.

Após este almoço de compreensível brevidade, a coluna fez-se de novo à estrada que não sendo nenhuma Via-Rápida, era considerada um luxo por aquelas bandas por ser asfaltada, e assim se rolava em direção ao Leste.

Atravessaram-se pequenas pontes de madeira, de segurança bastante duvidosa. Passou-se à Cidade de Bafatá e, percorridas que foram as cerca de 5 dezenas e meia de quilómetros sem sobressaltos de maior, pelas 2 horas da tarde mais ou menos, eis-me chegado finalmente ao destino, o Gabu-Sára em Nova Lamego.

À chegada estavam para me receber, (e que bem recebido fui!), os ex-companheiros: o Santos, o Graça e o Vasco.

No momento dos abraços, fui como que praxado com alguns "piu... pius", oferecendo-me mancarra, (palavra nova para mim que significava amendoim), e o Santos, que foi sempre o primeiro entre nós nos momentos de descontração, cantarolava "piriquito vai no mato que a velhice está cansada".

Foi um momento de alegria e também de bom humor, porque ao terem somente um mês de Guiné, a sua velhice era muito infantil.

Terminada a viagem, estava no local de guerra que me foi destinado.
Felizmente, durante os cerca de 21 meses de permanência, não feri nem fui ferido, simplesmente adoeci, que não sendo coisa pouca, deu para sobreviver.

Passadas que foram mais de 4 dezenas de anos sobre estas histórias, aqui as vou deixando escritas para que constem, certo não só, das naturais imprecisões que o tempo já passado lhes provoca, mas também pela reconhecida falta de conforto académico do autor para as melhor compor e contar.

"Desgastado" da viagem, é altura de fazer um interregno para descanso.
Não será certamente como o de 1383/85 porque, o assunto aqui tratado, além de ser incomparável, é de muito menor importância relativamente àquele, e assim pouco tempo bastará para recuperar forças e regressar ao mesmo local para as continuar.

Despeço-me com um grande Alfa Bravo a todos os Tertulianos e até breve.

Castelões-Penafiel.
Neste dia de domingo, aos 11 dias do mês de Agosto de 2013
Joaquim M. Cardoso
Ex-Soldado de Transmissões
NM 19453071