sábado, 6 de julho de 2019

Guiné 61/74 - P19952: Os nossos seres, saberes e lazeres (337): Na Bélgica, para rever e para descobrir o nunca visto (4) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 5 de Fevereiro de 2019:

Queridos amigos,
Era meu firme propósito aqui falar de uma Bruxelas que ainda não se invocara em memórias anteriores. Desta feita, é uma peregrinação sentimental, uma amizade de quarenta anos, ele vai desfazer-se da sua casa e parte para uma residência, anda muita melancolia pelo ar. Então, ocorreu-me, por que não peregrinar como se fizera nessas visitas primigénias, a calcorrear e a pôr os olhos no que os guias turísticos promovem como as grandes belezas do património arquitetónico e natural? É o que está a acontecer, a vistoriar feiras da ladra, lojas de livros e discos em segunda mão, andando por praças e avenidas, batendo à porta de museus. Sabe-se lá bem porquê, havia momentos desta agridoce peregrinação em que me recordava dos tempos da Europália 1991, dedicada a Portugal, a adubadora das visitas, visitando Goa, o Brasil, o barroco, o azulejo, feliz pelos comentários que ouvia à comunidade internacional.
Tempos idos, mas a mesma Bruxelas me acolhe de braços abertos, e eu retribuo - há fidelidades que nos enlevam.

Um abraço do
Mário


Na Bélgica, para rever e para descobrir o nunca visto (4)

Beja Santos

Sempre que deambula pelo centro de Bruxelas, o viandante vai espreitar o Mercado Saint-Géry, uma construção que data de 1881, vem nos livros que na Idade Média aqui existiu uma capela dedicada a Saint-Géry, patrono da paróquia e antigo bispo de Cambrai, aqui perto corria o Senne, um rio que hoje se encontra entaipado. O que foi mercado de muitas vitualhas aparece agora recomposto no seu estilo eclético, é um belíssimo espécime da arquitetura dos mercados cobertos, o seu exterior é estilo neorrenascença-flamengo e o interior prima pela sua ossatura metálica. É um centro de lazer, de venda de materiais relacionados com urbanismo e ambiente, e tem uma área de exposições. O viandante senta-se e delicia-se com a vida ali à volta, dá gosto ver este mercado de galinhas e peixarias transformado num polo cultural de referência.


Outro ponto de passagem obrigatório é o Teatro de la Monnaie, uma das salas de música a que se agarra a sua memória, sempre que vinha aqui trabalhar ou em férias tratava de encontrar um espetáculo a seu gosto, e sorte não lhe faltou. Não há agora condições para encontrar um espetáculo que o deleite, questões de calendário, mas impressiona-o sempre a qualidade dos cartazes, desta feita trata-se de uma ópera do checo Leoš Janáček “Da Casa dos Mortos”.


O ponto de paragem obrigatório seguinte é Le Botanique, jardim de cultura, entra-se na imensa Rue Royale e logo o viandante se deslumbra com uma belíssima montra Arte-Nova, deu algum trabalho encontrar um ângulo com os carros a passarem rente, não é uma imagem muito bem sucedida, guarda-se o prazer de partilhar a satisfação de aqui se exibir uma montra ao gosto antigo, há seguramente restauro bem feito, a montra bem o merece.


A Coluna do Congresso é inescapável pela sua monumentalidade e pelo que simboliza na identidade belga, comemora a adoção da Constituição do país pelo Congresso Nacional, que se separou os Países Baixos Meridionais dos Setentrionais, em 1831 nascia a Bélgica e a Holanda ficou minguada de território. Vivem sem rancor, troçam-se mutuamente, como nos casos de países fronteiros.


Chegou a hora de entrar no Botânico, no esplêndido edifício e nos seus belos jardins. O edifício é o centro cultural da comunidade francesa na Bélgica, os jardins são altamente aprazíveis. Em 1826, era dos grandes projetos urbanísticos, destruíram-se as muralhas da cidade, e ainda sob o domínio holandês fundou-se a Sociedade Real de Horticultura, aqui nasceu o Jardim Botânico. O edifício é uma fachada neoclássica com uma rotunda central com cúpula, era a antiga estufa, tudo já desativado e transformado em salas de exposições. O terreno é um declive que permitiu a combinação de estilos: estilo francês, estilo italiano e tanques à moda inglesa. O parque está dotado de 52 esculturas que evocam o tempo, as estações, as plantas e os animais. Dentro da reorganização do espaço do edifício, é cativante ver estes sinais da modernidade, como se uma verdura fosse tomando conta das paredes, pronta a irromper em direção aos céus.




Passeou-se no interior como gato pelas brasas, tempos houve em que a programação cultural era extremamente aliciante, o viandante recorda exposições como a Arte-Déco nos transatlânticos, o ético e o jurídico na arte fotográfica, a própria banda-desenhada. O que está a dar são umas coisas minimalistas vendidas como o mais transcendente da contemporaneidade, vão gozar com a prima deles, com aquelas frases pomposas que vivemos numa época de saturação de sinais e da réplica das imagens, e mostram-nos uns panos crus pintalgados numa cordas de roupa, como certificassem um olhar inovador sobre a arte…


Chama-se a esta artéria Rue Neuve, é toda ela comércio da globalização, aqui encontramos a Zara, a H&M e todas as lojas Casa dos nossos centros comerciais. Já houve cinemas e casas de chá antes do exacerbamento da sociedade de consumo, é hoje assunto do passado. O viandante veio à procura da Igreja de Nossa Senhora da Finisterra, tem um longo currículo de aqui se apresentar, senta-se e medita, depois mergulha noutra direção. Mas registou uma arte insólita, um jovem rodeado de vasilhames, até velhos baldes de tinta aproveitou, apresentou o seu espetáculo de precursão, esfalfava-se e extraiu sonoridades que nem as da banda da Guarda Republicana. E agradecia muito satisfeito os donativos.



Como em muitos outros espaços de culto, os antecedentes de Nossa Senhora da Finisterra têm largos séculos de outros santuários. A atual casa de culto é do século XVIII, são linhas barrocas bem marcadas pelo Renascimento Clássico, com ADN no barroco do Brabante, tem a sua elegância e o seu interior harmoniza bem a opulência com o convite à conversa consigo próprio.




Sejamos económicos nos rasgados encómios aos belos murais que Bruxelas oferece, sempre sonhadores, a remeter para formulações da banda-desenhada, alegrando a cidade, nunca a desfeando, o viandante vai atento a novas manifestações decorativas, dá por bem aproveitado o seu passeio. Há mais de quarenta anos que aqui vem com regularidade e nunca se cansa. É obra, e o viandante quer que o seu sonho prossiga.

E daqui se parte para o local icónico do centro de Bruxelas, a Grand-Place.

(continua)
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Notas do editor

Vd. poste de 29 de junho de 2019 > Guiné 61/74 - P19928: Os nossos seres, saberes e lazeres (334): Na Bélgica, para rever e para descobrir o nunca visto (3) (Mário Beja Santos)

Último poste da série de 4 de julho de 2019 > Guiné 61/74 - P19947: Os nossos seres, saberes e lazeres (336): As minhas loucuras no Porto... (Virgílio Teixeira, ex-alf mil SAM, CCS/BCAÇ 1933, Nova Lamego e São Domingos, 1967/69)

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