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segunda-feira, 2 de outubro de 2023

Guiné 61/74 - P24720: Coisas & loisas do nosso tempo de meninos e moços (6): Olha o ceguinho de um olho, é prà pulga e prà piolho! (Luís Graça, Lourinhã)


Fonte Propagandas Históricas (com a devida vénia...) 

"Olha o ceguinho de um olho, é prà pulga e prò piolho!"...

por Luís Graça (*)


1. Eu ainda sou do tempo do óleo de fígado de bacalhau. Na idade de ir para  a escola, já com sete anos feitos (em 29 de janeiro de 1954), a caminho portanto dos 8,  lembro-me de tomar,  às refeições, uma colher de sobremesa   desse "milagroso óleo" que nos anos 40 e 50 do século passado estava na moda. 

Já não posso precisar se era uma colher de sopa, a "dose de cavalo", se apenas uma colher de sobremesa, quantidade mais indicada para crianças abaixo dos 12 anos. Nem sei se tomava  todos os dias. 

Como o nome sugere,  o óleo de fígado de bacalhau  ("cod liver oil", em inglês) era(é) extraído do fígado do bacalhau, considerado rico em vitamina A, vitamina D e ómega 3. 

 Na época, no pós-guerra, eram ainda muitas as carências aiimentares, e à nossa mesa não chegavam os suplementos nutricionais de hoje.  A criança comia a comida dos adultos,  e o próprio leite, â parte o leite materno, era um luxo. (O Oeste não era uma zona de criação de gado leiteiro, e uma grande parte dos seres humanos são intolerantes à lactose.)

Ao que parece, o óleo de fígado de bacalhau já dera utilizado há muito como complemento alimentar nos países do Norte da Europa, em especial nos países nórdicos, onde era(é) mais a baixa a exposição da pele ao sol (importante fonte de  produção de vitamina D). 

Por sua vez, a  Emulsão Scott,  um medicamento tradicional à base de óleo de fígado de bacalhau, era popular na América desde os anos de 1830.

No sítio brasileiro, Propagandas Históricas, fomos encontrar um anúncio de 1906 fazendo a publicidade dos benefícios do óleo de fígado de bacalhau. Era uma "preparado especial", da firma  J. Coelho Barbosa & C. Vendendo-se nas farmácias. de São Paulo, apresentava-se como  um conccorrente ("homeopático"...) da industrializada Emulsão Scott dos gringos.

O óleo de figado de bacalhau  continua hoje a vender-se nas farmácias ou nas lojas de produtos naturais, em cápsulas ou em emulsão ("xarope")... No nosso tempo, o raio do "xarope"  (que fazia bem aos ossos...) tinha um cheiro e sobretudo um sabor extremamente desagradáveis. A nossa primeira reação era de recusa, rejeição, vómito. 

As nossas mães, para nos obrigar a tragar a "horrível mistela", apertavam-nos o nariz, sem qualquer cerimónia. Com a goela escancarada, era só enfiar pela boca abaixo uma colherada do "xarope"... Era a nossa tortura (já não me lembro se era diaria e se era ao almoço, se ao jantar).

Segundo apurei, numa das farmácias da Lourinhã do pós-guerra, o óleo de fígado de bacalhau era fornecido em grandes frascos e depois acondicionada em frascos mais pequenos, para venda ao público. Recorde-se que só a partir os anos 50 há uma desenvolvimento, exponencial, da indústria farmacêutica. As farmácias  tinham muito poucas caixas de medicamentos  (aspirina, supositórios, e pouco mais).  Viviam  até então da manipulação de fórmulas,  da venda de "produtos naturais",  tudo em frascos.  

2. Na época tínhamos problemas de subnutrição, raquitismo, pulmões e... "escrófulas" ("doença crónica e hereditária das glândulas linfáticas em que se alteram os fluidos que contêm, formando tumores que se podem ulcerar", segundo a sintética definição do Dicionário Priberam da Língia Portuguesa)... Havia muita miudagem "escrufulosa" (que termo horroroso!)  e  nessa época o arsenal terapêutico ainda era muito reduzido...  

Andávampos sempre com montes de infeções, nomeadamente nas pernas e braços... O antibiótico mal tinha chegado e a vacinação (obrigatória) também chegava tarde à escola. (Acho que a primeira vacina que tomei foi a BCG. ) A tuberculose tinha ainda uma alta taxa de incidência, tal como as enterites, as diarreias, os problemas respiratórios e outras doenças infeto-contagiosas... 

A falta de higiene pessoal e ambiental (não havia recolha do lixo, ia tudo para o quinteiro ou esterqueiro, nos campos), o contacto com a terra, o estrume, os dejetos humanos,  etc., a par das deficièncias alimentares e da falta de serviços públicos de saúde  (só mais tarde apareceram os centros de saúde materno-infantil, na década de 60) explicam uma parte da morbimortalidade das crianças, no campo e na cidade...

Para dar um exemplo: quando eu tinha 14 anos, em 1961, no início da guerra colonial, ainda morriam 88,8 crianças com menos de um ano de idade por cada 1.000 nascimentos (!). (Cerca de 120, no imediato após-guerra.)

Nos anos 50 havia três médicos residentes na minha vila,  para uma população que devia andar já perto dos 22 mil (o concelho).

Também sou do tempo em que, no início dos anos 50,  se começou a beber leite, na minha terra e na minha rua...

 Um vizinho, que na periferia da vila, criava vacas leiteiras começou a vender leite porta a porta, com a bilha de folha de Flandres ao ombro... Leite ainda quentinho da vaca, que não passava por nenhum processo de pasteurização nem controlo de higiene  ou qualidade...

São estas e outras as lembranças, ainda vivas, da minha infância passada na Rua do Castelo. O ti’ Clemente Leiteiro, com a bilha do leite, de folha de Flandres já muito amolgada, que ia de porta em porta, vendendo um quartilho de leite,  acabado de tirar da teta da vaca!... Só não me lembro do seu pregão... "Leite que sabia a mijo", diziam os putos com as mães a apertarem-lhes o nariz para eles abrirem a boca. O leite, o óleo de fígado de bacalhau e, já agora, os ovos crus (com um furinho em cada ponta, para a gema e  a clara sairem inteirinhos, num jacto),  tomavam-se a fazer caretas… mas eram a medicina do pobres. 


3. Também sou do tempo do DDT (sigla de diclorodifeniltricloroetano), considerado o primeiro grande pesticida moderno, com extensivo e intensivo uso durante e após a II Guerra Mundial para combater doenças como a malária e o tifo (que dizimavam os soldados nos países subtropicais), e depois as pragas agrícolas. 

 As nossas mães, sem suspeitarem sequer dos graves inconvenientes que, a longo prazo, tinha o raio do inseticida para  a saúde humana (e ambiental) , utilizavam o DDT alegremente para matar pulgas e piolhos, não só na roupa da cama como no couro cabeludo da criançada ("canalha", no Norte).... 

Quando chegávamos a casa, com um camadão de piolhos apanhados na escola,  no recreio ou nas brincadeiras de rua, era um dia de amargura... A receita dolorosa mas milagrosa era água a ferver, pente de dentes finos de osso de baleia, e DDT, nuinhos dentro da tina de  folha de Flandres, com o fundo de madeira, que servia de banheira (a casa de banho moderna ainda era um luxo que nem sequer entrava nos nossos sonhos)...

Era uma "vergonha" uma criança. filha de "gente decente" (sic), apanhar pulgas e piolhos!,,,

Há quem se lembre (gente da minha idade) de ver e ouvir o vendedor de DDT, na feira do Marco de Canaveses, nos anos 50/60, apregoar o famigerado inseticida:  "Olha o ceguinho de um olho, é prà pulga e prò piolho!"...

Felizmente o DDT acabou por ser banido, há já alguns anos (em data que de momento não posso precisar). Mas foi largamente utilizado em Portugal como insecticida nacahricultura e nas campanhas contra a malária (ou "sezões"), nomeadamente nas regiões produtoras de arroz do sul do país.

Enfim, pobretes, mas alegretes!... LG

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