sábado, 13 de julho de 2019

Guiné 61/74 - P19976: Os nossos seres, saberes e lazeres (340): Na Bélgica, para rever e para descobrir o nunca visto (5) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 7 de Fevereiro de 2019:

Queridos amigos,
O viandante hesitou se deveria começar a manhã num local icónico, jamais aqui referido, o Centro Belga da Banda-Desenhada, a Bélgica é uma das principais potências mundiais desta arte, foi em 1929 que apareceu Tintin, mais tarde Edgard Jacobs com Blake and Mortimer, Willy Vandersteen com Bob e Bobette, o jornal Spirou, etc. Fica para a próxima.
Decidiu-se a contemplação da Grand-Place que permite a visita ao edifício camarário, muito belo e a Maison du Roi com património valiosíssimo. Dali seguiu-se para Namur, um almoço aconchegado, com vitualhas típicas, esplêndidos queijos e um Bordéus insuperável, toca de passear pela floresta, a pôr a escrita em dia, a lembrar outras férias, outros passeios, muitas exposições em comum com a adorada Nelly Alter.
Era um dia social, meteu visita a casa de uma grande amiga em Anderlecht, houve uma sessão de histórias para duas crianças, que maravilha. E amanhã volta-se ao parque do Cinquentenário, é imperioso rever um recheio soberbo que não se visita há mais de 10 anos.

Um abraço do
Mário


Na Bélgica, para rever e para descobrir o nunca visto (5)

Beja Santos

O viandante caminha para a Grand-Place, estamos no coração histórico de Bruxelas, um dos mais belos conjuntos arquitetónicos de toda a Europa, haja a opinião que houver de Bruxelas como destino turístico excelente. Aí pelos séculos XIII e XIV a praça era constituída por casas patrícias, então apareceu o edifício municipal com a sua extraordinária torre, aos poucos as diferentes corporações destronaram as casas patrícias e surgiram edifícios de prestígio emblemáticos. O bombardeamento francês de 1695 destruiu quase completamente este primeiro complexo. Posteriormente, deu-se a renovação do edifício da Câmara Municipal, das casas das corporações com toda a sua riqueza e variedade das fachadas barrocas, douradas e com esculturas, encimadas pelos diferentes emblemas das corporações. A praça é de uma grande homogeneidade, e o seu equilíbrio também é devido à correção da escala, ao próprio contraponto entre o edifício municipal com a flecha de 96 metros onde está a estátua de S. Miguel contrapondo com a Maison du Roi, que alberga o Museu da Cidade de Bruxelas e as suas preciosidades em pintura, escultura, ourivesaria e outras artes decorativas. É uma fruição interminável, sempre que pode o viandante aqui anda a contemplar, e quarenta anos depois há segredos que se revelam.





Quem diz Grand-Place diz Gare Centrale, lugar que para o viandante é sinónimo de comboio até Namur, uma grande amiga organizou almoço e passeata. Toca de a homenagear, o viandante conhece este quadro de uma pintora russa, Veneza ao Luar, contempla-o com satisfação, põem-se à mesa, conversa-se imenso, há imensos projetos a desfiar, promessas de viagens, e depois partem, vão deambular por florestas, a Valónia é um portento de maciços verdes.




Regresso de Namur, à noitinha viandante e amigos encontram-se em Anderlecht, um dos bairros mais populosos de Bruxelas, nova visita, a dona da casa tem dois meninos que amam histórias de encantar, impossível não reter a imagem de André Cornerotte a falar de duendes, estrelas e raios de luz que perpassam pelas florestas, as duas crianças escutam-no atentamente, a avó não se intromete, tal o poder encantatório de tudo quanto para ali se narra em voz ciciante e gesticulação bem a propósito. E o viandante olhou para a luz e igualmente se deslumbrou com os efeitos óticos, toca de os registar. Mais um dia feliz em Bruxelas, amanhã regressa-se ao Parque do Cinquentenário.





O Parque do Cinquentenário é um sinal da velha opulência graças aos senhores do Congo: monumento e zona de respiração citadina, trinta hectares na forma de um pentágono, com os edifícios da Comissão Europeia e do Parlamento bem perto, é por aqui que amanhã o viandante deambulará, visita a um museu, passeio pelos jardins, depois.

(continua)
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Notas do editor

Poste anterior de 6 de julho de 2019 > Guiné 61/74 - P19952: Os nossos seres, saberes e lazeres (337): Na Bélgica, para rever e para descobrir o nunca visto (4) (Mário Beja Santos)

Último poste da série de 13 de julho de 2019 > Guiné 61/74 - P19975: Os nossos seres, saberes e lazeres (339): Excertos do "meu diário secreto, ainda inédito, escrito na China, entre 1977 e 1983" (António Graça de Abreu) - Parte XI: A grande muralha, Pequim, 2 de julho de 1980

Guiné 61/74 - P19975: Os nossos seres, saberes e lazeres (339): Excertos do "meu diário secreto, ainda inédito, escrito na China, entre 1977 e 1983" (António Graça de Abreu) - Parte XI: A grande muralha, Pequim, 2 de julho de 1980


China > Jinshanling > A Grande Muralha da China, património mundial da humanidade. Foto de Severin.stalder (2013). Cortesia de Wikipedia.



 
1. Mensagem de António Graça de Abreu:

Data: quinta, 27/06/2019 à(s) 21:37

Assunto: Meu caro Luís, para eventual publicação no blogue. Não tem a ver com a nossa Guiné, mas será interessante. Abraço.


Mais um excerto do "diário secreto, ainda inédito, escrito na China, entre 1977 e 1983", do nosso camarada do António [José] Graça de Abreu. (*)

[ Nota biográfica: (i) viveu na China, em Pequim e en Xangai, entre 1977 e 1983; (ii) foi professor de Português em Pequim (Beijing) e tradutor nas Edições de Pequim em Línguas Estrangeiras; (iii) na altura, ainda era, segundo julgamos saber, simpatisante ou militante do Partido Comunista de Portugal (marxista-leninista), o PC de P (m-l), fação Vilar (Eduíno Gomes), alegadamente o único reconhecido pela República Popular da China; (iv) ex-alf mil SGE, CAOP 1 (Teixeira Pinto, Mansoa e Cufar, 1972/74); (v)membro sénior da nossa Tabanca Grande, e ativo colaborador do nosso blogue com cerca de 240 referências; (vi) compulsivo viajante, tem "morança" em Cascais; (vii) é um cidadão do mundo, poeta, escritor e reputado sinólogo; (viii) nasceu no Porto em 1947; (ix) é  casado com a médica chinesa Hai Yuan, natural de Xangai, e tem dois filhos dessa união, João e Pedro.]



Pequim, 2 de Julho de 1980 (**)



"Do parapeito, meio desmoronado da Grande Muralha, arrancámos um pesado tijolo. Carregámos com ele até Badaling e conservá-lo-emos como a mais preciosa relíquia de toda a nossa peregrinação pelo mundo."[1]

Estas palavras foram escritas em Outubro de 1887 pelo Conde de Arnoso, um dos raríssimos portugueses a viajar pela China na segunda metade do séc. XIX. De regresso a Lisboa, via Paris, Bernardo Pindela, o conde de Arnoso trouxe uma cabaia chinesa que ofereceu ao seu amigo Eça de Queirós, e um tijolo da Muralha da China que levou para sua casa.

Em Maio de 1980, o governo chinês fez publicar um decreto-lei onde se diz: "A remoção de tijolos, terra ou pedras da Grande Muralha, sob que pretexto for, está sujeita a pesada multa ou pena de prisão."

Quase cem anos depois da história do tijolo do nosso conde de Arnoso, a China parece apostada em não deixar que se cometam mais atentados contra o seu património cultural. Recentemente, li na imprensa chinesa uma acusação contra uma determinada unidade militar que, estacionada junto da Grande Muralha, não hesitou e foi lá buscar pedra, já cortada, para construir o seu quartel. 


Ao longo dos séculos, esta fabulosa construção que se estende por seis mil quilómetros, tem visto alguns dos seus sectores serem esventrados e destruídos. Todavia, não tem sido apenas a Muralha a sofrer as consequências da insensastez ds homens. Ruínas arqueológicas, templos, pagodes, palácios antiquíssimos foram deixados muitas vezes ao abandono ou transformados em arrecadações de cereais, mesmo em casas de habitação.

A China tem 45 séculos de história ininterrupta que se estende por 24 dinastias, o património arquitectónico e cultural é extraordinário, mas a incúria e a ignorância chinesa quanto à sua própria História são também muito grandes. Refiro-me sobretudo aos camponeses e a gente do campo, são 800 milhões de almas. Um voluntarismo e utilitarismo extremo na vida de todos os dias tem levado, muitas vezes, os chineses a ignorarem os valores do seu passado.

No início dos anos sessenta, a muralha que rodeava a cidade de Pequim foi literalmente arrasada, em nome do progresso, da abertura de novas avenidas e da construção da rede do metropolitano. Hoje são os próprios chineses a reconhecer que se foi longe demais ao acabar-se com a muralha construída no início do século XV, que dava à capital da China um cunho de cidade medieval, raríssima no mundo. 


Na mesma altura, no plano geral de alargamento das ruas de Pequim, foi decidido cortar a meio a "cidade redonda", no parque Beihai. Trata-se de um fabuloso conjunto arquitectónico, com pequenos pavilhões e pagodes, uma ponte em mármore entre dois belos lagos, tudo isto construído a partir do século XIII. Zhou Enlai, que era primeiro-ministro, soube do sacrilégio que ia ser cometido e opõs-se terminantemente. A "cidade redonda" salvou-se e a nova avenida acabou por circundá-la.

Durante a Revolução Cultural, o ímpeto revolucionário dos guardas vermelhos, em nome da "destruição de um passado feudal", não poupou templos, igrejas, bibliotecas. Muitas vezes foi necessária a intervenção do exército para se impedir o vandalismo desenfreado. Hoje, restaura-se o antiquíssimo património construído, procuram-se cicatrizar as feridas do passado, embora algumas já não tenham cura.

Os ocidentais também são responsáveis por muita da delapidação do património cultural chinês, antes de 1949. Em Guilin, província de Guangxi, vi, há dois anos atrás, várias grutas antigas com centenas e centenas de estátuas de budas esculpidas na pedra. De muitas delas, restava apenas o lugar, tinham sido cuidadosamente cortadas da pedra, embaladas e transportadas para os Estados Unidos da América. 


Coisas deste género, aconteceram no passado um pouco por toda a China. Os museus de Nova Iorque, Paris ou Londres, ou as colecções particulares, estão cheias de valiosíssimas peças chinesas.

O que vale é o facto do património arquitectónico e artístico da China ser quase inesgotável, ser capaz de resistir a muitos dos atentados, antigos e recentes. De qualquer modo, o nosso Conde de Arnoso, se pudesse voltar hoje à China, já não regressaria certamente a Lisboa com um tijolo da Grande Muralha.[2] 

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[1] Conde de Arnoso, Jornadas pelo Mundo, Porto, Magalhães e Moniz Editores, 1895, pag.366


[2] No "Diário de Notícias", de 13.07.1980

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Notas do editor:

(*) Vd. poste de 30 de junho de 2019 > Guiné 61/74 - P19932: Os nossos seres, saberes e lazeres (335): Excertos do "meu diário secreto, ainda inédito, escrito na China, entre 1977 e 1983" (António Graça de Abreu) - Parte X: Pequim, 5 de dezembro de 1977, visita a uma unidade militar

(**) Último poste da série >  8 de julho de 2019 > Guiné 61/74 - P19957: Os nossos seres, saberes e lazeres (338): em louvor da tradicional batatada de peixe seco da Marquiteira, Lourinhã (Luís Graça)

Guiné 61/74 - P19974: Parabéns a você (1653): António Tavares, ex-Fur Mil SAM do BCAÇ 2912 (Guiné, 1970/72) e Rogério Ferreira, ex-Fur Mil Inf MA da CCAÇ 2658 (Guiné, 1970/71)


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Nota do editor

Último poste da série de 12 de Julho de 2019 > Guiné 61/74 - P19970: Parabéns a você (1652): António Dâmaso, SargMor Paraquedista Ref das CCP 122 e 123/BCP 12 (Guiné)

sexta-feira, 12 de julho de 2019

Guiné 61/74 - P19973: Memórias de Gabú (José Saúde) (85): "Exército" de abelhas (José Saúde)

1. O nosso Camarada José Saúde, ex-Fur Mil Op Esp/RANGER da CCS do BART 6523 (Nova Lamego, Gabu) - 1973/74, enviou-nos mais uma mensagem desta sua série. 

As minhas memórias de Gabu 

A mata e os seus mistérios
“Exército” de abelhas

Num esmiuçar de imagens que nos transportam aos tempos da guerra, viajo por terras de Gabu e recordo aquelas horas passadas no mato em que o perigo espreitava e o pessoal era, num outro prisma, também fustigado por um “exército” de abelhas que não davam tréguas ao mais resistente combatente.

Caminhando à toa e sempre pensando no IN que poderia “andar ali perto”, ainda que por outro lado a mensagem passada assentasse basicamente por não descuidar os princípios que a guerrilha impunha, a mata escondia mistérios que muito surpreendia o previdente caminhante.

O habitual camuflado que transportávamos no corpo no interior declarava-se, também, como uma peça fundamental que nós não dispensávamos perante as adversidades que a dureza do matagal envolto em segredos impunha a cada momento.

Procuro o significado de camuflado, melhor, recorro à definição do verbo camuflar, sendo a resposta que aquele usual fardamento era um investimento para “disfarçar ou encobrir” as nossas presenças perante a minuciosa miragem de um IN sempre atento às movimentações das nossas tropas.

Hoje, traga-vos como recordação os austeros momentos em que os enxames de abelhas colocavam o pessoal num autentico frenesim. Sabeis, por certo, que as suas picadas não eram, e nem tão-pouco o são, “coisa” meiga de aguentar, logo as suas surpreendentes “emboscadas” impunham respeito.

Resguardadas em refinadas “trincheiras” de defesa, espreitavam o inimigo que, naquele caso, se julgava imune a eventuais ciladas destes laboriosos “bicharocos”, uma vez que depois de incomodadas soltavam os seus ferrões em direção a um prossuposto adversário que se via completamente desorientado face ao mordaz ataque do tão nefasto e émulo “opositor”.

Este pequeno introito esbarra numa situação em que assisti a um “ataque” de abelhas na região de Gabu. Íamos no mato, há um camarada que inadvertidamente tocou numa árvore e num repente tínhamos em cima de nós um batalhão destes perniciosos “bichos”.  

Os zumbidos eram assustadores, houve camaradas com o ferrão destes maliciosos “insetos” cravados na pele, a malta correu desalmadamente por tudo o que era sítio, existiu, evidentemente, uma momentânea dispersão, seguindo-se o toque a reunir mas com os olhos bem abertos não fosse o diabo tece-las.

Após reunir as tropas a malta comentou o sucedido, houve quem se divertisse com a marosca e outros queixosos pelo então infeliz ataque. Tudo, porém, se enquadrava com o teor do terreno pisado. 

Nas minhas memórias de Gabu guardo, religiosamente, situações em que também fui um agente que interveio nas mais diversificadas situações, sendo que os meus neurónios, não adormecidos, ainda conseguem relatar nacos de um passado distante mas sempre atuais e essencialmente de acordo com as lembranças de todos os meus caríssimos camaradas. 


Um abraço, camaradas 
José Saúde
Fur Mil Op Esp/RANGER da CCS do BART 6523

Mini-guião de colecção particular: © Carlos Coutinho (2011). Direitos reservados.
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Nota de M.R.: 

Vd. último poste desta série em: 

29 DE JUNHO DE 2019 > Guiné 61/74 - P19930: Memórias de Gabú (José Saúde) (84): Rapaz franzino, de reposta fácil e acertada. O Dias e sua rebeldia. (José Saúde)

Guiné 61/74 - P19972: Notas de leitura (1197): Missão cumprida… e a que vamos cumprindo, história do BCAV 490 em verso, por Santos Andrade (14) (Mário Beja Santos)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 25 de Março de 2019:

Queridos amigos,
Santos Andrade nunca escondeu que não procurava fazer poesia mas simplesmente narrar ou fazer crónica. Estou a tomá-lo a sério, em breve a história do BCAV 490, que o nosso confrade Carlos Silva tão amavelmente me emprestou, virá à baila, será companhia até final do relato.
Na batalha do Como serão convocados Armor Pires Mota e Alpoim Calvão, temos textos de altíssima qualidade. Por essa altura, se acaso este modo de abordar as coisas for aliciante para a nossa sala de conversa, já muita gente entrou em cena, com depoimentos, fotografias, comentários alusivos à crónica do nosso bardo. Oxalá que assim seja, tanto pelo dever de memória como pelo vigor da recordação dos vivos, que aqui estamos a homenagear.

Um abraço do
Mário


Missão cumprida… e a que vamos cumprindo (14)

Beja Santos

“A missão continuou
sofrendo-se grande emboscada.
A Companhia do Ventura
foi muitas vezes atacada.

A 3.ª Companhia
à meia-noite saiu
e de manhã cedo se viu
um bando cheio de rebeldia.
O Moita fogo fazia
e um terrorista tombou
uma arma lhe apanhou
e os enfermeiros dele trataram
e como prisioneiro o levaram.
A missão continuou.

Por um carreiro tudo caminhava
e chegou-se a uma povoação
que só tinha habitação
quando a noite chegava.
De dia só quem lá estava
era uma velha de pele enrugada.
Foi por nós interrogada,
mas pouco descobriu,
e para a mata connosco seguiu,
sofrendo-se grande emboscada.

Na mata o ataque se deu
às 3 horas do dia.
Houve 11 feridos na Cavalaria,
incluindo o que morreu.
O Joaquim da Costa muito sofreu
precisamente nesta altura.
Também sofreu muita amargura
o amigo José Revez
pois atacada em Morés
a Companhia do Ventura.

Não tinham água para beber
e já havia poucas munições.
Por intermédio das transmissões
veio a avioneta abastecer
onde trouxe também comer
porque não tínhamos nada.
Uma coisa tão amargurada
não esperavam de passar.
E a 489 com azar
foi muitas vezes atacada.”

********************

O bardo não esconde as agruras da vida operacional, ora encetada, o Morés era o osso mais duro de roer. E viaja a recordação para outro livro de Cristóvão de Aguiar, de nome “Ciclone de Setembro”, com primeira edição em dezembro de 1985, três partes com títulos saborosos: "Terra de Ventos"; "Os Ventos da Guerra" e "O Futuro de Ventos". Obra da qual mais tarde o escritor açoriano irá buscar o barro para o livro “Braço Tatuado”.
Logo um texto de enorme ferocidade, tem a ver com o drama de um guia prisioneiro:
“O prisioneiro está sentado num abatis. Continua algemado e assim ficará para todo o sempre. Guarda-o o soldado Capitão Castelar. Segura-lhe a ponta da corda amarrada à cintura. Daqui a pouco vai morrer. A este nem lhe dão tempo sequer de regressar ao aquartelamento.
O furriel enfermeiro, criatura a quem a guerra apurou os sentimentos humanitários, e outros, lembrou-se de ir dar de comer ao guia algemado. Leva-lhe o comer à boca. Tem a ração de combate aberta sobre um corpo decepado. Volta-se, tira uma garfada de atum, corta um pedacito de bolacha, e deposita tudo na boca do prisioneiro. À ilharga do indígena, o soldado-sentinela não está gostando da brincadeira. Nota-se-lhe o enfado na cara. E a revolta. Sempre que o enfermeiro se volta para se fornecer de alimento, aproveita o soldado a ocasião para calcar os pés do indígena com as botifarras, às vezes com a coronha da G3. Da boca do guia nem um ai se ouve, sorri apenas.
Vejo a cena, vou-me aproximando. Continua o soldado, mesmo verificado que o encaro com acinte e raiva, pisando os pés do prisioneiro. Estão já em sangue. O furriel, embebido no que está fazendo, não dá por nada. Ao abeirar-me da sentinela, não em contenho e dou-lhe uma funda bofetada. Tenta ripostar-me. Não lhe dou tempo e prego-lhe outra ainda mais rija e ameaço-o com a Parabellum: Se continuas a fazer tal filhadaputice, ponho-te em sangue, meu cabrão nojento.
Ele nem tentou reagir, mas disse-me: O meu alferes é tão turra como ele, se não o fosse, não me tinha batido, ameaçado com a Parabellum e escarrado na cara; é por causa deles e de outros como ele que andamos neste martírio; o meu alferes vai-me pagar”.

É nestas andanças que o horror muda de figura, aqueles militares ficam horrorizados com a tragédia que houve na frente da coluna:
“De súbito, um forte estrondo na direcção em que seguiram as duas viaturas. O nosso Capitão Farias fica lívido e ordena-me: Ó Mendonça, siga você com o seu grupo de combate nas respectivas viaturas e veja-me o que sucedeu. Arranco com o meu pelotão, vamos todos sem pinga de sangue, em silêncio. Nunca mais se escutou qualquer outro rebentamento nem tiroteio de resposta. Os Unimogs voam aos solavancos pela picada adiante. Ao longe, muito ao longe, principiamos a divisar as duas viaturas. Estão imobilizadas. Cada vez nos vamos aproximando mais. Alguns soldados descem dos Unimogs em andamento. Querem, à fina força, ser os primeiros a chegar ao pé das outras viaturas para darem a notícia. E ela vem de imediato: Meu alferes, estão todos mortos na primeira viatura; na segunda não há ninguém, nem rasto de sangue, foram, com toda a certeza, todos apanhados à unha e levados pelos turras.
Tenho a bússola dos sentidos desorientada. Não sei para que lado me hei-de virar. Os mortos já não precisam de auxílio, estão como hão-de ir. O pior são os outros, os da viatura rebocada. Será que fugiram? Será que foram feitos prisioneiros? Os pensamentos atravessam-me a cabeça em farrapos.
Todo eu sou aliás um farrapo. Chega o capitão com o resto da coluna. Vem pálido mas aprumado. Desce do jipão e vai de imediato espreitar os estragos. Após curta vistoria, vira-se para mim e ordena: Alferes Mendonça, nomeie meia dúzia de voluntários para ir para dentro da viatura dos mortos; quero os cadáveres alinhados no estrado da carroçaria. 
Chegámos a Piche à boca da noite. Os outros dez já lá estavam há muito. Fizeram cerca de vinte quilómetros em pouco mais de hora e meia. Alguns iam feridos com estilhaços das granadas que os guerrilheiros lançaram para dentro da primeira viatura. O Pombal, soldado condutor da segunda viatura, foi o primeiro a lá chegar. Ao entrar dentro do arame farpado que rodeava o aquartelamento de Piche, caiu redondo no meio do chão. E só deu acordo de si muito depois de termos lá chegado”.

É a hora da despedida de Cristóvão de Aguiar, com outra recordação deste mesmo livro, uma consideração bem difundida sobre as atribuídas valentias do soldado português, sabemos bem o porquê de tal exaltação, uma forma de anfetamina que procurava resultados, e que alguns deu:
“Em campanha, disse-me um dia o segundo-comandante do Batalhão, o nosso soldado é o melhor do mundo. Desde que tenha vinho e correio, nenhuma chatice entra com ele. Veja, nosso alferes, quem são as pessoas que se abalam por problemas psicológicos e têm, na sua maioria, de ser evacuados para a psiquiatria: alguns furriéis milicianos e uma chusma de oficiais do quadro complementar, sobretudo os provenientes das universidades, abarrotados de filosofices políticas e antipatrióticas. O mesmo já não acontece, por exemplo, aos graduados vindos da Academia e dos seminários. Esses são compenetrados de dever e resignação, habituados à dureza e à disciplina da vida, formados no amor à Pátria. Mas é no nosso soldado, bronco e simples, que se encontra o nosso melhor material humano e logístico. Vê na tropa um súbito céu de fartura. Por isso, nosso alferes, nunca viu nenhum soldadinho sofrendo da caixa dos pirolitos. Logo que se lhe dê vinho, rancho e correio a tempo e horas, nada o derrubará”.

O bardo fez recruta e especialidade, que formou Batalhão e rumou para a Guiné, conta as horas difíceis vividas em Bissorã e nos arredores, afinal há temíveis emboscadas, mas nada comparado com o que dentro de alguns meses irá ficar conhecido pelo nome da Batalha do Como.

(continua)
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Nota do editor

Poste anterior de 5 de julho de 2019 > Guiné 61/74 - P19949: Notas de leitura (1193): Missão cumprida… e a que vamos cumprindo, história do BCAV 490 em verso, por Santos Andrade (13) (Mário Beja Santos)

Último poste da série de 11 de julho de 2019 > Guiné 61/74 - P19969: Notas de leitura (1196): "SE SENTES NÃO HESITES", por Manuel Clemente; alma dos livros, 2019 (Mário Migueis da Silva)

Guiné 61/74 - P19971: (De)Caras (133): Faz hoje um ano que morreu um dos "bravos do Cachil", o ex-alf mil José Augusto Rocha (1938-2018), destacado dirigente estudantil (em 1962) e depois advogado, defensor de muitos presos políticos sob o Marcelismo. Tinha uma posição radical sobre a guerra colonial, a da denúncia ativa, razão por que declinara, em 2015, delicadamente, o nosso convite para integrar a Tabanca Grande.


Guiné > Região de Tombali > Cachil > CCAÇ 557 (1963/65) > 1964 > Fotos falantes...que não precisariam de legenda... Um dos piores lugares do inferno verde e vermelho que foi, para muitos de nós, a Guiné... Fotos do álbum do José Colaço (ex-Soldado Trms da CCAÇ 557, Cachil, Bissau e Bafatá, 1963/65) (*)

Foto (e legenda): © José Colaço (2011). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


Guiné > Região de Tombali > Cachil > CCAÇ 557 (Cachil, Bissau e Bafatá, 1963/65) >  'Trabalho forçado': o transporte dos toros para a construção da paliçada e casernas. Foto do fur mil Vitor Neto, da CCAÇ 557.

Foto (e legenda): © Victor Neto / José Colaço (2019). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


Guiné > Região de Tombali > Cachil > CCAÇ 557 (,Cachil, Bissau e Bafatá, 1963/65) > 1964 > Mata destruída e a vista parcial do quartel do Cachil do lado do cais....É visível a  paliçada, vista da  entrada com cavalo de frisa, para quem vinha do cais .... porque no lado oposto seria muito perigoso para o fotógrafo, nunca se sabia quando é que um turra poderia estar na mata grande do Cachil... Uma das baixas que a companhia teve logo quase à chegada foi de um tiro isolado quando o soldado estava a cavar o abrigo. Além disso era uma zona que estava armadilhada e pessoal estava avisado para não a usar, embora durante o dia e nos dias em que havia batidas à mata do Cachil, as armadilhas eram desactivadas para evitar acidentes.

Foto (e legenda): © Victor Neto / José Colaço (2019). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


Guiné > Região de Tombali > Cachil > CCAÇ 557 (,Cachil, Bissau e Bafatá, 1963/65) > 1964 > A construção da paliçada...

Foto (e legenda): © José Colaço (2015). Todos os direitos reservados. [Edição elegendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


Guiné > Região de Tombali > Cachil > CCAÇ 557 (,Cachil, Bissau e Bafatá, 1963/65) >  1964 > Tourada no Cachil... Um camarada a demonstrar os seus dotes tauromáticos.. A malta dava largas à imaginação para se distrair...e não dar em doidos!...

Foto (e legenda): © Victor Neto / José Colaço (2014). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


Guiné > Região de Tombali > Cachil > CCAÇ 557 (Cachil, Bissau e Bafatá, 1963/65) > 1964 > Abrigo "Cova do Comando" da CCAÇ 557 no Cachil. Alguém chamou a esta subunidade, que também participou na Op Tridente (jan/mar 1964), "a esquálida e esgroviada Companhia de Caçadores 557". Por detrás desta foto estão cinquenta e cinco dias a ração de combate, cerca sessenta dias sem mudar de roupa nem tomar banho, e com água racionada para beber

Legenda: a começar da esquerda para a direita o 1.º Cabo Enfermeiro Leiria; 1.º Cabo Radiotelegrafista Joaquim Robalo Dias; Dr. Rogério Leitão, que já partiu; atrás o 1.º Cabo Enfermeiro António Salvador, e por último, de quico, a sair do buraco, eu, Soldado de Transmissões José Colaço. As barbas com cerca de 90 dias. Os cabelos já tinham levado um corte para melhor se aguentar o calor. Aquela "divisória" entre o 1.º Cabo Dias e dr. Rogério, é uma cobra que durante a noite se lembrou de nos assaltar o abrigo e que só de manhã com a luz do dia foi detectada a um canto da cova. Foi condenada à morte pela catana de um milícia.

Foto (e legenda): © José Colaço (2015). Todos os direitos reservados. [Edição elegendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. A notícia da morte do José Augusto Rocha, amplamente noticiada pela comunicação social , (Público, Expresso, Diário de Notícias, RTP...), chegou-me, em primeira mão, por mail do José Colaço de 12/7/2018, às 13h32, a dizer telegraficamemte o seguinte: "Morreu o Dr. José Augusto Rocha, ex- alferes miliciano e 2º comandante da companhia de CCAÇ 557, 1963/65." (**)

 É justo que relembremos aqui, um ano depois, a sua morte deste nosso camarada que, depois da Guiné, acabou o curso de advocacia e foi um dos mais notórios defensores de presos políticos ao tempo do Marcelino. Defendeu gente de diferentes quadrantes político-ideológicos da esquerda, sem nunca levar um tostão.  Reproduzimos também parte do seu depoimento sobre a sua vida na tropa e  no TO da Guiné.

Algumas notas biográficas sobre este nosso camarada:

(i) foi director da Associação Académica de Coimbra, em 1962;

(ii) foi expulso de todas as Escolas Nacionais, por dois anos, na sequência da crise académica de 62;

(iii) esteve preso no Forte de Caxias; liberto sem culpa formada, ao fim de 4 meses;

(iv) cumpriu o serviço militar e foi mobilizado para a Guiné, como alferes miliciano (CCAÇ 557, 1963/65);

(v) termina a licenciatura em direito, Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, depois de ter regressado do TO da Guiné, em novembro de 1965:

(vi) inscreve-se na Ordem dos Advogados, em 13 de agosto de 1968 [, foto acima, à esquerda, reproduzida do respetivo boletim de inscrição, cortesia do portal da Ordem dos Advogados]

(vii)  participou em numerosos julgamentos e processos no Tribunal Plenário Criminal de Lisboa, onde defendeu vários presos políticos, nomeadamente Victor Ramalho, Francisco Canais Rocha, João Pulido Valente, António Peres, Diana Andringa, Fernando Rosas, Maria José Morgado, José Mário Costa, Paula Rocha, Isabel Patrocínio Saldanha Sanches, José Maria Martins Soares, Amadeu Lopes Sabino, Sebastião Lima Rego e Paula Metelo (Fonte: Esquerda.net)


2. Excertos, com a devida vénia,  do blogue "Caminhos da Memória" > Segunda feira, 19 de outubro de 2009 > Memória breve da história da Guiné > Um texto de José Augusto Roch

[Aconselha-se a leitura na íntegra deste depoimento, na fonte original; os excertos que reproduzimos levam subtítulos da nossa responsabilidade. LG]

(i) expulso da Universidade, ém 1962, é chamado para a tropa e mobilizado para a Guiné, em 1963

(...) A 25 de Novembro de 1963, embarquei no cargueiro «Ana Mafalda» (...), adaptado à pressa para transportar outra e nova carga – homens soldados – rumo à guerra colonial da Guiné. (...)

Nos anos sessenta, a ordem de incorporação e a ida para a guerra colonial estava indisfarçavelmente ligada à repressão política e à PIDE. Esta articulação era particularmente visível em relação ao movimento estudantil e em especial aos seus dirigentes. As medidas de repressão do aparelho do Estado, ao nível das forças armadas, eram várias e diversificadas e iam desde a incorporação em estabelecimentos militares disciplinares de correcção, como o de Penamacor, onde foi internado, por exemplo, o Hélder Costa e o João Morais, até incorporações antecipadas e transferências arbitrárias de quartéis, de acordo com estritas ordens da polícia política (PIDE).

No meu caso, libertado do Forte de Caxias, em Julho de 1963, fui incorporado logo em Setembro, para minha total surpresa, no Regimento de Lanceiros 2, conhecido como o quartel da polícia militar, unidade de confiança do regime político do Estado Novo.

Vim a encontrar aí outro dirigente associativo, da Associação dos Estudantes da Faculdade de Letras, o João Paulo [Gomes] Monteiro [1938-2016], filho do exilado político Adolfo Casais Monteiro. A surpresa de imediato foi esclarecida. O treino militar do 1º ciclo, naquele Regimento, era muito duro e de verdadeiro castigo e, logo que terminou, ambos fomos transferidos para a Escola Prática de Infantaria de Mafra, por despacho do então Ministro da Defesa Nacional, General Mário Silva [, ministro do exército, de 13 de abril de 1961 a 4 de dezembro de 1962, sucedendo-lhe o general Joaquim  Luz Cunha, até  19 de agosto de 1968]

Cumpre assinalar que ambos gozávamos de forte simpatia entre os cadetes instruendos e mesmo dos Alferes instrutores do Quadro. Fui chamado ao Comando e aí o Capitão Semedo (irmão do actor de teatro, Artur Semedo) fez questão em dizer que a convocatória queria expressar o seu profundo desacordo pela transferência, mas que ela era exterior ao Regimento e provinda de ordens do poder político. Terminada a instrução em Mafra, fui colocado, como Alferes Miliciano, no Quartel de Caçadores 5, em Lisboa.

Esta unidade militar era a unidade da confiança política do governo e comandada pelo Major Portugal, conhecido elemento da Legião Portuguesa. Tal como tinha acontecido no Regimento de Lanceiros 2, cedo gozei de grande simpatia junto dos Alferes Milicianos e do próprio Capitão da Companhia, Capitão Vieitas. Por força disso, fui escolhido pelos oficiais milicianos para integrar a mesa do Comando no dia oficial da Unidade e para em nome deles fazer o discurso oficial.


(ii)  feito 2º comandante da CCAÇ 557 (Bissau, Cachil, Bafatá, 1963/65)

Não tardou que novo despacho do mesmo General Mário Silva ordenasse a minha transferência para Évora, para a Companhia de Caçadores de Infantaria 557 [CCAÇ 557], rumo à Guiné, sendo que a Companhia donde fui transferido embarcou para um lugar relativamente calmo, a cidade da Beira, em Moçambique.

Esta transferência foi muito controversa, com oposição, por escrito, do próprio Comandante da Companhia. Sincero ou não, por sua vez, o Major Portugal chamou-me ao Comando onde manifestou o apreço que os oficiais tinham por mim e sugeriu que apresentasse uma exposição escrita, que ele a remeteria às autoridades superiores. Recusei e lá fui para a Guiné, no «Ana Mafalda».

Cheguei à Guiné em 3/12/63 e, logo em 14 de Janeiro de 64, a Companhia 557, comandada pelo Capitão João Luis Ares e de que eu era o segundo comandante, por ser o Alferes Miliciano mais classificado, foi integrada na maior operação de toda a guerra colonial, a Operação Tridente, destinada a libertar a Ilha do Como, onde o PAIGC tinha a sua bandeira hasteada, simbolizando a primeira região libertada da Guiné Bissau.

Fui, então, transitoriamente retirado da Companhia e fiquei em Bissau como elo de ligação, para o envio de alimentos e o mais necessário à sua sobrevivência.

Em Bissau, acabei por formar uma espécie de tertúlia no «Café Bento» – à data, frequentado também pelo hoje Major Tomé e pelo advogado Orlando Curto – com o cirurgião do Hospital Militar de Bissau, António Almeida Henriques, que conhecia de Viseu, donde ambos éramos naturais, e o reanimador daquela equipa cirúrgica, António Rosa Araújo, que mais tarde, muitos anos depois, viria a defender, como advogado, no conhecido processo judicial «caso dos hemofílicos», também conhecido por «processo do sangue contaminado».

Estes dois oficiais médicos não escondiam a sua discordância com a guerra colonial (...).


(iii) A Op Tridente (Ilha do Como,  jan / mar 1964), em que participou a CCAÇ 557

Existe informação vária sobre as batalhas e forças militares que integraram a Operação Tridente, mas nenhuma sobre a CCÇ 557, de que eu era, como referi, o segundo Comandante. A Operação Tridente, assim chamada por integrar os três ramos das forças armadas portuguesa, implicou efectivos na ordem de 1200 homens, aviões, fragatas e lanchas de desembarque.

Na rigorosa descrição feita pelo oficial do exército da república da Guiné Bissau, Queba Sambu, a ilha do Como tem uma superfície de 210 kms quadrados, 166 dos quais são lodo das marés, sendo constituída por um litoral de tarrafe, lamaçais que, na maré baixa, chegam a atingir quatro kms entre a terra firme e os canais, de fluxo e refluxo marítimos. Seguindo-se ao tarrafe, estendem-se as bolanhas (arrozais) com alguns palmares, sendo o centro da ilha de matagal. Nas bolanhas, de largos canais de irrigação, o nevoeiro só permite uma visibilidade de três a cinco metros.

Foi nesta ilha que, no dia 14 de Janeiro de 1964, desembarcaram os 145 soldados e oficiais da CCAÇ 557, numa operação muito arriscada em que os soldados foram salvos de asfixia e atolamento completo no lodo, por cordas lançadas pelas lanchas de desembarque. O médico da Companhia, de nome [Rogério] Leitão – aliás um bom fotógrafo – tirou fotografias do acontecimento, mas o rolo acabaria por ser confiscado e perdeu-se esse testemunho documental.

A operação terminou de forma dramática para as populações da ilha, tendo sido destruídas e queimadas as tabancas (aldeias indígenas) aí existentes, e abatidas centena e meia de vacas e tudo o mais que constituía a forma de viver daquelas populações, como máquinas de costura, camas, roupas, etc…


(iii) A construção do aquartelamento do Cachil, pela CCAÇ 557

As tropas regressaram a Bissau e foi deixada na mata do Cachil a CCAÇ 557, num aquartelamento feito à pressa com troncos de palmeiras na vertical e em tudo parecido a um aquartelamento índio. Sem água potável, sem alimentação e expostos à malária e a severas condições de carência e sofrimento, estes homens, totalmente isolados e comendo meses a fio só rações, dependiam do mundo exterior de uma barcaça que, de vez em quando, ia ao centro de Comando situado na povoação de Catió.

Encurralados naquele curto espaço de mata, lamaçais e bolanhas, estes homens viveram uma verdadeira odisseia de isolamento e condições infra-humanas de sobrevivência, acossados por acções de ataques ao quartel e flagelações das forças do PAIGC, entretanto regressadas à Ilha, após a retirada das tropas da Operação Tridente para Bissau.


(iv) Regressado de Bissau, comandante interino da CCAÇ 557, no Cachil, sofre um ataque por engano da FAP

(...) Quando o capitão da Companhia foi de férias, vim de Bissau para o quartel de Cachil, para assumir as funções de comando, tomando contacto com homens destruídos psicológica e humanamente por condições tão duras de sobrevivência e onde situações de saúde física e mental se agravavam, dia a dia, à espera do dia redentor de uma substituição por outros efectivos.

Vivia-se este ambiente, quando um dia apareceram, lá no céu, dois aviões [F 86] [no original, Fiats lapso do autor, já que ainda não havia o Fiat G-91], que, para surpresa nossa, começaram a picar sobre o quartel e a metralhar toda aquela zona, nomeadamente junto ao improvisado cais do rio, onde estacionava a barcaça de ligação a Catió.

Em desespero, ordenei que fossem lançados para o ar very-lights e um grupo avançasse com a bandeira nacional, para mostrar que éramos tropa amiga, ao mesmo tempo que por via rádio comunicava com o Comando de Catió, para que o engano fosse desfeito. Os aviões desapareceram no horizonte e ninguém ficou ferido.

Na minha vida já tive dois acidentes graves de viação, mas aviões a jacto a picar sobre a minha cabeça, é acontecimento digno da linguagem própria de uma crónica de Fernão Lopes, quando no cerco a Lisboa, dizia: «era coisa espantosa de ver…».

Junto ao cais, entretanto, ficaram os destroços dos garrafões de vinho, grades de cerveja e rações de combate, que tinham sido abastecidos naquele dia à companhia!!!… O médico da companhia [, o Rogério Leitão, ] tirou fotografias do ataque, que infelizmente não disponho para ilustrar esta minha memória.

Fui a Bissau e protestei junto do Comando e encontrei-me com os aviadores que me informaram que tinham acabado de chegar à Guiné e faziam uma operação de reconhecimento, pensando que se tratava de forças inimigas… Que eu saiba, só houve dois enganos em ataques da aviação: este e um outro sobre os fuzileiros navais, de que resultaram, tanto quanto me lembro, dois mortos.

Acabámos por ser rendidos por outra Companhia e enviados para a zona da vila de Bafatá, donde regressei a Portugal a 24 de Novembro de 1965, para terminar o curso de Direito, que a minha expulsão da Universidade de Coimbra e de todas as escolas nacionais, por dois anos, tinha impedido de concluir.(...)

[Revisão / fixação de texto / subtítulos / hiperligações : LG]

3. O José Augusto Rocha e o nosso blogue:

(i) Comentário do nosso editor Luís Graça:

(...) Conheci, pessoalmente, o José Augusto Rocha em 15 de outubro de 2009 (**). Foi-me apresentado pela Diana Andringa, na estreia, no Doclisboa 2009, do seu filme Dundo, Memória Colonial.

Tivemos um conversa cordial, mas dise-me logo que não era homem de blogues nem pretendia "alimentar" o nosso banco de memórias... De resto não gostava de falar da Guiné e da guerra, a não ser no contexto das suas memórias políticas que estava a (ou tencionava) elaborar.. Falou-me do texto que estava a escrever (e de que reproduzimos acima  uma parte substancial), para o blogue "Caminhos da Memória", uma promessa que tinha feito, "a título excepcional"... Um dos autores que alimentava esse blogue era justamente a Diana Andringa. [Este blogue deixou de estar ativo a partir de 16 de maio de 2010, embora esteja "on line" e seja consultável.]

Falou-me por alto da Op Tridente, e de vários nomes do seu tempo: Cavaleiro Ferreira, Barão da Cunha, Saraiva... Fiquei a saber, por outro lado, que, na altura, em 1962, aquando da crise académica, e quando foi ele expulso de todas escolas do país, tinha a frequência do 5º ano do curso de licenciatura em direito... Só depois de regressar da Guiné, em finais de 1965, é que pôde completar o curso.

(ii) O José Colaço, nosso grã-tabanqueiro, ex-sold trms da CCAÇ 557 (Cachil, Bissau e Bafatá, 1963/65) acrescentou o seguinte a respeito do nosso camarada José Augusto Rocha:

(...) O ex-alferes miliciano Rocha era o meu comandante de pelotão, o 4º, ou seja, o pelotão de armas pesadas. Ele era também o 2º comandante da companhia.

Guardo dele, durante a nossa estada na guerra da Guiné, bem como de todos os oficiais e sargentos e restantes camaradas, as melhores recordações. Mas, para este ambiente funcionar como uma máquina bem oleada, houve, e ainda há, um homem que, além de militar com a sua patente de capitão, via no seu subordinado, no homem que estava à sua frente, outro ser humano como ele... Este homem dá pelo nome de João da Costa Martins Ares, hoje coronel reformado.

O Rocha possivelmente não te contou esta passagem: no início da nossa comissão é recebida uma mensagem dos serviços da PIDE com o seguinte teor, mais ou menos: que o capitão deunciasse o dia a dia do alferes Rocha pois ele era elemento a ser vigiado na sua conduta diária. As palavras não eram exactamente estas mas o sentido era vigiar o Rocha e informar os serviços da PIDE.

O capitão toma a seguinte resolução: chama o alferes Rocha, tem uma conversa séria de homem para homem, mostra-lhe a mensagem; o Rocha, por sua vez, conta-lhe todo o seu passado politico de oposicionista ao governo de Salazar, mas dá um voto de confiança ao capitão, o qual poderá contar com ele e, mais, que nunca seria atraiçoado.

Deste modo, o capitão conseguiu mais um amigo para levar a bom porto aquela nau durante vinte e três meses. (...)


(iii) Mensagem de email do José Augusto Rocha para o nosso editor Luís Graça, com data de 22/10/2009 :

(...) Sensibiliza-me o que diz sobre o depoimento que fiz para os Caminhos da Memória, mas permita-me que lhe diga que o seu depoimento sobre a guerra colonial é uma reflexão corajosa e muito lúcida. Se o termo não fosse controverso, acrescentaria: bela!

Bem, agora sim, estive a ler tudo o que consta do seu blogue, que se reveste de importância decisiva para a história da guerra colonial... ainda por fazer, ou não totalmente feita.

E a leitura que fiz, deu-me conhecimento de que, afinal, havia mesmo já alguém (o José Colaço) que tinha escrito sobre o Como e CCaç 557, ao invés do que digo no meu depoimento… Só me admiro que ele [não] fale do engano da aviação, até porque penso que foi ele que enviou o meu pedido de socorro para o Comando de Catió! ...

(iv) Três dias antes, a 19 de outubro de 2009, o José Augusto Rocha tinha esclarecido, sem qualquer margem para dúvidas, qual era a sua posição face ao nosso blogue e à nossa Tabanca Grande, razão por que emtendi não fazer sentido vir eu depois decidir, a título póstumo, sentá-lo à sombra do nosso poilão... Seria trair a sua confiança, desrespeitar a sua vontade e fazer batota, violando as nossas próprias regras do jogo...

(...) Quanto ao seu blogue, tenho as maiores dificuldades em nele colaborar. Tenho alguma radicalidade quanto a estas coisas da guerra colonial e sempre entendi que os encontros e confraternizações, a propósito dela, tendem a contar só meia memória, a memória boa, vista do lado de cá… Embora não pretenda julgar quem quer que seja, penso que compreender o passado implica um juízo de valor sobre o certo e o errado e, muitas vezes, nessas manifestações de convívio não é possível esconder a nossa discordância em relação ao que se ouve e isso cria um ambiente pouco propício ao encontro. Fui duas vezes a coisas dessas e jurei não mais ir!

(...) Por estas e por outras, quanto à guerra colonial, vou ficar-me pela “curta memória da guerra colonial das Guiné”, a publicar nos Caminhos da Memória, dando, quanto a este capítulo, por encerrado o meu dever de memória (...) 

(v) O último email que troquei com ele, nestes últimos 3 anos, em 8 de maio de 2015, e em que já nos tratávamos por tu, tirou-me as derradeiras ilusões sobre a possibilidade de ele vir um dia aceitar o nosso convite para se juntar ao nosso blogue, enquanto coletivo de ex-combatentes da guerra da Guiné. A sua posição sobre a guerra colonial era firme, coerente e definitiva, aos 76 anos, e só tive que respeitá-la... 

Tenho hoje pena de, não obstante a nossa troca de emails, nunca termos podido, em tempo útil, ou seja, em vida, sentarmo-nos, à mesa para uma conversa mais franca, "tête-à-tête", olhos nos olhos, sobre a nossa experiência enquanto combatentes e as nossas posições político-ideológicas face à guerra colonial:

(...) Quanto ao mais, tudo é mais difícil e diria mesmo impossível. A minha posição em relação à guerra colonial, a única que entendo possível, urgente e inadiável, é a sua denúncia activa, nela tendo um grau de responsabilidade incontornável, todos quantos assistiram e até participaram nos massacres( e depois até foram condecorados por esses feitos em nome da Pátria) de todo um povo cujo único crime foi existir. Ainda hoje vivo memórias horrorizadas de tudo que vi e presenciei e me foi narrado. 

Daí que pense que blogues como os "Camaradas da Guiné”, usando uma expressão de Roland Barthes, “ tendem em instituir-se como exteriores à História” e “é lá onde a História é recusada que ela mais claramente age”. Daí que a minha tribuna só possa ser política e ideológica, o que, como é evidente, não cabe no âmbito neutro e apolítico do teu blogue. Mas será que, bem vistas as coisas, existem blogues apolíticos a falar de acontecimentos de uma guerra, mesmo a propósito de camaradagem entre os seus autores e actores? Conversa longa que não cabe neste escrito. Não estaremos perante uma operação mitológica?

Espero que compreendas e não leves a mal esta minha posição, mas as minhas memórias da Guiné são políticas e como tal estão a ser escritas e delas darei justo testemunho cívico e republicano. (...)


Quando ele morreu, três anos depois, com 79 anos,   eu tive pena de não ter tido feito um esforço adicional, não para o convencer, mas pelo menos, para clarificar a missão (talvez impossível) do nosso blogue e sua íntrínseca ambiguidade. É possível fazer pontes, tentando concilitar o que é inconciliável ? Sem querer entrar em polémica, acho que sim, e é desejável.

Afinal, ao fim destes anos todos (mais de meio século), os combatentes de um lado e do outro nunca chegaram a fazer as pazes... Pôs-se uma pedra no sapato e, pronto!... À boa maneira portuguesa!... Onde está "reconcialiação" entre os inimigos de ontem ? Onde há espaços para falarmos, cada um à vez, das suas experiências de guerra ? O Blogue "Luís Graça & Camaradas da Guiné" provavelmente vai acabar sem o ter conseguido... Vai seguramente acabar um belo dia destes, porque estamos velhos e cansados... Como acabou, demasiado cedo, o blogue "Caminhos da Memória"... Espero, ao menos, que o nosso deixe alguma saudade...

Há 15 anos que o tentamos, recusando as posições radicais do tudo ou nada... Guardo, do José Augusto Rocha, a memória do homem e do cidadão,   afável,  coerente, inteligente, corajoso, solidário e frontal.  Foi seguramente também um dos "bravos do Cachil", ou seja, um camarada nosso. (***)
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Notas do editor:

(*) Alguns dos muitos postes que já publicados sobre o Cachil, ilustrados com fotos:

4 de maio de 2014 > Guiné 63/74 - P13188: Memória dos lugares (266): Cachil, o meu suplício de Sísifo durante 30 dias (Benito Neves, ex-fur mil, CCAV 1484, Nhacra e Catió, 1965/67)

 4 de outubro de 2014 > Guiné 63/74 - P13688: Fotos à procura de uma legenda (36): Uma vacada... no Cachil (Victor Neto / José Colaço, CCAÇ 557, 1963/65)

5 de outubro de 2014 > Guiné 63/74 - P13692: Álbum fotográfico do Victor Neto, ex-fur mil, CCAÇ 557 (Cachil, Bissau e Bafatá, 1963/65) > Cachil: parte I

(**) Vd. poste de 13 de julho de 2018 > Guiné 61/74 - P18842: In Memoriam (318): José Augusto Rocha (1938-2018), ex-alf mil, CCAÇ 557, Cachil, Bissau e Bafatá, 1963/65... Um camarada cuja tribuna só podia ser "político-ideológica"...

(***) Último poste da série > 4 de julho de  2019 > Guiné 61/74 - P19948: (De) Caras (108): Manuel Barros Castro, ex-fur mil enf, CCAÇ 414 (Catió, Bissau e Cabo Verde, 1963/65), natural de Fafe, nosso grã-tabanqueiro nº 793..... Assumiu a paternidade da sua filha guineense, Maria Biai Barros Castro (1964-2009): uma história aqui (re)contada por Jaime Silva

Guiné 61/74 - P19970: Parabéns a você (1652): António Dâmaso, SargMor Paraquedista Ref das CCP 122 e 123/BCP 12 (Guiné)

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Nota do editor

Último poste da série de 9 de julho de 2019 > Guiné 61/74 - P19959: Parabéns a você (1651): Adriano Moreira, ex-Fur Mil Enf.º da CCAÇ 2412 (Guiné, 1968/70) e Arménio Estorninho, ex-1.º Cabo Mec Auto da CCAÇ 2381

quinta-feira, 11 de julho de 2019

Guiné 61/74 - P19969: Notas de leitura (1196): "SE SENTES NÃO HESITES", por Manuel Clemente; alma dos livros, 2019 (Mário Migueis da Silva)

 


1. Em mensagem datada de 9 de Julho de 2019, o nosso camarada Mário Migueis da Silva (ex-Fur Mil Rec Inf, Bissau, Bambadinca e Saltinho, 1970/72), fala-nos do livro "SE SENTES NÃO HESITES", da autoria de Manuel Clemente, filho do Coronel Carlos Clemente, ex-Capitão, Comandante da CCAÇ 2701 que esteve no Saltinho.



"SE SENTES NÃO HESITES" é o novo livro de Manuel Clemente, lançado pela “alma dos livros” em Maio passado.

Convidando-nos a refletir sobre como encarar e viver a vida de uma forma diferente, mais consentânea com a felicidade que tanto almejamos e, sem dúvida, merecemos, tem estado no top de vendas da Bertrand e da FNAC, entre outras, e caminha já a passos largos para a sua 3.ª Edição (1.ª em Maio/2019 e 2.ª em Junho/2019), ou não tivesse sido considerado entretanto pela crítica competente O LIVRO REVELAÇÃO DO ANO.

Ainda assim, na perspetiva dos colaboradores e seguidores do nossos estimado blog, especialmente voltado, e muito bem, para temas relacionados com a Guerra Colonial/do Ultramar, poderia parecer despropositada, neste espaço tão específico, a alusão a uma obra e a um autor que se vão debruçando sobre assuntos bem diversos. Acontece que o jovem autor não é apenas mais um excelente autor que acaba de escrever mais um interessantíssimo livro, mas alguém que, desde os bancos da faculdade, vem revelando uma simpatia muito especial pelos povos daquela África que nos haveria de marcar para sempre. Formado em Gestão e Engenharia Industrial pelo ISCTE-IUL, interrompeu, a dada altura, a sua atividade profissional para fazer voluntariado de longa duração (cerca de oito anos) em Cabo Verde, dando, assim, livre curso, àquilo que seriam os impulsos dos seu coração. Atualmente, escreve igualmente crónicas de opinião para o jornal Público (suplemento P3) e integra uma organização (PARA ONDE) que apoia projetos de voluntários para todo o mundo.

Dizer, por fim, que o jovem e conceituado escritor é filho do Coronel Carlos Clemente, que acompanhou na sua recente visita ao Saltinho, conforme fotos anexas (Carlos Clemente comandou, em 1970 e 1971, a CCAÇ 2701*, cuja malta muito justamente o haveria de homenagear, um ano atrás, durante o penúltimo convívio da Unidade, realizado no Sameiro, em Braga).

E SENTES curiosidade, NÃO HESITES e adquire o título recomendado para os teus (e/ou dos teus) momentos de reflexão e sossego.

E, já agora, um bom Verão para todos.
Mário Migueis
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*Unidade a que pertenceram os nossos camarigos Martins Julião e Fernando Mota (então, alferes milicianos), e onde esteve adido, com o seu Pel Caç Nat 53, o intrépido Paulo Santiago (igualmente ex-alferes miliciano), que tão bem conhecemos.

Pela parte que me toca, tive a felicidade de ter privado com todos eles até ao seu regresso definitivo à metrópole nos princípios de 1972.
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Em Bissau, um ano atrás. Na primeira linha, o coronel Carlos Clemente, o filho, Manuel Clemente, e dois parentes do Sado, que aparece de pé, junto a um amigo do coronel, que também não quis deixar de o acompanhar nesta visita de cortesia à Guiné-Bissau. As restantes três pessoas são também amigos muito próximos do Sado (a ele se referiu já várias no blog o Paulo Santiago), que, como ele, residem em Bissau.

Carlos Clemente e Suleimane Baldé, régulo de Contabane – Saltinho/2018

Carlos Clemente no Saltinho, ladeado pelo amigo que o acompanhou à Guiné-Bissau e pelo atual régulo de Contabane, Suleimane Baldé. Também de pé, o Sado Baldé, quadro superior da Guarda Fiscal, que o capitão Clemente, no final da comissão, trouxe consigo – o Sado era ainda um miúdo – para Bissau, assegurando-lhe condições de estadia e ingresso imediato no liceu.

Carlos Clemente, amigo e filho, ladeados por um numeroso grupo de moradores do Saltinho - 2018
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Nota do editor

Último poste da série de 10 de julho de 2019 > Guiné 61/74 - P19962: Notas de leitura (1195): "Crónicas de um tenente", de Fernando Penim Redondo, Lisboa, edições Colibri, 2019, 188 pp. Prefácio de Mário de Carvalho (A. Marques Lopes)

Guiné 61/74 - P19968: (In)citações (135): Achega II - E o PAIGC exaltou o Comandante Guerra Mendes a substituto de Salazar, na toponímia de Bissau (Manuel Luís Lomba)

1. Mensagem do nosso camarada Manuel Luís Lomba (ex-Fur Mil da CCAV 703/BCAV 705, Bissau, Cufar e Buruntuma, 1964/66) datada de 10 de Julho de 2019, com mais uma "achega":

ACHEGA II*

Protesto o meu respeito à laboriosa pesquisa histórica da Guerra da Guiné pelo Beja Santos, Jorge Araújo, José Matos, José Martins e de outros “camarigos”. Os seus actores não precisam de reescrever a sua história; mas, às vezes, sentimos a pulsão de chamar a “verdade dos factos” à colação das meias-verdades de muitos comunicadores.

O PAIGC foi fundado em 19 de Setembro de 1956, não por Amílcar Cabral (estava em Angola), mas por Rafael Barbosa, escriturário da construção civil, e por Fernando Fortes, chefe da Estação Postal Provincial, em Bissau, sob o acrónimo de PAI (Partido Africano da Independência), homónimo do Partido Comunista do Senegal, ambos militantes do Partido Comunista Português, no contexto do alinhamento deste com as conclusões anticoloniais da Conferência de Bandung, de Abril de 1955, e da proclamação do “direito das colónias à autodeterminação”, do XX congresso do PCUS, em Fevereiro de 1956.

Amílcar Cabral aderiu-lhe como militante e, em 1959, por negociação com os seus poucos pares e sem outra formalidade, Rafael Barbosa passou a presidente, ele a secretário-geral, Aristides Pereira a secretário-geral adjunto, objectivou-o também a Cabo Verde e mudou o seu acrónimo para PAIGC. O presidente manteve-se em Bissau, enquanto os dois secretários-gerais se expatriavam, avisadamente, – a PIDE instalara-se em Bissau no ano anterior. O PAI, o PAIGC, em Bissau, e o PAICV seu sucedâneo, na Praia, tiveram génese comunista e cabo-verdiana.

O PAIGC desencadeou a sua Guerra da Guiné nos princípio de 1963, com dois ataques à guarnição militar de Tite; mas, a Guerra da Guiné foi iniciada pelo MLG (Movimento da Libertação da Guiné), fundado em 1959, em Bissau, o primeiro partido emancipalista a desencadear ataques e emboscadas, nas áreas de S. Domingos, onde vitimou o Capitão de Cavalaria António Lopo Machado do Carmo, o primeiro oficial profissional a morrer em combate na Guiné, pilhagens a Susana e Varela e também atacou o aquartelamento de Bigene, iniciados em Julho de 1962 e activos até Fevereiro de 1964, até a manobra de Amílcar Cabral e o seu “charme” diplomático conseguir o desapoio da Organização da Unidade Africana e a perda da simpatia pela ONU.

O MLG expatriara-se para Dandula-Turene, Senegal, na sequência da agitação dos marinheiros de cabotagem, – a famigerada greve e o “massacre” do Pidjiquiti -, em Agosto de 1959, de sua inspiração e com o contributo do seu militante Luís Cabral, que virá a ser o presidente do PAIGC e primeiro PR da Guiné-Bissau, então guarda-livros da Casa Gouveia (Grupo CUF), empregadora da sua maioria. Esses ataques foram organizados e comandados por Pierre Mendy, um manjaco senegalês, já licenciado do exército francês e que combatera na Guerra da Argélia, e neles participou o guineense Momo Turé, que virá a ser um dos assassinos de Amílcar Cabral.

Os comandantes do PAIGC, que mais infernizaram a vida aos soldados portugueses e às populações, foram os 30 tirocinados na China, na “geração” de Mao-Tse-Tung.

O Rui Demba Djassi, era um jovem activo e turbulento duma família de funcionários públicos, residente na então rua de S. Luzia, entre o estaleiro da Tecnil e o Quartel-General do CTIG, desertara do EP para o PAIGC com o posto de furriel miliciano, e, antes de assentar praça, fora cobrador da Farmácia Moderna, muito dedicado à Dr.ª Sofia Pombo Guerra, comunista portuguesa e uma das mães da independência da Guiné (os guineenses não deixaram de ser polígamos na política…).

Foi o primeiro operacional dos primeiros 30 formandos militares e ideológicos na China, o primeiro instrutor da base de Koundara, vila da República da Guiné, a primeira base do PAIGC, à distância rodoviária de cerca de 30 quilómetros da fronteira com Buruntuma, foi nela que instruiu e foi dela que partiu o grupo de combate, o seu comando dividido com o Bobo Quetá, ex-futebolista de “Os Balantas” de Mansoa, para desencadear a sua guerra da Guiné, com esses dois ataques a Tite, no coração da Guiné - o de 6 de Janeiro, lançado sobre o edifício que encarcerava cerca de 100 “subvertidos” e o de 27 de Fevereiro de 1963, sobre a messe dos sargentos, ambos repelidos, no segundo foi decisiva a prestação da malta da “Maria Albertina”, autometralhadora Fox, do Pelotão de Reconhecimento enviado de Aldeia Formosa (Quebo), em reforço da guarnição.

Osvaldo Vieira, um dos principais formandos ideológico-militar na China, fora também empregado da Dr.ª Sofia Pombo Guerra, em Bissau, outro furriel miliciano desertor do EP, pontificava na Frente norte, Oio, Morés, etc., e, o seu primo Nino Vieira (terá sido cabo na guarnição da Guiné?), o principal formando na China, pontificava na Frente sul, há dois anos "enfeudado" com 300 combatentes, “pacificamente”, nas ilhas do Como, Caiar e Catunco - a sua “república independente” do Como, enquanto não foi extinta pelas NT, com a Operação Tridente, no primeiro trimestre de 1964.

Rui Djassi havia sido transferido para o posto de Vitorino Costa, irmão do Manuel Saturnino, morto no assalto das NT à tabanca de S. João, que tiveram a infeliz (no mínimo) ideia de passear a sua cabeça como troféu, transferido por Amílcar Cabral do seu posto do Gabú, quando falhava clamorosamente a sua subversão – os fulas eram refractários ao PAIGC e à sua mensagem.

Considerado o momento fundacional da nacionalidade bissau-guineense, iniciado em 12 e fechado em 16 de Fevereiro de 1964, no auge da Batalha do Como/Operação Tridente, o famigerado Congresso de Cassacá aprovou a sua “Lei constitucional” e o seu “Código de Justiça”, explicitadas pelo advogado José Araújo, ex-jogador da Académica de Coimbra. Invocando essa legalidade, no dia 17, Amílcar Cabral presidiu ao julgamento dum grupo de correligionários “criminosos”, entre os quais Rui Djassi, condenou três à morte por fuzilamento, o Nino Vieira e o Francisco Té providenciaram a execução, mas perdoou o Rui e deu-lhe a oportunidade de reabilitação no lugar do Vitorino Costa – expondo-o à maldição legada pela malta da CCaç 153, do RI 13 de Vila Real, e do seu capitão Carreto Curto, cuja morte havia decretado, como responsável da morte e da decapitação do Vitorino Costa.

Em 24 de Abril de 1964, dois meses depois, o Rui Djassi também foi eliminado pelas NT e Aristides Pereira mandou o Guerra Mendes para o seu posto, que lhe desobedeceu e que as mesmas eliminarão, um ano depois, em 14 de Fevereiro de 1965.

Quando o MLG e o PAIGC desencadearam a sua “guerra de libertação”, a Guiné-Bissau era uma criação territorial, administrativa e diplomática dos portugueses, mas apenas nominalmente portuguesa, sempre pertencera a guineenses e a cabo-verdianos – aqueles por direito próprio, como seus naturais, e estes como seu destino de emprego, nos serviços da administração pública, no comércio e serviços. Em 1961, havia menos de 1000 portugueses da Metrópole e ilhas adjacentes residentes na Guiné, contando os colonos, patentes militares e quadros públicos.

Os bissau-guineenses não se têm furtado ao reconhecimento que o continuado falhanço do seu Estado advirá do ADN ideológico do PAIGC, quando partido único e totalitário. A sua nacionalidade foi fundada por Amílcar Cabral, foi o PAIGC que a formatou em Estado, a matéria-prima era portuguesa, mas o seu modelo e metodologias eram fantasias, estranhas ao povo guineense.

Amílcar Cabral era português de Bafatá e a sua mulher Maria Helena era portuguesa de Chaves, ele acedeu e formou-se como bolseiro do Estado Português, a Casa dos Estudantes do Império, a cultura e a língua portuguesa foram a matéria-prima com que fundou a nacionalidade bissau-guineense, o seu conhecimento consolidado, como altos funcionários do Estado português, em Lisboa, Luanda e Bissau, iniciou os preparativos internacionais da sua luta com passaporte português, custeou as primeiras despesas da sua luta com escudos$ do seu ordenado e com escudos$ dos recursos da esposa, ter-se-á motivado ao tirocínio na China, para chefe militar, por ter sido oficial miliciano português e foi recrutar a primeira geração dos seus quadros combatentes ao Exército Português – sargentos e praças guineenses e oficiais cabo-verdianos.

Dos seus 60 primeiros quadros operacionais e ideológicos, construtores da nacionalidade e do Estado bissau-guineense, 30 foram mandados para a China, a tirocinar a luta de guerrilha, 25 para a Checoslováquia, a tirocinar para as polícias de segurança e para o controle político de partido único, e 8 para a União Soviética, a tirocinar Economia planificada. A ideologia de partido único, imposta nesses países, terá sido a sua má companhia.

O seu mais alto magistrado da Nação, o primeiro independente, ignorou a ética castrense da obediência ao poder instituído, e mandou fuzilar, alguns já julgados e absolvidos, cerca de 10.000 mil guineenses militares e militarizados, formados técnica e civicamente pelas FA portuguesas, em vez de os reconverter em FA nacionais da Guiné-Bissau.

Os quadros militares formados na China e noutros países de partido único, em vez de servirem o país, viraram as suas armas “libertadoras” contra o seu povo, usaram-nas para se servirem dele. Os quadros policiais, formados na Checoslováquia, em vez de servirem as populações e a administração interna, espiavam-nas e faziam desaparecer os que ousavam tecer qualquer crítica. E os quadros políticos formados na União Soviética não estilhaçaram a economia como delapidaram a generosidade financeira da comunidade internacional. E o tráfico de cooperantes pouco lhe valeu…

O destino foi muito cruel com Amílcar Cabral e menos com a sua ex-mulher. Morreu como como português emigrado, conselheiro Técnico contratado pelo ministério do Desenvolvimento Rural da República da Guiné, e, diplomaticamente, como Mohamed Benali, cidadão marroquino, e é cidadão bissau-guineense póstumo. A Maria Helena, divorciada desde 1966, foi sempre portuguesa, fará carreira como docente da Universidade do Minho e acabará os seus dias em Braga, em 2005.

E o PAIGC exaltou o Comandante Guerra Mendes a substituto de Salazar, na toponímia de Bissau.
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OBS: - Subtítulo da responsabilidade do editor
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Notas do editor

(*) - Vd. poste de 3 de julho de 2019 > Guiné 61/74 - P19943: (Ex)citações (353): Uma achega referida à circunstância da morte em combate de Guerra Mendes, comandante do PAIGC (Manuel Luís Lomba, ex-Fur Mil da CCAV 703 / BCAV 705)

Último poste da série de 11 de junho de 2019 > Guiné 61/74 - P19883: (In)citações (134): Os Coirões de Mampatá, CART 2519 (1969/71) (Mário Pinto, 1945-2019)